Juan de La Cruz

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uito me apraz este instante na imagem de Juan de La Cruz como um efeito lendário de sombras, luzes e rectidão. Nascido em Ávila em 1542 amigo e aliado de Teresa de Ávila na reforma Carmelita que o levou a um duro cárcere, ele foi um poeta imenso que herdou a beleza dos Cânticos de Salomão – cantar e orar serão assim uma e a mesma coisa pois tal como a música apaziguara as feras, os cantares são regras de gratidão.

Foi pelo reinado de Filipe II, na Contra-Reforma portanto, que a vida deste carmelita teve lugar entre votos de silêncio, estoicismo e impressionante resistência pela sua transbordante necessidade de transcender o suplício da prisão a que foi condenado pela reforma que fez na Ordem, orientando-a para um estado demasiado ideal que lhe angariou sérias inimizades. Em condições duríssimas, o seu sentido de missão não soçobrou aliando a sua vastíssima cultura a um grau de intensa perfeição. Ficarão para sempre alguns dos seus poemas como o melhor da língua castelhana.

A superação é um passo gigantesco em cada ser humano, se dele se esperam realizações a este nível teremos que aludir a cada interstício de uma frase como se de ranhuras que se consideram de nenhures, saíssem então para uma segunda leitura, aquele espanto que as ilumina: essa sombra, esse enleio, essa dissipação na grande poeira cósmica do poema, é um exercício imenso que deixa exaurido o agente da transformação e lhe permite continuar em cada instante mais renascido, a essa intensa alegria se chamará ascese. Há sempre aqui detalhes de rigorosa estruturação que visam três etapas – purgativa, iluminativa e unitária. A sua obra “Teoria de la expresion poética” abre esse atalho a uma estrutura formal que se consolida na solidez da inventividade linguística e desoculta o que de inconcluso existe numa língua. É um trabalho espantoso! Um nevoeiro espesso fechou estes legados, áreas do cérebro talvez as tivessem já esquecido: a palavra já não salva, sendo agente de combate e de disputa estéril.

O cérebro pode ser bem uma central de portas que à medida que umas se abrem se fechem outras, podendo não dar provas de capacidade associativa dentro de um corpo que dirige. Daí que sem alimento de uma fonte ela progrida para uma outra, dado que interagir com a sua complexa natureza implique um outro armazenamento do tempo e esse para cada um é medida limitada impondo prioridades. Hoje seria impossível uma “Noite Escura” na voz de um poeta, pois que também a fímbria poética é uma espécie de termómetro do tempo e o tempo em que vivemos retirou a película envolvente das sombras e não desagua nele nenhuma luz que transcenda o finito da consciência. Estamos envolvidos em fontes várias que nos tiram a dinâmica diamantina face ao estado da nossa vigília.

Podemos ainda encarar as versões do texto como uma exegese, uma forma de intenção apologética, outra como imanando de um caudaloso manto lírico. No entanto, creio não haver um estado de festa mais conseguido do que a substância destes cânticos. Nada aqui se castiga. Não soçobra à dor infligida, não difama, nem uma queixa. É uma alma luminosa! Estrofe de cinco versos, a lira, foi o pentágono, a estrela métrica do seu brilho – antiquíssimo Cântico dos Cânticos – aqui reanimado. Acrescente-se um memorável incentivo ao desenvolvimento poético que Espanha em plena forma do seu labor eclesiástico imprime com o “contrafactum” que consiste em adaptar um texto profano e onde toda a obra de Juan de La Cruz vai incidir, nessas coplas ” à lo divino”, atravessada agora de aforismos não vacila face à sua matriz herética. Também os Cancioneiros são matéria de desocultação. As notas que desenvolveu para os comentários aos seus poemas ultrapassam em muito a sua obra poética que ocupa umas quarenta páginas. Mas, até aí, nessa sempre exegese bíblica de si mesmo, ele o fez com a mestria de um raro poeta. Penso que ao desviar-se até da matéria de facto, como hoje juridicamente se designa, ele criara uma nova forma de domínio onde vamos buscar qualquer matéria onírica e ontológica que estão plasmadas neste sopro.

Todas as Luas-Novas prestava tributo como aqueles cegos que vão por caminhos milagrosos à sua «Noite Escura» e a Lua tinha como fonte a Casa e a Casa era algo que nascia como as alvoradas. Ao prestar culto, sentia que era assim entendível a grave Lua, aquela que na fonte ainda brilha em cada um de nós no silêncio tranquilo de uma alma. Ela era então tão Nova nesse Novilúnio, que nunca tinha nascido, e como propósito, cabia assim nos sonhos que me deu Juan de La Cruz. Brilhava então a secreta paz.

 

Em uma noite escura

com ânsias, em amores inflamada,

oh ditosa ventura!

saí sem ser notada, estando minha casa sossegada.

Às escuras, segura,

pela secreta escada, disfarçada,

oh ditosa ventura! às escuras e emboscada,

estando minha casa sossegada.

 

Nessa noite ditosa, secretamente, que ninguém me via,

de nada curiosa, sem outra luz nem guia

senão a que no coração ardia.

Só esta me guiava mais segura que a luz do meio-dia.

aonde me esperava quem eu já sabia,

em parte onde ninguém aparecia.

 

Oh noite, que guiaste!

Oh noite, amável mais que a alvorada!

Oh noite que jantaste

Amado com amada,

amada em seu Amado transformada!

 

Em meu peito florido,

que inteiro só para ele se guardava,

ficou adormecido,

e o leque de cedros brisa dava.

 

A variação da ameia,

enquanto eu seus cabelos espargia,

com sua mão que enleia

o meu colo feria,

e meus sentidos todos suspendia.

 

Fiquei e olvidei-me,

o rosto reclinei sobre o Amado;

cessou tudo, e deixei-me,

deixando o meu cuidado

por entre as açucenas olvidado.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários