Teatro de sombras

Santa Bárbara, Lisboa, 25 Fevereiro

[dropcap]O[/dropcap] tropeção da passagem do ano atirou-me para o colo uma fartura de crias para lamber, aquele momento único em que as nossas mãos tocam o objecto concreto e definido com origem em ideias e palavras. Pode sempre acontecer o inesperado, se não radical que nem cadernos invertidos ou lombadas guilhotinadas, seja a inevitável gralha a estragar a experiência com o seu grasnar. Cultivo essa superstição de encontrar alguma nesta primeira lambidela…

Hesito na cor que pulsa na capa de «A Grande Dama do Chá», trabalho (algures na página) da Elisabete [Gomes] para a viagem do Fernando [Sobral] à Macau dos idos de 1937, aliás, pré-publicada em folhetim no Hoje Macau. Não lhe vou ligar a confirmar se é carmesim o que vejo, mas gosto da ideia de profundidade do vermelho e conter algo de púrpura e ter tido origem em insectos habitantes de paisagens imemoriais. Melhor: não custa imaginar que os lugares, onde as personagens deste romance gastarão as vidas respectivas, multiplicam ao infinito tons e temperaturas do vermelho.

O «porto de almas perdidas», como lhe chama o narrador e mestre marionetista, talvez não chegue a ganhar corpo de protagonista, ao contrário do que se poderia esperar. Macau estende-se pano de fundo (carmesim?), mero entreposto das grandes transações: do amor e da morte, do comércio e do poder, do Oriente e do Ocidente, do ouro da droga, do Céu e do Inferno, da luz e das trevas. Mas talvez esteja enganado. É que o autor constrói com grande ligeireza, a partir de suaves e redundantes pinceladas, um perturbador teatro de sombras. Como um bom chá, o primeiro perfume não revela logo subtilezas ou densidades. As figuras maiores são Jin Shixin, espia ao serviço de uma China milenar, e Cândido Vilaça, saxofonista melancólico, diletante e adiado, como bom português. Ao redor do par apaixonado gravitam mais uma meia dúzia, invariavelmente em jogo entre o óbvio e o enigmático. Serão apenas isso, sobreviventes? Ou acabarão metáforas? Todos cumpriram guiões distintos daqueles em que os encontramos com à guerra às portas da cidade, e talvez daí nasça uma certa urgência em cumprir-se, nem que seja na invisibilidade. Jogadores, claro. «Todos, para o bem e para o mal, jogamos. Uns sabem fazê-lo. A maioria apenas observa os outros a jogar. Nunca arriscam. Nunca tomam decisões. Vêem a vida e a riqueza a passar defronte dos seus olhos.», diz um ex-polícia, oriundo de Xangai, a outra ponta do triângulo, com Hong Kong. São seres de excepção, entre o aventureiro e o desesperado, e até os mais banais levam a sua condição a máximos raros.

O carmesim será a cor do spleen? Os «bonecos» são movimentados pelo vento da narrativa, resistem ou dançam, permitindo as cambiantes não tanto do seu comportamento, como do seu pensamento. Uns tratam de comerciar, outros de espiar, outros gostavam de alcançar a épica de cumprir destinos colectivos, outros de navegar no sonho de tocar em nome próprio, de ter um nome. Pergunto-me se, afinal, não serão todos e cada um emanações da cidade. Não se perde uma única oportunidade, claro, para suscitar reflexões, e não apenas em torno da capitulação perante os prazeres e a droga, a luminiscência do ouro, o valor da tradição ou a traição enquanto lugar comum do humano. O encontro de civilizações suscita,a cada passo, perplexidades. Vejamos este diálogo em varanda de hotel, com o jazz por fundo.

«– Em Xangai foi possível juntar o Oriente e o Ocidente. Tal como aqui, em Macau.
Jin Shixin voltou a cabeça:
– Não será assim, senhor Ezequiel. O Ocidente subjugou o Oriente. Sequestrou-lhe a alma com o vício e o
comércio sem regras. E chama a isso irmandade?
– Os próprios orientais não estão isentos de culpa, menina Jin.
– O que é a culpa, senhor Ezequiel? Pecar muito, rezar e, depois, ser absolvido, como se nada tivesse acontecido?»

O Fernando serve-nos um belo chá, que pode ser tomada sem a mínima preocupação, mera degustação de imaginar baías ao fim do dia. Mas temo que outros fins se ocultem nesta narrativa que se lê enquanto o diabo esfrega um olho. E os portugueses, nisto? Diz o saxofonista: «Portugal foi uma grande potência porque controlou as veias do mundo, os oceanos. Quando outros o fizeram a sua missão terminou. Em Portugal consideramos a eternidade e o destino como o mar que está defronte de nós. É o fim, depois do fim.»

Esta colecção da Arranha-céus, de que este romance este é apenas o sexto volume, parte de uma ideia simples: país com o nosso passado possui extrema riqueza apenas aflorada. Ou seja, aqui cabem os resultados dos diversos géneros que podem ser usados na exploração, além do inevitável romance histórico, o maltratado memorialismo, em versão de autobiografia, diário, correspondência, enfim, relato de viagens, ou a biografia, de carácter mais investigativo ou romanceada. A curiosidade por tais temas surge transversal e com público potencial mais vasto. E por nisso acreditarmos, fomos generosos no formato, na paginação e sua gestão do branco, no corpo do texto. Para conforto máximo do leitor. A referência ao género surge apenas na contracapa e na folha de rosto, com discrição, sublinhando que são as histórias o que aqui nos interessa. Apesar da sua forte identidade visual , não tinha título exacto até este momento, em que passará a chamar-se H, de hora, história ou histórias, sem esquecer o carácter arquitectónico da letra maiúscula.

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