Cadáver esquisito

Cândido dos Reis, Cacilhas, quinta, 8 Abril

 

Do banal em estado puro. Desces a inclinação das Flores cruzando memórias que perpassam. Encolhes os ombros, ias trocar saudações, evocar brincadeira antiga, arrepio dolente, desejo celebrado, mas mandam as regras que não te interpeles a ti próprio nos cruzamentos. Dá-te por contente se continuares a ter tento nos desdobramentos de ti. Pessoa, que deu nome a pharmácia além do mais, não ficaria mal em medicamento. Não avie o genérico, tome de oito em oito horas 7 miligramas de Pessoa, em comprimido ou suspensão oral, vai sentir alívio imediato nas dores das várias cabeças, nas ânsias das mínimas metafísicas, na aspereza prática das articulações dos mega-processos dos quintos dos impérios. Mundos inteiros se erguem e despenham para um se tornar pessoa.

Para os que atravessam o rio nas tormentas do habitual, não deve sobrar sentimento sobre sensação, ponte de romantismo, mas perguntas-te de cada vez por que não o fazes mais e a despropósito. Não custa nada, o bilhete que te muda este chão que pisas tardando em estender-se horizonte, granito polido a que se seguirão as ondas penteadinhas a beijar a quase escotilha antes dos múltiplos pavimentos da outra banda, tantas peles. Puta privilégio, adivinhares nas costas a cidade-fêmea dispersa, com os seios multiplicados a acolher as carícias do rio. E no cais movente onde atracas demoras a erguer o olhar para que o deslumbramento te tome com lentidão máxima.

Sem parar, que não o permite a esparsa correnteza dos cruzadores. As calças sujas da frente contam histórias, a boazona espalha indiferenças com intenção, as rotinas do Gingal estão desde cedo dispostas, abertas à interpretação, a voz a vender ao saco, que fruta?, que vitualha? Abancas na borda acertada de afluente, perpendicular ao Tejo, ilha por entre subidas e descidas, que arrastam olhares e comerciam a matéria dos dias.

Estranhas o xadrez posto nas mesas, singelos monumentos à inteligência e ao jogo . Estranhas o que parece sino descido da torre para badalar nas escadas da igreja que deve ser matriz desta aldeia. Baloiça o negro, mas os teus pesares são mais negros que o dito.

Estás sentado à mesa para acertar detalhes últimos de projecto que tem tudo a ver com torres e cavalos e bispos e peões em movimento desconcertante. Alguém que sabe abrir os segredos de certas substâncias, combinar levezas e amargores, o líquido e a luz, ou seja, um aprendiz de feiticeiro que também sacrifica à leitura resolve fazer a mais perigosa das jogadas: e se? O João [Brazão], sabendo do interesse de alguns autores pelas inesgotáveis matizes da cerveja e do que se esconde no gesto de beber em comunidade, desafia-os para um cruzamento. «Cadáver esquisito», receita surrealista para a criação ilimitada, será doravante também nome de bebida com muito para contar. Cada um dos seis rótulos do volume primeiro terá um conto, iluminado com a ironia do Nuno [Saraiva] e com design abrangente e delirante do Marko [Rosalline], que vai ao ponto de querer documentar o processo completo em busca essência da criação. Foi dos primeiros a surpreender-te com o lume da paixão e logo grande cicerone das tradições e dos sabores. Muito antes dos ventos da moda, o mano Luís [Afonso] fez da saudosa «Vemos, Ouvimos e Lemos» lugar de peregrinação, tal a diversidade de experiências que oferecia, rimando com os livros e o mais. Pertence-lhe a descrição do néctar, a servir em garrafa de 0,75 litros e logo adoptada pelo mestre cervejeiro: «um pouco turva, com tons de âmbar claro e uma espuma cremosa e persistente. Além de um sabor de estilo belga, com notas de especiarias e banana, aroma e amargor do lúpulo, num final seco». O embaixador Afonso [Cruz] transformou a artesanal beberagem em causa, literária e filosófica, dando-lhe mais sabor e profundidade. O explorador das estepes do pensamento, que palmilha por todos os meios existentes e por ele criados, Luís [Carmelo] usa a pequena garrafa como bordão e báculo. Outro que a manobra que nem bússola, também no afã de descobrir continentes, reacender vulcões ou matar a sede é o Valério [Romão]. Quando foste a Curitiba ao encontro do Paulo [José Miranda], entre o aeroporto e a sua casa tiveste curso acelerado com degustação e versos. Aliás, a estada tornou-se afinal viagem ao coração do universo, a que só se acede por estes degraus. O amargor nunca mais se reduziu a amarguras ou amargos de boca. O sexto conto coube-te a ti, que pouco mais sabes que beber. Cada um na sua garrafa e todos em livro, não podia ser outro o modo. A força da coincidência por a morte rainha desta partida, antes ainda de encontrado o nome. Pormenor para futuras conversas. Vai aqui na página um retrato à la minute do caos de onde surgirá o apuro e a vertigem. Diz o João ao Marko, parece que chocaste de frente contra uma parede e entornaste todas as garrafas.

Um almoço é orquestra sentada. Puxa aí o embondeiro aqui para a cantina. Umas horitas para ajustar o pretexto do afazer, a ele voltaremos que nem refrão que se enxota e não pára de picar. Não deixam de desfilar mais uns quantos, desaguando-te no peito profundezas e desabafos: és antena desatinada tendo por base um convés. A terra será morena, a pescaria infrutífera, o amor dorido, o desafinanço irritante e Deus que se atrasa. Atenta no lábio antes do sopro, dos dedos na corda, no que locomove a peça no tabuleiro. Sim, a cadência é de onda.

Já a pisar a volta, no quiosque de afogados e de marinheiros ainda encontras velho conhecido desaparecido em combate com quem riscas mais outro projecto no cabo do revólver, talvez bisnaga vira-bicos. Depois o sol põe-se a desenhar âncoras nas palavras e nos gestos dos que por ali cirandam como piões de destinos desatinados. Trata-se agora de lavrar as pequenas ondas. E subir a rua de regresso. Que «amargosto» trazes da outra banda.

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