Dói-me o medo

CCB, Lisboa, 6 Outubro

 

[dropcap]P[/dropcap]ara alguns, o Verão interrompe o rolar dos dias, pedras lisas em fundo de rio. Há até quem viva mais por não haver nuvens e o mar lhe beijar os pés e os olhos. E muitos mundos se descobrem nos quais as estações se revelam indiferentes, nada nelas se apanha, são apenas mais paisagem a passar.

Em pleno dia de eleições, o Obra Aberta regressou com local e horário para a gravação ao vivo no Centro Cultural de Belém. Trocámos as lombadas da sala de leitura pelo horizonte azul da sala Ribeiro da Fonte e o fim da tarde, de quinta, pelo fim da manhã, de domingo. E começámos com Paulo José Miranda que descobriu, a julgar pela sua biografia na badana da biografia «A Morte Não é Prioritária», que o seu destino outro não era que contar-nos a vida de Manoel de Oliveira. Certo é que o faz muito bem.

Veio de par com Benjamim, que já foi Walter, e se revelou um leitor atento dos meandros da música. Afinal, um manual, por mais técnico, pode ajudar-nos a desdobrar esferas, a viver nas superfícies movediças do viver. Andei dias a ouvir «Madrugada», do seu mais recente «1986».

«Por cada hora que acabar/ Tenho outra guerra para travar/ Eu tenho a casa a arder/ E só vou chegar de madrugada// Eu olho-me ao espelho porque às vezes espero/Pelo meu regresso à estaca zero/ Eu nunca me encontrei no endereço errado/ É que é melhor falhar do que passar ao lado».

Casa José Saramago, Óbidos, 10 Outubro

Não vos conto das corridas travadas para conseguirmos chegar ao momento em nos sentamos perante ilustre plateia para anunciar dose dupla do José Luiz [Tavares]. Comecemos por esta coincidência rara, e para mim prazenteira, de duas editoras se juntarem para celebrar um mesmo autor. «Instruções Para Uso Posterior ao Naufrágio», sob o signo da viagem ao coração do poema, mereceu por parte da Imprensa Nacional, de Duarte Azinheira, o prémio Vasco Graça Moura, o qual gostaria, estou em crer, de ser evocado por junto com «Ku Ki Vos/Com Que Voz», título que reúne sessenta e cinco sonetos de Camões atirados pelo poeta caboverdeano às ondas da sua língua materna. O tom de verde sujo da capa, no formato próxima de uma das edições mais manejadas de «Os Lusíadas», introduz o notável tour de force, que inclui até a proposta de variantes, sempre em busca da palavra exacta, tantas vezes com ternura. E quem o demonstrou sabe melhor, pois a professora Dulce Pereira sabe bem dos modos, nem sempre suaves, como as línguas se entretecem.

Avisa o Zé Luiz no prefácio, e só posso sublinhar. «Nalguns passos terei traído miseravelmente o grande Camões, mas a língua cabo-verdiana terá ganho um incontornável monumento literário, fecundo solo onde amanhã poderão enraizar-se os poetas cultos e eruditos, e todos aqueles que apostam num porvir de poética resplandecência para a nossa sagrada e maltratada língua materna, por vezes rebaixada por alguns nostálgicos filhos dos sobrados que soçobraram (ainda que em pose professoral, ou de tardios, rasos escribas, alcandorados aos pináculos de patuscas academias, em perseguição da glória no céu chão da literatura), quando não mesmo funestos peões, padecentes de mal disfarçada síndrome de orfandade identitária, ou de derrotadas visões luso-tropicalistas, ou ainda de caducos e reincidentes propósitos adjacentistas. Sirva este trabalho (ambicioso enquanto ideia, se não pelo resultado) como pretexto de um fito bem maior: a construção duma comunidade de povos, línguas e culturas, ao abrigo de tentações hegemónicas, tutelares ou neo-imperiais, ainda que urdidas sob os véus da «política da língua».

E temos doravante, por sugestão feliz do Jorge [Silva], mestre do desenho da página, um logótipo em caboverdeano, abrindo o círculo às profundezas ao céu: abysmu.

Tenda dos Editores, Óbidos, 11 Outubro

Mais uma corrida, mais uma viagem, os pequenos nadas a rolarem nas margens do rio e «As Orelhas de Karenin» chegam imediatamente antes de subirmos ao palco para apresentar o volume #100 da abysmo (mise en). Apurem os ouvidos para entender ao que vem este tufão, um vórtice que se ergue a partir dos restos do corpus da tradição, dos corpos femininos, dos rostos dos mitos, das cicatrizes do quotidiano, do fogo que nos faz arder a cada instante. São, afinal, vários livros que se aqui se apresentam, a começar pro aquele que os desenhos do Pedro [Proença] suscitaram no devir da Rita [Taborda Duarte]. Cada livro espreme-se em resumo, para o carrocel ganhar balanço, e armar a teia que parte ao encontro dos que acreditam ser o mundo feito de palavras. Os resumos estão em papel diferente, para tornar mais luminosa a ruptura do que sobra, o que pode perdurar dos poemas anteriores, o que fica do que passa. Mas será tanto assim? Deixamos cedo de saber quem desafia quem, se os desenhos respondem ou interpelam. O Pedro transfigurou-se em máquina de recriar corpos, de recombinar as figuras dos mitos fundadores e o seu traço ganha a ligeireza de uma escrita. Os desenhos são agora texto e as palavras a imensa escultura, que pode ser casa e intimidade ou paisagem e urbe. Não se deixem enganar, este livro está feito uma máquina criativa, que precisa apenas dos nossos olhos leitores para se pôr em movimento.

Tenda dos Editores, Óbidos, 12 Outubro

«O Tempo e o Medo», com piscadela de olho à revista completamente esquecida, até na programação, fez-se tema desta edição do Fólio. Na linha do «Nuvens», tratámos de compor com o Carlos [Morais José] jornalinho de campanha, suplemento h deste jornal que se faz girândola, que enfrentasse o medo de enfrentar os medos e assim fosse pretexto para esta mesa, na qual pontuaram a Ana Teresa Sanganha e a Patrícia Câmara, do lado psi das ciências, do António Eloy, com os quatro cavaleiros do Apocalipse, ecológico e outros, e o David Soares, escritor e tradutor, com abundante trabalho nestas áreas recônditas da literatura. O conjunto seria orquestrado pelo Carlos, cuja tese de doutoramento rondava que nem lobos este mesmo assunto. Uma hora foi pouco para perseguir a fronteira com que o medo nos separa das coisas e do outro, do escuro e do mundo. Leva por título, «Quem Tem Cu». «É na sôfrega e imobilizadora força do medo que o humano, mais humano, revela a sua humanidade», escrevem a Ana Teresa e a Patrícia. «Fiel depositário da perda, o medo é o limite que nos limita, contidamente, pelo seu arguto controlo.

No grito, confunde-se com o pânico, mas, no sussurro, é angústia acutilante ou sistema de alerta contra predadores.»

O jornal, com a inestimável colaboração da Ler Devagar, surgiu de um dia para outro, sim, literalmente, e volta a juntar em um arrepio a reflexão, a poesia, a ficção e a pintura. Ontem era o caos informe, hoje uma existência esvoaçante me papel de jornal. De tanto desejar pelos fechos de redacção, transformei os meus dias em maratona de linhas mortas. Cícero, citado pelo Fernando [Sobral], dizia no seu escultórico latim, «nem esperança, nem medo». O Henrique [Fialho], no final do seu conto, escreve para mim: «Diagnóstico: dói-me o medo».

Óbidos, 13 Outubro

Múltiplas são as perspectivas com entrever um festival, quer dizer, encontros sociais, pequeno teatro de vaidades e outras extravagâncias. Diverte tanto que até magoa a dança com que certas criaturas vão dispondo os corpos, quando os conseguem os passos que a coreografia exige, para que os olhos não se cruzem. E, portanto, não se obriguem ao encontro breve e constrangido, a fingir alegrias de pechisbeque. Bendita hipocrisia, essa cola do bem-estar social.

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