Lida da casa

Santa Bárbara, Lisboa, quinta 26 Março (bis)

[dropcap]I[/dropcap]nsisto. As lombadas andam inquietas com tanta atenção de olhos e mãos. Fingem o pó, para evocarem exteriores. E desafiam em distintos momentos deste longo dia com outras maneiras de caminhar sobre o tempo, de o desatar, de brincar com ele, às escondidas, à apanha. Afinal, passo o dia a fazer noite, como Colin a desgraçada figura que cavalga «A espuma dos dias», desse cintilante Boris Vian (ed. Frenesi) que há-de ser celebrado este ano, por via das redondas datas. A ver vamos, que este opressivo discorrer via produzindo em grande velocidade calhaus, belos e redondos. O realismo mágico, fórmula tristonha, pertence a outras paragens, bem sei, e por lá pode ficar o seu desajuste, mas o quotidiano destas paisagens, longe no tempo e no lugar dessas outras, ergue-se movediço, com uma dinâmica delirante que cruza mecânico e orgânico, sensação e matéria. De tal maneira, parecemos andar sobre perfume, com gozo e facilidade. Sinal maior, a casa muda a sua arquitectura consoante o que à sua volta se experimenta, se conhece, se sente, se vive. A casa enquanto nosso prolongamento, parte de nós, corpo concreto. Nos dias da espuma, a vida pode ser leve, até que a desgraça a contamine, o amor a sofrer com nenúfares a habitarem pulmões. A vida podia ser distinta, mas «nem sempre as coisas podem correr bem». Tenho que concordar com a resposta, até porque pela parte que me toca, também «podiam não correr sempre mal». As coisas são o que são, mas estamos fartos de saber que essa força que faz as coisas serem o que sempre foram tem a ver com quem ganha com isso. As coisas podem sempre ser feitas de maneira outra. Agora ficou manifesto, gritante.

Um viscoso quotidiano, oposto ao do par amoroso Colin e Chloé, escorre de «Les choses» (ed. Juillard) e agarra-se-me. Logo me vejo com o narrador, que podia ser Georges Perec talvez «un autre» sociólogo, a observar aquelas vidas na casinha de bonecas, fascinado pela «aisance» de vidas forradas a coisas, sustentadas por elas, nelas esgotadas. O supremo objecto de desejo do bem-estar quedo e ledo, a sociedade de consumo então nos seus alvores (subtítulo: uma história dos anos sessenta), a felicidade feita venenosa «souplesse». Outro par, que se esgota no conforto modesto, mas que aspira ao luxo, supremo hedonismo no qual a cultura se torna apenas sinal de estatuto, marca, sem transgressão nem sangue. Apenas uma coisa mais. Não há sombra de verdade, portanto de tragédia, apenas pilhas a gastarem-se agradavelmente. «Francamente insípido», eis as duas últimas palavras da novela.

O trânsito do tempo breve ao infinito, diz a sinopse, faz-se gancho enterrado na carne macerada para me puxar para levar a «La cuarentena» (ed. Alfaguara). Juan Goytisolo, outro dos grandes inquietos, interpelado pela morte de uma amiga, pela morte amiga?, resolve viajar. A quarentena onde me leva é a dos místicos sufis, que ele coloca em diálogo com Dante e «Divina Comédia». Afinal, corresponde ao momento em que, entre Terra e Céu, as almas se transfiguram e ganham um corpo subtil. Ganhamos suprema ligeireza para ir onde for preciso para vestir o corpo certo, o da eternidade. Como bom herege, tece «uma rede de significações para além por cima do espaço e do tempo, ignora as leis da verosimilhança, descarta as noções caducas de personagem e trama, abole as fronteiras de realidade e sonho, destabiliza o leitor multiplicando os níveis de interpretação e registo de vozes, apropria-se dos acontecimentos históricos e serve-se deles como combustível ao serviço do seu projecto», ou seja, «viver, morrer e ressuscitar». As suas palavras afirmam o processo de criação como quarentena e fala mesmo em «cordão sanitário, com protecção e barreiras». Por que raio se queixam então os escritores de domingo a passear cursor na rede? Tomo nota das pistas, há que regressar aos místicos, apetece-me o quietismo. Sem perder a leveza, a ligeireza do pó que viaja. Não se deve limpar o pó dos livros. A ele voltaremos.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 12 Abril

Peregrinando por entre a morte, cada um frankstein feito à força de peças de drone e corvo a percorrer ruas vazias a espelharem o nada nosso que nos dais hoje, celebra-se a brutal possibilidade da ressurreição. Sinal de que parte do carácter dos dias se perdeu — obrigando o mano António [de Castro Caeiro], mais tarde ou mais cedo, a acrescentar capítulo ao seu «Um dia não são dias» — até neste calendário se procura saber do futuro da edição, do livro, da leitura. Sílvia Cunha, da «Visão», lançou inquérito (e as respostas podem ser lidas aqui: https://visao.sapo.pt/atualidade/cultura/2020-04-12-covid-19-o-mundo-dos-livros-vai-sobreviver-a-pandemia-quatro-editores-respondem/). Por mais que tente abafá-la com a razão, ando sempre com o perfume de uma probabilidade outra no bolso. «A chegada a pés juntos do tempo nas nossas vidas, com esta travagem brusca, pode, de facto e, de novo, esperançosamente, mudar alguns comportamentos. Não creio que regressaremos a nenhuma época de ouro, que estará sempre por definição em passados e mitos, mas isso exigirá das editoras (e outros actores da tragicomédia editorial) novas respostas que respondam a novas necessidades. Sem dúvida que se abriram portas de um grande laboratório, assim haja quem queira agora manipular os aceleradores de partículas, que não será a aplicação acéfala de pomada na pele carcomida do marketing. Condenado o objecto-livro a uma comunidade de nichos, será daqui que surgirão as propostas mais interessantes.»

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 13 Abril

Quem tem medo do quotidiano? Mal se levantava o grande turbilhão de pó, o José Luiz [Tavares] compôs uma «litania em tempos de coronavírus», exigindo sem temor mais tempo ao tempo. «Agora sim,/ que é antes de toda a dor,/ ainda no corpo tens cor,/ e sobe-te à boca/ centos de sabores.// Mas ainda não ao grande sim,/ porque maravilha-te estar aqui/ (só mais um instantinho),/ embora penses na mão da eternidade/ ou como é doce o despenhamento.»

Agora mesmo (mas ainda haverá agora?), a Rita [Taborda Duarte] anuncia-me que «incorreu na falta» de escrever poema pandémico, cheia de loiça suja. «O poeta tem de bater com estrondo/
a porta da linguagem/ nas trombas do mundo;/ trancá-la por dentro: um poeta tem de escrever/
a métrica centrifugada dos lençóis/ encharcados nas ventas da poesia.// (…) Um poeta tem de escrever.// E só deve baixar os versos/ para chafurdar a esfregona no tinteiro.”

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