Uma palavra onde qualquer coisa

Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 3 Julho

 

[dropcap]D[/dropcap]eu umas voltas, logo depois das que contém desenhadas. Diz o carimbo que é oriundo do Alto Minho, embora a assinatura marque Caldas da Rainha. Estou em crer que a matéria do meu corpo outra não é senão papel. São páginas do diário da Isabel Barahona (algures na página), reproduções enriquecidas de modo a que o objecto se torne único: rostos, casas riscadas, começos de textos, uma folha de papel copiador kores 420 fabricado em Portugal, com aquele azul tão especial, «turbulento negro e tónico/ poço fundo do ventre-coração», corpos em linha, rasuras, palavras manuscritas redondamente, aqui maiusculadas: «re-escrever re-começar». Há gente do lado de lá em busca de um rosto-casa, (des)inquietados por um qualquer sentido, uma demanda. Amizade será este modo de abrir janelas nestas paredes. Abandono-me neste espreitar.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 3 Agosto

No meu calendário, o ano veste à justa o confinamento. Logo cedo recebi mensagem de «força» do José Ricardo [Nunes] sob a forma deste redondo e apuradíssimo objecto, «Si dispensa dai fiori» (ed. Volta d’mar). Demorei tempo a lê-lo. Passei muito tempo com ele. Fez-se-me refrão, tatuagem: «a minha cabeça é o meu castelo// o meu corpo cabe à justa/ dentro destas paredes». O meu corpo exigiu atenções, foi-se (des)fazendo parede caiada, plena de fissuras magnéticas, até esconsos ressonantes. Segui as pontes de onde provinham os versos, a figura inquietante de Gesualdo, música e fantasma, a pintura de Caravaggio, carne e luz, modelo e tema, raiz concreta e imanência volátil, «até não me lembrar de nada/ estratégia nenhuma,/ tudo fazer parte/ não haver sempre». Deixei, de súbito, de ter o sempre que afinal não havia.

Noutro poema, sempre em voo picado, encontro-me nos «manuscritos atirados para um canto/ deixados semanas sobre uma cadeira/ o espírito da carne/ os saltos bruscos no tempo/ os alongamentos da memória// tudo o que somos/ desfeito por tudo o que somos// sem ser conhecido início/ nem haver propriamente fim».

Agrada-me esta perseguição, este jogo de escondidas com o espelho, a deitar a língua de fora à morte, a desfiar memórias com vista à ressurreição, a regar e dispensar flores, rasurando os monólogos interiores com que ajustamos contas, com que nos ajustamos. Contas feitas, «o que sobra de um homem/ é o seu início». Tens razão, pouco mais resta, mas podemos ainda por uma vez reiniciar, preparar a tela e acertar-lhe com a cor, inventar-lhe um corpo. Podemos ser homem só de inícios? Há muito encontrei uns quantos a quem a vida assenta como luva, que a vestem sem dor nem atrito, enquanto noutros só o gesto singelo de respirar implica esforço e balanço, ranger de arestas, dispêndio de energias. Vou continuar a regressar a estas goivas, de modo a amaciar o madeirame das paredes, que continuam a estender-se em castelo. Ou para lhe escavar os veios em busca de sinais no sangue. Ou com delicadeza para nelas marcar os dias. Para contagem posterior, talvez memória futura.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 4 Agosto

Chegamos ao livro pela autora, Nathalie Sarraute, antes mesmo de no detalhe encontrarmos Luísa Dacosta como tradutora com voz própria, ou (re)pararmos na capa de Sebastião Rodrigues, antes e depois da leitura, para perseguir a ideia movediça que se esconde na elegância das formas. Uma mão negra com as suas linhas marcadas e explicadas a branco, ligações aos ritmos e pulsações de um universo mai-las suas narrativas a prometer facilidades, fios que suspenderão a marioneta. Mas não sei, confesso, se isto queria dizer o desenhador acerca de «Planetarium» (Editorial Minerva). O amarelo parece ter contaminado o miolo, com as páginas quebradiças, como se os olhos tivessem sido pequenos sóis a consumir o branco líquido das páginas. Alguns mistérios se conservam, para além do que as palavras contam, uma dança estonteante de subtilezas, de agudas observações à volta do que mobila as existências, portas e tapetes, cadeiras ou bibelots, assim mais objecto o coro de vozes que desvela modos de ver, as carambolas que resultam do entrechoque singelo entre cada um e o outro, o quase nada que pode tornar-se carne da existência. Cada monólogo um planeta em sistema nem sempre solar, rodando sobre si e projectando nos outros o olhar respectivo, visão com sombras. «Não há união completa com ninguém, são histórias que se contam nos romances – todos sabem que a intimidade mesmo a maior é sempre atravessada a todo momento por relâmpagos silenciosos de fria lucidez, de isolamento…» E o narrador faz de força gravítica, não o lemos apesar de omnipresente, ou só o lemos a ele, que lhe pertence a transparência onde o todo navega, se distende, procura e talvez encontre lugar. Assmi pele da casa – o espelho, por exemplo, mas podia ser quadro ou jarra –, queda et pur em vibração. Encontro inusitado conforto nesta interpretação do título, talvez sítio de encostar a cabeça e ficar a olhar as revoluções dos planetas solitários em que cada um se pode fechar em movimento. Mas pensava há linhas atrás no enigma que me propõe aquela página rasgada ou esta outra por abrir. O anterior leitor saltou estes momentos? Não lhe faltaram o pensamento e a voz das personagens para avançar? Os dedos não soltaram estas duplas? E o rasgão resultou do descuido, de faca torcida, ou do avesso, navalha demasiado afiada para o papel? As páginas rangem agora de tão secas, libertam cheiro acre, soltam pequenos fragmentos, talvez hastes de uma letra, restos de pontuação, provável que seja apenas papel. «Sente-se descontraído, tem vontade de se abandonar», oiço dizer, lá para o final, o personagem (quase) principal. «A vida pode ser agradável. É loucura tomar as coisas demasiado ao trágico, caminhar sempre em cima de andas, empoleirado sobre grandes precipícios…» A vida pode ser tão só livro talvez velho e meio a desfazer-se. Sacudam-se os fiapos, talvez ecos de frase ou palavra, levantemo-nos do sofá e procuremos um objecto com o qual encetar diálogos. «Da mesma maneira que uma mulher abandonada nas ruínas da sua casa que uma bomba destruiu, fixa com olhar embotado no meio dos escombros seja o que for, um objecto qualquer, uma velha faca torcida, uma velha tampa de cafeteira em estanho toda cheia de mossas, e a apanha sem saber porquê, num gesto maquinal, e se põe a esfregá-la, fixa-a com olhar vazio, no meio da página inacabada, uma frase, uma palavra onde qualquer coisa… mas o quê?»

Horta Seca, Lisboa, quarta, 5 Agosto

Tantos meses depois, regresso com corpo novo e quase não reconheço este. Diria que está tudo na mesma, mas descortino-lhe na (des)arrumação um ar de ruína. Obediente ao tema dos «arquivos pessoais» da próxima «Torpor», cometo o que me parece agora um erro. Vasculho nos arquivos, mergulho na correspondência. Dou de caras com olhares velhos de décadas projectados no que terei sido, ainda sou, empilho projectos fixados para sempre nisso mesmo, potencialidades sem mais fruto além do acto de semear. Esta fúria de fazer serviu para quê? Embrulho muito rapidamente umas partes, escolho uns livros (de poesia) por verificar que me acompanham há varias décadas e catástrofes e corro a fechar-me à justa na minha cabeça. Ainda não sei como regressar.

19 Ago 2020

Soldado desconhecido

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 7 Julho

 

[dropcap]B[/dropcap]em sei, acumula-se para ali uma lista de leituras por cumprir, de respostas por distribuir, de nós por desatar. As circunstâncias nem por um momento apaziguaram ansiedades, pararam desejos, travaram projectos, antologias, volumes, obras completas. O futuro, portanto, a dizer presente. Bem sei dos afazeres, mas por portas travessas estou noutra. (Surrealismo é, para mim, portas atravessadas pela travessura. Aliás, de qualquer maneira, chaleira.) Regressei a Tardi, o das trincheiras art nouveau, do sangue a vestir corpos e a desenhar cidades. Fui directo ao «120, Rue da la Gare» (ed. Casterman), transescrito, que é como quem diz, transporto do policial homónimo de Leo Malet. De tantos me receitarem policiais mal traduzidos tratei de ir a um original. O homem faz da arquitectura personagem e convinha-me o perfume de Paris, que no caso é sobretudo Lyon. Queria perder-me nas janelas, nas varandas, mas não me apareceram tantos espelhos assim. Uma leitura psicanalítica travessa poderia dizer que foi o nevoeiro que me atraiu, com voz off e cava. De tanto ouvir, e até escrever, que atravessávamos longa noite, no meu caso mais pelo mistério do que pelo maléfico, afinal a boa descrição dos dias mais longos está na descida das nuvens para diluir os contornos, as esquinas, as arestas. Poderia ter saltado noutra direcção, mas desci ao campo arqueológico onde se arquivam os ensaios titubeantes das figuras e domínios e temas que farão de Tardi um autor. Passei por «Adieu Brindavoine» (ed. Casterman), mas, estava escrito, era só etapa nas cores do deserto para chegar ao preto e branco propício de «La Véritable Histoire du Soldat Inconnu» (ed. Futuropolis). Aviso chaleira, de qualquer maneira: para efeitos do ao que venho terei que desfiar a narrativa, mas sem talento, estou descansado, para reduzir o que Tardi faz acontecer às palavras que o descrevem. A sobrecapa oferece figura nua branca, com reforço subtil de verniz, rodeado de estátuas tumulares, uma delas segura a coroa da glória, mas parece em desequilíbrio. Quase nu, melhor dizendo, por estar o escanzelado de bigode de óculos e chapéu de coco a aparecer das águas negras, como negros são os céus, uns e outras divididos por nuvens vermelhas. Negro sobre negro, com subtil reforço de verniz, estão as garrafais «TARDI» (coisa tonitruante de obra a vender-se completa). A figura, há que dizê-lo, é um autor. Na capa esconde-se figura esquelética e desdentada, careca e de minúsculos olhos, vestida no rigor dos começos do século das grandes guerras, em posição de grito, branca a camisa, os dentes esparsos, a minusculeza dos olhos, cinzas a dizer o resto, vermelha a língua e o grito em AAAR arredondado. É o editor. (Com umas palavras antes da aventura, Tardi conta da Futuropolis e Étienne Robial, nos idos de 1970, laboratório onde a as palavras autor e editor não eram ditas por sugerirem desconsiderações contratuais. Curioso, no momento em que o nome procurava romper com a indústria, afirmar a criação por detrás da máquina.) Estamos agora no cemitério onde tudo começa. Assim pensa a personagem perdida: «Encontrava-me de novo nas trevas mais profundas, onde o meu temperamento ansioso tantas vezes me levava.» Os mausoléus fazem-se ilhas e estas palácios nos quais a deriva da personagem principal, entretanto despida como convém nas viagens primordiais, vai reencontrar e matar velhos conhecidos e recém reconhecidos. Até que uma inevitável aeronave o resgata para o transportar à enorme e labiríntica casa do editor, enlouquecido como acabam todos. «Reconheci a decoração característica, de extremo mau gosto». Só ali a personagem perdia se descobre enquanto autor.

Não um qualquer, mas de «romances de aventuras a dez tostões, simplistas e aflitivos, mas que logo conheceram vivo sucesso popular». O que foi enfrentando, em modos sonhados e eróticos, foram as suas criações, que com ele discutem neste instante as minúcias não apenas das narrativas e do acontecido, mas dos perfis, qualidades e destinos. O editor, por exemplo, tinha aparecido como tiranossaurus, de cérebro minúsculo inversamente proporcional à sua ferocidade. A morte, piloto de aeronaves, oriunda do seu primeiro romance é quem o atinge e atira para as trincheira da grande guerra de onde lhe recolhem as ossadas que estão sob o Arco do Triunfo na qualidade de soldado desconhecido. Marquei já com o meu futuro psicanalizador: vamos trocar umas ideias sobre o assunto?

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 17 Julho

O Expresso de hoje entrevista Isa Gomes, a professora de português tornada figura mediática por ter aparecido na televisão (os tempos estão tão confusos que soa regresso aos anos 1980 e as pastilhas Pirata).

Por ter alguma coisa a dizer? Só para a conhecermos melhor. Que andará ela a ler? Responde, logo com surpresa e interrogação: «Leituras? Nunca fui muito de ler livros, mas sempre adorei tê-los.» Esta afirmação quase subtil acerca da leitura de livros e do que cada um é muito de ser está longe de morrer sozinha, e tenho algures guardada resposta semelhante de escritora e, se pior pudesse ser, com responsabilidades.

Tenho-o dito em debate por várias vezes e logo com reacções aflitas e assertivas: com honrosas excepções, os nossos professores não lêem, sendo que a doença é mais grave nos que supostamente ensinam a língua.

Há-de haver estudos, mas basta fazer contas às tiragens, andar pelas escolas e ouvir as apresentações dos convidados, enfim, ler as «poesias». Basta estar atento. O país não lê, por que raio (de trovoada) se poderia exigir isso à profe? Será preciso a um engenheiro saber da evolução dos materiais? As pontes romanas foram feitas a olho e pedra e ainda se atravessam, que nem portas ou chaleiras. E que vos dizia eu? Omnipresente está a radioactividade do simbólico: «sempre adorei tê-los!». Convém ter por perto um livro, assim uma vela na dispensa, para quando falta a luz. O Plano Nacional de Leitura tem um pilar no professorado, mas dará para fazer pontes em cima dele? Também vos tinha dito, ancião que vou sendo, que o meu melhor professor foi de português, com língua e muito mais? Ponho-me depois a pensar em que páginas de livros tocaram por estes dias as mãos que apedrejam a professora que se está a esforçar para ler até ao fim do Verão um livro de contos. Aaaarh, dizia o editor enlouquecido.

23 Jul 2020

Sinais-fósforo

Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 5 Junho

[dropcap]«T[/dropcap]oda a minha vida acreditei nos sinais.» Escrevo com Nora Mitrani, figura maior, daquelas que muito perversamente só nos são dadas a ver nos interstícios de outras (a mulher de, a amante de, a companheira de, a musa de). «Acreditei que a desordem do meu coração anunciava a ordem esmagadora que sobre ele cairia. […] Convenci-me que cada caso uma linguagem anunciava o acontecido com uma noite profunda ou uma nova esperança; se essa noite ou essa claridade se abatiam sobre mim sem que me apercebesse, estava certa de não ter percebido os sinais…» A pequena novela de nada, «Chronique d’un échouage» (ed. L’ Œuil ébloui), texto límpido sobre naufrágio tão perto das margens e tão dentro da perturbação, ecoa em mim no diálogo destes dias assim mesmo, mais nevoentos que negros, mais difusos que cristalinos. «A verdadeira catástrofe apresenta-se sempre da mesma maneira terna, despida de interesse mítico, quer dizer, exactamente o contrário do estereótipo da catástrofe. Este implica a precisão mortífera dos gestos dos homens e dos golpes da natureza, a aparição de uns quantos monstros e o ritmo do inferno desencadeado pelo conjunto.»

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 6 Junho

Apenas um dado, mas que logo revela a falta que nos faz o jornalismo digestão em tempo gordo de informação. Uma fórmula de divulgação nas redes, sobretudo no twitter, de estatísticas, The World Index, diz que a cidade com mais livrarias no mundo (que sabe contar), e com uma média de 41,6 por cada 100 mil habitantes é, pasme-se, Lisboa (rir). A seguir vem Melbourne (33,9) e depois Buenos Aires (22,6), afinal tão longe como a geografia. Madrid tem 15,7 e Nova Iorque 9,4 livrarias. O ABC logo viu nisto o espírito de Pessoa e Camões, únicos habitantes do centro vazio, uma ruína por acontecer, tremenda injustiça para o cego Chiado e o visionário Almada, o tateador Eça e o tintado Vieira, ou até o anónimo cauteleiro onde alguns doidos vagamente literatos vislumbraram em tempos um Lenine que logo quiseram derrubar em mansa bebedeira. Sem grande investimento, tratei de descobrir a fonte, que é afinal a lista (pública) da DGLAB e onde consta tudo e mais um gato, de alfarrabistas sem poiso a revendedores dos mais dúbios, em cidade que é afinal distrito. Mito, portanto. Cidade tão literária que preenche o vazio de leitores com livrarias. Quem não gosta de um bom livro que não lê nem compra? Projecto que há anos experimenta na carne como cravar essas interrogações ofereceu-me três textos de Jorge Carrión, que começa por «Contra a Amazon, sete razões – um manifesto» (ed. Ler Devagar). A sétima tem a ver como a morte dos espaços físicos, citando, por coincidência, Rem Koolhas: «uma cidade antiga singular, ao simplicar excessivamente a sua identidade, torna-se “genérica”, “transparente”. Intercambiável: como um logotipo». Há muito que os corvos voaram do logo da cidade com mais livrarias do mundo e aos livros nunca aqui lhes deram de comer.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 18 Junho

Na Croácia morreram subitamente mais de 50 milhões de abelhas, caixeiros-viajantes da multiplicação, senhoras do doce e da cor, construtoras da geometria e da textura. O subitamente está aqui a mais pois adivinha-se as razões na agricultura intensiva com os seus insecticidas e outras ferramentas da morte, quase sempre lenta.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 22 Junho

O Instituto Camões de Berlim tem um dolorosamente raro trabalho de divulgação das nossas letras. Agora, para preparar a suposta presença de Portugal na feira de Leipzig e estimular traduções, ou pelo menos leituras, criou site «com informações sobre 67 autores, com as respetivas biografias e sinopses das obras (76 títulos), permitindo que profissionais do sector, como editores de língua alemã ou programadores de festivais literários, solicitem um excerto traduzido para análise.» E pediu sugestões a mão-cheia de editores (https://camoesberlim.de/pl21_editores/). Não quis esgotar a minha quota com autores da abysmo, pelo acrescentei Brandão, Teixeira-Gomes e esse meu dilecto: «A cidade e a língua, nos romances de Nuno Bragança, cruzam-se de modo a construir laboratório das mais fulgurantes experiências. Não são apenas arquitectura e circunstâncias, ruas ou palavras, são memória e língua a fazer-nos acompanhar aventurosos percursos, dos mais díspares no colectivo social, e que nas páginas se encontram para definir a modernidade. Um tempo que nos interpela sempre.»

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 28 Junho

Em cinco dias, a vetusta central nuclear de Almaraz, resto ardente de perigosa distopia, que mora aqui ao lado registou dois incidentes. Ninguém deu por ela, nem preciso seria. As autoridades, no seu trabalho diligente de abelha a segregar tranquilidade, garantem que não foi nada: «O evento não teve impacto nos trabalhadores, no público ou no meio ambiente. Com as informações disponíveis até o momento, o incidente é classificado como nível 0 provisório na Escala Internacional de Eventos Nucleares (INES)». Durmo sempre melhor com um zero provisório à cabeceira.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 6 Julho

A simplicidade explode-nos em qualquer lado, desta foi no coração. Ennio Morricone (1928-2020) deixou-nos melodias que nos deram a ver, onde colocamos rostos e narrativas, vozes e deixas, que mexem connosco de mil formas por haver, que nos atravessam como só a cultura, esse mistério. A sua nota final nada tem de tonitruante. Despede-se de uns quantos amigos, desculpa-se dos esquecimentos e justifica um funeral apenas íntimo: «Non voglio disturbare».

Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 10 Julho

O nada ganha terreno, nada de novo. O lugar de Hagia Sophia, na Istambul de mil faces, farol e cruzamento, suprema metáfora de um encontro de civilizações, lugar habitado pelo fogo e pela luz, pelo silêncio e pelo vazio, por deuses e demónios, pela presença do rostos e sinais de mão, pela morte, sobrevivente da guerra e da pandemia turística, sucumbiu aos desígnios sinistros do estreitamento. Não se trata tanto de substituir um deus talvez mais simpaticamente profano por outro, mas de sacrificar a cultura no altar da política, e portanto de reduzir os acessos, baixar do absoluto universal ao mínimo focado. O que era ilimitado tornou-se quebradiço, terna catástrofe.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 12 Julho

Há um mês, mais de 350 elefantes morreram subitamente, de novo a palavra a brilhar como lâmina, no delta do Okavango, no norte do Botswana. Temia-se a mão do caçador furtivo, por via de veneno malino. Um primeiro estudo aponta agora para um novo vírus, que pode até fazer dos humanos casa. «Essa preocupação é legítima porque estamos convivendo cada vez mais com zoonoses que acabam passando para os humanos, dado o aumento da urbanização e a proximidade com animais selvagens», disse à BBC o biólogo Niall McCann, diretor da National Park Rescue. Zoonoses, esses caixeiros-viajantes da morte.

15 Jul 2020

Domingo no Mundo

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 6 Junho

[dropcap]F[/dropcap]icou, José, a conversa a meio, Barrias. Vai ser mais difícil, doravante, ver as linhas com que passajavas as bainhas do Mundo. As mãos do artista não param um instante de alinhavar máquinas de moer sentidos, a romper passagens entre isto e aquilo, ligando a pureza do olhar à sujidade da recomposição. Às vezes chamam-lhe atelier. Não sei agora onde colocar as peças que sobravam na desmontagem dos funcionamentos que praticavas com a elegância dos construtores malabaristas. As palavras nem por cicatrizes voltarão a prender os arames atravessados. Ficamos sempre a meio.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 7 Junho

Estava perdida no tempo a origem de certo azul púrpura que iluminava manuscritos medievais. A cor milenar extrai-se, afinal, dos frutos da pequena planta que nasce na Granja-Amareleja, Chrozophora tinctoria, pequena erva de folhagem verde-prateada. As flores são agrupadas em racemos tipo espiga, com as masculinas no topo e as femininas na base, em geral solitárias. As flores masculinas são amarelas e discretas. As flores femininas exibem um ovário esférico sem pétalas. Os investigadores começaram por ler vários tratados medievais, com as instruções para obter o folium, de uso sumido. Também simularam a interação da luz com a molécula, para verificar se assim chegavam ao tom exacto e desejado. Obtive inesperada alegria com a resolução, através de leitura e luz, deste enigma colorido.

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 16 Junho

Na normalidade dita nova as entrevistas televisivas quase dispensam intermediários. As perguntas chegam por email com foto que explica os enquadramentos habituais. Faz-se do ecrã o espelho, ensaia-se sem maquilhagem nem conhecimentos mínimos de iluminação, tortura-se a retórica na esperança da eloquência, repete-se até atingir o ponto e o perfume do refogado e está pronto. Sofrerá ainda a montagem final, que no caso do «Nada Será Como Dante», com o propósito da Torpor, acabou por dar peça redonda e equilibrada, mas o processo deixa um fundo de boca estranho. Perde-se, algures, o olhar do operador de câmara. Somos diferentes quando somos vistos. E postos no lugar pelo olho alheio.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 21 Junho

Do outro lado do Mundo chegou a Sara, filha da Maki e do João. Deu-se o enlevo na madrugada alta, como devia ser sempre. Fora noite e logo o dia nasceria, que novas destes vêm com o condão de mexer nos ritmos. O anúncio deste dia já me tinha trazido graça em altura rasteira, também pelo debate à volta nome, que no Japão ganha a suprema complexidade do único, cruzamento das possibilidades infinitas. Além dos significados de cada partícula, há que ter em conta o equilíbrio gráfico dos caracteres e inúmeras relações, com o apelido, com os sons. Sara pode portanto conter bondade, coisa bem feita, kimono de seda suave ou nova colheita colorida. A entoação encontrar-se-á com as explicações, cantando ambas a maneira única de ser na perfeição Sara. De dizer um nome mais os rios que nele desaguam.

Santa Bárbara, Lisboa, quarta, 24 Junho

O melhor dos filmes tem apenas um protagonista e conta as voltas e reviravoltas da sua vida nuclear de 1 de Junho de 2010 ao mesmo dia de 2020. Um olho-lente esteve focado nele sem pestanejar este tempo todo e o resultado só podia ser brilhante, ainda que este brilho tenha muito que se lhe diga e se veja: https://www.nasa.gov/feature/goddard/2020/watch-a-10-year-time-lapse-of-sun-from-nasa-s-sdo. Crítica singular: Morricone deveria ter tratado da banda sonora.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 27 Junho

Sem querer descubro dossier todo organizadinho, impante de colagens e legendas dactilografado, ligeiramente sublinhado. São para aí uns três anos de crónicas de Carlos Drummond de Andrade, no Jornal do Fundão. Neste exacto dia há 40 não menos exactos anos o tema era Camões, talvez eco do dia redondo, «amaldiçoado dia de nascer», embora aquele fosse visita frequente da casa destoutro. A coluna, está bem de ver, erguia-se poliédrica por isso naquele dia cantava: «Luís, homem estranho, que pelo verbo/ é, mais do que amador, o próprio amor/ latejante, esquecido, revoltado,/ submisso, renascente, reflorindo/ em cem mil corações multiplicado./ És a linguagem. Dor particular/ deixa de existir para fazer-se dor de todos os homens, musical/na voz de órfico acento, peregrina./ Que pássaro lascivo se intercala/ no queixume sutil de tua estrofe/ e não se sabe mais se é dor, delícia,/ e espinho, afago, e morte, renascença?» E segue estratosfera afora. Quem era aquele miúdo a copiar de tesoura e cola tais palavras, os pensamentos e o humor que se abriam nos micro-contos da delícia; que terá retido do país Brasil que logo esqueceu e ali ressuma de tão explicado, tão de carne, tão de osso? O puto está agora em oportun-idade de balanço, mareado de tão quieto, a pintura das sombras das ferramentas para que não se perca o seu lugar no painel-cenário. O garoto continua rodeado de papel ainda sem saber bem qual o seu, acedendo-lhe tão só pelo tacto à humidade e aos vincos. São «tempos difíceis», adivinhava Drummond, noutro dia: «Na cidade cada vez mais ameaçadora, o sujeito receava ficar em casa e tinha medo de sair à rua. E dava a razão: -Urubu está voando baixo.»

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 28 Junho

As nuvens viajam no tempo. Interrompo a passagem destas que foram fundo, em 1783, para uma das vidas cantadas de Dardanus, de Jean-Philippe Rameau, e circulam agora nas redes sem que se saiba bem a razão. Fatiga-se o olhar na biblioteca de profundidades, de cores em diálogo ininterrupto, as sucessivas subtilezas do azul, sobrepõem-se as carnes, reconheço-lhes as cicatrizes, o verso a transparecer, a canto a marcar arrumações, uma aparente quietude que conserva a passagem do tempo. Fico-me nas nuvens.

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 30 Junho

A Arquivo, livraria que emite dons, deu mais uma volta ao sol e por causa dela vejo as chamas consumirem-se no astro Borges. Atrevi-me a dar voz a Outro poema dos dons, sacado à sua «Nova Antologia Pessoal», na edição seminal da Difel, traduzida pela editora, Maria da Piedade Ferreira: «Graças quero dar […]/ pelo facto de que o poema é inesgotável/ e se confunde com a soma das criaturas/ e jamais chegará ao último verso/ e varia segundo os homens».

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 4 Julho

O neto de um amigo, novíssimo como as madrugadas e tocado por doença que tende para tragédia, nunca deixou de brincar. Com ferramentas. Exames recentes dizem que vai continuar a construir o que bem lhe apetecer, apesar dos riscos. Alicate e chave-inglesa, martelo e grifo, serrote e formão são agora flores no meu jardim. A notícia rega-o com abundância de águas onde chapinho descalço e jubiloso.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 5 Julho

Nas bibliotecas de Hong Kong começaram a ser retirados livros de oposicionistas e intelectuais, como Joshua Wong Tanya Chan ou Chin Wan, sem que as autoridades façam disso segredo. Explicação mais oficial não há: contrariam a (nova) lei de segurança nacional. Comovente a força que ainda se reconhece ao livro, abrigo das ideias. Ora se a proibição contém em si o germe da tristeza, cada livro proibido tende a arder muito para além das cinzas. Sem os ter lido, desejo-lhes isso mesmo.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 6 Julho

O longo braço da generosidade toca-me com os «Contos de Aprendiz», de Drummond. Recebo o perverso contentamento desta manifestação de sincronicidade. E fico a pensar se a épica tem maneiras de caber na narrativa curta.

8 Jul 2020

Portanto

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 19 Maio

 

[dropcap]M[/dropcap]al-entendido que talvez desse verso acaba engordando a croniqueta. O carteiro, que me traça o perfil da realidade ao coser em correria geométrica as margens de rua que vislumbro, de calções e ar tresloucado mesmo à chuva, achou que não estava ninguém em casa e levou de volta a pequena encomenda registada. O tangível achou que eu era casa, talvez mobília, talvez muro. Entre mim e as paredes já nem a voz nem as palavras. O envelope resgatado na estação parecia vir do passado, no seu couché agrafado, formato regular e temática futurista. «Orion é um fanzine de sci-fi e fantasia com uma versão electrónica (web) e uma impressa (apenas para os colaboradores)». Assim se apresenta o projecto do Renato [Abreu] que insiste em fórmula imorredoura, alguém que diz por palavras ou imagens e teima em partilhá-lo. E dizem das confusões dos tempos, de muitos modos, para para afirmar o inevitável fim: darkness, nightmare, fim. Ainda antes da pandemia, o futuro estava bastante passado. Portanto, catastrófico.

Santa Bárbara, Lisboa, quarta, 3 Junho

Mais alegria em formato de encomenda, daquelas pueris. É livro! Mas teve que dobrar a espinha para entrar na caixa do correio, nada a fazer, que o carteiro lá vai de calções furta-cor. Chega-me «Selva!!!» (ed. Umbra), a experiência na qual o Filipe [Abranches] se perde a reconstruir cada objecto de que é feita a aventura para a geração dos 50 anos: os airfix, o exotismo dos lugares de combate, os aviões, os vilões, os espiões, as armas em detalhe, o companheirismo viril de quem enfrenta a morte no papel, as frases e as expressões das línguas amigáveis e inimigas, a letra a fingir-se manuscrita e atirada para diante, a amizade manifesta, as recordações pessoalíssimas, a família desfeita em cenário, a traição, os movimentos com o corpo para evitar as balas, as paisagens de atiçar realizações, os dedos a fazer enquadramentos que gritam acção. O pano de fundo acaba sendo a melancolia. Ainda uma vez, os tempos mesclam-se, os bonecos viram homens, as paisagens agitam-se para permitir o regresso algo doloroso àquele passado do tudo possível e mais além. Não há cor, mas trama e traço, reconstituição ágil do nevoeiro húmido da memória. Onde, portanto, se torna fácil, tão fácil, sumirmo-nos.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 8 Junho

Estou em plena ressaca da Torpor, que me fez mesmo interromper por várias vezes este diálogo comigo mesmo, tão útil para mim quão indiferente para os restantes. A revista impôs-se de tal maneira que eclipsou o real: o novo site da abysmo continua atrasado, sem conseguir escoar velhos e novos títulos, não fomos capazes de aproveitar os fluxos para recolher contactos e estreitar relações. Portanto, tudo na mesma, na perspectiva prática, agravado pelo adiamento do mergulho nas contas e nas avaliações antes de ensaiar a planificação dos dias que se adivinham. Um dia de cada vez, oiço a cada hora o mantra enervante do Zen Povinho. No editorial da versão em pdf (https://torpor.abysmo.pt/wp-content/uploads/2020/06/Torpor_edicao0_web.pdf), mais revista que a antologia do online, que já ultrapassou por esta altura o milhar de descarregamentos, evoquei Roland Topor, por causa do erro de simpatia que faz com que o seu nome se confunda com o da revista, mas não apenas. O seu labor artístico tem tudo a ver com a forma de estar de quem se quer lúcido, e espelha como poucas estes confusos dias. (Sem ser preciso lembrar que foi co-arguentista do filme, realizado por Peter Fleischmann, «O Síndroma de Hamburgo», em torno de uma pandemia que acaba em ditadura). Atente-se na figura cujo corpo se fez noite com lua e tudo, e que caminha perigosamente perto de falha com o rosto voltado para quarto crescente. Santo padroeiro, portanto.

A revista vai continuar, por isto e por aquilo, pela urgência de novos temas. No regresso a alguns textos e outros trabalhos, que reverberam. A cumprir o que se anunciava no bloco C da edição zero. «Não será um loop, nem rodopio de entontecer até à queda livre, mas aqui chegados podemos recomeçar. Este em suma ressoa a um vamos lá. De novo a casa e a cidade, as paisagens, interiores e de horizonte, o desejo e o rosto, o ensaio improvável e o desenho concreto, seres que voam e outras matérias voláteis, pensamento a propósito e fotografia da raiva, revisitação dos clássicos e interpretação dos contemporâneos, sítios que parecem nenhures, documentário e delírio. Sobre o magma incandescente e em movimento, passa em corda esticada, o funâmbulo. Sem perder o equilíbrio, nem por sombras cedendo às pressas, levando a sombra por companhia na linha estreita que faz ponte entre isto e aquilo, que estabelece nexos. A linguagem é um vírus, por vezes amigável. Investigue-se, isso e os numerosos nomes para acabamento e finitude. A morte e o medo são vizinhos e da família, à vez. Parceiros de dança, também. Vá de esculpir-lhes rostos, corpos.

Torná-los ainda mais próximos. Dão assim para desmontar, dizem os artistas, para ver por dentro. Não se descobre logo como funcionam, que o coração continua enigma, mas recolhemos as peças e logo se verá. Eis, afinal, o labor labuta do equilibrista que é o leitor, de um lado para o outro, em busca das peças ponham o sentido a mexer. Vai de roda!»

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 9 Junho

Circula desde ontem a notícia venenosa do «apoio» governamental face à crise: insultuoso. Contas feitas, será para aí 1/5 do prometido, que era nada. Vai sair-nos, portanto, caro este alinhamento com ideia de que a (suposta) ajuda da Ajuda mudará alguma coisa, que o Estado fez o que lhe era exigido. Não o devolvo por cansaço. O facto da (des)dita ser a troco de livros para os leitorados de português, no que deveria ser prática rotineira de compra na vez de cravanço, talvez possa constituir sementeira de alguma coisa. Pudera eu acreditar nisso.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 14 Junho

Um pára-raios não os atrai, limita-se a recebê-los se acontecerem por perto. «A visagem do cronista» foi o mais pantanoso cabo dos trabalhos, causando dores em várias partes editoriais, da barriga ao coração, dos pés à cabeça. Aos atrasos aceitáveis em obra gigantesca, acolhendo centenas de nomes, de Almeida Garrett a João Pereira Coutinho, somaram-se, da burocracia à má-vontade, do azar fortuito à desgraça completa, as mais variadas ocorrências que desembocaram agora nesta: no exacto momento em que as 900 páginas dos dois volumes chegam da gráfica acontece a quarentena; no preciso instante em que o diário se torna o género de eleição este percurso por mais de dois séculos de crónica autobiográfica fica preso nos armazéns.

Deve a culpa ser assacada ao editor, que ganha agora a missão de, mais do que desconfinar, libertar prisioneiro que não merecia tal pena. Nem ele, nem a Carina Infante do Carmo, que através de exemplar trabalho de recolha, fixação e enquadramento, desenha panorama que diz muito da riqueza dos olhares, da escrita, da imprensa. Da de antanho, que a de hoje irá ignorar, como de costume – nem que fosse para discutir a escolha, que tem tanto de conservador como de surpreendente. Voltaremos ao assunto, hipnotizados pelo efeito combinado das duas magníficas capas (algures nesta página) do Bruno [Mantraste], na qual o manuscrito da palavra «cronista» contrasta com a pose monumental de mão que sustenta a cabeça e outra que ergue uma caneta. Usando-a, portanto, que nem pára-raios.

17 Jun 2020

Linhas cruzadas

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 31 Maio

[dropcap]S[/dropcap]ó a incauta diletância de flâneur explica esta aventura, para a qual arrastei o Teófilo [Duarte], e com o ele o João [Silva] e o Cláudio [Fernandes]. Não se sai incólume do cerco sanitário, sobretudo se o aríete for esta «Torpor — passos de voluptuosa dança na travagem brusca», que há horas se completou com a sexta entrega, a da morte e do medo, ainda que não apenas. Logo cedo no pastoso cinza dos dias, os poetas próximos me acendiam versos. Esfreguei os olhos e dei-me conta que a noite constante se iluminava com pequenos palcos, páginas, onde se reconhecia gente, criadores a refazer mundo. Ora, apesar de se terem constituído memória do mundo, as redes são voláteis e instáveis, pelo que me veio à boca a vontade de recolher-caçar e dar a ler. O papel do editor é encontrar nexos, pescar no caos os peixe-chama do sentido. Não se procurou planeamento algum, e só tarde se lançaram desafios, suscitados por vontades ou palavras inscritas na espuma. Na arrumação estabeleceram-se nexos, alguns ainda por detectar, como convém. Abrimos com punhado de artigos que dizem do que se encontrará depois desenvolvido (autobiografia, casa, cidade, paisagem, morte). Depois a comporta abriu-se, vieram águas, ventos e até fogos. Guardo para mim que algumas vozes nasceram nestes palimpsestos e outras regressaram com potência de barítono. Há experiências para acompanhar e imagens às quais regressar. Mantenho-me fixado na do Manuel [San Payo] que vi surgir, conversada em caixas de mensagens (algures na página). Aprendamos, pois, a olhar o tempo. Segue-se versão em pdf, onde a relação entre os fragmentos surgirá mais integrada. Na versão online só os alinhamentos oferecem a unidade possível, resgatando a soma da mera antologia. Deu ainda para perceber que algumas das ideias são específicas das plataformas e falta-lhes o ar fora delas. Depois a ânsia. Na incessante e agora? esconde-se a ânsia do papel. Um dia de cada vez!, respondo com o mote caduco. Ainda que pense que, se lição há a extrair tal dente cariado, é que podemos viver os dias todos num. Só precisamos esticar o hoje.

Palhavã, Lisboa, quarta, 20 Maio

Longe do sofá onde tenho morado fui acompanhando a contagem decrescente para a primeira entrega, a que fará as vezes de editorial, com arte e pensamento e política e inquietação, até música e palavra dita ou sussurrada. O nervoso miudinho no online não se compara ao papel, que a emenda é possível e a errata dinâmica. Continuo com saudades de uma redacção em fecho, quando do caos nascia pontuação. Aqui estamos em contínuo nos três. Deixem correr o sangue!

Santa Bárbara, Lisboa, quarta, 21 Maio

Para não termos a veleidade de arder, voltámos ter uma inundação. Não tão grave como a voz ao telefone anunciava, mas ainda assim lá se perderam mais umas centenas de livros. Que importa? De qualquer modo estavam já enterrados no esquecimento do habitual. Ao contrário dos apoios, a edição de livros é a fundo perdido.

Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 22 Maio

Desconfinei sem sair de casa: fui à Prova Oral, do Alvim (https://www.rtp.pt/play/p260/e474129/prova-oral). Não sei se passei. (Ainda não me tinha visto neste espelho-ecrã da nova normalidade, cada um falando a fingir que estamos fora, rádio com imagem à superfície, por aí fora.) Para variar, rebaldaria de liceu, mas deu para tomar nota da confusão instalada à volta do livro.

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 5 Maio

O Adérito [Fidalgo] avisa por mensagem que a Mimosa [do Camões] vai fechar de vez. Nada assinala melhor o fim de qualquer coisa, talvez um ciclo, um modo de estar, do que este símbolo a arder. Até o furor das obras de renovação, arrasando com estrondo o que nem por sombras era antigo, parece ser afirmação. Muita conversa, projecto, ideia, disparate, verso, livro, grito, toque, luz, dúvida, encontro e zanga, ameaça ou beijo, sustos, espantos, perdas e ganhos, deves e e haveres se ergueram por ali, no vai-vem entre a mesa e o passeio. Foi considerada, em certa polémica, a sede da abysmo, com isso tentando menorizar quem editámos, como se colocar coração e cabeça no lugar do estômago fosse desprezível. Ali foi, sim, a sede de uma certa sede, a festa pela certa que incomodou tanto alguns vigilantes e outros bem pensantes, sem esquecer muito comissário, coordenador, programador, director, que se arrepia com a vida fora dos gabinetes. Alguém há-de conservar a memória das noites de leitura em homenagem ao Herberto, então e na hora da sua morte. Ou quando nos despedimos de um dos nossos que partia e assustámos ministro que julgou e enfrentar manife operária, e talvez fosse. Há-de haver fotografias dos parcos prémios que nos atingiram expostos sob a vigilância hierática das garrafas de Bushmills. Alguém que tenha o segredo do âmbar que o conserve, pois não sei fazê-lo, não domino o mister da memória. Dito isto, nenhum abalo se regista na natureza quando a cobra muda de pele.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 7 Maio

Prazer igual não há. Receber correio, sobretudo livros, desdobra os dias em espanto. Durante a pegajosa crise, a alegria foi abrindo o correio sentimental. Foi com o pão de ló da Carla, as madalenas do Luís e da Sandra, o cabaz de verdes do João e da Paula, as cerejas da Maggie e do Nuno, os ovos e mais verduras da Ingrid, o pão e mais cerejas do Paulo. Sem nenhum risco de exagero, por causa da balança do António. Os adjectivos foram inventados para pôr cor nisto, vejam onde e podem ser trocados: elegantes, memoráveis, luxuriante, suculentas, saborosos, robusto e belas, tão moderna que comunica.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 8 Maio

Malhas que a rede tece. Um dos grandes professores que me moldaram, o João [Nogueira da Costa] trabalha o tempo com detalhes de escultor. Desencantou uma nota em papel onde se registava o acompanhamento partilhado das voltas de Luandino por Lisboa. Por mais que procure, até em territórios de Alice, não encontro aquele puto. Na encruzilhada de então escolheu rumo, como de costume em contra conselho, que deu em nada. Enfim, talvez o puto aquele acabe por reaparecer para dizer que os caminhos se fazem cruzando os assinalados, os aplanados, os celebrados.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 9 Maio

Raro é lembrar os sonhos. Já agora, nem os pesadelos. Posso até ser acusado de confundir tudo. Jamais serei exacto surrealista, nem que me apeteça ou os bonzos permitam. Estranho, portanto, esta recordação da noite passada a vaguear por entre altas e magras figuras, esculturais mas no modo marcado de Giacometti, nenhuma minúscula a habitar caixas de fósforos, mas a arder no passo adiante, a refazerem-se para além das marcas dos dedos, hesitando entre ser rosto que marcha ou corpo que sustenta o céu de uma cabeça. Não me limitava a andar. Havia trocado mensagens com a Isabel [Abreu] pelo que ela me apareceu a dar uma peça, e a repetir que era muito importante não a largar nunca, a esculpir as palavras no ar com as suas mãos giacométticas, giacométricas. Atravessei o que havia para atravessar, talvez um ciclo, um modo de estar, o deserto ou rua. E assim fiz com a ansiedade indispensável sem saber se cheguei a algum lugar que não fosse a madrugada do acordar. Recordo a pequena peça, talvez continue a segurá-la noite dentro, não possuo o talento para lhe capturar a estranheza, de formas geométricas desalinhadas mas ainda assim pacificadas, irritantemente nórdicas. Talvez a memória seja ela mesma a obra.

3 Jun 2020

Ícones

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 83 Março

 

[dropcap]N[/dropcap]o calendário do Filipe [Homem Fonseca] continuamos assentes no âmbar do mês terceiro. Acresce que no meu continuamos pelo mesmo dia, a resvalar nas suas múltiplas pregas, com suave dominância de escureza. A noite não me apoquenta por aí além, foi sendo cenário aconchegado de um sem número de alongamentos da possibilidade, de mastigação da palavra, de tentativa e erro, saboroso erro. A passagem destas horas noctâmbulas dá-se sobre sedimento de imagens.

Madrugada prestes. O negro pontuado de estrelas, pano furado de luz, em constelação de ocupar espaços na composição, ou talvez de anunciar futuros, assim se desvende vocabulário, o negro, descrevia eu, não se apresenta uniforme. Desfaz-se anjo em fundo, que me parece por absurdo trazer óculos, talvez de sol, para que os olhos se não confundam com as estrelas, talvez apenas efeito riscado da água-forte. No concílio dos disformes, uma figura pontifica toda diagonal, de olhos cerrados, mão esquerda a querer tocar as estrelas, mas só a enganadora parecença assim o indica, que o braço esticado mais não é além de retórica. «Si amanece; nos Vamos», diz a legenda que diz a fala. Pode não acontecer o amanhecer e nessa esperança ficarão em debate, o mais símio continuará a fitar os céus, soerguido, mas atento às palavras. Estão os corpos nus, moldados tal granito de serranias, musculatura definida, mas de fome, sentados no chão quase todos, os que distribuem o peso pela esquerda baixa, fazendo palco para o cruzamento dos olhares. O que se afigura dono da palavra, e que se senta sobre obscena rocha, baixo ventre livre de pernas e feminino exposto, afinal apenas semicerra os olhos, entrevendo de par com outros dois olhares esgazeados a mulher desdentada que nos fita a nós. Que entidades capturou Goya? São do pesadelo ou da mais pura matéria? Tratam da miséria ou de ideias? Será assunto meu?

Madrugada acontecida. A única mão que se vê parece dizer regresso a casa, no modo como segura a gola alta do casaco. O desenho não é um esboço, embora titubeante no recorte do corpo, elegante que nem arranha-céus, outro a somar-se aos que fazem o fundo, esses geométricos com chaminés soltando fumos, este sinuoso, forma simples a sustentar um rosto também escasso, essencial, no qual o frio alisou as carnes deixando uma planura de branco, cinza segundo o papel perfurado, era o que havia à mão em casa recém ocupada, mas o José Muñoz queria dizer branco, tenho a certeza, cara pálida afirmada com uma boca ligeiramente aberta para ajudar o ar a rimar com a rima absoluta dos três pontos: olho e narinas. Uma das narinas parece soltar-se do contorno para ir ao encontro da flor, nisto o corpo se separando de seus irmãos imóveis. No bulício da cidade que desperta, as indústrias do viver não impedem que se descubra flora perfumada. Os ramos parecem atirar-se e são de todos os traços mais hesitantes, nascendo agora mesmo, que estava lá e vi, que estou lá em vivo (ou estava a trazer o bacalhau-à-braz para a mesa?). No chão, por escrito, a invocação da cidade-maior, onde só fui pela palavra e desenho, «Grand Buenos Aires», além da resposta «P’tite fleur» e do nome, da assinatura. No apóstrofe da pequena recordo um sotaque. Na interrupção que o manuscrito inflige à quina do edifício fica uma afirmação política: a escrita de flor sobrepõe-se ao concreto.

Manhã acesa. Sobra bucólica, casa das de infância com figura solitária e poste dos telefones sobre colina mais escura, a que se sucederá outra em segundo plano, com duas árvores, singela, um cipreste e cruzeiro. Este fundo é enganador, que o de verdade regista taquicárdicos altos e baixos e dinâmica assinatura, travestido o conjunto por gatafunho, que não palavra ou nome. Daqui se parte para o que interessa, por ocupar os dois terços da composição, com a enorme unha da Lua a brilhar. O fundo foi desenhado por Steinberg com impressões digitais. Identidade, portanto, as nuvens. Identidade a terra, identidade o céu. Identidade o horizonte. Identidade verdadeira até na assinatura de brincar. Tenho-a à mão em precioso volume, companhia dilecta dos primeiros dias da minha pessoal quarentena, que leva por título «The Passport», e foi prenda do salta-fronteiras e navegador solitário, Barão do Oeste e mais aquém à direita de quem sobe, D. Bernardo.

Tarde plena. Um homem de costas, com o rosto a dois terços, meia-lua, os dedos de uma mão fincados no antebraço. Não se vislumbram esgares ou esforços. O homem de costas sentado na mancha afirmando chão tem o tronco transparente, janela para o nada que o envolve em tons de amarelo esmaecido, assim a voz do meu sangue por estes dias que são noite. Na catedral que é o tronco de um homem, mesmo sentado de costas no chão, Topor colocou figura escavadora que parece brincar com os longos braços prolongados por extensos dedos que são garras e tocam o côncavo avermelhado fazem cócegas, não tanto ferida. O grifo trespassa-nos com o olhar um sorriso estúpido e cruel, a mais estranha das fraternidades. O sorriso tem artes de se fazer arma. O francês chamou-lhe «La Douleur». Preciso emoldurá-la com urgência.

Lusco-fusco. A unha da Lua está à direita, acima do punhado de estrelas, mas o céu confina-se às costas do sofá, encostado à direita a dizer sala-de-estar, ampliação dele próprio, sala-de-viver para o galgo que só a partilha com livro ilustrado, cada um em seu braço. E que, dobrado com a anca a fazer de colina nazarena, nos olha como só os bichos. A sua respiração semeou mais estrelas na almofada, arrumadas em constelação. As cores são as de Mário Botas, ricas de castanhos, servindo aquela luz de tardinha, onde o que foi não deixou ainda de ser anunciando em si o que virá não tarda nada. O futuro não tarda nada.

Noite dentro. O quase quadrado de fundo roxo surge limitado por horizonte de régua e esquadro, com zimbório e pára-raios assinalando o centro. O centro é sempre pontiagudo? Acima, uma mancha de negro atravessa a cena, vêem-se já as barbatanas. El Roto, que Lisboa viu se quis em 1998, pintou de modo homogéneo, excepto o amarelo da unha da Lua onde se reconhecem pinceladas, mas não a dentição temida do tubarão. O quarto minguante visto daqui é a boca do medo. E que bonita evolui por sobre as nossas cabeças.

13 Mai 2020

Olhos privados na noite

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 27 Abril

[dropcap]P[/dropcap]ara efeitos de dramaturgia, acreditem que foi pela meia noite. As casas, pequenas que sejam, reconfiguram-se no inesperado, parecem desenhadas por lombo de gato. Aquela assoalhada tem produzido inúmeras surpresas, sendo que começam sempre pelo toque aveludado da camada volátil e externa de passado, o pó. Aquietada a nuvem, descubro um saco com jornais, revistas, calendário, enfim, publicações que desenham por junto o catálogo de exposição mítica: «Le temps, vite», com que se celebrava a chegada dos zeros. No parisiense Beaubourg, que outro lugar podia ser? Não foi o elegante pescoço de cisne do 2 de década que introduz enorme perturbação, foi o periscópio inquiridor de avestruz dos 2 últimos meses. Na convocatória das artes e ciências, que era também lição de curadoria, não faltam experiências e pensamento, objectos e imagens, a desmultiplicar caminhos, a expor o que não se vê, nem se toca, mas se sente, e nunca de uma maneira só. Os temas levantam-se em vórtice, com Umberto Eco em conversa com Daniel Soutif, o maître d’œuvre, a marcar ritmos. O tempo mecânico é deus recente e o relógio o seu profeta, arqui-inimigo do tempo interior. Houve alturas em que não havia atrasos. O sábio italiano desencanta histórias de movimentos contra o relógio, «espécie de esqueleto roendo o tempo», relembrando Lubrano, o poeta que escreveu sonetos sem conta «sobre essa obsessão do tempo métrico como o tempo da morte». Erupção constante, o tempo íntimo é de vida e muda os olhares, permite observar Mondrian como se fôssemos eternos, ainda que a informação não seja a mesma de um Bosch, ou circular na arquitectura rectilínea da escola do Porto com desatenções diferentes de uma catedral, e o mesmo para a literatura, com pausas nas epígrafes ou passadas apressadas nas citações, nas descrições. E a música. Monk e o seu ‘Round Midnight faz-se banda sonora, clepsidra inesgotável de respirações, de ritmos a dizer corpo, identidade. Por alguma razão se multiplicam os auto-retratos, e sabemos como muitos artistas se estão a desenhar ao espelho neste exacto instante. A síntese dos temas dá-se na bd de Jochen Gerner, «Un temps».

E qual o cenário escolhido? O aeroporto. Nada mudou tanto com a pandemia como estas catedrais da modernidade, assim lhes chamava Georges Duby, «inventor» da Idade Média, planície do tempo interno. Gerner, em narrativa minimal repetitivo, tatua-nos as micro-vivências, do desespero no táxi à chegada, do tédio da espera no atraso da partida, das vezes que se olha o relógio, dos fluxos da mole humano a que se assistia nas grandes montras, a passagem dos lugares nos painéis, a lógica contabilística de meridianos, afinal, a velocidade omnipresente, esmagadora, esventrada tal metáfora maior da vida. A velocidade travou.

As ruas das cidades desertificaram, e que estranho resulta constatar que nos primórdios do milénio o tempo se saudava tanto com ruas vazias passadas a luz. No caderno ligeiro da ficção, Juan José Millas, em «Personne» (ninguém), risca o vidro, arrepia e marca a transparência. Um editor – não é por isso, não se riam – confronta-se com revivências que não o são exactamente. Podemos entreter vidas paralelas, uma mental, outra palpável, correndo o perigo delas se cruzarem. E o beijo pode não ser casto. O imaginado será menos real, se nos afecta? Um Nada, de ontem, pode bem hoje fazer a diferença, tornar-se Tudo. Quantas identidades nos podem fazer mal? A memória teria que ser mote e a internet fazia figura de artista principal, com a morte dos periódicos, a queda do real, a suposta simultaneidade, o pântano do indistinto. Por estes dias, a rede apanha-nos de todo. O Pedro [Fradique] foi desencantar jornal de beira-rio, para o site que ilumina a noite escura. Está todo aqui, a vogar: https://www.luxfragil.com/jornal/ Dá para celebrar, ao som do anjo, a juventude dos velhos, tópico no menu. «As rugas fazem sombra, muita sombra, nalguns casos até dolorosa, mas quantos de nós, corpos hirtos perdidos no deserto, sabemos acolher na própria carne a carícia que a noite desenha na sombra? A sombra afirma como uma tatuagem que ali o sol não chega por nossa causa, porque nos deixamos queimar para inventar frescura. Aquele que aprendeu a voar no sopro do instrumento, que sussurrava através do frio do metal versos de um lirismo vulcânico, que adorava a velocidade dos automóveis e das substâncias, que só queria perder-se e perdeu-se sem envelhecer, Chet soube acolher lugares sem sol nas maçãs do rosto. Chet fez do rosto pomar de macieiras, jardim, paraíso bonsai, exibida naturalidade de enigmas. A juventude vive no rosto e aí rasgou com a sua navalha soprada e modulada pelos dedos, a mesma que não deixou nunca de acariciar, a tatuagem que dizia estarmos por toda a eternidade naturalmente sós, sem sol, parados. Apesar do amor, que é calor companhia e movimento.»

Feridos pela flecha do tempo, somos obrigados a andar de costas para o futuro. A exposição, lenta a ponto de durar até aqui, começava com a Lua, inevitável companheira, e acabava a celebrar o Sol, que marca o nosso fim. Em 2000 calculava-se nos cinco mil milhões de anos. Ainda vamos a tempo.

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 28 Abril

Talvez preocupada com as leituras que por aqui enumero, na mais libertária das divagações, a que me tem sido oferecida por este dia estendido, mão amiga manda-me um aviso clássico: «O Vaso Quebrado», de Rex Stout. Nada como detectivar a morte para refrescar. O carteiro veloz, que vejo rasgar as ruas que nem Roadrunner soltando beps, talvez desabituado de ver volumes nesta morada, conseguiu partir-lhe a lombada.

No exacto meio do título do volume 678, da mítica casa editora da Rua dos Caetanos, perfumada de mil maneiras na passagem das horas, com notas titubeantes, eflúvios das damas-da-noite, histórias e personagens, mural de ladrilhos e portões verdes, uma cicatriz de branco parte da esquerda para quebrar o que devia ser contínuo. Não chega a ser fenda, apenas promessa luz. E abre mesmo vale, assinalando sem necessidade onde colocar o polegar, na capa de fundo negro. Muita conversa dedutiva resolverá em poucas horas o suicídio provocado do jovem violinista, além do assassinato mais directo de outras duas figuras nova-iorquinas para compor ramalhete de amores desencontrados e primária cupidez. A primeira frase pôs logo de sobreaviso o meu «olhar mortiço de poeta pessimista», como é apresentado o inspector Damon, no caso dele temperado com queixo de pugilista: «Naquela bisonha noite de Março…» Pode uma noite ser bisonha, ou seja nova, inexperta em arte ou ofício? Pode, revelam os indícios sobrantes das páginas que estamos a escrever.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 30 Abril

David B. escreve com imagens como poucos. «Nick Carter et André Breton – Une enquête surréaliste» (ed. Noctambule) não se deixa resolver armado em mistério. Dá rosto às forças do mal, trata os sonhos com carinho, mas não despreza nem criminosos nem artistas. Encontro qualquer coisa de ciência médica no cruzamento dos seres e das coisas, das sensações e das ideias, das letras e dos corpos, sem esquecer algarismos. Uma orgia das formas, que nos põe quietos a mexer. A sonhar, portanto. Os quadros articuláveis (alguns algures na página) alinham-se em biombo que ora revelam ora escondem profundezas à mão de semear. Era só para avisar, que a Lua dá-se bem com as ossadas que sustentam as telas.

6 Mai 2020

Cheira-me que

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 23 Abril

[dropcap]A[/dropcap]nda uma excitação no ar a propósito de livros e leituras. Como há semanas só apanho ar de varanda, ainda para mais contaminado com inesperadas obras de embelezamento de passeios e canteiros, pode ser que esteja a farejar mal, mas não encontro razões para celebrar esse suposto reencontro do livro e dos leitores. Não alinhámos nas celebrações marqueteiras do dia mundial do dito, ocupados que estamos a renovar o site da abysmo, que bem precisado estava, e na recolha de materiais para futura revista digital, maneira de sacudir o torpor. E navegamos pelos dias a pensar, apesar de expressamente proibido pela doutora, enquanto interpretava os resultados do sangue.

Continuemos a mexer no horizonte das lombadas, na busca parva de casualidades que fundamentem este livro e não outro. Os tolos dão muita importância a estas coincidências, diz Francisco Umbral em um dos contos – saborosos que nem pinchos em La trucha – de «Historias de amor y viagra» (ed. Planeta), e remata: «la metafísica de los tontos es la casualidad». Um jornalista de meia-idade, fazem questão de dizer, é convidado a experimentar a novidade do final dos 1990, o Viagra, e disso faz dele pretexto para investigações ao desejo e mais além. «Sabemos que o eu começa onde o nosso desejo acaba, mas ninguém dá o passo adiante, por preguiça, por medo». Apesar das mortes e da melancolia, não se trata de policial, embora lhe roube o tom cínico de quem está sobrevoando, de passagem, vendo ao longe. A frase discorre com invejável ligeireza, esculpindo personagens de vulto, e colocando-as em cena montada pela mais fina observação, soltando sentença aqui, piscando o olho aos clássicos além. Leitor de águas profundas sabe vir à superfície do banal para respirar. A mulher deste habitat interessa-me, e muito, até por desafinada com o óbvio dos dias, mas foi a cidade que me matou. Madrid está toda aqui, com crueldade e cheiro, as marcas distintas de chão e varandas, de cor e parques, de temperatura e sujidade. Não sei se chega a ser amor, mas sacrifica-lhe tantas palavras que parece fazer dela mais causa que cenário. E não se limita ao exterior, os bairros medem-se aos palmos de parede. No conto mais tocado pelo spleen de meia-idade, sobretudo com a queda para avaliação enquanto forma da memória, «Isabel», as descrições do bairro e do apartamento, com livros de alto expressionismo, alcançam luminosa intensidade. Mas, por causa da metafísica dos tontos, vou buscar a outro o acesso a essas personalidades que as partes da nossa casa assumem agora de um dia para o outro, inesperadas e cheirosas: «olor a vieja, olor a militar, olor a hiperrealismo, olor a bragas, olor a niño muerto, olor a mujer dormida, olor a cuarto de la plancha, olor a cocina abandonada, olor a coliflor.»

Foi pelo título que a mão sacou o Milan Kundera de «A Lentidão» (Edições Asa). A novela tem raízes no Vincent Danon de outro texto, esse magnífico que não encontro – a que cheirará a habitación da biblioteca onde se esconde? Curto-circuita-se com o anterior no fio vermelho do desejo, invocando logo cedo Epicuro para explicar, que o hedonismo não está tanto na busca do prazer quanto na ausência de sofrimento. E nisto me comprazo, nisto e na relação que o escritor procura provar entre lentidão e memória, anverso de velocidade e esquecimento. Com que forma nos marcará esta experiência de confinamento, tatuagem ou cicatriz? «A Senhora de T. soube imprimir ao escasso lapso de tempo que lhes coubera como que uma pequena arquitectura maravilhosa, como que uma forma. Imprimir forma numa duração, tal é a exigência da beleza, mas também a da memória.»

O cheiro a livros velhos punha a cabeça de «Moravangine» (ed. Ulisseia, mas ainda circula a da Cotovia) a andar à roda. As mãos do Bernardo [Trindade], sobretudo se em visita de médico, trazem sempre sábios volumes. Na tradução fiel do Ruy Belo e com capa de Espiga Pinto, este romance de vida de Blaise Cendrars pôs-me o corpo a andar à roda. Com a aventura e o delírio, das máquinas e das revoluções, das paisagens e das cidades, das longas descrições, das volúpias assassinas. E o ritmo. «Não há ciência do homem, o homem é essencialmente portador de um ritmo.» Não esqueçamos essa omnipresença: «as doenças existem. Não as fazemos nem as desfazemos a nosso bel-prazer. Não somos senhores delas. Elas é que nos fazem, nos modelam. Talvez nos tenham criado. São próprias desse estado de actividade a que se chama a vida. Constituem talvez a sua principal actividade.» Páginas febris se sucedem. A febre, em Blaise Cendrars, faz-se estilo. «As epidemias, de maneira particular as doenças da vontade, as neuroses colectivas ficam a marcar, à semelhança dos cataclismos telúricos na história do nosso planeta, as diferentes épocas da evolução humana».

Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 24 Abril

Quase sem querer, vejo-me metido com outros (pequenos) editores em gesto de organização tão raro que seria precioso se o resultado fosse distinto. Escrevemos à Ministra da (pouca) Cultura a pedir, face à crise, o óbvio gritante: em resposta à crise, compre-nos livros. Veio a resposta em forma de esmola. Pensamento e estratégia? Nada, além de tristonhas declarações. Resta-me acreditar que o gesto dos editores venha a dar árvore frondosa, capaz de produzir fruto e sombra, bonsai que fosse, dos de tratar em casa. Não sei, cheira-me que. Quero sempre muito à volta do 25 de Abril.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 25 Abril

As voltas que as coisas dão sobre si são revoluções. Em pequeno caderno laranja de cantos aparados, mas ao formato, o mano enorme António [Gonçalves] responde ao «Navalha no olho» ilustrando-o e manuscrevendo-o. Fragmentos de carne pontuam doravante as palavras, revivas por mão amiga e leitora as ter passado a tinta, negra de tão sanguínea. O gesto contamina o céu e a terra, as nuvens transfiguram-se em corpos que ficam no passar, o alcatrão despe-se para deixar que o chão mostre os seus castanhos pisados. O corpo quedo locomove-se.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 26 Abril

Não vou mentir e dizer que foi de súbito, que nem trovoada tropical. Ainda assim, bateu esta morte do João [de Azevedo], com as cores vivas a esbaterem-se e os crocodilos a mergulharem para esconder a dor nas águas primordiais. O João conversava o mundo. Desfez fronteiras por causa de causas e arranjou maneira de prolongar vida fora certas experiências dos dias em que as utopias se cultivavam com enxada. Terras muitas e céus variados, viagens de quem lê. Aprendi mais África nas intermináveis libações, com o que o negro continente contém de Europa, de vontades transviadas e mitos cegos, surdos e mudos. Mas outros animais e outras paragens vinham à beira da tela para desaguar, para desovar, o crocodilo antes dos outros, a fazer-se senhor de erotismos e mortes de ver ao pé (exemplo algures na página). Um homem contém um mundo, mas o João fez-se antena de mundos, convocou outras gentes, das sementes e das palavras, acreditando. Este homem trazia consigo sempre outros. E um enorme sorriso respirado, de ânsias e paisagens. Um homem assim morre menos. Vou acreditar que esta seja ausência breve, o tempo de um relatório e poucas contas.

29 Abr 2020

Queridos monstros

Santa Bárbara, Lisboa, quarta, 14 Abril

[dropcap]E[/dropcap]stou convertido, embora no degrau de humilde iniciado, a esta enigmática secção das grandes artes divinatórias, a da interpretação de lombadas. Através da qual, e por via da disciplina e estudo, alcançamos com invulgar grau de certeza essências como o lugar (da estante) em que nos encontramos, a melhor orientação dos passos (perdidos) e a aguda interpretação do passado, para não invocar a esfera celeste ou as circunvoluções da massa cinzenta. Sacudida a poeira do lombo, eis-me perante o desafio de «Idées Noires», de Franquin (ed. Fluide Glacial ou a edição portuguesa Witloff, sendo que a leitura ganha em ser acompanhada pela edição da «Fluide Glacial Série-Or» dedicada a este «olhar humanista sobre a loucura do mundo»). O autor que, para dizer o mínimo, reinventou Spirou e criou figuras da mitologia contemporânea como Gaston Lagaffe movia-se no universo do bom humor, pela produção artística e inclinação genérica, cultivando fama de simpatia e generosidade. Quando se percebeu que convivia com depressão, mesmo antes de agravada por enfarte em meados da década de 1970, isso passou a lente de aumentar explicações para tudo e mais um pêlo. Há doenças assim, que ocupam com galhardia e ordenamento a posição da identidade. Portanto, também para esta série discreta, que saltou das páginas da revista «Spirou», onde foi sempre um quisto, para a «Fluide Glacial», mais dada às correntes da acidez. São histórias curtas, críticas ferozes do militarismo, do consumismo, enfim, das cegueiras capitalista e religiosa. E celebrando assertivamente a vida animal, a ecologia, os monstros, que desenhava ininterruptamente com grande alegria e delícia, além do seu tema principal: o indivíduo e um radical, para dizer o mínimo, absurdo. Humor negro, portanto. Duplamente negro. Se na bd habitual, a cor, nas mais óbvias e luminosas das suas combinações, era a cor que reinava, aqui e sobre fundo branco, tornado o quotidiano branco, subjugado por um manto de neve-página. Quase sempre, que no espaço sideral tudo se invertia. E há (pouca) vida em outros planetas. As figuras nascem negras e eis um primeiro sinal do assombro. Esta massa que absorve a totalidade possui infinidade de detalhes, uma expressividade que desafia cada tentáculo da nossa atenção. Em versão original, as palavras «idées noires» são seres estruturalmente feitos de olhos e pêlos, cada minúsculo e fino traço transfigurado em pelugem vibrátil e metamorfoseante. O corpo de uma ideia. As histórias que me interpelam agora em plena tempestade de areia, que sempre me interrogaram, são as existencialmente peludas. Descrição, com perda: grande plano de um rosto animado e sorridente. Quem me ama, que me siga. Abre o plano de um deserto a desembocar em céu de preto retinto. Planando, um abutre. Descrição: uma multidão organizada em filas sucessivas desloca-se da esquerda para a direita, encurvada pelo pensado dos pensamentos, continuarei sempre um número entre outros, sem saber como alguns conseguem chegar mais e mais rápido que outros. De súbito, um executivo – distingue-se bem no negro – passa velozmente e assentando sapato de verniz sobre a cabeça da massa abaixo, sim, debaixo. Algures na página reproduz-se outro. Descrição: grupo em festança saltitando de plataforma em plataforma, de ilha em ilha, vai crescendo o intervalo entre elas e a dificuldade até ao agudo e espinhoso final.

Penso no esquecido Reinaldo Ferreira: «Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia/ Que partout, everywhere, em toda a parte,/ A vida égale, idêntica, the same,/ É sempre um esforço inútil,/ Um voo cego a nada./ Mas dancemos; dancemos/ Já que temos/ A valsa começada/ E o Nada/ Deve acabar-se também,/ Como todas as coisas.» Poderia encher o interminável dia saboreando a descrição, modo de redesenhar acariciando, maneira de roubar a pretexto da partilha (se houvesse leitores, claro). Descrição: alguns têm título, por exemplo este que pede para não se confundir a inevitável marcha do fado com destino animado. Uma figura fina sobre o branco diz-se curiosa para ver o que eles inventaram. De súbito, a sombra, e de cima desce lentamente um negro, mas dinâmico, riscado, não pleno. A figura procura correr e a cortina desce, fatal como o destino. À direita do quadrado seguinte aparece um branco prometedor, a figura corre e parece conseguir, mas o chão torna-se pastoso, um betume afinal cola, mas a humana figura quase indistinta do chão esforça-se ao máximo. No quase, o negro esmaga-o, deixando apenas cabeça e grito.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 15 Abril

Conheço mal o trabalho de Luz (Rénald Luzier), desenhador de humor e redactor do «Charlie Hebdo», mas a edição referida ontem da «Fluide» apresentou-mo e a sua homenagem a Franquin em estilo duplo, traço simples em diálogo com aguarela livre, cativou-me. «Catharsis» (ed. Futuropolis) reúne as histórias curtas (de Janeiro a Junho de 2015) com que o artista foi enfrentando os seus monstros. O dia do ataque terrorista ao jornal era também o do aniversário de Luz, que por isso e pormenor que não conto embora seja desenhado, chegou atrasado à reunião de redacção, mas muito a tempo de apanhar em cheio com os estilhaços do massacre. Durante longo período foi incapaz de desenhar e aqui entramos no dia-a-dia do seu combate, peito aberto e exposto a cada fase do luto, até que o traço, expressão da vontade, regressa: dois olhos enormes sustentados por corpo mínimo hirto, mãos junto às coxas, tudo rabiscado, esboçado, a fingir hesitação, mas longe da exactidão do contorno. Além do resto, explosivo e sensível, o desenho faz-se aqui personagem, suscitando reflexões em torno do prazer e da dor, de como certas linguagens se fazem líquidas, etéreas e poderosas, na expressão dos silêncios e vazios que são a nossa matéria primeira. Descrição: em «Interlude», um já reconhecível Luz parece agastado e começa um bailado que o desintegra de mil e expressivos modos, gargântua de onde saem outras bocas menores em esgar, sempre em traço puro e solto, como se o pincel não se soltasse nunca do papel até que o grito se cospe em grosso A, continuação do ininterruptamente alinhamento da primeira letra do alfabeto, som da dor e do espanto. A figurinha sai na direita baixa dizendo: faz-se o que se pode. Digo no óbvio: a sucessão e o alinhamento dos pequenos contos resulta lancinante, comovente, humana. Tão humana, que se faz bem humorada. Um final feliz por envolver desejo, talvez sexo.

Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 16 Abril

Dizem que o povo está todo a ler no seu recolhimento obrigatório. Para não me cansar, tratei de entrar floresta dentro, até por a ver avançar, dos lados do Campo de Santana, da face a norte do Areeiro, nos tufos de jardim que alcanço. Esta versão de «Hansel & Gretel» (ed. Bloomsbury) nasce dos cenários para uma ópera, encomendados a Mattotti, para os quais escreveu depois Neil Gaiman esta versão, que não se afasta do clássico, sem esconder a violência de pais que se livram dos filhos em tempo de aperto. Interessa-me nesta «darkly brilliant fairy tale» o negro negrume com que ardem as ilustrações do italiano. Volumes inquietos de negro a bailar na página, permitindo apenas ligeiros afloramentos de luz. Escusado será dizer: não vejo senão isso na coreografia dos tempos.

22 Abr 2020

Lida da casa

Santa Bárbara, Lisboa, quinta 26 Março (bis)

[dropcap]I[/dropcap]nsisto. As lombadas andam inquietas com tanta atenção de olhos e mãos. Fingem o pó, para evocarem exteriores. E desafiam em distintos momentos deste longo dia com outras maneiras de caminhar sobre o tempo, de o desatar, de brincar com ele, às escondidas, à apanha. Afinal, passo o dia a fazer noite, como Colin a desgraçada figura que cavalga «A espuma dos dias», desse cintilante Boris Vian (ed. Frenesi) que há-de ser celebrado este ano, por via das redondas datas. A ver vamos, que este opressivo discorrer via produzindo em grande velocidade calhaus, belos e redondos. O realismo mágico, fórmula tristonha, pertence a outras paragens, bem sei, e por lá pode ficar o seu desajuste, mas o quotidiano destas paisagens, longe no tempo e no lugar dessas outras, ergue-se movediço, com uma dinâmica delirante que cruza mecânico e orgânico, sensação e matéria. De tal maneira, parecemos andar sobre perfume, com gozo e facilidade. Sinal maior, a casa muda a sua arquitectura consoante o que à sua volta se experimenta, se conhece, se sente, se vive. A casa enquanto nosso prolongamento, parte de nós, corpo concreto. Nos dias da espuma, a vida pode ser leve, até que a desgraça a contamine, o amor a sofrer com nenúfares a habitarem pulmões. A vida podia ser distinta, mas «nem sempre as coisas podem correr bem». Tenho que concordar com a resposta, até porque pela parte que me toca, também «podiam não correr sempre mal». As coisas são o que são, mas estamos fartos de saber que essa força que faz as coisas serem o que sempre foram tem a ver com quem ganha com isso. As coisas podem sempre ser feitas de maneira outra. Agora ficou manifesto, gritante.

Um viscoso quotidiano, oposto ao do par amoroso Colin e Chloé, escorre de «Les choses» (ed. Juillard) e agarra-se-me. Logo me vejo com o narrador, que podia ser Georges Perec talvez «un autre» sociólogo, a observar aquelas vidas na casinha de bonecas, fascinado pela «aisance» de vidas forradas a coisas, sustentadas por elas, nelas esgotadas. O supremo objecto de desejo do bem-estar quedo e ledo, a sociedade de consumo então nos seus alvores (subtítulo: uma história dos anos sessenta), a felicidade feita venenosa «souplesse». Outro par, que se esgota no conforto modesto, mas que aspira ao luxo, supremo hedonismo no qual a cultura se torna apenas sinal de estatuto, marca, sem transgressão nem sangue. Apenas uma coisa mais. Não há sombra de verdade, portanto de tragédia, apenas pilhas a gastarem-se agradavelmente. «Francamente insípido», eis as duas últimas palavras da novela.

O trânsito do tempo breve ao infinito, diz a sinopse, faz-se gancho enterrado na carne macerada para me puxar para levar a «La cuarentena» (ed. Alfaguara). Juan Goytisolo, outro dos grandes inquietos, interpelado pela morte de uma amiga, pela morte amiga?, resolve viajar. A quarentena onde me leva é a dos místicos sufis, que ele coloca em diálogo com Dante e «Divina Comédia». Afinal, corresponde ao momento em que, entre Terra e Céu, as almas se transfiguram e ganham um corpo subtil. Ganhamos suprema ligeireza para ir onde for preciso para vestir o corpo certo, o da eternidade. Como bom herege, tece «uma rede de significações para além por cima do espaço e do tempo, ignora as leis da verosimilhança, descarta as noções caducas de personagem e trama, abole as fronteiras de realidade e sonho, destabiliza o leitor multiplicando os níveis de interpretação e registo de vozes, apropria-se dos acontecimentos históricos e serve-se deles como combustível ao serviço do seu projecto», ou seja, «viver, morrer e ressuscitar». As suas palavras afirmam o processo de criação como quarentena e fala mesmo em «cordão sanitário, com protecção e barreiras». Por que raio se queixam então os escritores de domingo a passear cursor na rede? Tomo nota das pistas, há que regressar aos místicos, apetece-me o quietismo. Sem perder a leveza, a ligeireza do pó que viaja. Não se deve limpar o pó dos livros. A ele voltaremos.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 12 Abril

Peregrinando por entre a morte, cada um frankstein feito à força de peças de drone e corvo a percorrer ruas vazias a espelharem o nada nosso que nos dais hoje, celebra-se a brutal possibilidade da ressurreição. Sinal de que parte do carácter dos dias se perdeu — obrigando o mano António [de Castro Caeiro], mais tarde ou mais cedo, a acrescentar capítulo ao seu «Um dia não são dias» — até neste calendário se procura saber do futuro da edição, do livro, da leitura. Sílvia Cunha, da «Visão», lançou inquérito (e as respostas podem ser lidas aqui: https://visao.sapo.pt/atualidade/cultura/2020-04-12-covid-19-o-mundo-dos-livros-vai-sobreviver-a-pandemia-quatro-editores-respondem/). Por mais que tente abafá-la com a razão, ando sempre com o perfume de uma probabilidade outra no bolso. «A chegada a pés juntos do tempo nas nossas vidas, com esta travagem brusca, pode, de facto e, de novo, esperançosamente, mudar alguns comportamentos. Não creio que regressaremos a nenhuma época de ouro, que estará sempre por definição em passados e mitos, mas isso exigirá das editoras (e outros actores da tragicomédia editorial) novas respostas que respondam a novas necessidades. Sem dúvida que se abriram portas de um grande laboratório, assim haja quem queira agora manipular os aceleradores de partículas, que não será a aplicação acéfala de pomada na pele carcomida do marketing. Condenado o objecto-livro a uma comunidade de nichos, será daqui que surgirão as propostas mais interessantes.»

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 13 Abril

Quem tem medo do quotidiano? Mal se levantava o grande turbilhão de pó, o José Luiz [Tavares] compôs uma «litania em tempos de coronavírus», exigindo sem temor mais tempo ao tempo. «Agora sim,/ que é antes de toda a dor,/ ainda no corpo tens cor,/ e sobe-te à boca/ centos de sabores.// Mas ainda não ao grande sim,/ porque maravilha-te estar aqui/ (só mais um instantinho),/ embora penses na mão da eternidade/ ou como é doce o despenhamento.»

Agora mesmo (mas ainda haverá agora?), a Rita [Taborda Duarte] anuncia-me que «incorreu na falta» de escrever poema pandémico, cheia de loiça suja. «O poeta tem de bater com estrondo/
a porta da linguagem/ nas trombas do mundo;/ trancá-la por dentro: um poeta tem de escrever/
a métrica centrifugada dos lençóis/ encharcados nas ventas da poesia.// (…) Um poeta tem de escrever.// E só deve baixar os versos/ para chafurdar a esfregona no tinteiro.”

15 Abr 2020

Insignificâncias

Santa Bárbara, Lisboa, terça 24 Março

[dropcap]O[/dropcap] gato percebeu-o antes, como deve ser. A varanda que dá para o cruzamento quase largo, palco maior dos pequenos choques e até grandes acidentes, abre-se não apenas para o jardim despercebido das infâncias, mas em vistas para a «situação», dita assim meio a medo de nomear a doença. Da minha varanda vê-se o confinamento, essa lente que agora tudo amplia, tudo atrai para a sua rede de significâncias, talvez aparentes, certamente frágeis.

Há uns valentes anos, em momento difícil, sob liderança esclarecida do mano Tiago Manuel, juntei-me ao Luis [Manuel Gaspar] para um conjunto de objectos que envolvia desenho, pintura e poesia. Em Novembro último, sem razão aparente, sacudi o pó aos versos, alguns pertencendo a poema baptizado «Santa Bárbara», que acabou publicado na folha de sala da «Diga 33», as sessões animadas pelo Henrique [Manuel Bento Fialho]no Teatro da Rainha. Noto-lhe ressonâncias, pelo que aqui o deixo ao vento, mais a chuva que parece vir do rio só para me agradar.

«É da minha torre que vejo o castelo,/ rasgo na mão a flor de sal do horizonte.// Tacteio os muros em busca das janelas,/ noto a ponta dos dedos ferida de céu.// Em cima, os passos descalços da vocação perdida,/ aqui ao fundo aguardo um caminho.// Há promessas de viagem na trovoada,/ a redenção espreguiça-se como um arco.// Uma ideia descalça no miolo da espada,/ são raios que me partem, as dúvidas.// Na companhia íntima das raízes,/ o brilho da lágrima faz a morte hesitar.// Explode às vezes a coluna de pó,/ são as janelas que brincam de ameias.// Desfaz-se o perigo naquelas mãos,/ sei de cor a dádiva de uma recusa.// Anunciam-se os sábios e as palavras,/ mas se o círculo de pólvora limita os passos.// Cada onda da túnica é beijada pelo navio,/ estendo as mãos ao encontro dos estranhos.// Guarda o belo para o regresso,/ repousa a folha, um relâmpago no regaço.»

Santa Bárbara, Lisboa, quarta 25 Março

Saiu da gráfica para o vazio, este «O Nosso Desporto Preferido ̶ Futuro Distante», com que o Gonçalo [Waddington] se tem entretido a fazer e desfazer o tempo, com o corpo todo e a partir dele, nossa inevitável máquina de mastigar paisagens e cuspir necessidades. Ou vice-versa. E não deixo de tropeçar nos fios que ligam este trabalho, onde convivem espectros e a Humanidade em coro, espelhos e o malabarismo da língua, ao que estamos experimentando. «O tempo a ludibriar-nos pela eternidade adentro, e ainda nos aldrabam o espaço», diz Tirésias lá para o fim. «Agora é tudo escondido atrás de uma parede. É isto que nos deixaste, seu madraço? Versos rascas, rimas badalhocas e asneira atrás de asneira?» Um grupo de génios desenvolveu uma humanidade com as necessidades mais básicas resolvidas, e as quatro peças, sem que uma está por levar à cena, vão contando, anos para trás e para frente, do processo e respectivas consequências. Brutais, que não é impunemente que se mexe no que nos define. Nesta encenação em concreto, o público estava em cena, participava apenas por estar de corpo presente, espectro da humanidade possível. Eis-nos agora, postos à força a jogar esse lentíssimo e exasperante badmington, à espera que o outro devolva o volante. Dá tempo para acasalar com uma cadeira.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta 26 Março

De cada vez que passo por uma estante, as lombadas, que se alinham de modo diferente a cada dia, sussurram tentações, maneiras de queimar o tempo, de o explicar, de jogar com ele. Tem tentáculos, a situação. Afinal, passo dia a fazer noite. E oiço isso mesmo vindo d’ «A espuma dos dias», do Boris Vian (ed. Frenesi). E lá descubro que «as pessoas perdem tempo viver, por isso já lhes não sobra nenhum para trabalhar». Lá acompanho a desgraça de nenúfares que vivem nos pulmões, apesar das flores. «Nem sempre as coisas podem correr bem». Tenho que concordar com a resposta, «mas podiam não correr sempre mal». Sou agarrado por «Les choses», de Perec (ed. Juillard), e vejo-me com o narrador a observar aquelas vidas na casinha de bonecas, fascinado pela «aisance» de vidas forradas as coisas, sustentadas por elas, nelas esgotadas. A felicidade feita venenosa «souplesse». Mas a situação já manda em mim? Nisto só me apetece o quietismo, invetsigar os místicos. Entro na «Cuaretena», de Juan Goytisolo (ed. Alfaguara), para me baralhar mais ainda os planos, mas convocando o corpo subtil e com ele modos de aprender a leveza, a ligeireza. Além de duas ou três páginas onde o labor da escrita se vê plasmado com minúcias nesta ideia que nos atravessa do isolamento. Mas não haverá outro assunto, ó estante maldita.

Santa Bárbara, Lisboa, sexta 27 Março

Não é de agora. O mano Tiago Manuel insiste em ser um dos últimos moicanos a teimar na carta manuscrita e em papel, invariavelmente acompanhada de desenho, que teima em dobrar e agrafar, tentando sem grande sucesso impedir que acabe nas paredes dos amigos. As suas imagens são matéria pura, em incomum mistura de ligeireza, de fluidez na definição dos corpos e da sua paisagem, e a gravidade que resulta de pensar por inteiro. Desta, teve a generosidade de dialogar com poema meu, que fala de horizonte e relâmpago, e não o mostro aqui por me apetecer a reserva. Foi tempo que lhe respondia, como desejaria, lavrando folha, em esforço para que a letra levasse o mínimo de inteligibilidade, mas há muito desconsegui.

Digo-lhe por aqui que conservo no lugar exacto as suas incandescentes palavras e gestos de conforto e que acredito na teia de bem querenças onde pernoitar. «Estes dias mostram-nos o Mundo com as cores sombrias de um tempo antigo que julgávamos para sempre esquecido e não e fácil equilibrar os nossos males e preocupações com tão grande ressonância. Porém, estamos unidos pela força dos afectos e havemos de ultrapassar as dificuldades de hoje como aquelas que deixamos atrás.»

Santa Bárbara, Lisboa, sexta 3 Abril

A situação pôs ponto final no «Obra Aberta», quatro anos e mais de cem convidados depois. Muitas páginas se folhearam ao vivo no CCB, pouco antes de se ouvir a conversa em torno dos livros e da leitura, portanto, da vida, conduzida pela Maria João Costa, na antena da Renascença. Os livros são corpos cada vez mais estranhos no horizonte dos dias, destes exactos dias que tanto precisam das perspectivas que apenas a leitura possibilita.

8 Abr 2020

Cumprir a mão

Palhavã, Lisboa, segunda 3 Fevereiro

[dropcap]A[/dropcap] notícia da morte de George Steiner (1929-2020) apanha-me prostrado, tentando afastar do pensamento por razões práticas a sempre próxima. Tão próxima que se fez querida. Na arrumação dos dias, agigantou-se a mesa de cabeceira, ou talvez a estante se tenha aproximado ainda mais do lugar onde tombo a cabeça. Estendo a mão e puxo o robusto introito à obra e figura do mestre, composto e interpretado a quatro mãos por José Pedro [Serra] e Ricardo [Gil Soeiro], «George Steiner, Das cinzas do silêncio à palavra de fogo» (ed. Exclamação). A poesia e o programa do título cumpre-se em vários ensaios dos queridos organizadores, além do «elogio» e resposta aquando do doutoramento Honoris Causa, em 2009, de uma entrevista e de utilíssimas bibliografias. Atenho-me em «Steiner ou Palavra Viva», no qual José Pedro desenha o perfil do pensador a partir das suas entrevistas e que se resume na frase que sublinho a lápis, que devia aprender de cor: «o seu humanismo consiste, com a ajuda dos melhores, em colocar o homem perante os múltiplos cantos de todas as Esfinges, em procurar olhar os abismos da alma, em lançar o pensamento até ao limite do compreensível, em proclamar a superioridade do Bem, em aludir à misteriosa e inefável experiência do Belo.»

Parêntesis longo: as páginas iniciais desenvolvem notáveis argumentos para a instituição da entrevista enquanto género literário e dos mais radicais elogios que me foi dado ler sobre tão menosprezada prática (mais ou menos) jornalística. «A entrevista é lugar único e inimitável para uma característica formulação de um pensamento, para a experiência de um sentimento, de um entusiasmo poético, para o eco do pulsar cardíaco de uma revelação ou de uma inquietação.» O essencial está na «visão encarnada» das ideias a habitarem o tempo daquele individuo, tendo invariavelmente por perto a Senhora Morte, dada a nudez radical que se exige aquele que se joga na entrevista. «Esta coloca-nos não apenas perante a ideia, mas perante o homem que pensa a ideia, não apenas perante o sentido de um caminho sugerido, mas perante o homem que arrisca o caminho, que o trilha e o desbrava». Parêntesis fechado.

O Steiner que aqui se desbrava, feito percurso e planeta resulta de um magma de alta cultura europeia, com andantes raízes no judaísmo, assombrado pelo Mal impensável entrevisto no Holocausto, em busca incessante pelo Sentido e pelo Absoluto em diálogo com o Transcendente, talvez Deus. Interpela-me o «cancro do pensamento», a «patologia do absoluto» que Deus, incandescente até na sua ausência, nos terá inoculado de modo a que qualquer interpretação seja uma interpelação. Encontro estranho conforto nesta tessitura entre a questão de Deus, em mim adiada, e o mergulho em apneia no texto. Sem esquecer o desencanto das construções políticas, a tragédia do aparente falhanço das utopias. Em frutuoso diálogo, José Pedro discorda de Steiner quanto à «tragédia absoluta», espécie de buraco negro, pois encontra no coração das trevas «sempre um resistente traço de luz que se recusa a extinguir, rebelde traço oposto ao negro traço deixado pela tragédia.» Quero crer em uma rebeldia de luz, com raiz na palavra. Que outra forma teríamos de desenhar chão ou céu?

Palhavã, Lisboa, quarta 18 Março

A máscara no rosto faz com que a respiração me embacie os óculos, e a limpeza das lentes a cada passo parece apropriada para o que de explosivo contém este número 87, 88 e 89 d’«A Ideia», a revista de cultura libertária, companheira de há muito, que me fez chegar o velho e querido amigo António [Cândido Franco], seu director (que digo? alma). Não se encontrará hoje, entre nós, publicação mais desafiante, capaz de propor pensamento nas mais díspares direcções, de recolher pistas das mais distintas tradições de resistência e produção de paisagens outras. Este número entusiasma de tão exemplar, na sábia mistura de dossiers (escrita automática e surrealismo, com texto notável de síntese e potência do António, além de interessante inquérito, mas também em torno de Agostinho da Silva ou sobre anarquismo), de poemas e contributos artísticos (de que o trabalho de Maria João Vasconcelos nesta página é marcante exemplo, uma ilustração para estas horas difusas, em que não sabemos se subimos ou descemos, em que deixámos de ver o chão, mas não sabemos onde colocar os pés), de textos literários e reflexões (Schwob, Tolstoi, Zweig, Verlaine, Anselm Jappe, José Manuel Martins), de atenção às efemérides (A Batalha), de evocações afectivas (Bruno da Ponte, Alexandre Vargas), de traduções inéditas de documentos, como este «Ruptura inaugural», de 1947, e que acaba por contaminar tudo nas páginas seguintes. É que o surrealismo não se afirmava «apenas» enquanto movimento literário, mas revolução interior, gesto capaz de radical «resolução de conflitos que bloqueiam o acesso a toda a liberdade, estejam eles entre o sonho e a acção, o maravilhoso e o contingente, o imaginário e o real, o exprimível e o indizível, a candura e a ironia, o fortuito e o determinado, a reflexão e o impulso, a razão e a paixão, exemplos particulares de uma antinomia mais vasta, contrapondo, no mais profundo da natureza humana, o desejo e a necessidade.»

Esse relâmpago rasga a diversidade do volume, que se desmultiplica em tantas outras leituras, se cristaliza e dispersa, que interroga e consola, que perturba e apazigua: a poesia enquanto o princípio e a fonte de todo o conhecimento.

Santa Bárbara, Lisboa, sexta 20 Março

Este parêntesis (não será antes movediças reticências?) em que mergulhámos dá-nos a falsa sensação de que a vida se suspendeu, mas ela continua sob todas as suas formas. Até a habitual morte. Deixa-nos Rogério Petinga (1935-2020) que, sobretudo na Quetzal da prometedora origem, desenhou livros com cuidados de barroca filigrana aproximando leitores de autores fundamentais.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo 22 Março

Recebo uma folha, que parece tombada de árvore outonal, portanto desalinhada com as estações, com marca das hastes e restos de seiva. Diz a Sara: «eu por aqui, vou-me podando. E às plantas também. Observo, espero por notícias que a mão vai cumprindo, sem a turvez e a hesitação que cá dentro acontece. Identifico as ervas daninhas que na sua característica persistência invadem com teimosia e arranco-as com suavidade, na esperança de que cá dentro se lhe copie o modo. Olho para aquelas que já não darão frutos, apesar de todos os cuidados e atenção e com uma coragem muda assumo o seu fim honrando-as numa nova existência.» Deixo divagar com as notícias que a mão vai cumprindo.

1 Abr 2020

Perdidos e achados

Santa Bárbara, Lisboa, domingo 15 Março

[dropcap]N[/dropcap]ão voltarei a usar a palavra coincidência. Assim que afastei a frase percebi que não lhe escaparia. No trambolhão das circunstâncias, «Lourenço é nome de jogral», de Fernanda Botelho (luxuriante capa de Maria João Carvalho, algures na página), volta a tombar-me nas mãos, a ecoar-me nos dias. E por inúmeras razões, ei-lo incandescente, a queimar-me. (Nas frase seguintes arrisco estragar alguma surpresa em hipotéticos leitores, mas estamos perante um daqueles casos em que a narrativa e seus acontecimentos interessam pouco.)

Ampliemos um detalhe: parêntesis – que uso na versão diferente, parêntese, da autora por me sugerir o plural, pelo grafismo dos «esses» a definirem desfiladeiros na paisagem. No exacto momento em que temos a vida entre parêntesis, eis romance onde a autora os usa como lâmina, goiva, formão. A sua estrutura polifónica, coral também no sentido animal, na qual cada capítulo corresponde a uma voz, quase sempre na primeira pessoa, como que é interrompida por afinações, evocações, falas de pessoas outras, explicações breves, mas também longos pensamentos, cinzelamentos, acertos e pequenas histórias, e, por se tratar de vida, comentários aos modos de narrar, ao definir das personagens. «(Ao regressar deste parêntese, dei-me conta de que o veneno estava intacto dentro de mim, mas o conhecimento da sua inevitabilidade, acrescentado ao cansaço e à doença, serviram-me de pretexto para uma aquietação razoável.)»

Lourenço é o núcleo deste ecossistema, que rodará à velocidade da nossa leitura, abrindo com a fala do filho e que em diálogo com ele se fechará, com um «Eu» a ensaiar respostas trémulas ainda que finais: «se pudesse e soubesse, responder-te-ia. Sou isto que sou.» Lourenço está morto, suicidado?, e as vozes que o velam talvez sejam orquestradas pelo próprio para que se revele a si mesmo no círculo fechado de espelhos que são os outros. Dirá, em outro momento, na sequência de alinhamento das dúvidas, das espectativas, das crenças: «sou um homem só, mas um homem só é um absurdo.» Lourenço perdeu-se nas múltiplas bifurcações, as da sua condição, as da sua esperança, as do seu potencial. «Eu, céptico? Sou muito pior que isso: sou burguês.» O burguês, inquieto e culto, aberto ao mundo e ao humano, como labirinto. Sem saída.

«Dou-me conta do meu cansaço, da minha incapacidade, duma qualquer inutilidade que também me engloba. As ejaculações de Catulo e de Rimbaud serão resposta a uma nossa exigência essencial, serão uma metáfora da nossa congénita vocação de absoluto, ou serão, simples e exclusivamente, parte do instrumental de sopros e percussão que vai ritmando, entre agudos e graves, a marcha colectiva para um futuro qualificado?»

Forço conclusões, debruçado sobre a mesa de autópsias, desrespeitando a mestria de Fernanda Botelho nas subtilezas, no sugerido, na transparência que esconde. O grupo de amigos que rodeia Lourenço para o definir dizendo-o, são figuras de corpo inteiro, de carne viva, sobretudo as mulheres, Matilde e Luzinha. E também os seus dias surgirão, nunca de forma linear, como «contas dum colar, todos eles enfiados na linearidade do tempo, à espera dos que hão-de vir, mais contas para o colar que nos estrangula.» Quando a máquina da memória se liga «verificamos nessa altura (e com que surpresa!) como, vista assim em panorâmica, a nossa vida não foi uma simples sucessão de dias, antes uma confusa hierarquização de quebras, fagulhas, lapsos, deslizes, golpes, turbilhões, ciclones, mortes». A cultura, musical, literária, surge líquida, em baixo contínuo, pano de fundo, próxima e estruturante. (Rabelais por exemplo, atravessa a paisagem enquanto fantasma.) E em relação estreita com outro dos grandes temas: o corpo, como lugar onde nos cumprimos, e o desejo como ferramenta para o moldar. São incontáveis as passagens fulgurantes, que resultam do entendimento dos modos, da observação aguda, da explosão telúrica. «Só o corpo é meu em exclusivo.», canta Luzinha. «Ele é a parte que se deve a si própria, e apenas. É através dele que me exprimo natural; não quero chegar à metrópole torturada da alma com a nostalgia de não ter passado pela selva esconjurante do corpo, nunca estaria completa na metrópole, consagrada por inteiro às funções da metrópole, nunca, sempre dividida entre dois pólos opostos, à procura duma amostra de selva, e insatisfeita sempre, com a minha pretensa unidade comprometida, desconcentrada.» O corpo faz-se folha em branco, sujeito a uma escrita que abre a noite, mas que nos pode enclausurar. Por que porta se entra na perdição, em que momento falhamos o encontro? Falhar torna «a dor como forma única de sobrevivência»?

Páro, e ao parêntesis inicial respondo com dois pontos, deixando-me pendurado, tal me encontro. Estou agora no meio da conversa de Lourenço consigo mesmo. «Lorenzaccio, meu irmão, meu gémeo, meu arquétipo, somos os fundadores duma classe onomástica com os pés no inferno, o espírito no impossível paraíso e o cérebro rasgado na confusão das trevas terrestres. Somos realmente os gigantes da angústia perplexa, megalómanos do sonho irrealizado.»

Horta Seca, Lisboa, segunda 16 Março

Decidimos o inevitável. Encerrámos as janelas luminosas, da rua deserta sobra apenas a contingência da gestão da economia estar em horta seca. Esperamos que a porta fechada não ganhe o peso do concreto. Enchemos o peito de ar e agora de cronometro medimos o tempo que aguentamos debaixo de água (sem lançamentos, livrarias, feiras e o sobrante e poroso e descarnado exoesqueleto).

Horta Seca, Lisboa, sexta 19 Março

Em instigante entrevista ao Le Point, Peter Sloterdijk aconselha como leitura para os dias Bocaccio e «Decameron», por responder ao mal contando histórias que libertam o desejo de viver. Contemo-nos histórias. E lança o repto: estudar uma ciência inexistente, a labirintologia. No labirinto, as saídas não se descobrem à primeira e a vetusta bifurcação não responde aos desafios, não descobre se não portas. Fechadas.

25 Mar 2020

Habitar o vulcão

Santa Bárbara, Lisboa, 27 Fevereiro

[dropcap]U[/dropcap]ma casa não é um motel. Podes vir, que não tenho chacais no quarto. Anda ver à tua volta. Não são chacais no quarto. Nem são lobos os que percorrem longos corredores. Vem à vontade que tens sítio onde ficar, pergunta por mim. Não são hienas quem ri quando sobes as escadas. Pergunta pelo meu nome todas as vezes que desejares, não é um leopardo que se esconde por detrás da porta. E todos responderão. Acredita, não são macacos que se dependuram dos candeeiros. Vem e fica à vontade, bem sei que não estamos sós, mas os olhos que brilham são companhia autêntica. Claro que não, que tubarão caberia na banheira? Ratos na cozinha, que ideia!? Anda daí, instala-te, abre as malas, sacode o pó, dobra os mapas. Sem medos, pois todos os selvagens que recolheste das paisagens são aqui em casa animais electrodomésticos.

Santa Bárbara, Lisboa, 3 Março

Na vertiginosa coluna de livros que me despertam vontade de comentário, e que tive agora de transferir das mesas do escritório para os vazios dos móveis da sala, mais do que estar, de ficar, topo com «Parícutin», do Gonçalo [Duarte] (ed. Chili com carne). E celebro a sacrossanta coincidência. A novela gráfica nasce do episódio ocorrido, em 1943, na localidade mexicana do título, quando um vulcão resolveu nascer para estupefacção de quem acordava todas as manhãs para ali mesmo tratar do milho onde agora nasceu um imenso e negro buraco. Estupefacção e culpa. Deixamos o agricultor Dionísio a perguntar-se se não teria sido o causador da desgraça e passemos ao cenário urbano-depressivo onde acontece o que terá que acontecer, com alguém que não se quer levantar, cansado de não dormir, exaurido pelo pesadelo recorrente da queda de prédio em construção. Descobre, então, que deve construir a sua casa, o que faz, com algumas ajudas que logo dispensa para se tornar dono e senhor exclusivo do espaço. A culpa há-de invadir cada recanto desfazendo-se mesmo os corpos na arquitectura. Até que a morada, agora miniatura, regurgite a lava de vulcão que tudo arrastará. Dois registos bem distintos convivem, um de traço simples figurativo, com os protagonistas de características monstruosas, disformes. E outro de fundo negro e massas expressivas onde cabeças se bastam como corpo, são a substância total, membros de «comunhão do tédio». E da culpa.

Alguém recusa sair de si, mesmo quando arrisca erguer projecto-identidade (corpo, casa, família), que se transfigura em obsessão (burra, autocentrada, individualista) até que esmaga toda a paisagem. O Gonçalo consegue, a um tempo, a leveza do desenho espontâneo, veloz, e o peso de um denso expressionismo, entranhado (ilustração algures na página). Esta parábola sonâmbula prenunciava, no final do ano passado, estes estranhos dias onde mergulhámos e nos quais a casa se faz lugar inexpugnável, palco fechado para segredos e demónios, obrigados pelas circunstâncias ao quotidiano. Estamos, sentados no sofá, deitados na cama, a repensar a ideia de indivíduo e comunidade. «Nada de mais. Já passou, não?», pergunta uma cabeça pensante. Não, lá fora, o vulcão continua a jorrar lava.

Santa Bárbara, Lisboa, sexta 13 Março

Fujo de todos os espelhos da casa, não vá o cigarro surgir-me entre os dedos e me atire à cara a bruta pergunta e-agora-joão?, como se fora vez agora, de entre tantas outras que irromperam sempre a arranhar e a magoar, cacto no meio dos lençóis lavados, alfinete de dama na camisola de lã. A idade média não está de catedral, nada de medir o transepto, atirar o eco à nave, retocar os santos, limpar-lhe os martírios, ler as subtilezas dos vitrais, bafejar as jóias, convocar demónios, arejar segredos. Menos ainda soçobrar e rezar. Lá fora o vento sussurra e-agora-joão?. Não cedas. A capicua na quarentena vale joker no baralho, muito estardalhaço para nada, risos estridentes quebrados ao cair no chão cambaleante das noites, atirados ao pano de fundo furado do céu. Um dia de expediente no obrigadar de todos os dias, explicação dos ânimos, na resposta balsâmica aos pesares pesarosos, de circunstância ou nem por isso. Vale joker.

18 Mar 2020

Teatro de sombras

Santa Bárbara, Lisboa, 25 Fevereiro

[dropcap]O[/dropcap] tropeção da passagem do ano atirou-me para o colo uma fartura de crias para lamber, aquele momento único em que as nossas mãos tocam o objecto concreto e definido com origem em ideias e palavras. Pode sempre acontecer o inesperado, se não radical que nem cadernos invertidos ou lombadas guilhotinadas, seja a inevitável gralha a estragar a experiência com o seu grasnar. Cultivo essa superstição de encontrar alguma nesta primeira lambidela…

Hesito na cor que pulsa na capa de «A Grande Dama do Chá», trabalho (algures na página) da Elisabete [Gomes] para a viagem do Fernando [Sobral] à Macau dos idos de 1937, aliás, pré-publicada em folhetim no Hoje Macau. Não lhe vou ligar a confirmar se é carmesim o que vejo, mas gosto da ideia de profundidade do vermelho e conter algo de púrpura e ter tido origem em insectos habitantes de paisagens imemoriais. Melhor: não custa imaginar que os lugares, onde as personagens deste romance gastarão as vidas respectivas, multiplicam ao infinito tons e temperaturas do vermelho.

O «porto de almas perdidas», como lhe chama o narrador e mestre marionetista, talvez não chegue a ganhar corpo de protagonista, ao contrário do que se poderia esperar. Macau estende-se pano de fundo (carmesim?), mero entreposto das grandes transações: do amor e da morte, do comércio e do poder, do Oriente e do Ocidente, do ouro da droga, do Céu e do Inferno, da luz e das trevas. Mas talvez esteja enganado. É que o autor constrói com grande ligeireza, a partir de suaves e redundantes pinceladas, um perturbador teatro de sombras. Como um bom chá, o primeiro perfume não revela logo subtilezas ou densidades. As figuras maiores são Jin Shixin, espia ao serviço de uma China milenar, e Cândido Vilaça, saxofonista melancólico, diletante e adiado, como bom português. Ao redor do par apaixonado gravitam mais uma meia dúzia, invariavelmente em jogo entre o óbvio e o enigmático. Serão apenas isso, sobreviventes? Ou acabarão metáforas? Todos cumpriram guiões distintos daqueles em que os encontramos com à guerra às portas da cidade, e talvez daí nasça uma certa urgência em cumprir-se, nem que seja na invisibilidade. Jogadores, claro. «Todos, para o bem e para o mal, jogamos. Uns sabem fazê-lo. A maioria apenas observa os outros a jogar. Nunca arriscam. Nunca tomam decisões. Vêem a vida e a riqueza a passar defronte dos seus olhos.», diz um ex-polícia, oriundo de Xangai, a outra ponta do triângulo, com Hong Kong. São seres de excepção, entre o aventureiro e o desesperado, e até os mais banais levam a sua condição a máximos raros.

O carmesim será a cor do spleen? Os «bonecos» são movimentados pelo vento da narrativa, resistem ou dançam, permitindo as cambiantes não tanto do seu comportamento, como do seu pensamento. Uns tratam de comerciar, outros de espiar, outros gostavam de alcançar a épica de cumprir destinos colectivos, outros de navegar no sonho de tocar em nome próprio, de ter um nome. Pergunto-me se, afinal, não serão todos e cada um emanações da cidade. Não se perde uma única oportunidade, claro, para suscitar reflexões, e não apenas em torno da capitulação perante os prazeres e a droga, a luminiscência do ouro, o valor da tradição ou a traição enquanto lugar comum do humano. O encontro de civilizações suscita,a cada passo, perplexidades. Vejamos este diálogo em varanda de hotel, com o jazz por fundo.

«– Em Xangai foi possível juntar o Oriente e o Ocidente. Tal como aqui, em Macau.
Jin Shixin voltou a cabeça:
– Não será assim, senhor Ezequiel. O Ocidente subjugou o Oriente. Sequestrou-lhe a alma com o vício e o
comércio sem regras. E chama a isso irmandade?
– Os próprios orientais não estão isentos de culpa, menina Jin.
– O que é a culpa, senhor Ezequiel? Pecar muito, rezar e, depois, ser absolvido, como se nada tivesse acontecido?»

O Fernando serve-nos um belo chá, que pode ser tomada sem a mínima preocupação, mera degustação de imaginar baías ao fim do dia. Mas temo que outros fins se ocultem nesta narrativa que se lê enquanto o diabo esfrega um olho. E os portugueses, nisto? Diz o saxofonista: «Portugal foi uma grande potência porque controlou as veias do mundo, os oceanos. Quando outros o fizeram a sua missão terminou. Em Portugal consideramos a eternidade e o destino como o mar que está defronte de nós. É o fim, depois do fim.»

Esta colecção da Arranha-céus, de que este romance este é apenas o sexto volume, parte de uma ideia simples: país com o nosso passado possui extrema riqueza apenas aflorada. Ou seja, aqui cabem os resultados dos diversos géneros que podem ser usados na exploração, além do inevitável romance histórico, o maltratado memorialismo, em versão de autobiografia, diário, correspondência, enfim, relato de viagens, ou a biografia, de carácter mais investigativo ou romanceada. A curiosidade por tais temas surge transversal e com público potencial mais vasto. E por nisso acreditarmos, fomos generosos no formato, na paginação e sua gestão do branco, no corpo do texto. Para conforto máximo do leitor. A referência ao género surge apenas na contracapa e na folha de rosto, com discrição, sublinhando que são as histórias o que aqui nos interessa. Apesar da sua forte identidade visual , não tinha título exacto até este momento, em que passará a chamar-se H, de hora, história ou histórias, sem esquecer o carácter arquitectónico da letra maiúscula.

12 Mar 2020

Atropelamento e fuga

Horta Seca, Lisboa, 23 Janeiro

[dropcap]V[/dropcap]em impregnado com o perfume do embuste, mas teimamos em coser as cicatrizes dos dias com o relâmpago do sentido. No exacto dia em que sou aconselhado com veemência a regular os meus dias através de um medidor automático da pressão arterial, para marcar em caderno as cadências sistólica e diastólica, o pulsar das paredes do músculo maior, chega-me o laptop, um Lenovo T495, na intenção de me tornar menos assente, mais ágil.

Horta Seca, Lisboa, 24 Janeiro

Embalados pela mudança nos calendários, pelo arredondar dos algarismos na marcação do fugidio, do etéreo e líquido, ainda que nos marque a pele com a lâmina cortante de um aparente destino, tentámos recuperar atrasos. Retirar, portanto, pastas daquela que mais espaço ocupa no meu computador, e que se chama «agora». Alguns títulos desenvolvem-se em estranha urgência, alimentam-se da sua energia e impõem-se ao planeado com o fulgor do inevitável, com a simplicidade do encaixe de uma perna em tampo para dar mesa. Outros tropeçam a cada passo na absoluta irregularidade, encontrando no liso a íngreme montanha.

São os pequenos nadas a quererem erguer-se engrenagem. Mais tarde, podemos ler nisto vantagens, maturação que se ganha, uma coincidência que se aproveita, mas não resolve o óbvio incumprimento. Cada vez mais: editar faz-se contra todas as probabilidades. Começando pela de encontrar leitores na selva mediática. E os atrasos perturbam o esforço da busca pelos leitores, agravando a invisibilidade habitual.

Quem notará que saiu novo volume das obras completas De Fernanda Botelho, no caso, «Lourenço é nome de jogral»? Um romance insubmisso onde as personagens afirmam que «a literatura não é instrumento, a literatura é a livre expressão do homem (…). A literatura é o homem isolado no acto de escrever, sem liames, sem governantes, sem escravos, sem ‘por encomenda’, sem ‘ao serviço de ‘.»

IPO, Lisboa, 30 Janeiro

A realidade chegou e sussurrou-me: «és um homem doente». Deu-me a mão, espreitou a medula, internou-me e tornou-a condição. «Quando nos sentamos à borda da cama somos presidiários a reflectir sobre a sua condenação». As greguerías de Ramón costumam ser mais animadas.

Palhavã, Lisboa, 31 Janeiro

Livros há que se dão tal importância, que não se limitam a não correr bem, inventam novas formas de correr mal. Há umas décadas que, de um modo ou outro, os livros me passam pelas mãos. Nunca por nunca me haviam guilhotinado uma lombada, transfigurando álbum em colecção de posters. O sempre solene momento de ter nas mãos o objecto ansiado, resultou aqui em pedrada, enorme e certeira. Soltei lágrimas, feito menino, sem lhes conhecer a origem. Registo apenas um fragmento solto do colar de peripécias, que se revelou jibóia de abraço caloroso.

Palhavã, Lisboa, 5 Fevereiro

O Rui [Garrido] chega-me com a capa impressa do «Saudades de Portugal», do «meu» Ramón [Gómez de la Serna], outro dos filhos da delonga. E que bela está (algures na aqui página)! Um retrato com as marcas de quem passa, um olhar a intensificar-se sob sinais de arrastamento, uma lentidão a sobressair da aparente velocidade. Nada mais no rosto do livro além da face do autor enquanto jovem. Agora que vivo em pleno domingo, a companhia que não me fará. «Tristeza dos vidros ao domingo, tristeza irrevogável. Tristeza dos bocejos das varandas abertas atrás das sacadas. Os quartos, a casa toda, têm um bocejo de comprida serpente, que é a que tem mais feita a boca para bocejar. (…) Uma variante há que agrava e dá originalidade a esse sol de domingo, e é quando o encontramos sobre a fachada de uma casa vermelha. Isso que é triste todos os dias, sangrentamente triste, ao domingo é sufocantemente triste.» Quem dará por este olhar tão sabiamente recolhido por Antonio Saez Delgado e Pablo Javier Pérez López? A cada página, a delícia. «Portugal tem um peculiar voo de borboletas, e é possível argumentar que pela sua atmosfera passam peixes-voadores. Está orientado para outros pontos cardeais que não os nossos e a sua rosa-dos-ventos é diferente e tem mais pontas que as rosas-dos-ventos.»

Palhavã, Lisboa, 6 Fevereiro

Ramón sabia: «O lápis só escreve as sombras das palavras.» Sentado à borda da cama, tenho na mão a edição que o mano Luís [Carmelo] resolveu acolher na colecção Crateras, da sua Nova Mymosa. «Navalha no olho» faz-se de atrevimento e celebração da imagem e do corpo. Irónico, o momento. «a desajeitada e regular forma como acontece/ no calendário o domingo/ sabe-me a azeda/ luz repousa sobre cada objecto/ indiferentes, uma e outros».

Palhavã, Lisboa, 10 Fevereiro

Nunca o silêncio mora em quarto de hospital. Nem escuridão. Chamemos-lhe sossego. O mano José [Anjos] rompe um e outra com a leitura, na sua semanal incursão pelo «Indiegente», do Nuno Calado, com a leitura dos versos a rasgar do pequeno livro amarelo.

Santa Bárbara, Lisboa, 19 Fevereiro

Esta é a estação do inventário, outro dos momentos em que a crueza da realidade acelera para nos apanhar. Os livros estão espalhados por centenas de lugares, sem sabermos bem se vivos se mortos. Dezenas escapam aos controlos e acabam sem se saber como nas bancas de saldos, os coveiros do circuito, que compram ao quilo para vender ao litro. As tiragens baixam, em resposta à rarefacção do gesto leitor, para alimentar a droga da novidade, por isto e aquilo. Ainda assim, não se evita o enorme desperdício de ofertas e convenções que alimentam voragem de um sistema a liquefazer-se. Para que lado escapar, construindo?

Santa Bárbara, Lisboa, 22 Fevereiro

Chegam-me ecos das Correntes d’ Escritas, onde lançámos quatro obras, cada um com episódios por contar. Por exemplo, a relação com a canção de italiana do «Adius», do Vasco [Gato]; o atribulado apuramento do romance-deriva do Paulo [José Miranda], «Aaron Klein»; por oposição à presteza com que o Luís [Carmelo] resolveu enfrentar fantasmas a partir de conversa na Mymosa; ou a origem folhetinesca de «A Grande Dama do Chá», do Fernando [Sobral] (ed. Arranha-céus). Concentro-me por hora, nas capas e ilustrações, orquestradas a alta velocidade, dos três volumes de ficção da abysmo. E, portanto, de novos logótipos. Cada um, e por ordem, a Carolina Moscoso, o Rui Rasquinho e a Susa Monteiro tornaram transparente a atmosfera que as palavras criaram. Temos ausências, evocações, indícios. Temos esboços de personagens, rostos, memórias, momentos. Metáforas. E abysmos no coração do monte. E o y como lugar de reunião. E ossos que fazem caracteres.

Santa Bárbara, Lisboa, 23 Fevereiro

Ramón: «o termómetro é a esferográfica da febre.”

4 Mar 2020

Senhoras do Ó

São Luiz, Lisboa, 16 Janeiro

 

[dropcap]G[/dropcap]oa será sempre assunto. Com curiosidade de se tratar de texto nunca levado à cena, aceitámos a gentileza da Marta [Lapa] e entrámos com Orlando da Costa e Fernanda Lapa no estertor do Império. «Sem Flores Nem Coroas» cruza duas narrativas, a da invasão dos territórios da Índia Portuguesa e a heroicidade exigida pelo ditador de uma resistência até ao último homem, e a de um drama familiar e tradicionalista, que também diz muito dos tempos e dos poderes que os faziam. O piano marca a respiração.

«Senhor! Com uma pedra na cabeça/De mãos juntas, meu Deus!/De joelhos pedimos chuva», cantam as crianças em pedido a Santo António. Pouco se esclarece, nem essa seria a intenção, que resulta mais de afectos do que didácticas. As falas parecem modulações de uma única personagem, ladainha de diferentes intensidades, quase monólogo do narrador a várias vozes, a tatear arcanos. Como que a invocar através da palavra uma outra chuva que torne transparentes os modos de cada um ser. Apesar da cor, ainda assim contida, conservo a presença fascinante de uma domadora do fogo: Margarida Marinho. A alegria pode ser um dos rostos da dor, demonstra-o. As voltas sobre as quais se fecha e abre um corpo que concebe, ó Senhora do Ó, terá sempre a carne do mistério.

Barraca, Lisboa, 17 Janeiro

Soa tolo dizê-lo, mas resulta necessário: cada livro que fazemos, contém em si a força explosiva de uma qualquer singularidade. Os livros não são todos iguais. Não têm importância nenhuma, mas podem mudar-nos a vida. «Os Grandes Animais», citando o meu bem amado Camus («ser senhor dos seus humores é o privilégio dos grandes animais.»), brilha como os olhos da figura da capa, qual de pequeno ecrã, memória de infância quando a noite apagava até as televisões. Coube à Inês [Fonseca Santos] abrir na abysmo o espaço movediço e perigoso da poesia, com «As Coisas», no mesmo mês de Janeiro de 2012. Quase uma década depois, esta antologia afirma um percurso e dá-nos chão. São dispersos, colhidos das mais diversas propostas, encomendas, desafios, árvores, mas com uma organização que lhes acrescenta sentido, que escavam a radicalidade de um projecto. No lançamento, caótico, informal e festivo, como nos assenta, o Henrique Manuel Bento Fialho, disse, entre outras apropriadas coisas, que «ao rigor na distribuição temática dos poemas devemos acrescentar o risco da disparidade, risco esse que se mantém vivo num universo de leitores de poesia que, contra tudo quanto seria expectável, se conserva altamente faccioso, sectário e estupidamente mesquinho. Pela parte que me toca, devo dizer que entre as obras que mais aprecio estão precisamente aquelas que ou resultam inacabadas (Pessoa é o exemplo mais radical disto mesmo) ou assumiram o tal risco da disparidade (Pessoa é, novamente, o exemplo mais radical disto mesmo), recusando trajar de uniforme onde, pela ordem natural das coisas, era suposto andarmos nus.»

Muito bem acompanhados pelos deslumbrantes seres do João [Maio Pinto] que vão compondo um jardim bonsai de chamas esfusiantes que tornam orgânicas, à boa maneira do surrealismo, a mistura de metal e árvore, de pele e nuvem, de fumo e rocha. A cada olhar, paisagem exacta para os poemas, com as correspondências da deriva abstratizante. (Espécimen algures na página).

Estes poemas surgem-me como entradas de um diário que não deseja sê-lo, construção de geometrias variáveis, mais ser que objecto, mas deles precisando para apoio e lance. A cada momento de fenda e fresta, obscura ou solar, a Inês procura no poema refúgio e combate, miradouro sobre o contínuo discorrer da morte, posto de escuta da canção exacta, mesa das leituras e mapa de correspondências, púlpito de interrogar os livros sagrados, além desse horizonte do corpo, a cama. «O poema:/ Ser horizontal, húmido, bom de foder.// O poema e os meus dedos inúteis:/ trabalho sujo de convencer as palavras// de que este é o corpo e a fala,/ de que esta é a boca e a língua.»

O volume fecha-se com narrativa e em prosa, e que, creio, tem espessura de palco. Foi pensada para dois actores, mas usaria apenas um. Estrearia nas óbvias Capelas Imperfeitas, na Batalha, e continuaria onde houve uma representação de Nossa Senhora do Ó. Em oferenda, fica esta raiva macia que atravessa estes modos de perguntar.

«Não caminharei sobre os campos da Batalha sem calcar primeiro o chão dos teus lugares. Levo apenas na bagagem a dúvida — provisões, munições. Não que queira que entre nós seja declarada guerra. Mas, se for demasiado tarde para a evitar, que haja meios de defesa: água e comida para as funções vitais, pequenas balas de pólen e de chumbo para as palavras e aquela curiosidade primordial que nos amparou a imperfeição do encontro.»

Horta Seca, Lisboa, 21 Janeiro

Uns poucos metros estendiam-se à minha frente em incessante rua. Em mim, o oposto: os pulmões encolhiam e faziam o seu trânsito junto à boca. Quando alcancei a dádiva de uma cadeira, já sorvia o mundo em ardências. Como se não o fizesse já de mil modos, o coração reclama para si e com inusitada aspereza o lugar de governador dos dias.

22 Jan 2020

Da vida dos mundos

Foros da Fonte Seca, Redondo, 3 Janeiro

[dropcap]N[/dropcap]ão se encontram com facilidade dias de Inverno assim, plenos de uma luz que congela segundos e mundo, espalhando nitidez, tornando a matéria do mais real que se alcança. Pelo olhar, que na mão dói.

O Alentejo continua sendo habitat destes seres, mais vivos que a vida. Contenho algo do campo, mas na verdade só experimentei brincando a apanha da azeitona. E como deve doer! Quem teria, no contexto, este luxo de se afastar do inescapável para experimentar a intensidade de estar ali, de ser, tão só? Continua a chover fezes algures, mas o pulmão enchendo de ar frio e sol quase me faz esquecer a insídia.

Fui livre por horas, mas regressei aos manuscritos que devia ler com lápis de carpinteiro, rasgos ovais de vermelho entre a vista e o ouvido, no eixo dos sentidos. Lê-se com o corpo todo, estamos fartos de o saber.

Até sentados. Não tanto pelo fruto da época ser avaliações, maduras, histórias de adormecer e, portanto, dançar com os medos, mas por estar de futuro na mão, conto até treze os títulos da colecção de novela e romance. (Treze, esse querido doravante maldito número.) Primeira constatação: noto em cada título um esforço de pesquisa, de teste aos limites e convenções do modo de contar. Mas também encontro vontade de estender pano de fundo temático sobre o qual discorrem protagonistas de carne e osso e voz. Sendo que no protagonista se plasma, tantas vezes, o narrador e seus desdobramentos de fantasma. Segunda constatação: os autores da abysmo possuem inclinação para a trilogia, por fazer sentido ou em busca de múltiplos sentidos. A do Paulo [José Miranda] faz-se de mero substantivo, mas os três volumes recolheram-se em apenas um. O Valério [Romão] anunciou logo a abrir que vinha em busca de «Paternidades Falhadas».

Sendo que a do Luís [Carmelo] passa despercebida e apenas as ilustrações do Daniel [Lima] lhe conferem unidade. Não havendo duas, sem três, ei-la, a terceira constatação: o pórtico de ilustrações a sugerir ambientes tornou-se marca. E em alguns casos integrou-se que nem fibra na tessitura da obra.

A propósito e empurrando o triângulo, segue-se uma trilogia de mera coincidência e autores distintos. O Paulo e o Luís, mas também o recém-chegado Vasco [Gato], prosseguem, cada um a seu modo, investigação sobre a engrenagem da narrativa, interior e exterior, a construção de figuras à escala e para além dela, que incessantemente desenrolam ideias, que pintam sobre o tempo não tanto a paisagem, mas a vida.

CCB, Lisboa, 5 Janeiro

O Tejo continuará sempre a discorrer no seu afazer de horizonte, mas deixo de nele me poder fixar durante o «Obra Aberta». Regressámos ao recolhimento da sala Glicínia Quartim logo em edição de convidados abertos ao mundo, confirmando assim que as paredes podem pouco. Não se trata apenas de viagem, que quando acontece jamais se fica pelo apenas, mas de memória e infância. E por estes caminhos se perdem bem, tanto o Afonso de Melo como o Luís Cardoso, cada um com a sua mundividência. As minhas idas e vindas subterrâneas têm sido, por estes dias, acompanhadas pelo Afonso à força de «O Outro Nome que a Vida Pode Ter…» (querem que vos diga? É desilusão), e mais recentemente, «Chovia Como se o Céu Doesse» (ed. Âncora). São crónicas de largo espectro, com um fôlego que se perdeu na «modernidade» dos nossos jornais, possui um perfume de fado, vejo-lhe as frases a percorrer os lugares. E invejo-lhe o arquivo de detalhes, a agudeza dos nomes, o curto-circuito das experiências e dos lugares. Ao Luís ninguém tira Timor e a sua Kailako está sempre acesa no coração dos romances. No caso, trouxe velha e gasta edição (da Puma) de um romance que se fez mais. «A Redundância da Coragem», de Timothy Mo, contém fragmento da História de um país, com raízes no que fomos enquanto língua e cultura e colonizador e copa nas possibilidades sonhadas dos que lutaram pela independência. O Luís abre as primeiras páginas, desenha no ar o devido enquadramento, antes de sublinhar que nelas se encontram pessoas concretas, que conheceu, tendo algumas ganhado aqui um pouco mais de vida, que na real morreram em combate. «Por exemplo, a Rosa, que foi fuzilada pelos indonésios. Aqui vive um pouco mais. A Rosa era minha namorada.»

Casa da Cultura, Setúbal, 10 Janeiro

Em modo trimestral, regressamos à «Filosofia a Pés Juntos», esse momento higiénico de saudável pensamento, a destoar do abundante vómito de imbecilidades que desaguam nas redes, nos jornais, nas televisões. O António [de Castro Caeiro] propôs-se recuar aos anos 1920 para partir o conceito de «umwelt», cunhado pelo homem de ciência, Jakob Johann von Uexküll, e logo aproveitado pela filosofia.

Onde aqueles viam meio ambiente, habitat, ecossistema, logo os outros definiam mundividência e cosmovisão. Facilito e abrevio, claro, mas o essencial que guardo da noite está na complexidade com que interpretamos o que nos rodeia. E a variedade de mundos que a vida nos proporciona, a do animal e do humano, mas também a das coisas. Pulsam objectos e sujeitos para onde quer que nos viremos. Sendo que os mundos, como as vidas, são simultâneos.

Cisterna, Lisboa, 11 Janeiro

Ali no passeio da António Maria Cardoso, onde esta tão odiada cultura foi apagando memórias de mundos odiosos, rasgou-se o pano do tempo. Actores maiores das derradeiras décadas do século passado celebravam amores trocados e trocar. Sem ponta de saudosismo, o que pode ser experimentado com o Álvaro Rosendo de «Aos Meus Amores_2.0» é diário íntimo e dramático: o desenho a luz e objectiva de um «umwelt». O coração está na família e amigos, mas desloca-se por outros cenários em arrasto, essa marca dos corpos no tempo. Álvaro domestica o dramatismo, do tigre faz gato. As ruínas do Chiado ardido (algures na página) fazem-se metáfora de ferida maior, vencida pelos amores, que desemboca na única imagem a cores, a que propõe um infinito de árvores-nuvens, com a nitidez de um dia frio de invernos. Mas tocam-me sobremaneira as sombras, e as passagens pelos bastidores das bandas em acção, em digressão, nas costas do palco. Festas no lombo do gato. Diz o meu querido Luís [Gouveia Monteiro], com as palavras lúcidas com que pendura as centenas de fotos na alma da galeria, que, para o Álvaro, «o grão é a unidade funcional do tempo. Neste projecto artístico, que sempre procurou testar as fronteiras entre o eterno e o transitório, a fotografia – única, em sequência ou integrando o movimento sob a forma de arrastamento ou desfoque – surge como alavanca cravada nas brechas da inflexibilidade física. Porque congela e aprisiona e abate um pedaço de tempo, mas, em simultâneo, liberta-o, dá-lhe vida e preserva-o na cruel permanência das obras que sobrevivem a protagonistas e autores.»

Ler Devagar, Lisboa, 12 Janeiro

O João [Brazão] possui a chama dos que fazem. Por gosto. Aproximou-se do José [Pinho] e aconteceu, em plena Ler Devagar, um «Beber Devagar», bar de cervejas que promete ser o mais literário da cidade. E inventivo, na relação entre prazeres, no alargamento das experiências. Venha daí malte e lúpulos, mais mundo!

15 Jan 2020

O alvo que lhe deu o ser

Santa Bárbara, Lisboa, 9 Dezembro

[dropcap]C[/dropcap]hegam-me ecos de exposições que não verei celebrando o centenário de Alberto Breccia (1919-1993), um dos maiores. Ele, que não gostava de banda desenhada, mas de desenho, por lhe curar as doenças, as suas queridas feridas, acabou sendo um dos maiores da narrativa gráfica. Não por acaso, sobre o traço do muito que desenhada de cidade e paisagem, o que funambulavam eram seres de alta estatura, de múltiplas dimensões. O argentino acrescentou incansavelmente dimensões nas duas que dizem ser as da bd. Desenhava a lâmina, a fósforo, com colagens, das muitas maneiras que temos de nos aproximar do que nos rodeia e mais além. O seu trabalho foi (quase) sempre alimentar, dizia ele no sentido de trabalho confinado e não artístico, mas soube inventar sem pejo múltiplos rostos para a liberdade. As fronteiras parvas e mais fundas impedem que se meça com rigor devido, o da poesia, o alcance de uma obra que contém política e pensamento, Tango e Buenos Aires, mesmo quando aborda Poe ou Batman. Adoro Buenos Aires sem lá ter posto os pés. Antevi os muitos negros do futuro com «Morte Cinder». Acolho com ternura as sombras por causa de «Perramus». (Algures na página vai exemplo solto).

Horta Seca, Lisboa, 10 Dezembro

Morreu um artista em condições extremas, o José Lopes (1958-2019). Além do explícito, toca-me fundo a notícia por, sem o conhecer, tê-lo conhecido. Afinal, cruzámo-nos vezes sem conta, chegou a estar em lançamentos nossos, partilhámos amigos e espectáculos, aqui e ali, para além de o ter visto em palco, na tela. Ainda assim, era-me invisível. Como pode alguém estar tão opaco na proximidade?
Depois a onda de indignação costumeira, com sinceridade que não saberemos nunca medir, no misto habitual de culpa e bandeira erguida por causa cega, falhou o essencial. Na miséria aparente havia qualquer coisa mais, ocorria um homem íntegro incapaz, por díspares razões, de se deixar integrar, apesar dos esforços, que os houve. Esta inteiriça solidão vinha com um preço, que o José Lopes quis pagar. Em altura que sobram marginais de algibeira, viveu entre nós artista assim, que via na arte a única possibilidade de ser. O resto mais não era que isso, sobras. Até estas palavras inábeis pouco mais são que cordas atiradas ao vazio. Como entender ao limite a solidão?

Horta Seca, Lisboa, 12 Dezembro

O arquivista-mor volta a atacar: «Crime e Castigo – a Ilustração na literatura policial portuguesa». Jorge Silva selecionou, fez enquadramento informado e até se incluiu enquanto ilustrador, ignorando habituais pudores. São várias centenas, sobretudo de capas, muitas das quais podem ainda ser vistas na Casa da Cerca, em Almada, até meados de Fevereiro, que assim tenta integrar a ilustração no âmbito do desenho. Há originais resgatados à desatenção geral, além dos rostos dos livros, também eles cheios de rostos em declinação de medos, violências, enigmas, mas também da sedução e da senhora morte. São muitos os nomes, reconhecidos ou não, que rasgam, ao longo do século XX, os mais variados estilos, perspectivas, imagens.

São ringue para muito combate entre luz e sombra, pano de fundo de um vocabulário muito próprio, com destaque para os surrealistas, sem esquecer outras composições de puro drama onde até as letras participam.

Nos anos mais recentes temos assistido a uma vertiginosa evolução dos modos de reprodução. Este volume resulta ser uma das nossas primeiras incursões na impressão digital, com qualidade surpreendente. E a vantagem de permitir enormes oscilações de tiragem.

Na contracapa, onde o código de barras passou de objecto odiado a cúmplice da grafice, vai escrito: «quando o vírus do crime penetra no indivíduo, uma seta mortífera ganha forma, gravita em torno da ideia e pende, oscila, ondula, antes de ferir, implacável, o alvo que lhe deu o ser.» Substitua-se crime por ilustração, e eis que algumas identidades se revelam.

Horta Seca, Lisboa, 13 Dezembro

São as palavras que nos esculpem, nos dão forma. Spleen, meu parceiro de viagem, em tango canta-se «esplín», com o seu quê de agulha, amaciada como só na voz. Foi esta canção-navalha que inventou as esquinas, que as desenhou. O acórdão suspirou ruas no meio da criação e a bíblia foi escrita em Buenos Aires. Por aqui se aprende que a raiz se faz antena. Vou de mão dada com a morte ao miradouro do adamastor, não o da minha adolescência. Tanto faz. Nem um nem outro serão o mesmo. «Moriré en Buenos Aires, será de madrugada,/ guardaré mansamente las cosas de vivir,/ mi pequeña poesía de adioses y de balas,/ mi tabaco, mi tango, mi puñado de esplín.» A minha pequena poesia de adeuses e balas, o tabaco que só raramente fumei, achando que a companhia o justificava. Dou-me bem com as más companhias. Horacio Ferrer produz versos como balas: «Hoy que Dios me deja de soñar», fora eu sonho de Deus, portanto capaz de vogar na espera. «Estou fodido», não pára de dizer este irmão, mão dada, apesar de presa. A minha morte continuará migalha da tua, vamos morrendo juntos, doravante a cada dia missa de sétimos dias. O meu penúltimo whiskey terá que ser bebido contigo, em Buenos Aires, digo Lisboa, portanto, Lobito, e a morte quando chegar vai ter que me detestar. Não dançarei. Morreste-nos de madrugada feito tango. Todas as esquinas se vestem de negro, todas as bússolas me cantam ao ouvido, «abrazame fuerte que por dentro/ me oigo muertes, viejas muertes». As mortes não sabem ser velhas, fazem-se perto. Invoco Amelita Baltar, só ela consegue, cavalgando a asma do acordeão Astor e os versos Ferrer, esmagar o tempo na mão, «alma mia». Onde quer que morra será Buenos Aires, digo Lisboa, sendo que interessará a poucos. (Uns quantos, algures em restaurante, quem sabe).

Menina e Moça, Lisboa, 14 Dezembro

Diz-se FEIO, mas vem do feminino para desembocar em Festa de Escritas Improvisos e Oralidades. Por causa da época, do lugar e das circunstâncias fui ler episódio de «A Noite e o Riso» (ed. Dom Quixote), aquele quando os camones se atreveram a tomar posse de pedaço da orelha de Simão Cara de Cão, empurrando o Nuno Bragança, antes de ser narrador, para o ringue do boxe. O Luís [Carmelo] insiste em orgia de leituras disléxicas, desta vez abrigadas sob o chapéu-de-chuva do desassossego.

No cruzamento que se instala, fui atropelado pelo mais negro dos contos para crianças, «Coração com Estrela-do-mar dentro», do Filipe [Homem Fonseca], com ilustrações realistas, e portanto, assustadoras de death_by_pinsher (estou-te a ver!), em edição de mil cuidados. Gozo, que este conto sobre manipulação genética dos imaginários e dos seres não se destina aos petizes, mas devia. Brinco, mas esta mistura de encanto e horror está mesmo a pedir uma infantil maldade.

As mesmas mãos me ofereceram «Alta Finança» (ambas by Edições Fundo-da Gaveta), registo do acordar a partir da implantação da cueca masculina de modo tal que perturbará para sempre a interpretação do que cada um poderá ser, do somos, do que vamos sendo, do destino para que acordamos. A língua, qual gordo em desequilíbrio (death_by_pinsher, estou-te a ver!) vai-se fazendo tapete calcado em direcção à estratosfera. «Meu deus – digo em voz alta, e as palavras desenham-se no vidro embaciado, a gozar».

18 Dez 2019

Adornar

CCB, Lisboa, 1 Dezembro

[dropcap]O[/dropcap]utra folha no calendário, se as tivesse, amarfanhando a miserável anterior, com a tristeza pingando para a deste mês. As linhas são pequenas ondas de maré, quem nota perceberá a chuva miudinha? É que me espera, finda esta conversa, tarefa lutuosa. À mesa beira-Tejo do Obra Aberta sentaram-se engenheiro e ilustrador, ambos senhores de outros ofícios. O mano Tiago [Ferreira], da Conserveira de Lisboa e da Academia versão robótica, inclusão de última hora a substituir poeta adoentado, trouxe mão-cheia de questões prementes e desafiantes: a sustentabilidade do comércio tradicional, a inteligência artificial e o absurdo delirante do quotidiano. André [Letria], muito a pretexto do seu – na ilustração, e do pai, José Jorge Letria, no texto –, «Guerra» (ed. Pato Lógico), pintou nuvens ainda mais negras do que as que pontuavam a paisagem e encharcavam camones ao de leve. Bastou trazer as leituras de «O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig (ed. Assírio & Alvim), e de «Sobre as Falésias de Mármore», de Ernst Jünger (ed. Vega). O testemunho de uma Europa a cair para dentro, a cavar precipícios no seu coração, ressoa nos nossos dias como nunca. E a brutal alegoria de um Jünger esquecido parece querer ganhar corpo de verdade um pouco por todo o lado. Como bem sabe qualquer objector de consciência, a guerra jamais nos abandonou, apesar dos momentos de ilusão pacificadora. Pior: insecto insidioso, mancha os mapas em inúmeros lugares, faz-se subtil que nem bota da tropa e morde-nos os calcanhares.

Mymosa, Lisboa, 3 Dezembro

Valha-nos Santa Coincidência! Meio a despropósito, partilhava com velho amigo a minha admiração pelo trabalho sobre a memória, em prosa estilhaçada e vibrante, que o João Paulo Borges Coelho entreteceu em «Ponta Gea» (ed. Caminho). Eis senão quando o escritor atravessa as mesas ao meu encontro. Demorei uns nanosegundos a fazer-me crer no que os meus olhos viam. Um nada, mas que me iluminou o dia. Adiámos prolongamento da conversa e não estou seguro que tenha levado a sério aparvalhada estória. A maré dos pensamentos levou-me depois a uma das personagens maiores do romance, publicado muito antes da Beira, em Moçambique, se liquefazer. «É a primeira e mais persistente lembrança: a água como substância da cidade. Uma água quieta, no mangal como nos capinzais, nos tandos de arroz e nos baldios urbanos cuja noite o monótono som dos grilos trespassava; insidiosa também, na onda paciente que escavava a areia grossa e se espraiava até lamber a raiz torturada das casuarinas, enchendo os corvos de maus presságios e de indignação; e avassaladora, nas chuvadas súbitas e no ar carregado que toldava o horizonte e nos pesava, derrotados, sobre os ombros. Uma água cálida onde nadam todos, aqueles de cujo rasto ainda a espaços me vou apercebendo, e os outros, os que vogam em círculos como peixes aprisionados no aquário do esquecimento.»

Barraca, Lisboa, 4 Dezembro

A ditadura das circunstâncias foi empurrando a apresentação dos «Poemas», de Georg Trakl, em Lisboa. Para mais queríamos incluir um pequeno concerto dos «No Precipício Era o Verbo», abrindo apetites para novo projecto que se avizinha, todo ele em torno deste poeta do soturno. E foi um dos momentos da noite, o caminho dedilhado do Carlos [Barretto] em direcção a paisagens sonoras graves e pujantes, a corpo a fundir-se com instrumento e a prolongar os versos, deixando-os a ecoar algures no mais íntimo. «Tu regressas sempre, melancolia,/ Oh, doçura da alma solitária./ Um dia dourado abrasa até ao fim.// Humildemente, o paciente curva-se perante a dor/ Ressoando harmonia e uma leve loucura.» Quem, como Trakl o farmacêutico, canta a contumaz melancolia? Esperava que o mano António [de Castro Caeiro], dissertasse um pouco esse obscuro objecto de desejo, mas conteve-se ao mínimo. O Fernando [Pinto do Amaral] encenou belo e cabal enquadramento para o poeta e a época, a vida e os temas, enfim, as paisagens, no fora da geografia como no dentro dos versos. Vão rareando, mas ainda se encontram bons leitores.

Nacional, Lisboa, 5 Dezembro

Palco soprado bola de cristal dá nisto. «O Futuro Próximo» não apazigua ninguém, antes perturba e desinquieta. Depois dos vibrantes, e bastante mais espelhados, «Presente» e «Futuro Distante», sempre baralhando os tempos, encontro-me prisoneiro de asilo de velhos. Em apneia, estendo as mãos e só toco línguas. Avancemos por entre o patético e o angustiante, com passagem pelo ignominioso. À terceira, o Gonçalo [Waddington] fez entrar «O Nosso Desporto Preferido» definitivamente no campo do negro, ou este cinza-escuro da nuvem que a Ângela Rocha estacionou sobre o lar-palco, sistema vital que ora configura volutas de intestino ora circunvoluções do cérebro. (Ver foto de cena de Filipe Ferreira algures na página). Cérebro-intestino, eis o reflexo maior de uma civilização sem necessidades. Tudo se torna chão, os prazeres e os dissabores. Mas chão enlameado de tanto sentido espezinhado, de tanta ideia perdida, de egos purulentos, de gargalhadas hiperbólicas, de lágrimas tóxicas. De novo: a gargalhada e a lágrima podem bem ser excrescências espremidas na lamela do dia, sem direito a serem vistas ao microscópio. O humano está reduzido a uma erecção, inextinguível priapismo. Até a poesia foi reduzida a automatismo, aqui laudatório, além sentimentalista, sempre nauseabundo. As máscaras, queridos caretos da Antropologia, surgem como sinal gritante da decadência, sem nisso tolherem a expressividade das Carlas [Bolito e Maciel], da Teresa Sobral, do Tónan Quito ou do Gonçalo-Michel, apesar deste, uma vez morto, ter ganho direito ao seu rosto. No envelhecer perdemos individualidade, todos os velhos de manhã serão iguais? Escrito isto, estou ansioso pelo desenlace, que este final soa-me a falso. Um peido.

Salitre, Lisboa, 7 Dezembro

Em preparação de projecto próximo, o Álvaro [Rosendo] põe-me no complexo sistema mãos-olhos um enormeno catálogo. Pequeno no formato, fechado em mais de cinco dezenas de dobras, mas enorme nos metros desdobrados. E nos instantes que dá a ver. «Tempografias», oriundo de exposição no século passado em galeria sobrevivente e por isso Monumental, capturou o movimento de modelos e estruturas. Não estão nas fotografias a fazer nada, estão a acontecer, mesmo quando um túnel subterrâneo brinca com a luz ou um armário de chaves dança e envelhece a olhos vistos. Mais uma máquina de contar tempo, o mesmo é dizer, gente.
Bem que gostaria de ter visto o alvarolhar sobre opíparo jantar de trufas brancas, servido pelo querido Tanka Sapkota, no Come Prima. Desprezamos o peso do perfume. Na mão, no olhar.

Tejo, Lisboa, 8 Dezembro

Dois pés de cada lado, nunca um no cais, outro na embarcação. O mestre grita, mas soa a sussurro. Nenhum dos três periga, nem marujo ou cais, menos o casco que me recebe com gemido de madeira. Aceitei o elogio e tentei retribuir com vigorosa ternura quando lhe pus a mão, com indirecto respeito, no leme. Fixo o olhar no bugio e o balanço atravessa-me a floresta estúpida de burocracias, temendo que sejam infestantes, inúteis até para chá; e a mortandade inquieta a pedir horizonte de quietude, ou melhor, a gestão dos quedos a trazê-lo à babugem dos dias; mai-lo ego de próximos sorridentes espraiado lago fétido, balde pequeno de vírgulas e embirrações, sinais parados, mortiços, logo antes da mordedura. Atento às profundidades, diz o mestre, foge das margens. Um dos marinheiros de água doce passou repete vezes sem conta, sem ponta de narcisismo: Que belo espelho!
E está. Espreito para me ver nas urgências esquecendo o importante. Portanto, adorno.

11 Dez 2019

Ladrar à maresia

Cabo Ruivo, Lisboa, 25 Novembro

[dropcap]C[/dropcap]hovia, de maneira que derrapagens eram permitidas. Antes, e na companhia do Afonso de Melo e do tu-Barão da Brandoa, experimentámos no Calcutá, entre outros condimentos, alguns acabados de chegar do Índico, sublimes fígados de frango, e, arrisco dizê-lo, o melhor kebab de borrego que me foi dado provar. Regado, já agora, na justa medida por um Vinhas Velhas assinado Paulo Laureano.

Aquele recanto do meu coração será sempre ruivo, por milhentas razões, e lá nos postámos no estúdio treze da Antena três, aguardando hora. Estávamos abrigados em território Indiegente, sob comando do Nuno Calado, que disparava em boas direcções. Às segundas também se arranja alvo, nas barbas de Anjos-o-José, para a palavra por cantar, a sobrar ao canto do lábio. Vai de dizer inéditos dos buques que se avizinham cá em casa, o da Inês [Fonseca Santos], de par com o do Henrique [dodecassílabo Fialho], mai-lo Paulo [José Miranda] e o Miguel [Martins], que puxei para o meu regaço para o dirigir à noite escura a ver se acertava em alguém. Disse no mais alto sussurro que alcancei: «A vida é impossível, não importa/ o Vicks VapoRub, o que nos fazem/ ou o que nós fazemos, se ou quando./ Desde que o primeiro homem se lembrou/ de que não era cão, ficámos condenados/ a saltérios e musas e juros com fermento,/ à sina de gravatas e aprestos./ Que mal tinha ser cão, além do bem/ de comer carne crua e cheirar cus/ e vaguear pelas estações do mundo?/ Mas não: havia que salgar a focinheira/ do porco, pôr rosmaninho nas virilhas/ e inventar a cadeira rotativa,/ moribundelirar amores obtusos/ e de tudo intentar a mais-valia,/ composta e previdente e pequenina./ Ora, acontece que, seja dia ou noite,/ só me apetece ladrar à maresia.»

Horta Seca, Lisboa, 26 Novembro

Devia a prosa, segundo ditames do bem cronicar, coser-se pelos fios do óbvio dos dias que tombam mal o sol ascende. Ou seja, nenhuma razão para falar agora de sardinhas. Excepto para mim, que não as gramo da maneira pópulare a debitar a gordurinha na brasa faiscante, agudizando os graus das festas ou de um inferno qualquer, apesar de regado a carrascão ou cerveja, valha-nos Santa Greta! Mão amiga oferece-me o deleite de 500 + 500 sardinhas/sardines (ed. EGEAC|Imprensa Nacional). Por várias vezes estive para tomar o pulso aos volumes evocativos das décadas que se dobraram sobre o fenómeno. Logo na primeira, o mastermind [Jorge] Silva previa-o: «o Galo de Barcelos que se cuide, que a sardinha ganha-lhe aos pontos.» E comeu-o mesmo, e assim para a alface ou o corvo, o Pessoa-poeta o ou António-santo. Assoprem as brasas académicas, que alguma explicação se devia colocar no assador para este assombro: bicho de somenos, alimento do pobre, a ganhar corpo enfezado de gourmet, mas gordalhão do marquetingue, forma maior para cidade, que digo?, país. Não salgo a redacção com números, mas crede, irmãos, que sobem ao absurdo. O que me diverte e celebro está na forma longilínea que acolhe a cidade, não apenas Lisboa, mas a ideia cosmopolita de centro, virtual e intangível, o ícone que nos faz ser mais nós aqui e agora, brincando. Brilha intensidade de sinal que parece farol, maneira de vir à tona, o arrepio de que fala o saudoso [José] Sarmento [de Matos]. «Este ritual cria à superfície das águas uma vibração detectável a olho nu, espesso em ebulição, saudando em comunhão colectiva o bafo quente e luminoso que lhe regula o ritmo de vida.» Promete ser ritual, esta ida à lota destes livrinhos para cheirar a experimentação vivíssima, ó freguês!, de um cabide linha aos braços dados de cores distintas celebrando a junteza das festas. Simples e detalhado, poético e narrativo, delirante e obscuro, nada escapa a este mínimo corpo: notas de vinte e o zorro, episódio de História e a pen, vegetais e sorvetes, o reino animal e ídolos rock, fado e a Luza, azulejos e os muitos mundos do mundo. Cheirei o nascimento da primeira, espalmada no escanner, amarela depois e um detalhe verde, indivíduo perdido em cartaz (algures na página). Assisti depois à explosão do cardume. Continuo por perceber, maravilhado, o milagre da multiplicação das espécies em uma só.

Fundação Saramago, Lisboa, 27 Novembro

Queria que mais gente tivesse ouvido o Pedro Mexia dissertar sobre a trilogia dita da criação, do Paulo [José Miranda], na atinente apresentação. O essencial de cada volume e figura foi apresentado com reflectida lucidez, com atenção ao detalhe, mas mormente colhendo ideias, gesto apropriado a romances que são árvores. Ficou-me a ética da alegria e a estética da tristeza aplicada que nem autocolante, dos transparentes. Nos pontos cruzados que andamos fazendo em tricot simbólico era ali, nos Bicos e perto da oliveira, que fazia sentido celebrar os vinte anos do primeiro Prémio José Saramago, mas as mastigadas agendas regurgitaram aquele dia e hora, com interesse mínimo de quem de direitos e consequências modestas. Ainda assim não por perdido o tempo.

Fundação Saramago, Lisboa, 29 Novembro

Escorre do monte próximo das leituras, após noite basta afectiva, o voluminho «Uma só volta do sol», da Mónia Camacho (ed. Nova Mymosa). O conto distópico parece conter ingredientes suficientes para insuflar fôlego romanesco, mas não deixa de nos levar, de mão dada, por entre cacos de vidro e personagens, a um «momento anti-mundo sem notas de rodapé.» Esta melancolia, que resulta de uma universal e doentia ausência de sentimentos, possui as matizes, lá está, de pedaço de cristal. Não nos apazigua, não nos desespera, tomba apenas sobre a leitura como tecido, aqui denso, além vaporoso. Que me sobra? «Uma saudade elementar dos dias em que nada acontecia. Em que ficávamos a desperdiçá-los. A usá-los em nada.

Porque podíamos. Juventude, essa ilusão de que há tempo. Agora, a minha vida é apenas uma cicatriz ao espelho. O medo de já não sentir vem fazendo sombra no meu olhar. Parte de mim nega essa possibilidade. Afasta-a para um canto morto.

Há um lado fêmea nas dores que sentimos. É daí que vem a resiliência.»

Santa Bárbara, Lisboa, 30 Novembro

Trouxe espólio da surtida a Pisa. «Walt, o il freddo e il caldo», de [Fernando] Assis Pacheco (ed. Urogallo), por exemplo e o mais. Tomem nota que o romanzetto – gémeo divertido de noveleta – foi acontecendo, pela mão da Valeria [Tocco], em laboratório de tradução. Que melhor exemplo de escola de traditori?

Aceito a mercê de Santa Coincidência, de quem sou devoto menor, e corro a reler essa notável peça de teatro do absurdo que leva nome do narraferes, «Walt», misto de pistola e autor de imaginários animados. Não era essa intenção, mas de vez em quanto fui espreitar o modo de desfazer nós que me pareciam cegos. E alegrei-me. Chafurdei, isso sim, em bela coboiada, de toada mais melancólica que as de quiosque, embora.

Havia enfrentado o bicho por primeira vez na adolescência, momento dado a moralidades de treta, de sabor a sardinha. Terá nascido aqui o pós-modernismo de ponta e mola, com o narrador metido no fio da meada, a intrigar-se, a despir-se, a lixar-se? A nossa guerra está pra ali sem estar, o exército inteiro apresentando-se no cais, entalado entre o bater de palas e botas, para comer e beber e foder e o mais, marinheiros de não saber nadar que nunca partiram bem e em mil pedaços retornarão. Raio de prosa faiscante e malabarista que cruza tempos e lugares, concretos e imaginários, erudições escritas e falas vivas! E nisto constrói um chão que se pode tocar, mas a grande altura. O narrador-alferes armado em polícia sinaleiro de todos os múltiplos sentidos, mesmo o da crítica, que se apresentava vindo debaixo. Cada homem atirado em direcção ao Apocalyse, navio merdoso atracado na gare bêbedomarítima, foi mundo implodido. Percebem, ó caras pálidas?!

4 Dez 2019

Tremendo e sinónimos

Horta Seca, Lisboa, 18 Novembro

 

[dropcap]N[/dropcap]o meio da confusão habitual das segundas-feiras, agravada pela dor singular, ponho-me a folhear o Libé [ration] que inclui Valério [Romão], a pretexto de «les Eaux de Joana» (ed. Chandeigne, tradução de João Viegas). O jornal havia perdido a minha atenção muito por culpa de agressividades dirigidas ao Michel Onfray, na altura, arauto de radical sensatez perante questões fracturantes. Esta edição abre com um inquietante dossier que, para celebrar a queda do muro de Berlim, levantando cada um dos sinistros que se vão erguendo pela Europa (e Mundo). Umas páginas adiante, no meio de bizarrias sobre escândalos sexuais, brilha anúncio da edição extra do Le P’tit Libé sobre o assunto. Que ideia luminosa, esta de versão do jornal para putos. Tenho que procurar para conferir esta maneira inteligente de criar leitores. Sem querer, vejo um rosto forte, de mãos em gato preto, que me desafia. O obituário, que se chama disparition, vai dedicado e Lucette Destouches, a última mulher de Celine, que morre aos 107 anos, na mítica casa de Meudon. E descubro uma história de amor a arder através do caos como um «bateau ivre», tendo ao leme uma mulher do silêncio, que desconfiava das palavras. Salto a abundância de imagens, as ditas e a sua análise (uma foto da semana é escolhida para ser vista com mais detalhe, JC Menu mistura cinco capas de discos redesenhando-as, etc.) para chegar ao que interessa: a metáfora feita tijolo da construção literária do romancier portuguais. Está no título, citando pedaço da atenta entrevista de Frédérique Franchete, que começa fazendo notar o modo virtuoso com que o autor faz circular as vozes em pano de fundo de uma escrita marcada pelo absurdo, sendo este, diz Valério, a maneira de mostrar coisas que embora visíveis, estão por pensar. Aliás, dar a ver mora nestas entrelinhas. A metáfora apresenta-se como ferramenta de escavação entre duas realidades de modo a criar terceira, que não se encontra inteiramente em nenhuma das duas. Por entre temas, práticas e a infância francesa, desvela-se o essencial do escritor que discute os detalhes com os seus gatos. E anuncia-se novo romance, em tom surrealista e perspectiva burlesca, sobre Lisboa, a gentrificação, turismo e outros monstros.

Horta Seca, Lisboa, 19 Novembro

Raiosmapartam! A minha adolescência, e isto não se arruma na gaveta das idades, fez-se entalada entre céu e chão nados e criados a partir de versos e melodias teus, José Mário Branco (1942-2019), que uns não crescem sem as outras, as árvores precisam de sol e água para dar raízes e sombras, umas que voam, outras nem tanto. Colhi em ti Natálias e Camões, além de tantas subtilezas e orquestrações a escaparem do horripilante quotidiano. Mastiguei muito vinil, cassetes, cd’s e o mais em busca desse intimidante sentido para inquietação. As tuas canções são pequenos mundos que não deixam de dar passagens para outros, utópicos e diligentes. Andaste inclinado para a frente, estugando o passo, ainda que a tristeza te pesasse nas costas e nos olhos. Raiostapartam! Está já tudo redito e vomitado, e o dia nem começou ainda, não vale a pena contar de quando nos cruzámos em campanha, erguendo eu entusiasmo pueril, bebendo as tuas palavras e atentando nos gestos, antecipando território que habitavas já, o dos bons malandros que, embora descrendo da apanha dos horizontes, insistem em abrir cedo as madrugadas para o varejar das possibilidades. E estudam. E auxiliam. E calam. E cantam, apesar dos pesares. Cantarei, então, o pouquíssimo que sei de cor, mastigando coração e acautelando do luto este jardim das ervas daninhas. Saravá Zé Mário!

Teatro da Rainha, Caldas da Rainha, 19 Novembro

O Henrique [dodecassílabo Fialho] faz das sessões «Diga 33» momento único de celebração da palavra poética, em versão descontraída, mas preparada, rica em matizes, sempre calorosa, musical. E assim se domestica a esfinge. Acolitados pelo [Manuel António] Pina, lá nos apresentámos, a Inês [Fonseca Santos] e eu, algo agastado com a atenção. Serei tão poeta que justifique noitada? A partir da colectânea «40 X Abril», que foi dedicada ao ZMB, acrescentámo-nos ao coro generalizado, a Inês partindo do seu próprio poema-carta endereçado àquele dia inteiro de Abril, eu socorrendo-me do Miguel-Manso: «sem saber desembocar no coração/ desengolfar aí o graal da alegria em que fizemos/ promessa de comunhão// ser solidário/ há que errar conjuntamente pelo único caminho/ chamar-lhe país». No aconchego de uma frente de palco transfigurada rectaguarda de negro, pareceu-me ver justa agremiação de anjos tombados e jokers e taciturnos e outros seres dos vãos, mas deve ter sido dos meus olhos habituados ao escuro. Muita conversa e várias leituras depois, estou capaz de concluir que me revejo em tremendo país de erros partilhados. Chamemos-lhe poesia, talvez literatura.

Horta Seca, Lisboa, 21 Novembro

Estava para insistir que a-da-gadanha tem sido diligente nas rondas, mas seria inexacto de tão óbvio. A dita está sempre por aqui feita esqueleto a soletrar falange-falanginha-falangeta, cumprindo supremo encargo do enigma. «A vida é coisa grotesca, inexplicável, bizarra. Não faz nenhum sentido. Eu sou do fantástico, do grotesco e, certamente, do assustador.» Gahan Wilson (1930 -2019) sabia do que falava, autoridade que se foi tornando do riso escarninho sobre a existência e seus becos escuros. Por ali caçava, para adestrar a lápis e cor, os pavorosos ogres que nos atormentam (exemplo filosófico algures na página). Saravá Gahan!

Horta Seca, Lisboa, 21 Novembro

Saltada à Cisterna para «Atirar a Primeira Pedra», modos de fazer e refazer, de julgar e punir, com a devida distância das belas artes da Sara [Maio], bem entendido. Quase só grandes formatos em papel, onde o acrílico se inquieta em festa de cor. Muitas histórias por aqui de contam em lúdicos e irónicos alinhamentos. São díspares os elementos que se congregam para um carnaval irrequieto, e de que outro poderia ser se o fragmento se ergueu a figura da contemporaneidade? Páro para me encontrar «Quando a língua falava e todos entendiam». Lá estão abelhas e formiga e caranguejo no seus ofícios endiabrados, um tronco-arcada que fala nuvem, mas se deixa atravessar por projécteis, gente de várias espécies e atenções, observadores distantes, folhagens e plantas crescentes, seres-mealheiro perto de moedas, uma roda mista de dançarinos, sopa a ser dada a provar, uma fechadura a andar de skate e mais, bastante mais despertando a nossa vontade de procurar sentidos, de os fechar em narrativas, de os confinar aos lugares. Não será fácil. Só um mito pode promover o entendimento? Mas qual? Vou ali e volto.

Horta Seca, Lisboa, 22 Novembro

Está aberta esta série de «Paisagens Axiomáticas», oriundas do labor do Simão [Palmeirim], exercício laborioso em torno da luz, com cambiantes de azuis e verdes e o mais que o atento olhar descortine. São horizontes, que, se o deixarmos, crescem em nós até nos fixarem em uma paz de espírito rara. Possuem qualidade que as multiplica em jogo que parece de espelhos. Não cabe na galeria labirinto a não ser mental, mas a montagem, multiplica as possibilidades de relação entre cada trabalho, e acentua o pressuposto de espantoso caminho que se deixa perturbar pelo modo como o vemos, enfrentamos, tocamos. Quanto se esconde nesta luz capturada a grafite, lápis de cor e tempo?
Foi, por um conjunto de circunstâncias, práticas e de força maior, a mais turbulenta de quantas por aqui montámos. Como se a linha de terra, eixo de todas as projecções, insistisse em transfigurar-se linha de água.

27 Nov 2019

Todos os mapas vão dar ao destino

Metro, Lisboa, 13 Novembro

 

[dropcap]A[/dropcap]li por alturas do Rossio tudo me desapareceu menos as lágrimas não devia ter sido em dia treze para brutos que nem nós desacreditando nas superstições rindo ainda que conservando pedra de desconfiança no sapato que las hay las hay nosotros que enfrentamos mistérios saltando sobre eles com o pára-quedas da inteligência e da desconfiança mesmo deixando aberta a janela tem um canivete e o bombeiro perguntava com calma tão parva quanto a pergunta e de súbito a porta ao lado a de velho serviços neonizou-se qual entrada veloz de cabaré a porta desfeita chão ruído e vermelhos equipados e brancos e até azuis-celeste por que raio deve a polícia vestir o céu dançando de rompante mano o chão feito planície fria e infinda o eco do mano a brilhar nos teus olhos a procurar outro território menos frio respondendo à graça deslocada com sporting dentro fagulha de entendimento sem ninguém aceitar que se sentia o sopro daquela que deles se alimenta fugia-te o dia da semana mas não o nome sempre completo e fardado todos os dias fugiam debaixo dos nossos pés o chão mano e olhas com a mão esquerda procurando a que te desobedecia e as perguntas e o exército inteiro a sugerir isto e aquilo e hospitais nosotros agarrados à alegria de respirares chovia a dos tolos tantos carros e luzes e sons por ti provocados quando querias discrição silêncios feitos tranquilidade bálsamo da raiva contra a bruta injustiça a impotência saltando com o pára-quedas da inteligência a falhar o oxigénio a gastar-se e a descompreendermos o tecido do possível a desejares coreografia romântica de final em tons de branco o lençol monta uma dignidade mínima e da cor da maca sobre a qual aceitas as orientações rendes-te a novas hierarquias sem patente óbvia deixas-te ir sob a chuva de tolos a coreografia dos gestos em câmara demasiado lenta que mais tarde quereremos esconder mais as preparações a triagem os exames e as seringas e o que não vemos mais a vontade evaporando o chão mano telefonemas de longe a família alargando-se em vasos oxigenando os cuidados não ris estás por fim o doente que não querias nunca ser uma bandeira sobre ataúde de formas macias ainda não o pressentíamos apesar de tudo apesar dos pesares trouxeste do sul a morena alegria de estar à mesa de contar histórias e alimentar indignações tanto sabias que nenhum nome te escapava construías pontes a cada conversa ligavas por fios cada membro das famílias dos podres poderes e segredos antecipavas escândalos mais para o recente quando o entorno se desagregava homens maduros soltaram lágrimas convulsivas no meu ombro tocaste tantos com generosidade fértil outros te foram falhando mas carregaste forno fogão capaz de cozinhar vanguardas soubera eu então que antecipava recentes apetites mano o chão feito céu forma nuvens esse derradeiro que não adivinhávamos futuro feito presente desfeito aprendeste a múltipla combinação dos sabores que apuraste desde essa inusitada vez que mulheres e filha gastavam noite em hospital enquanto nos perdíamos em refeição e palavra nas quais se resume a passagem por dias talvez curtos que me faltaram para te entender que algo ficou por alinhavar dureza de uns e alegria de outros momentos dançando ao redor desenhando contornos desenhados à mão no nada no céu negro havia lua havia branco na palavra urgências haverá sempre o teu riso rasgando céus e um gesto de mãos ágeis um peito a dizer parede um olhar parceiro chão mano por que raio o chão as campainhas a tocar tarde sem respeitar as convenções sempre foi assim sempre será a memória de dedo na beira da porta a mandar abrir para discutirmos sem concordância possível a mais saborosa das discordâncias não fui ao Lobito contigo fui tantas vezes ao Lobito contigo acreditavas que as minhas palavras poderiam ser chão esticando a distância e mergulhando fundo contraindo-se ou estendendo horizontes abracei-te feliz tantas as vezes no casamento que foi esperança trouxeste-me no braço no colo a tua irmã enquanto a miúda azamboava ainda sem birra a miúda em Praga de azul com a avó as mudanças a dança e a dança das casas e o mar os barcos que nunca te satisfizeram os mapas que amavas e teimavas que captasse cada detalhe da geometria ainda ontem te liguei para te entusiasmar com mapa que o Tubarão da Brandoa acabava de resgatar ao pó do esquecimento o chão mano por que raio o chão frio os pulmões a arder a mansidão esculpida nos lábios última imagem para esquecer o teu olhar sem latitude nem longitude nunca fomos ao Lobito mas tatuámos Alentejo na pele toda deste-me a mão ágil a esquerda e disseste no intervalo de navalha tem canivete estou fodido não perguntavas nem afirmavas talvez te conformasses estou fodido olhando-me a lua brilhava e não merecias aquele corredor de campanha a inteligência ardia e as minhas lágrimas serviam de pouco onde descarrilaram as linhas do destino não fui ao sul contigo mas desenhámos mapas com os nossos passos bebi do teu entusiamo a servir uma ideia uma réstia que fosse uma razão que alimentasse a fogueira de certa maneira de erguer corpo em uníssono em grupo nunca deixaste de me oferecer música e mesa de abrir a porta o telemóvel lá dentro a tocar tem um canivete a chave na porta a lua esta porta cede merecias uma mão novo projecto para além das geografias das seguranças das defesas das estratégias falhámos-te ficámos a dever-te a empresa onde te cumprires tu que colocavas as ideias sobre arame de funâmbulo a iluminar possibilidades um saber ágil que não sei dizer não sairá daqui retrato nenhum ziguezagueaste nos múltiplos amparos e nenhum te devolveu a possibilidade tantas curvas na derradeira viagem o dia caindo chuva de tolos a dança no miolo do socorro motorizado os médicos perguntando sem um brilho de inteligência sabendo tu quanto havia por saber acerca dela a que se alimenta do bafo não devia ter sido a treze aprendi a soletrar família de mil maneiras contigo assim o mar a desfazer-se vezes sem conta a pedir atenção e a devolver milhentas maneiras vou voltar-me de súbito ver-te em cada instante a esbanjar orgulho as casas de portas abertas o aroma do café os copos os inesgotáveis serviços de peças partidas e prestes a quebrar o caril a perfumar as palavras para prazer de novo o movediço intervalo entre engenhoso previsto para a nação e um sentido gritante do indivíduo um sabre oferecido a bússola perdida a raiva do incumprido em lume brando além da iniquidade do mal que nos possui que nos risca os mapas o chão

20 Nov 2019