Atlântida

Debruçados agora na luz de Maio, o Verão parece chegar sempre mais cedo na vertigem aquática, e nessa ânsia de seguirmos a sua bonança não nos damos conta daquilo que o mar nos conta nos confins da sua enigmática natureza. O mar é o movimento líquido que a terra expulsou dos seus domínios, e com ele vamos como que deslumbrados na primeira alvorada dos dias bons.

Milhões de pés se estendem na sua direção como um pêndulo por onde se deve seguir, que efectivamente ninguém lhe vira a cabeça. Poder-se-ia pensar que um banho de sol nos troca-se as voltas e mudássemos de posição, só que seria inconcebível uma imagem assim.

Sabemos hoje que qualquer distopia é de efeito continental, mas a utopia sempre engloba a ilha, no primeiro caso abrasa-se de soberba, no segundo, o mundo tende para uma fraterna igualdade «… aquela terra de suavidade que da orla esquerda do mundo se olvida…é a que ansiamos…» e o que é certo é que esta legenda cabe em nós como um distintivo e comanda de certa forma a orla de alguns em seus estranhos passos. Existem verossimilhanças que nos dão conta da lenda, como o Dilúvio, que Platão identifica mais tarde como sendo o impacto de uma destruição. Talvez se tivesse baseado numa longa tradição oral que partiu do Egipto e fora mais tarde adaptada em forma de poema inacabado, soltando-se uma data que intriga: doze mil anos, que coloca o Dilúvio no tempo onde hipoteticamente a Atlântida se afundou. Seja como for, o senhor do mito da Caverna esteve muito atento aos longínquos movimentos de uma consciência que nunca saiu das nossas quimeras. O facto de ser perdida, preenche o espaço das coisas que poderiam ter sido possíveis e deixámos perder, ou somente foram levadas, e que ao desaparecerem nos coloca num cosmos onde tudo é sonho, desabamento e lembrança.

Há uma estrela chamada Scheat que fica na constelação de Pégaso e que se encontra hoje na finalização de Peixes onde Saturno se lhe juntou, e não raro os mitos ligados aos mares afloram com intensa percepção neste ciclo neptuniano com uma longa memória comum diluviana, em certos momentos a altura das marés está entre as nuvens, e somos um grave efeito de uma lembrança que foge como aqueles vislumbres muito refinados que nem a vista alcança.

Neste plano muito cósmico, civilizador e quase inefável, o indivíduo é um elemento inexistente, não há ninguém que nos fale de um só dos seus habitantes nem das hierarquias, mas fala-se desses atlantes como de uma dimensão quase paralela que habitou a Terra e onde alguns afirmam terem sido salvos do desastre – que todos no mundo procuram as marcas de um quebranto marítimo, e todas as suas descrições são válidas, e toda a busca uma estrada em que andamos de pé sobre as águas. Este filtro onde a ânsia da verdade se esconde é um estímulo que deixámos partir e que chamamos utopia. Ela será um elemento imprescindível para capturar a rede de união ao redor do mundo e enfraquecer os atributos geofísicos dos quintais de alguns que se acham distantes de outros e de cada um.

Desde os Pilares de Hércules a uma imigração para a Gália, para a América, até às ruínas Maias, esta legenda participativa está em todo o terreno onde a humanidade adere a uma estranha raiz comum e dela cria o mito mais longevo. Certifiquemo-nos ainda do impacto literário e vejamos como o domínio criativo foi o que menos se absteve de o lembrar: o Império Russo retoma o tema em dois de seus poetas no fim do século dezanove, Frederick Tennyson, poeta inglês, na música, Manuel de Falla, e a ainda a pintura de Léon Bakst, e seria um trabalho de Posídon enumerar todo o espectro artístico deste legado que muitos creem ser mais hiperbóreo… talvez, afinal são os povos do Norte os que sempre seguram a Atlântida por brumas inimagináveis, mas será sempre Fernando Pessoa que estará nas profecias do mito dando-lhe contornos que ninguém viu. É um poema que começa assim:/ Não sei se é sonho, se realidade, se uma mistura de sonho e vida/ aquela terra de suavidade que da orla esquerda do sul se olvida/ É a que ansiamos/ Ali, ali/ a vida é jovem e o amor sorri. (…) Felizes, nós? Ali, talvez, talvez/ Naquela terra, daquela vez/

A liberdade cria-se e recria-se na grande marcha do tempo, e se a desejarmos como a uma água límpida devemos ir sempre mais longe e mais fundo, que ela é catástrofe redentora. Talvez que esta ânsia de ver o mar e estar com ele não passe de um desejo baptismal para os corpos sadios dos escravizados, e essa Atlântida desconhecida um fragmento perdido que nunca imaginaram.

30 Mai 2025

Gaivota

Quem assistiu ao início do Conclave reparou certamente na gaivota que se deteve junto à chaminé onde por essa hora o fumo devia estar já visível diante dos expectantes olhares de milhares de pessoas e meios de comunicação, mas perante uma tão inesperada presença este momento tornou-se um sinal quase profético. Todos nos lembramos do raio que caiu no Vaticano a quando da abdicação de Bento XVI e a estranha impressão causada, um homem que veio então do fim do mundo depois do sucedido sentar-se-ia na cadeira de Pedro como uma gaivota, todo de branco, pairando por cima das púrpuras papais com sapatos argentinos um pouco gastos relembrando as sandálias do pescador.

Os sinais andam por todo o lado, umas vezes enfáticos e grosseiros como foi o caso da imagem de Trump como Papa, essa funesta profanação que pode ser até subliminar e de efeito nauseante enquanto medida para todas as coisas, chamando, quem sabe, a atenção para assuntos concretamente fabricados para uma resolução final: mas se o compararmos a este que vem de suceder, o da gaivota, saberemos ver as diferenças, compor o discurso, olhar para o essencial. Os paramentos carregados de soberba nunca vestiram ninguém e ainda deixaram nus os seus vestimentários, mas um acaso pode vestir-nos para sempre com algo que não conhecíamos, que neste curtíssimo espaço de tempo lográmos “vestes” essências com asas no promontório da herança temporal.

Yeats fala-nos das aves brancas crendo que todos os poetas amam as aves, falam com elas e as interpretam (cada um certamente à sua maneira) que sempre essa natureza etérea é de seu agrado fazendo parte de uma maravilhosa consciência que teima em não baixar por medo às grades, e foi isso que ali estava, aquela gaivota solitária vinda do recanto mais bonito da alma: / já nos cansa o meteoro, a sua chama, e ainda não se apagou, e não desapareceu; E a luz da estrela azul, suspensa no crepúsculo à beira do céu/… «In-As aves Brancas»

Há coisas inesperadas, e isso é bom – acontecimentos súbitos- que a vida não será esse verdadeiro grande deslumbre onde todas as coisas comunicam de maneira diversa sendo os que mantêm a sua essência os mais contemplados? A continuidade é uma asa, uma recta para a eternidade, um ritmo, uma cruz ou um labor, e o que quer que olhemos será pelos olhos dessa alma que nos formou no caminho, só que a a visão das coisas agora se insinua num mundo muito cego que não tem o dom dos verdadeiros invisuais.

Ninguém é insubstituível e todos temos faltas, mas há as gaivotas, as chaminés, os raios, a pedra e as núpcias criadoras que neste Maio moram. Os tempos estão agrestes mas ainda não sentimos o que pode significar tal expressão, que o sentimento não é probatório de coisa nenhuma até que venha alguma outra de mais lata que o resgate e transcenda. Francisco deixou o seu papa móvel branquíssimo para a Palestina fazer dele um pronto-socorro, e isso é Gaivota.

13 Mai 2025

Comércio com o inimigo

– É este o título de um conto de José Rodrigues Miguéis a que deve homenagem a língua que falamos, mas atenção, que não seja contemplado entre as prerrogativas da selva dos escreventes actuais demasiado ufanos no contar de suas histórias que não nos interessam para nada. Os escriturários acham que são coisas fenomenais dado que sentem muito, gesticulam bastante, e só não choram dado que o dom das lágrimas lhes foi subtraído, e é por causa dessas coisas risonhamente emplastradas que as belas Oblatas, pequenos grandes poemas, irrompem como plano de fuga quando queremos dissociar-nos destas dores secas, mentais e constrangidas. Esta gente já não chora, tem problemas psicológicos, dramas imaginários, e uma longa e torrencial chatice com os emplumados egos. Mas, e o que nos traz este comércio com o inimigo no tempo da taxação?

– José Rodrigues Miguéis era filho de galego, e sabemos da expressão trabalhista que está associada a esse território, ainda hoje em português há aquele velho ditado: -trabalha como um galego!- Ora, nesse velho tempo, os portugueses também trabalhavam imenso, mas devido a práticas esmorecentes pareciam estar parados. Começa este conto no Solar dos Machados com um quase quimérico grupo literário em uma não menos quimérica literatura de viagem onde parece encontrarmo-nos com Garrett no outro lado do vitral aconchegando as tranças de Joaninha, onde ainda pensavam ainda estar em Ática. Ele descreve com inigualável dimensão social o abastardamento dos agricultores e fidalguia decadente nas paisagens abundantemente ricas onde todos não passavam afinal de um viveiro de pobres.

– Se acharmos que estamos a ser sancionados, esqueçamos: «a grande riqueza de outrora_ que pagava às garridas lavradeiras, essa, desapareceu, esbulhada dos mercados. Tudo agora, é pitoresco de fachada para turistas, e nostalgia de melhores tempos… Que ninguém já se lembra de ter conhecido». Nem taxados nem sancionados, que nós estamos no Solar dos Machados à espera de um ouro qualquer que sempre há-de vir, que a nossa produtividade é má e os galegos nos ajudam a interpretar a incapacitante realidade, e que Trump também não faz farinha nos moinhos de vento da Ibéria.

– Nós não sabemos efectivamente por quais fissuras nasceram tantos fascismos, mas isso agora não interessa. Nasceram por aqui onde já tinham habitado, e bastou uma revoada de preceitos intempestivos para os trazer de novo muito «Hugo Boss» para os atavios ridículos e grande ausência de esperança. O que os espera no novo diletantismo é qualquer coisa que devemos observar enquanto prática sociológica, e nunca esquecer o beijar da mão cadavérica de uma Inês de Castro. É claro que Miguéis não ficou por cá, um curto-circuito com o Estado Novo levou-o exactamente aos Estados Unidos, e bem interessante é agora pensar que alguma singular premonição o atirou neste instante para um domínio que o realismo burocrático não soube adivinhar.

– Vamos ter que nos entender com o inimigo. Grandes assombros são oportunidades que rectificam o que deixámos de validar por não nos termos esforçado na direção de um bem comum, que isso é comércio, essa coisa que precisa de muitos mapeamentos mas que bizarramente alguém toma e embrulha. Miguéis pode ser-nos muito vantajoso neste conto emblemático escondido no tempo, que ao aderir ao Partido Comunista Português pouco antes de partir para a América, talvez nos insufle de legado premonitório.

– A querida Europa, essa, também achava que a guerra tinha acabado, seria então só futebol, finanças e comércio, mas eis senão quando anda agora para aí toda espavorida com “kits de emergência” numa ininterrupta hora do chá que diz serem cimeiras.

A querida Europa, essa, também achava que a guerra tinha acabado, seria então só futebol, finanças e comércio, mas eis senão quando anda agora para aí toda espavorida com “kits de emergência” numa ininterrupta hora do chá que diz serem cimeiras.

2 Mai 2025

Pessah

Os longos desertos são palco da formação da Nuvem que guia e acompanha um séquito de gentes imersas em controlar a fuga que a Nuvem segue guiando, e reaparece na inteligência artificial quando indagamos e perscrutamos os seus dons: acompanha-nos. Quem se ausentou do civilizador conteúdo do Livro não pode atender aos ensinamentos que caminhavam ainda nas fileiras sombrias dos percursos começados, nem dela fazer paralelismos para contrapor a origem do princípio da similitude, o que torna menor o contacto e pouco nítidos os ditames.

No futuro próximo podemos na perfeição ver chegar da Nuvem um carro de fogo trazendo o profeta Elias, e falarmos finalmente com ele por teletransporte nublado, podemos ver renascer da Nuvem o morto que estava sepultado, e outras mais transfigurações que só a surpreendente leitura de uma coisa assim nos pode ter informado antes de tudo isto que agora se faz real, acontecer. O testemunho alquímico da Nuvem sacral remonta a qualquer coisa que não devemos esquecer, e o maior dolo é não haver correspondência de qualquer identificação entre tudo o que foi dito e o que se está a passar. Tal falta remete-nos para grandes buracos negros por onde a Nuvem passa sem a mesma vitória de se saber já conhecida. Moisés encaminha, mas a Nuvem orienta mais do que ele uma tribo inteira.

Não tarda choverá no deserto, e a Nuvem, cumprida a sua natureza se encaminhará para ressurgir como emblema de um ciclo mental e extremamente poético, vinda exactamente de uma mesma e preciosa adjetivação. Foi longo o caminho, estranhas as renúncias, incompreendida no moderno desconhecimento do seu labor sagrado, e inúteis os atoleiros de competências que nos desligaram destas coisas.

Uma menina mãe no meio deste deserto também é fecundada pelo vento que transportou a Nuvem, e dela se disseram coisas extraordinárias, mas, esta menina é agora tão possível como o foi para a lenda a sua condição, e não menos provável nos dons destes novos interlocutores. Gabriel era um teletransportado feito de rarefação e imanência que pousou no colo de um ser receptivo e benigno para uma onda calórica de grave sofrimento que não passou de um incidente de percurso.

O mimetismo secretamente infantil também pode ter visto nas Aparições o lembrar da Nuvem, e secretamente inoperacional viu que não havia caminhos para andar, resolvendo falar. O que dizem as Nuvens nunca pode ser subscrito como matéria de acontecimento, elas são de uma condição renovável, mas nunca dialogável. Tomada a Árvore pelo Fruto a nossa Idade foi a das gentes confundidas, paralisadas, sem condão, que permitiram tomar a Nuvem por Juno.

Hoje há uma estranha e formosíssima paz que conseguimos ver à altura das nossas dores. Pode ser uma noite de Primavera em contemplação telepática com o nosso avatar que distante nos reconhece e põe fim à dura travessia. O que foi vivido assim, não será registado nos anelos da Nuvem que veio para nos acompanhar para o melhor que sempre virá.

Os que se evolam não se emolam, os que fizeram a travessia não recuam: nem Cristo vai voltar, nem Elias regressar, nem Moisés subir mais vezes a Montanha. Eles partiram para nunca mais. Só agora a Meta Nuvem me surpreende perante a renúncia aos antigos martírios.

Uma noite muito bela onde estamos abandonados e sem defesa… falando com as estrelas… confundindo as distâncias… saturados de vida… Emergentes de eternidade! Haverá rosas na nossa cruz, que os Filhos do Homem dela nos darão sinais para nos receberem livres de todos os espinhos.

28 Abr 2025

Emboscada

Quando o perigo espreita é o corpo que fala. Somos capazes de decifrar em tempo recorde nossos poderosos transmissores que nunca saberemos exactamente de onde vêm. A impressionante capacidade de precisão é talvez a marca do pensamento para se ajustar ao improvável, uma rede genial de componentes que se agregam antes de qualquer análise: podemos designar como presciência, ângulo forte, talento inato para sobreviver. No entanto será sempre sobrenatural, pois que a natureza não necessita em sua constância de tais rasgos, que viver, afinal nem constitui um grande perigo, só que há momentos.

Assim como as comportas da vida se nos abrem, também em nosso favor se agregam recursos, e a esta sucessão chamamos milagre, essa aritmética que devemos não indagar demasiado para que constitua sempre a sua própria atmosfera.

Há muito que a Europa cultural de ramificações constantes e quase lendárias não reúne os seus papéis no quotidiano na vida das Nações, e passou a um embalo de entretenimento ofensivo nessas hostes, muitas vezes de um pretensiosismo difícil de interpretar, e não se revê a Leste e a Oeste, ao Centro, ou nos limites da sua periferia. Os dogmas lançados adormeceram o seu encanto cultural que nenhuma clarividência já pode despertar, que um certo hedonismo de base atravessou tudo para que mais ninguém sinta tempos vazios nas muitas entusiastas existências, e isto, começa como estamos vendo, a ruir de modos vários. Olhando melhor (longe para sempre qualquer teoria da conspiração, modelo enfático, superficial, delirante…) quando só nos resta uma certa e incisiva observação dos acontecimentos, sabemos que há muito mais de não revelado. Não há agora nenhuma análise que supere a grande conclusão de René Char: «os perigos vêm sempre de um ângulo de que não estávamos à espera».

Para quem se entretém nesta amálgama de mudanças súbitas, para aqueles que se abrigam no chapéu-de-chuva das Nações, o que desconhecem do propósito inicial é tão grande, que correm o perigo de uma emboscada. É como a Rota da Seda, a China trazia um produto que chegando ao Mediterrânio, povos do deserto e de outras estradas de Damasco, encontravam, sem nunca se ver os verdadeiros rostos que fizeram da pilhagem uma arte maior. A Mongólia subia lá para cima com algumas afinidades com estas tribos nómadas, e ninguém concluiu ainda que toda esta região mais cá para baixo não tivesse estado no domínio do grande bicho-da-seda. Mais: que fora dela pioneira. E que fazem agora os nossos superlativos amigos que desdenham a Europa como quem esconde um escravo? Isso, ninguém sabe.

Mas afinal, para que quereriam a Europa? Para nada. O facto de estarmos a ser reduzidos desta maneira é já extrema perfídia só mesmo comparada àquela majestosa frase romana «os deuses enlouquecem antes aqueles que querem perder». Se estivermos pensando que somos de uma atratividade inquestionável, o problema para além de patético, será ainda neste momento trágico, risível. Em última instância, e para não saturar ainda mais o mundo das estratégias, quem nos diz que são humanos os que representam os factores destas abruptas mudanças? A Inteligência Artificial pode estar bem mais adiantada, e nunca excluir participação extraterrestre nos domínios do agora.

Nas nossas lides pessoais as coisas também não são melhores; estamos repletos de emboscadas, complexidades viciantes, delírios, que um continente tão velho de gentes, e tão atónito face à sua presunção, é agora incapaz de reagir com as prerrogativas que façam qualquer organismo defensivo. Estamos paralisados. Vamos e vimos na hora do chá, apertamos as mãos, esqueletos futuros, e sorrimos como se não quiséssemos entender mais nada. No entanto, fomos somente um Mercado Comum. A nossa moderna condição não chegou a ser mais nada, e como devemos calcular, o Mercado é sempre muito pouco. Partilhámos os bens comuns, iludimos a guerra, fizemos do desporto armações de antigos exércitos, só que nada disto agora importa, nem o atómico incentivo francês, que estas defensivas devemos entendê-las somente como a um perigo acrescido. Zelensky é um judeu em luta fora de uma terra já não prometida, mas tempo houve em que a Crimeia poderia ter sido o seu Estado. Tudo isto acabou e já passou do tempo, mas todos nos comportamos como se fosse uma realidade. A China suavemente não diz nada até cairmos todos inanimados em nossos dizeres.

Há qualquer coisa muito mais vasta que todas estas tomadas de posição. Quando tudo nos começar a fugir como destino, devemos ter a circunspeção que nos possa fazer entender este novo mundo modificado.

28 Mar 2025

Um libreto de perdição

Alguns de nós pertence àquela geração que passava as férias de Verão a ler «Os Cinco» e eram tantas as aventuras, tão perigosos os caminhos, tão suculentos os piqueniques, que engordávamos pelas descrições muito inglesas daqueles deleites nessas tardes onde ninguém queria saber de nós para além do essencial, mas queríamos exactamente como nestes livros, frascos de compotas, sandes, leite, ovos, bacon, pão e scones.

Por cada passagem, depois de descobertas as fontes criminais, apetite redobrado e toalha no chão. O quinto elemento deste grupo era um cão que tudo anunciava, previa, e instigava os petizes. Aquilo era tão hipnótico que nunca soubemos o porquê da Zé querer ser um rapaz. Agora à distância poderemos falar de uma personagem andrógina que jamais se vinculou ao seu género feminil, onde Ana, híper-sensível, denotava um padrão mais intuitivo que se impunha a um grupo altamente apaixonante e disfuncional. Poderia ser um libreto para o pentágono perturbador de uma realidade nacional que culmina sempre em cinco mas jamais com ânsias infanto-juvenis. No entanto, é bom lembrar que há ainda um muito recente e tresloucado Sebastião que caberia nesta prosódia onde quinas e coisas estranhas se encaixariam na perfeição.

Estamos em Março e lembramos como se a vida fosse uma eterna primeira vez. Depois disto vem logo Camilo Castelo Branco, e tudo se encaminhou para outra tónica bem mais radical que uma qualquer aventura entre primos, férias, contrabandistas, e é aí que entendemos que uma etapa acabou para entrarmos noutra, mais grave, complexa e ferozmente apaixonada. Damo-nos conta que as aventuras nunca nos fizeram chorar, mas que os nossos membros em crescimento e a dor de tudo isso, pela primeira vez destilam outras lágrimas que trariam também aquele elemento desconhecido que é o primeiro amor. Entrávamos na puberdade com um livro em chamas: «Amor de Perdição».

Para não magoar os inúmeros “camilianos” de passagem pelo seu aniversário, vale a pena recordar neste instante Alexandre Cabral, e também o libreto de António S. Ribeiro, uma peça baseada no romance que fez estreia no Teatro de São Carlos em 1991, que é de facto uma preciosa síntese da narrativa de um cárcere que teve de alongar os fios condutores de um tempo morto na masmorra: os diálogos preciosos trazem-nos à ideia todas as passagens do romance e deixam-nos num assombro que já não esperávamos. As leituras nesta releitura tornam-se intérpretes da mesma voltagem. Integração, desintegração, e o texto continua. E é aqui que começa o acto literário: já não falamos das nossas vidas, das emoções, das coisas, mas de um arquétipo abstrato, sensível e maior que produz uma metalinguagem passível de nos interpelar como uma vibração humana que só um grande autor sabe como conduzir.

Foi a golpes de fero destino que Camilo acorda para um processo amoroso absolutamente monumental onde as feridas mais tardias de Ana Plácido sempre serão coisas menores. Foi essa dimensão entre o amante liberal, boémio, jovem e belo, e a seiva graciosa de Teresa de Albuquerque, refém de absolutistas e seus reacionários dirigentes, que o drama se dá como vitória de elementos desencontrados. O mesmo país que não permitia o amor continua estranhamente sem saber amar. Este amor é um acto de unicidade e dele devemos colectivamente tirar as devidas elações. É também a ternura da fresca Primavera da vida que faz dos desejos uma lei maior, mas…: e é aqui que esbarramos com a dúplice condição. Que faz Mariana como elemento deste enredo? Estamos na presença de um grande arquétipo sacrificial. Camilo nunca deixou de ser polígamo, e o seu transcendente desejo de ser amado encontra por fim a vítima preferencial.

Amiga! Minha amiga!

Agora toco-te e tu és real

E queimas mais que o delírio antigo.

Agora olhas-me e eu cresço

Cresço alto e muito

Mais que a espuma do mar!

Simão Botelho partiria para as Índias numa madrugada de 17 de Março, Teresa Albuquerque morreria, Mariana segui-lo-ia até o Oceano lhes servir de mortalha. É de facto um monumental instante. Camilo Castelo Branco era um profissional da escrita, e não um “parvenu”. Escrever é uma profissão, e por isso nada é mais digno que o seu exemplo feito de forma absolutamente talentosa. Todas as considerações morais distam agora de um espaço de duzentos anos, e o mais impressionante é ainda o termos de saber de todas as paralelas outras coisas.

Quando perguntam; és um robot? Digo não. Somente por ter lido «Amor de Perdição».

19 Mar 2025

Planeta X

– Cada homem tem diante do alfabeto o número exacto de filhos que deveria conceber antes mesmo de aprender a sua composição linguística. Mais tarde ao comunicá-los deveria ter direito a interjeições na nomeação progressiva dos petizes que não tiveram culpa dos ululantes efeitos que determinariam seus sistemas fonadores, mas como esta trapalhada se passa toda no tempo das luas, que tal em numerário? Por exemplo, 31! Há mesmo um fado assim, e só agora compreendemos tratar-se de um feto desenvolvido quase à beira do 39. – Mas está bem. Que seja X.

– Quando falávamos com os deuses havia um altamente germinativo, Júpiter; ele era o rei do Olimpo e fecundava Gaia em todas as dimensões e por isso foi tido como o real e benigno ser da multiplicação, o rei dos deuses, um impetuoso expansionista que cegava as capacidades parentais e as alienava como se fossem ainda um dos seus dons. Nós estamos em crer que toda esta força foi depois incubar nos rebanhos guiados por gurus masculinos que trariam um grande reino de fraternidade para todos os irmãos, maravilhados por partículas e seivas com dispositivo de grande alcance que cobriria a Terra inteira em graus, sistemas, organizações e impérios, alargando-se em vasta irmandade. Só que não.

– O delírio foi no entanto um alto representante desta estrutura procriativa que fez enjaular os fetos nas entranhas das mães para produzir gigantismos seminais que entorpeceriam ainda a fecunda liberdade do ser: o pai, a criatura ausente, vai plasmar-se no filho que numa sucessão de desesperos o clama e dele não terá resposta. No entanto a beleza deste mito subsiste, intriga, e dele se fez cânone. -Um pai que exibe um filho como mortalha para dizer que ele pode ser especial mas não é o único, só tem uma mãe que estará sempre no centro do seu coração como um selo, onde a transcendência é na sua carne o único vivo processo. Com ele fez caminho por entre o cordão de prata que será a corrente por onde o pai jamais pode passar.

Um pai nomeia- X- a um filho, para o expor ainda distante das coisas dos homens, mas já nomeado para ser dele o cordeiro sacrificial de um emblema de passagem, um tributo da sua nova era germinal com robusta tendência para o infantilismo, e nesta perspectiva um velho enunciado se insurge – A. W- que filho deve ser mais notado enquanto interjeição que interrogação, podendo ser mesmo um acrónimo paterno. Somente as mães os chamam por seus nomes e “petit nom” que faz do filho um agente memorável de dicção fonética tão próximo do sentir poético. Elas dizem ainda: o meu Jesus, o meu João, o meu Simão, o meu Manuel, nunca lhes ocorrendo o ronco seco de qualquer signo alfabético. Ur! É muito bonito e seria perfeito o Pai lembrar.

X é filho de um pai de Marte que já ultrapassou os nove rebentos, que este planeta é o nono do sistema solar, e ainda o ditado muito português que diz «ir a nove»: a sua existência já fora prevista a orbitar nos confins do sistema solar e foi rápida trazendo logo de seguida o planeta Y. Vamos supor que estamos diante de um representante dos planetas solares existentes que perfazem vinte e quatro como o alfabeto, querendo dizer com isso que o acelerador de transmissão genética ainda vai a meio e que o visionário homem de Marte espera alcançar. Nós, chegados aos doze, desde os Alfas e os Ómegas, andámos muito parados sem capacidade de resolução, e vem agora X e Y e Z, de um Marte recuado onde sonhamos colocar os pés sem delongas de complexas nomeações. Que todas estas órbitas só podem ser explicadas se tiverem sob a influência de um planeta desconhecido. O que vem aí pode ser mudo.

– Há uma Estrela paralela ao Sol que é preciso descobrir. A sua linguagem será nos alvores da consciência, telepatia. Quando isso acontecer também estas palavras já serão ruido.

Outrora havia ainda um gato chamado Chi, mas estávamos na presença de uma composição muito oriental que nos revertia para a harmonia. O das nove vidas.

12 Mar 2025

A hora do diabo

Por incrível que pareça é um conto de Fernando Pessoa em folhas soltas não datadas que em boa hora chegou à Biblioteca Nacional e foi estruturado e numerado para que tivéssemos uma janela de conhecimento atento e renovado deste pensamento modelar.

Quanto ao título, é sempre de cariz contemporâneo e de carácter permanente. Estamos a atravessar um tempo assim com características dinâmicas, surtos de inequívoca falta de lucidez e diminuição dos níveis de discernimento onde empoderamentos vários atiram os diálogos, as vozes, e conceitos de civilidade para patamares que não são mais que danações. Em assuntos de seriedade máxima temos sempre os grandes poetas, e nessa fonte clara, poderemos saber do ontem, hoje e amanhã, enquanto nos encontrarmos por cá em sucessivas vagas de encantamentos e flagrantes repetições a um vínculo demasiado telúrico que parece sempre sobrepor-se à transformação para um mais alto patamar de consciência.

As lacunas que precisam ser corrigidas a um texto assim, faz de quem o trabalhou um verdadeiro «chef d´ouvre” algumas páginas são manuscritas, outras não, o título passa de «Hora» para «Noite» e nalguns casos folhas não encimadas requerem enquadramento vigilante para não danificar nenhuma alusão ao seu carácter de mensagem, isto para não dizer que passar de uma língua para a outra em arcaísmos consideráveis, pode ser de facto um processo imerso em pura filigrana para que nada fique de fora. Talvez que estes grandes poetas se abstenham de arrumar e compilar bem os seus dados, e na imersão de uma criatividade que os supera, deixem, e muito bem, para outros, o trabalho burocrático da retificação. Se acorda, se não acorda, se se transforma, é aptidão logística, mas escapar ao fluxo criativo, inventivo, e neste caso, visionariamente perene e repleto de analogias civilizadoras, seria um mecanismo menor estar-se agarrado a uma qualquer consequência métrica. Talvez estejam ébrios, desligados, opiados, na busca da ideia em caracteres vários, sempre imperfeitos e irregulares, e mesmo assim, e passe as incongruências, a língua para ser entendida só deveria ser trabalhada por poetas.

O que mais se assemelha a esta “fila do pão” que o Diabo amassou, é uma antiga correspondência ao Mago Merlim, que ao não ser aludido, mesmo assim se encontra presente ao longo de todo este trajecto, um acontecimento que se produz na rua do Carmo onde por si mesmo está distante de uma qualquer fantástica existência, mas onde o Diabo resolveu para não morrer de tédio abordar uma jovem lisboeta, ter com ela uma interessante conversa, e mais tarde, quem sabe, por obra do Espírito Santo, ela engravidasse sem que aparentemente se tivesse passado nada. Neste encontro, o púdico Diabo, crê já a ter encontrado grávida, mas o embrião revolvera-se e despojar-se-ia talvez de um inútil marido dessa Maria, para ser filho de um transeunte enigmático: de facto, essa mãe sempre estivera como as suas palavras o proferiram, na presença de um cavalheiro. E retorquiu-lhe ainda o viajante «que homem pousou sobre teus seios aquela mão que foi minha? que beijo te deram que fosse igual ao meu? nas tardes de sonhar, não viste passar, no fundo dos teus sonhos, uma figura velada e rápida, a que te daria toda a felicidade, a que te beijaria indefinidamente? Era eu»

Todo este trajecto numa noite de Estio em uma cidade pacata, olhamos apenas para o reflexo da alma de um condenado com um labor inigualável para o encantamento, uma disciplina vigorosa, e um erotismo transbordante. Seguimo-lo de perto como se de um sonho se tratasse na voz do filho que mais tarde se recordaria entre mundos de o haver escutado, como se o verbo que pronunciara se tivesse feito carne.

E porque são estilhaços

Do ser, as coisas dispersas

Quebro a alma em pedaços

E em pessoas diversas.

Um testemunho bem mais requintado que a «Metamorfose» de Kafka, e longamente sentido como estranha confissão. A nossa heroína é no entanto a grande criatura, quando volvendo para ele os olhos marejados lhe disse: – Sabe? Tenho pena de si- Eu também. É de facto uma obra que só um homem pode escrever.

4 Mar 2025

Ano da serpente e ofiússa

Lunar, o calendário chinês não deixa margem para dúvidas que ao conquistar o mundo imprimiu em nossas vidas arquétipos adormecidos e características marcantes onde todos ganhamos nessa vasta esteira de culturas e civilizações. Há já algum tempo que também festejamos este ciclo extremamente belo e iniciático como se incorporássemos mais um rito àqueles conhecidos e deles nos tornássemos cúmplices e por isso mais fraternos.

Começa na primeira Lua-Nova do calendário gregoriano aprovado pela China em 1912, e como de um calendário lunar se trata em seu bestiário, ele reinará por um ano a Oriente, enquanto nós, vamos ainda demarcando mês a mês o código astral em nossas Estações onde o ponteiro roda em ciclo solar. Existe porém neste novo ano uma chamada de atenção para as nossas ancestrais raízes numa fascinante e estranha simbologia, que quanto à parte tangível, há ainda que saber diferenciar uma serpente de uma cobra.

Ofiússa ou a Terra Das Serpentes! — Pois bem, assim foi denominado pelos gregos em tempo muitíssimo remoto o actual território português, a terra dos «ofis», um povo montanhoso que vivia mais a norte indo até à Galiza e que provavelmente se situava também na foz dos rios (foz de Ofir).

Para os gregos este local era no mar desconhecido, mas Ulisses, o bravo herói, não se deixava amedrontar pela vastidão marítima, e crê-se que aportou nestas costas, e tanto ele como seus homens ficaram estarrecidos pela beleza destas terras, onde se crê, reinava uma rainha de vontade indómita com aparência de serpente, fascinante, sedutora, e extremamente afável para os que descobriam o seu reino vindos de extremidades distantes, ela parece ainda uma espécie de Urizen quando do alto das colinas onde hoje é Lisboa, dizia: «Sou eu rainha para toda a eternidade». Mas, e não raro, os fascinantes também se apaixonam, que ao ver Ulisses, caíra na própria armadilha da sua carga magnética. Ulisses, que agora à distância nos parece ter sido um homem difícil, recusou-a, mas não sem antes por amor ao local que considerou o mais belo do mundo, o ter nomeado de Ulisseia, em pleno território da Serpente, a magnífica.

Muito mais tarde quando o manuelino imperou, nós iriamos recuperar esse condão lendário em cordas -serpentes aladas- correntes que sobem, fios que descem, círculos e sinuosidades, encontrando de facto uma das mais eloquentes manifestações artísticas que impregnaram o nosso olhar e jamais nos subjugariam a uma linha recta.

A perfusão de todo este elenco para se colocar de pé com os pesos que uma certa horizontalidade transporta, talvez tenha sido, e é, a deriva da Serpente que em nós se não esgotara (que no fundo sempre fomos muito pouco góticos). Na modalidade psíquica foi diabólica, e poderemos sentir-lhe ainda a inércia, a falta de critério que devora tudo que lhe sai ao caminho, e essa paz medonha de quem se crê hipnótico, características próprias de demónios a “rebentar pelas costuras” com pupila sagaz para um estranho rastejar que não é subserviência mas uma incrível e tenaz produtora de “venenos”.

Também a arquitectura octogonal que nos foi tão querida nos remete para o bastão de Mercúrio e suas duas serpentes entrelaçadas que ao formarem inúmeros oitos quase desaguam nas nossas muito ilustres Capelas Imperfeitas. A razão por terem sido nomeadas assim, prende-se, quem sabe, a esse estranho mundo sem abóbodas, tectos e telhas, que nos remete para um movimento anti-foguetão e a uma impressão que se inscreve na mandala do infinito sempre em círculo, que afinal, tudo no vasto universo parece serpenteante. Quanto a nós, ao sermos dúbios não significa ainda ser maléfico, cabemos na dualidade e mutabilidade das nossas percepções, mas o que outrora nos fora propostos era mesmo uma triangulação que superasse a definição redutora de um certo conceito binário.

«Ophis» em grego, mas também a vara de Moisés nos indica que um objeto estanque e a direito se pode converter numa outra coisa quando se transforma em flexibilidade e superação. As serpentes gostam de leite, e há passagens belíssimas de como respondem ao chamamento de terrinas repletas, como aquelas que Ernst Junger nas «Falésias de Mármore» nos descreveu, dizendo que se dispunham nesse banquete fazendo um ardente símbolo solar.

Quem nunca a viu diante de si? Caleidoscópica… fascinante…imprópria, mas nunca banal. Afinal, nem foi ela que matou Jesus, ao que consta, apenas lhe fez companhia. Quem o matou foram os homens.

Um grande Ano para o mundo.

12 Fev 2025

O rosto de Dom Dinis

Fez agora setecentos anos a sete de Janeiro que faleceu o rei mais emblemático de um país ausente de feições e formas, que em termos estéticos e anatómicos nada poderemos considerar emblematicamente representativo, ou mesmo sonhar a forma física de certos muitos outros representantes, mas com ele, aconteceu. Vimo-lo como a um Janus renascido no tempo (deixando no entanto para trás aquilo que poderia ter sido o seu jovem rosto) e foi com alguma comoção que o olhámos, e isso não se apagará da memória colectiva que jamais foi alheia ao seu encanto.

Dom Dinis é um pouco como as lendas e que tenha um rosto enche-nos de empolgação e estranho entusiasmo, que, no dia exacto da sua hora grave, ali o tínhamos. A região que o coroou está porém repleta daqueles rostos, aquela costa atlântica de pinhal e litoral é emblemática em parecença fisionómica, e estas coisas são comoções a acrescentar ao muito impacto do momento- ele vinha de uma bruma que as de Avalon talvez ainda reclamassem – e tinha a serenidade incontestável de um poeta.

Um monarca pode ser, ou não, sereno, numa perspectiva política, estatal, portanto, mas nele sentimos-lhe uma outra coisa que não vem nos mapas das referências do seu próprio estatuto. Diz a lenda que era ruivo, mas o que nos chegou, foi aquele ser do século XIII que morrera com sessenta e três anos, uma idade considerada de grande longevidade para a época, que seu corpo sepultado não representou como é claro o outro homem que fora, e foi a imagem possível retirada do seu sepulcro de Odivelas que nos chegou como uma estranha aparição que nos silenciou e nos obrigou a uma sentida vénia.

Os seus olhos azuis, que dizem ter tido reflexos esverdeados, os seus cabelos brancos de louro esquecido, foi o que nos restou e deslumbrou: e se retratássemos o seu avô Afonso X o Sábio, iriámos buscar as mesmas subtis características que fizeram de avô e neto a harpa por onde ainda hoje os nossos corações se alinham. As Canções de Santa Maria também devem ter estes olhos azuis, que Aragão em sua insígnia fúnebre ainda foi sua sepultura, e isto tudo nos deixa, claro está, bastante pensativos. Ele foi o sexto rei português, e nunca as quinas poderão exercer ordem tamanha na demanda da sua numérica. Talvez tivesse sido a nossa Estrela de David sem os recentes aspectos que a definem, quando ainda, e amorosamente, chamou para si «os seus judeus». Também chamou os mouros, templários, e todos aqueles que em seu coração cabiam.

Dirigimo-nos a ele com o respeito intacto de setecentos anos volvidos, que a nossa matriz não pára nas rosas, nem os nossos sonhos são mais livres que a profunda natureza de seu sentido de missão, onde cumpriu e foi senhor, amando ainda por todas as terras de seu reino as mulheres que o inspiraram: onde brotou ainda um Afonso Sanches, um filho bastardo que seguiu as pisadas de um pai que cultivou a língua e a impôs pela primeira vez como língua oficial. Depois teve um neto chamado Pedro a quem dera alvíssaras no momento do nascimento com moedas de ouro e outros recitais para que a sua voz fosse límpida como convinha a um monarca, mas o menino seria mais tarde muito gago, um amante de seu avô, e o mais belo príncipe do mundo.

De seu filho excrementício, Afonso IV, teve batalhas com lágrimas e algum sangue, mas Dom Dinis não fugia aos embates como homem de seu tempo, e sua natureza de gesta deve ter sofrido com a rudeza e os golpes destas coisas. Ele nasceu a 9 de Outubro de 1261, foi aclamado rei em 1279, e morreu em 1325 neste 7 de Janeiro tão cheio de más memórias. Nós devemos lê-lo para saber cantar, conhecer o verde, cheirar os pinhos, e saber construir as novas embarcações. Tinha ainda um perfil truculento, nariz grande e semblante terno e tenaz. Mas a centelha que emblema os seres nenhuma ciência ainda sabe como reproduzir, identificar, e mostrar enquanto domínio pragmático.

– O amor como guia «ai deus e u é» –

21 Jan 2025

Merlim e a bruma

Há reis na Terra que foram Magos distantes de nós por milénios de areias que os cobriram de encanto e simpatia, e há ainda um Prestes João no fundo dos desertos, mais mítico que terreno, que ainda nos interpela no seu jorrante reino do sol, um reino copta a quem os nossos antigos navegadores prestavam culto, mas um Mago todo envolto em brumas é para nós um outro roteiro. Nós habituámo-nos à cultura do deserto, às suas lendas e peles escuras, e quando nos acenam com a magia das culturas do frio ficamos temerários. Pois bem, essa nossa desconfiança não passa de uma disfuncionalidade de latitudes, que tudo se interliga numa mesma noção para que renasçamos dos códigos fechados da estreita razão, das guerras, e dos ciclos dos tempo demarcados. Quase dia de Reis – os Magos- mas um outro ressurge imponente e fecundo, Merlim, que não era rei, mas tudo nele era a consciência de um outro.

Aqui, estamos em pleno Ciclo Arturiano com toda a beleza das brumas de Camelot, estamos no século XII entre os Cavaleiros da Távola Redonda, um reino celta povoado de «Aves Brancas» no lindíssimo poema de Yeats, num tempo gaélico, feérico e brumoso, e toda esta saga nos impressiona como se alguma coisa tivesse que ser complementada a esse mundo sem sombra de onde um Cristo saiu, e dar-lhe então a medida vegetal de uma natureza mais além; estamos literalmente nas nuvens “e não na nuvem” e aqui se reflecte o dom insofismável da beleza da ideia, mesmo que as divinas criaturas nasçam de formas estranhas com paternidades opostas, que neste acrescentar de factos poderemos estar bem mais perto da essência enigmática do cristianismo.

Já Fernando Pessoa nos tinha dado «A Hora do Diabo» nele, uma senhora subia a rua do Carmo quando foi visitada por estranha personagem que lhe dissera que nada tinha a temer pois que era um cavalheiro. Talvez que Pessoa imbuído desta natureza saxónica tivesse ele mesmo experimentado a delícia de um Merlim na sua qualidade de pai de ninguém, ou aligeirado um certo amor que sempre sentira pela criminologia, esse outro não menos grande distintivo poético.

Nós temos pela voz de José Régio uma grande abundância de fluxo a este nível, mas creio que não lhe demos a devida atenção, e agora muito menos, já que interpretar é substância que tarda ou mesmo se evola para níveis tão distantes que quase desaparece, que num dos seus poemas magistrais «o Cântico Negro» encontramos de facto uma impressionante memória remota desta consciência que viria a esculpir um reino tão feérico quanto improvável que ainda nos habita, a nós, que quase passámos incólumes entre ventres e seivas, dando a tudo papéis suplementares para as mães (a quem depreciativamente Pessoa denominou de malas) mas onde nada deles sobejaria se tivéssemos de reescrever toda a história.

Mas eles quem? Um Cristo e um Merlim. Um nasceu de uma Virgem e de Deus, outro de uma Virgem e de Satã, e Merlim foi Mago, Jesus um Cristo, e ambos estão ao comando de multidões. Estamos no reino dos Druidas que quase nos parece uma representação de Saturno, velhos, emblemáticos e extremamente sábios, um legado lendário de anciãos que se oporia por princípio a uma jovial «salvação» exercida por jovens utópicos e sonhadores, que Merlim sempre foi velho e Cristo um jovem homem.

Chegados aqui teremos então uma população mundial, mas sobretudo ocidental, envelhecida e escanhoada numa labiríntica adopção do Mago. Artur quase desaparece, Geneviève pode ser cúmplice erotizante de um outro ardil, e a fada Morgana um alter-ego que subitamente se cale. Lancelot, esse, já não salva ninguém: estamos na presença de um taumaturgo que guardou os segredos por onde o grande herdeiro do Norte deverá agora passar.

De acordo com a profecia, Merlim era o filho bastardo da princesa Real Dyfed, o pai é tido como um anjo que visitara a princesa real, mas todos desconfiavam que era um espírito mau. “Quando ele nasceu, as mulheres tiveram medo dele, pois era um menino grande e muito cabeludo. Nunca elas tinham ajudado a vir ao mundo uma criança como aquela. Entregaram-no à mãe, que fez o sinal-da-cruz ao ver o seu rebento. Meu filho, você me assusta. A nós também, disseram as mulheres”.

Mas sempre será melhor um filho que nos assuste e nos faça fugir para todos os Egiptos do que um irresponsável que apenas venha de modo menor ocupar a cidade.

8 Jan 2025

O sonho de Calderón

Calderón de la Barca é já por si um nome que nos remete para uma área de fábula – uma barca, um caldeirão – receptáculos de travessias e alquímicas transformações, assim se nomeia este nomeado que adjetivamos sempre com prodigalidade, talento, vida longa, saber e carisma, que o tornaria o mais ilustre escritor barroco e o elevou a uma referência mítica da sua Idade de Ouro, deixar de o ver é como ficar cego, deixar de o cumprimentar um descuido civilizacional de desleixo e descaso, temos o dever de reanimar, de os reanimar dessa imortalidade eterna, sim, onde um nome não seja somente a pedra de um sepulcro ou uma circular nas ruas das cidades.

Com ele e com Lope de Vega nos iremos então encontrar neste breve encontro, que a vastidão de que deram provas é inibidora de grandes descrições, e devia até existir um Teatro só para vogais quando fosse necessário mencioná-los; La Barca seguiu Vega, transformou, desbastou, colocou o centro que estava na periferia e nasceram então as maças de ouro das Hespérides, que no meio de muita folhagem perdem-se os tesouros.

Estamos no século XVII, onde nasce logo no seu início em 1600, e percorre-o durante os reinados dos nossos Filipes, estamos no coração do barroco e a sua contribuição foi o emblema do género literário que fez galgar Espanha para a mais alta esfera cultural do mundo, que sem ele a Península Ibério seria um retalho abstrato de grandes poetas, sim, mas faltando-lhe o selo da mundialização.

Devido à sua formação teológica, e outras, mas sobretudo esta, a retórica foi-lhe um domínio persistente, incutindo nas suas obras esta capacidade que abrilhantou diálogos, impôs caminhos, e intelectualizou a escrita para um patamar rigoroso, imperioso e requintado, era um providencialista e talvez um pessimista dado que a ausência divina seria para ele a permanência desta nossa vida, seguindo-a sempre, compreende que jamais desvendaria o seu significado final.

É com ele que a cenografia alcança um lugar até então desconhecido numa unicidade de todas as artes em confronto, ele vai escavar, desbravar, e levar ao rubro barroco a alternativa que se encontra em todas as coisas. E foi em seu nome que alguém se lembrou fazer já em pleno século XX uma celebração à Espanha de Calderón como uma supremacia latina face à ” barbárie germânica”.

A dramaturgia é uma vastidão. Um trabalho que nos interroga, afinal, o que andamos nós a fazer, ou que pessoas eram estas, porque, porquê e como.

E voltemos ao iniciado «A vida é sonho» a peça teatral que viu o seu dia em 1635 e nos fala ainda sobre o abuso do poder, a desesperança, e de nossos maiores medos, que longe de ser a morte é o provarmos que existimos. O medo aciona em nós o mais primitivo instinto, daí a muralha global dos « fake news» posta a esparramar no plasma virtual a alavanca motriz dos avanços dos radicalismos. Estamos presos como Segismundo.

Mas a grande alvorada sempre vem, não há noite para sempre, e por vezes conseguimos entrincheirarmo-nos nos atributos daqueles guias mágicos que não cessam de chamar nestes tempos bárbaros a nossa atenção. A equidade é tão grande que nos remete ao mito da caverna, mas mais tarde ou mais cedo descobrimos quem somos e que não vale a pena o frenesim da alienação. O servo do pai é um agente extraterrestre obrigando a desorbitar o apego atávico dos clãs e das tribos, compostos ainda nesta estranha Idade da Pedra.

Acordados dos sonhos, os sonhos são ainda a impressão digital que nos informa que vencemos etapas gigantescas e a vida é o que avança sempre no momento, que o cálculo enquista e a dor amarfanha, só quando é grande ela se liberta do arrastar de sombras do habitat antigo, se transmuta e transforma. Saturnino rei da Polónia neste memorial de horrores, chegou o teu fim, que pais são castigos.

Todos sonham o que são

No entanto ninguém entende

Eu sonho que estou aqui

De correntes carregado

E sonhei e noutro estado

Mais lisonjeiro me vi

Que é a vida? Um frenesi

Que é a vida? Uma ilusão

Uma sombra, uma ficção;

O maior bem é tristonho,

Porque toda a vida é sonho,

E os sonhos, sonhos são.

LA BARCA

13 Dez 2024

E. E. Cummings

Desarmar, recriar, inventar e dar à língua um fôlego renovado, é a missão mais comprometida de um poeta, que recriará novas semânticas e valências a partir de um equilíbrio constante em seu não menos intenso labor. Cummings acaba por agregar todos estes atributos numa obra que muitos consideram deveras desconcertante.

Vejamos que a nível do grafismo e dos sinais de pontuação começa por subverter toda a composição estabelecida como correta, expondo desse modo o leitor a um processo dinâmico para seguir a composição; não é fácil, e por isso se torna apaixonante seguir a desconstrução aparente de uma ideia que vem em estilo poético, mas que parece absolutamente legítima, que é o de buscar para o centro do labirinto o próprio leitor, que como muita gente sabe, é um agente passivo à espera de projectar os seus anseios no tecido da escrita que outros fizeram.

Estamos nos anos vinte do século passado e as vanguardas estão na ordem dos dias, onde ele ocupa um espaço dominante, e é no embrião do Surrealismo que edita o primeiro livro e integra os primeiros movimentos do século, mas desviado de um certo estruturalismo, e sua marcha não foi fácil, sua aceitação, difícil, e a nível da publicação sofrerá ainda interditos. Só a partir dos anos cinquenta vai existir um alvorecer instigado pela poesia concreta que lhe dá asas tendo a reciprocidade deste vínculo uma importância decisiva. É considerado um dos mais inventivos poetas da linguagem, e isso, é trabalho que terá de ser feito sempre por poetas. Ou seja, pela estrutura da sua natureza, que quem quiser escrever “poemas” terá toda a liberdade de o fazer, evidentemente, que de escriturários autores estamos cheios, e seus sentimentos eles que os sintam. Falamos, claro está, de outra coisa.

Há coisas que por mais que nos consumam atenção, seguidas logo como moléstia pelo tempo perdido, vamos recuperá-las em pequenos prodígios como este [não te importes com o mundo, com quem faz a paz e a guerra, pois deus gosta de raparigas e do amanhã da terra] e estamos lavados das imundices. A linguagem pode ser imunda, sim, sem nenhuma retórica escatológica para movimentar os paralisados da ordenação correcta acerca daquilo que se deve ou não dizer. Deve-se e pode -se dizer tudo, a diferença está somente naquele que sabe fazê-lo. A língua portuguesa, essa, está entregue a uma minoria tão silenciosa, que pensamos que sejam seitas telepáticas em confronto com as vicissitudes da linguagem tangível dos quotidianos acontecimentos.

E por falar em telepático, há muito que não viajava por E.E. Cummimngs (aliás, até o nome é todo ele repleto de minúsculas e maiúsculas como se nos baralhasse o sentido intitular, que o aparelho fonético aderiu tanto ao cérebro que “chuta” para trás o que lhe é estranho mencionar) não é que me caiu aos pés, impulsionado por movimentos felinos, o seu livro de poemas?- Tudo junto, livrodepoemas, exatamente no dia 14 de Outubro que o acaso quis fosse o seu aniversário. Tinha sido em 1894. Aqueles instantes onde a linguagem continua, e falamos. Mas falamos como, de quê? Nestes casos pode ser uma certa “aeroglifisação” que nestas coisas o poema é sempre mais adiante, e acontece pronto.

Morreu com sessenta e sete anos, tão perto de ti, de mim, de nós…

13 Nov 2024

Stultifera Navis

Designar a loucura não é tarefa fácil, e muito menos está isenta de preconceito, a sua lata complexidade que ao longo do tempo também foi mudando, terá de nós humanos os tratados mais apaixonantes de que há memória. Falar dela é mencionar o parente comum que nos une, daí que toda a sua soberania que alguns ilustram, mais não seja que um alto grau da sua consciência. Parece quase um paradoxo, mas sim: a loucura tem consciência de si mesma.

Reportando-nos a exemplos simples, aqueles que sempre nos parecem os mais lúcidos, tempo houve em que os loucos varridos não tinham nem hospitais, nem prisões, e a sociedade embarcava-os para lugares remotos, mas não muito distante ele se encontra de um país que só tinha “embarcadiços”: poder-se-á afirmar que eram os que estavam junto à costa, mas a costa tem também as costas largas, e o que se viu realmente é que se foram de facto quase todos nos embarques, ficando os mais bisonhos em terra firme produzindo de forma metódica graus de loucura que somente não foram navegáveis, havendo ainda uma estranha ideia que o movimento de um barco apazigua este mal. Que por estas e outras bandas, um louco era só um louco, e não um relapso, um judeu, um mouro, um cigano…era essa outra coisa, tendo a sociedade mansamente ordenada visto em muitos deles elos sagrados. Estavam fora do baralho, que hoje semanticamente apelidamos de ” caixa”.

Todos nós temos ainda muito presente (mesmo que seja antigo) o monumental filme de Fellini – «E la nave va» – de sinopse rocambolesca, cenários eloquentes, onde o espanto de uma ópera flutuante nos segue ainda ao fundo como a mais alta instância da capacidade humana para gerar encanto, e de um romance anterior de Kaherine Anne Porter «A Nave dos Loucos», ou seja, nós reflectimos nestas capacidades artisticamente belas, seus enredos e discursos, que ninguém que não seja imensamente criativo poderá analisar, mas quando nos deparamos com Bosch, bem lá ao fundo deste tempo, conseguimos resolver de uma só vez a subliminar ofensa que a uns destrói e a muitos enaltece. A mais bonita sensação vem-nos ainda de que não falamos de uma Arca, mas de coisas mais tangíveis, como navios, composições flutuantes, barcas, com seres que enfrentam o martírio risível de se verem confinados a si mesmos. O plano de fuga só se deu através de um ostracismo caritativo que a partir do Dilúvio nos faz parecer a todos doidos.

A mudança de percepção acabará por nos influenciar de forma esmagadora «Le bateu ivre» onde Rimbaud nos dá outra perspectiva daquilo que pode ser somente um estado de consciência alterado, e mesmo assim nos convida a entrar em sua matéria poética como taumaturgos. Esta experiência parece contudo quase imperceptível, que todos entrámos nos «Paraísos Artificiais» que pouco ou nada nos dizem da loucura total que habita cada um.

Nostalgicamente nos dirá Foucault: “o barco da loucura não navega mais o rio, ficará atracado, retido e seguro, no hospital. Esta é a grande mudança: o embarque, a partir de então, será para um único lugar: o internamento. A desordem da nau dos loucos, encontrará o frio ordenamento do asilo”.

30 Out 2024

Agosto

A gosto nos encontramos nestes dias quentes de um farto Agosto, ignição, que desde que descobrimos o fogo fomos deixando que ele se apoderasse de nós, e de tão hipnotizados nem demos conta que a Terra arde, conspira, e ele nos hipnotiza em nossa frágil condição. Vivemos numa constante combustão, recriamos círculos de fogo, e nas horas festivas utilizamos o artificial. Não há água de artifício, nem ar, nem terra, porém há fogo, e nessa expressão festiva estamos a louvar o elemento que mais nos encanta.

A partir daquele tempo remoto em que à volta das fogueiras construímos sociedades humanas, cozinhámos alimentos e afastámos as feras, que o fogo é todo nosso em tragédia, festejo e renovação. Ele seria ainda um baptismo para o banditismo atmosférico das mentes inquisitoriais que banharam com labaredas os relapsos, os não-alinhados, e tantos outros que renunciando às águas baptismais seriam purificados pelas grandes labaredas. Foram espectáculos públicos fortemente carregados de púrpura e “santificados” por altas pressões (mais tarde foram as câmaras de gás, bastante escondidas, disfarçadas, mas tendo por base, e sempre, a fornalha)

Agosto honra o Imperador Augusto, e os imperadores têm sempre esplendor, esse reflexo apolíneo, e hoje mesmo nasceu Napoleão ao meio-dia – sol no zénite – e sua mãe disse que fora tão rápido que caiu num tapete com motivos militares e de lá não sairia até pegar fogo a um continente inteiro.

Nasceu de uma rajada em forma de incêndio, que o mês ficou-lhe nas veias. Há que atestar que nestas dimensões olímpicas a generosidade também impera (por isso, imperador) só que a vida está presa à carroçaria das delongas que se decompõem docemente, embora haja seres que entrem também em combustão sentados nos seus cadeirões. Há muitos relatos de pessoas que arderam sem que um fósforo tivesse presente, que os afogados em mágoas são o que mais há.

Mas voltemos o olhar para os combustíveis, as energias fósseis, o arranque ígneo de uma civilização terrestre que se funda na travessia de tudo o que arde, e ei-la agora no centro do furacão sem conseguir controlar a paixão que a norteou. Como se o fogo tivesse ouvidos, visão e vida própria, aproxima-se agora de todos nós sem que o saibamos controlar, sem culpa, que ele braseia até à Cidade.

Estamos queimados – vamos à praia – mas os que atravessam desertos também se queimam, embora seja mais fácil as águas arderem que a vasta areia que só pega fogo por guerras sem fim, em todo o caso, curtidos pelas fortes ignições solares, parecemos que utilizamos o ardor dos raios para serviço lúdico. Mas é um erro. O que se passa não é já do domínio estético ou lúdico, é um martírio imposto a uma humanidade como um todo que periga a sua existência.

Pela primeira vez em nossas vidas repensamos os mitos, tentamos interpretar o que falhou pois nunca nos sentimos tão vulneráveis. O fogo avança mais rápido que a ciência, a cidadania, e a nossa mais chã compreensão. Nós sempre iremos insistir nesta tarefa da oliveira dando o seu fruto para nos alumiar a um tempo talvez onírico em que controlávamos o fogo e os elementos concordavam, em que o fogo era luz… mas hoje estamos barricados. Se não arder, aquece. Mas quanto mais aquece, mais arde. Se não vem em superfície vem dos vulcões que prometem estar activos em muitas frentes e fronteiras. Estamos numa caldeira para a qual as mais fundas lendas com suas neblinas já não podem ser interpretadas.

A gosto com o vosso gosto, nos diz Agosto. Que um velho adágio ainda nos adverte como mês do desgosto.

27 Ago 2024

Parsifal

– O Verão no hemisfério norte faz-nos sonhar com nevoeiros, brumas bretãs e povos escondidos no verde-escuro das montanhas em ritos tão longínquos quanto encantados, faz-nos ir até às sombras de um tempo mítico, à ilha das Maçãs, sonhar com reis Pescadores e visitar Morgana; a saga brumosa ajuda a quebrar a intempestiva luz estival com hora marcada para festejos grotescos. E vamos até lá com nossos vestidos de vento e cotas de malha. Parsifal ou o romance do Graal é o «magum opus» de Chrétien de Troyes, trovador e pioneiro dos romances de cavalaria, e toda a sua obra é uma extensa narrativa do ciclo arturiano, a chamada Matéria da Bretanha que este poeta francês do século XII elabora em directa influência com a canção de gesta mas dando-lhe mais elegância na sua busca amorosa que vai desaguar no amor cortês. Ele inicia a narrativa do Graal numa elaboração amorosa até aí muito pouco exercitada.

– Parsifal está unido a uma profecia redentora anunciada pelo mago Merlim como alguém de pouco eficiente, belo, valente, e desconhecedor de realidades em seu redor, coabitando entre várias aventuras sem saber de suas causas e origens, mas com uma chave preciosa, a pureza, sendo por isso designado por cavaleiro sem mácula. O seu casual encontro com o rei-Pescador vai encaminhá-lo para a confirmação da profecia: ele escuta o chamamento de dois homens que estavam numa barca, ajudando-os na travessia vai até ao castelo onde as feridas do rei não saravam, e passa por rituais onde nada pergunta: parte para a corte de Artur com o propósito de voltar ao castelo de Corbenic para indagar finalmente a estranha maravilha daquela vez – muitos procuraram- ele não o fez, e foi então o único que viu o Cálice do Graal. Só perguntando a origem da ferida o rei seria curado, e neste Ciclo Arturiano, ele era aquele que vira o Cálice, e na metáfora do cristianismo o vemos aparecer ainda como um Cristo e seus apóstolos pescadores, que no relatar da narrativa inacabada de Chrétien de Troyes lembrará num memorável trocadilho «pêcher/ pécheur».

– É claro que antes do mito cristão pelas terras enevoadas da Bretanha todas estas personagens já se tinham feito sentir, estamos em pleno reino celta onde as vozes da floresta nos indicam que os desertos, embora mais sublimes, são incapazes de esconder os injustiçados e não narram vegetais palavras que ninguém entende, tal como nunca se entenderá as setenta e duas designações do nome de Deus, porém, há sombras frescas para esconder os que fogem das perseguições do chumbo, que o lugar onde Merlin desenhou um círculo era apenas um outro pedaço de terra que também recebia sol. Se Morgana é emblemática, Madalena não o foi menos, uma e outra integram a consciência sempre um pouco turva do herói, Perceval era filho de Sir Lancelote, morto em combate com o seu irmão, e só quando conhece a realidade dos factos é capaz de ser encaminhado para escutar as feridas de todos que o porão na via de uma descoberta e da razão do porquê das coisas serem feitas. Parsifal era o menos ardiloso dos cavaleiros, talvez por isso tivesse a componente que seria indispensável para encontrar o que todos procuravam.

– Parsifal é um curandeiro, dito assim, parece mais um mago em busca de uma panaceia, mas todo o seu encanto reside numa certa inocência, em termos de similitude ele será o anti-herói dos nossos tempos, um desconhecido de nós mesmos, aquele alguém onde todos falhamos por excesso de zelo. Porém, ele ergue-se pelos tempos fora, convocam-no, inspira, e Wagner, que até pode ter sido uma má pessoa, mas (fundamental) um grande artista, vai buscá-lo para nos deslumbrar de beleza que afinal esta nossa humanidade transporta. É inspirado o drama musical num poema de Wolfram von Eschenbach. Foi a sua última obra, como Oscar Wilde no De Profundis. São os cenários redentores.

(E quando nas Olimpíadas aparece a barca de fogo sobre as águas com aquela voz cristalina em «Imagine» todos ainda julgáramos ver o rei Artur na sua última morada)

21 Ago 2024

Olímpicos

E entramos numa musculada semana de força e beleza, treino e competição, um momento muito afeito a marcas de perfeito domínio, mas já desfeito daquelas singularidades por onde os deuses expressam a sua confiança na humanidade. Estamos expectantes, atentos, e até com alguma preocupação, que o seio da Europa não é uma competência com que possamos contar, e o momento bastante difuso, instável, e França um palco mundial para o Ólympos (grego romanizado) mostrar grandiosidade.

Vamos então para a cidade Luz que o inferno também ilumina os que transgridem para a direção do fogo, e pensar no Monte das distantes colinas onde o ponto mais alto dava pelo nome de Miticas. Já vimos aquela animação exemplarmente bem-feita onde os arquétipos funcionam na medida grande num florescente panteão na esperança de que ” esse assento etéreo” nos inspire e acalente no tempo inqualificável do mundo.

«Os deuses tiram quanto dão. Ter é tardar.» Olímpia já não mora aqui, e todo o nosso jogo é um plasma a ser visto sem altar, que o mundo não altera nada à sua natureza de vórtice em busca de diversão em escalada, que ao passar para Delfos mais nenhum mistério acrescentou aos desígnios singulares dos heróis. Eles começaram em Olímpia no ano 776 a.C., tendo por designação Olimpíada – que um monte, é só um monte, e Olimpo uma morada. Agora Páris volta para o seu jogo de Tróia, onde Paris por estas horas já é uma cidade sitiada. Vamos assistir. É Verão e os corpos transluzem, tornam-se formidáveis, e mostram que os deuses habitam ainda dentro deles e a chama já está acesa para o momento. Outra vez a velhice a cobrar danos entre as Nações ocidentais, que um Papa veio há um ano a Portugal, velho e feliz, para uma jornada de juventude onde ninguém reparou na idade e com tal pugilismo que remetemos até para a face apolínea da era estival. Em nossa escala foi apoteótico, podendo ser designada como uma Olimpíada inesperada tão súbita quanto os milagres.

Todos gostaríamos muito de estar em Paris vestidos de branco com coroas de flores e ramos de oliveira assistindo a tão memorável evento, que Paris, por pior que esteja o mundo, é a Cidade. As vilas deram os vilões, as aldeias, os aldeões, mas agora de tão unidos que estamos, sabemos que não nos poderemos esconder no Olimpo que fora outrora forte cidadela, e que em Paris estarão como na primeira festa em Olímpia a mesma humanidade dando um espectáculo para que as tochas sejam distribuídas como fogo sagrado. – Parísios, esse povo gaulês que nunca deixou jamais de mostrar o que neles sempre ardeu de intempestivo e cruente… mas estamos mais com Píndaro de Tebas, o maior poeta grego, o das Odes Olímpicas: (…) nem trovaremos torneio mais nobre que Olímpia… ele estará presente em espírito em todas as Olimpíadas do mundo pois acreditava na sua glória eterna.

Aquilo de que um corpo é capaz, a alma não espelha, mas ele, animado, total e grandiloquente qual poema helénico, nos vai ainda maravilhar pelo espírito. É um distintivo da nossa inteligência, e veículo de dança que só mesmo os deuses concedem. A literatura amante dos jogos tinha certa predileção pela água, e todos pareceram fiéis ao mote de Píndaro.

“O que me encanta é a linha alada

das tuas espáduas, e a curva que descreves…

tua fina, ágil cintura…pássaro de água”

Cecília Meireles

31 Jul 2024

Estilhaços

« …uma das suas cabeças parecia ferida de morte; mas a ferida de morte tinha sido curada. E maravilhados, todos os habitantes da terra foram atrás da Besta»

Apocalipse, 13

Um livro do fantástico encerrará sempre muitas casualidades adicionais e outras que vamos acrescentando, porém, e ressalvadas as devidas comparações, ainda se admitia que a segunda quinzena de Julho traria coisas assim como as relacionadas com a temível estrela Algol fazendo conjunção com Marte e Úrano numa área reservada a partir do pescoço, inclusive. Mas se é certo que a sorte protege os audazes, já o azar nos bate à porta com os fragmentos dos impactos balísticos, que as balas, vá-se lá saber porquê, atingem mais os idólatras, que esses sim, em horas descomunais dão lições de grande abnegação e pura valentia.

Acontece sempre a mesma estupefacção dianta da «Alice no País das Maravilhas» e do monumental livro do Apocalipse, faltando-lhes ali qualquer coisa de sustentabilidade humana, graça, leveza, e algum secreto amor. Mas nem por isso se deixam de revisitar como se fossem tratados das nossas próprias incompetências interpretativas, e não há que iludir a pouca capacidade e desconhecimento que a humanidade tem perante universos que escapam ao dom da sua própria sobrevivência. São dois livros brutais.

Mas o que aqui nos traz é o arrojo do não baleado tendendo a um reino bem mais protegido que aquele de uma rainha de Espadas, um reino trevoso, que tem certamente os seus guardiões e precisa dele para um grande ataque final ao reino dos adormecidos. Aliás, todo aquele reino é já uma derrocada, o amigo, o inimigo, figuras patéticas: exemplos terminais de um estado civilizacional num espectáculo moribundo e senil que não lembra ao diabo.

No entanto, a mal fadada estrela Algol preside à mais temível estrela de Perseus com cabeça de Medusa, essa Górgone que ele decapita com espada certeira tornando-se um semideus benigno e de grande coragem com referência mais tarde na Revolução Francesa – cortando tudo aquilo que ao corpo não pertencia. E as datas são as mesmas. Para os chineses ela foi considerada muito simplesmente como a esposa do diabo, mas a China parece muito distante destes confrontos mediterrânicos que galgaram o Atlântico até ao outro lado. Seja como for, estávamos já a festejar a Revolução Moderna da nossa civilização, mas eis senão quando interrompemos a Marselhesa.

Hoje 15 de Julho, era Júlio César a nascer – e é claro que ninguém faz Revoluções no Inverno – e pensar que nada de profundamente significativo mudou nas trincheiras da nossa humanidade causa em todos nós reflexão e desespero. Ele nasce da primeira cesariana – daí, o nome César – que nesta Algol transcendente, capciosa e total, vislumbramos essa injustiça que os homens não podem esquecer. Há grandes terrores subterrâneos, supremacias tresloucadas, jovens efebos atirando contra velhos decrépitos e malsãos, e punhados de homens amantes esquartejando-se.

Que Trump fosse ferido é sem dúvida de lamentar, mas isso não nos deve interessar; afinal, ele está aí para o que der e vier em todo este imbróglio, e que o outro esteja neurologicamente afectado pouco interesse também transmite, que a velhice se tornou uma constante com a qual todo o Ocidente tem de lidar, mas onde outros bem mais velhos parecem ainda muito mais respeitáveis, isso é um facto.

«Quem semelhante à Besta? Foi-lhe dada uma boca para proferir palavras eloquentes, e deram-lhe também o poder de agir durante quarenta e dois meses»

16 Jul 2024

Biografia do orvalho

Manoel de Barros leva-nos à ponte das Fadas, esse local lindíssimo numa localidade francesa, e no entanto ele é um poeta brasileiro do século XX, um modernista, fazedor de neologismos, que disse apenas ser de uma vanguarda primitiva. É um poeta do mais excepcional que os locais oníricos relembram como padroeiro, um talvez imenso duende que transformou a competência de ser numa alegria imprópria aos atormentados que se alongam nos mistérios sem a abrangência da maravilha. E este é o título da sua demonstração de poeta transfigurado.

As fadas aparecem quais gotas de orvalho aos primeiros raios da manhã fazendo da condensação notas musicais de suavidade quase imperceptível, caiem em ramos e folhas bem ao ritmo das suas intérpretes bretãs e germânicas que galvanizaram os seus feitos que tanto influenciaram a geração poética dos anos 30, estando este estatuto ainda quase imerso num envolvente e maravilhoso pansexualismo. Manoel de Barros foi criador de gado, aquelas culturas, criadoras de mitos, e todos eles se levantavam provavelmente ao despontar da alba retendo o embrião feérico dessa hora: as bênçãos do orvalho são ainda, e mais que tudo, as rosas «rosée» que quer dizer exatamente, orvalho. E quando pelas noites quente de Verão o feminino se delícia com este denominado vinho, é ainda um brinde às fadas que quer transmitir.

O nosso poeta pertenceu na adolescência à União da Juventude Comunista, e num imenso desaire persecutório apenas foi salvo por ter escrito uma coisa chamada «Nossa Senhora da escuridão» que fez balançar algozes e chorar simpatizantes, e só terá sido salvo por esta intercepção vinda da noite.- Já eram as Fadas! Aliás, ele viveu tanto, que só as pétalas das rosas contaram os seus dias. Mas fadas andam por todo o lado! Até Italo Calvino fez uma obra a partir de recolhas folclorísticas italianas para uma abordagem do conto popular onde vemos a importância da sua nomeação: «Sobre os Contos de Fadas» e será impensável não se mergulhar nesta obra com carácter de urgência. Ou então, nunca a conhecer. Vivemos aqui, na Terra, ninguém sabe quem são estes seres, e sobretudo, as novas gerações nem leram contos de fadas.

« Perdoai

Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas»

Pessoa tê-lo-ia adorado neste poema, e como se de grandes feéricos aqui se tratasse, a borboleta da biografia do orvalho é a plena metamorfose do tempo que se transmuta: mas partamos de um paradigma inverso onde a coisa amada primeiro se possui, e só depois a temos de conquistar. A janela está sobranceira aos primeiros orvalhos matutinos, e toda a graça da ressurreição condensada vem por ela, mas o sono fundo faz sonhar com dias outros sem a fronteira de orvalhos que são lembranças de lágrimas não choradas, e caímos então num lodo de finitas competências que não contemplam alvoradas.

«Vertido em seis pratos dispostos em forma de triângulo de fogo, o orvalho é agora exposto ao fluído cósmico, para aumentar a sua força (grego, «rosis»). E ao fundo as cortinas protectoras desapareceram das janelas».

12 Jul 2024

Livro Negro

Há cada vez mais cortejos de fétidas tendências desembocando nas agruras da edição, que provocam calafrios, e um mais que hediondo arbitramento autoral à mistura com editoras que não passam de pólos terroristas do conceito literário e, com toda esta superabudância de vacuidade degenerativa, não andamos longe de uma vingança gratuita feita paulatinamente por todos aqueles que em vórtice convocam as Nações para a morte do poeta.

Só que ele ficará. Aliás, mais nada restará que a visão do Poeta, esse Felino que olha do cimo da Árvore da Vida, frondosa e alta, toda a existência a passar de um ângulo quase intangível – um gato também não dirige o seu olhar a partir de baixo, mesmo em doméstica convivência irá sempre para o cimo das estantes contemplar a disposição humana na arquitetura da sala.

Sabemos muito bem que não somos guindastes, e por mais que transformemos em altura as nossas arquiteturas, fazemo-lo no estrito conceito de casulo, que a vertigem augura sempre na espécie razões de sobra para grandes projeções que se equiparam a Ícaros na ânsia terráquea por se lançarem no sol(o) onde estas agoras gentes não passam de seres paisagísticos, bilhetes-postais para tráfico de venda das suas próprias raízes, onde neste assistir do contrabando auspicioso se espelham ainda com sorrisos triunfalistas que selam o fim de uma civilização por alienação sem paralelo no tempo dos “autores” indutores… Induzimos os seres a sentirem-se estranhos em seus corpos, a procurarem a sua alma, as suas reminiscências, a mudarem, em vez de conservar, corrigir, adaptar. Impulsionamos a desordem biológica, o fim do contributo distributivo da espécie, e há agendas que pagam fortunas para estas manifestações e que esquecem a justiça social de uma outra humanidade explorada nos afãs de um jogo obscuramente propagandístico.

Lemos este embuste como nos tirassem a luz das coisas começadas, dos mais belos instantes em que o espírito ganhou aquelas asas prestes a cruzar o Bojador da nossa ignorância, ultrapassando os nossos medos

E

No Livro

Dizemos:

Nós somos os povos do Livro. Inadiáveis, traumatizados, confusos, hierárquicos, suspensos, em transe. Ele se fez Negro pela opaca interpretação dos séculos, e nós, transgressivos sem causa, muito embora lembrando as fontes remotas da linguagem – esse sopro – língua escrita, fascinante código: chegámos ao atoleiro das frágeis reservas individuais ao serviço de pontos de vista, sentimentos, especulações e engrenagens. Estamos quase a dizer adeus ao primeiro parágrafo do Livro, e numa incongruente, demagógica e infernal tendência do culto da personalidade, ele é agora, e mais que nunca, inundado por pragas bem à porta de um outro patamar onde deve começar a sua acção: a linguagem telepática!

O Livro vai mudar. Esta nossa etapa tão escapatória, escatológica, improvável, vulnerável, não será inscrita na sua proeza, a dos registrados. Para trás, lindos seres, belas fontes, e grandes, todas as experiências…

Mas o Livro é apenas um. Nós achamos que ele é Negro como todos os buracos que engolem galáxias inteiras por este universo fora, mas também há homens que têm medo da penetração tal como qualquer estrela que não deseja dissipar-se, que o ser que penetra entrará para sempre na combustão do desaparecimento. E há ainda no Livro esse insidioso pecado de Onã.

28 Jun 2024

Uivo

Falamos de Allen Ginsberg, o poeta do limite que nunca será fácil abordar, e que um assomo no dia em que nasceu fez despertar sua memória. Pequenos instantes em que os sinais nos interpelam como a um convite. «Uivo para Carl Solomon». Mas quem é afinal este poeta transgressivo, de nacionalidade americana, que vai combater o capitalismo e as normas do seu próprio país de origem? Ele nasceu efectivamente a 3 de Junho de 1926 no seio de uma família judia de Nova Jersey com ligações íntimas ao Partido Comunista por parte de sua mãe que lhe iria transmitir também os transtornos psíquicos de que padecia levando-o mais tarde a internamentos exaustivos onde nunca perdeu a sua imensa intrepidez, inteligência e prodigalidade.

Digamos pois que estamos diante de Ginsberg um pouco retardados naqueles grandes ideais, sentimento radical, cultura profunda, e mal apetrechados para o elo magnífico na cadência das coisas que demostrou ser, nada disponíveis, portanto, para lhe prestar a saudação vanguardista que transmitiu. Com tais pessoas, poderemos apreender muitas coisas por vir- do provir – que nelas sempre nasceram embrionariamente como instinto visionário. Apela-nos o enunciado que não estaremos em presença de hedonismo, intimismo, compadecimentos e confessionalismos circunstanciais, aliás, nem convinha, a ver pela degradação escrita que todas essas características vêm produzindo em quem lê, pensa e sente. Carlos Williams numa introdução a este livro de poemas diz isto: «segurem-se bem às bainhas dos vossos vestidos, minhas senhoras, vamos atravessar o inferno».

Digamos que tal como Pavarotti depois de atuar comia dois quilos de carne, neste «Uivo» até o mais loquaz vegetariano da causa, se imiscuiria, que a fome produz este poema e a carne a mata para se robustecer de beleza tamanha… estranha… onde toda a falha será banida. A arte penetra uma dimensão que não estamos seguros nem de compreender, nem de analisar, que há coisas que não se explicam, apenas acontecem. Desejo aqui cingir-me única e estritamente ao poema, a este poema, que ele foi caleidoscópico na busca incessante de uma modernidade que se iniciou revolta contra todos os sistemas. Seria uma espécie de anarquista? – Também não. Ele foi uma criança comunista, admirador de Fidel de Castro, estudante do budismo, experimentalista voraz, errante, imigrante, anti – guerra do Vietname e de todas outras coisas mais, mas que guardara como íman a loucura a sua herança judaica plena de paradoxos. Ele e Bob Dylan qual “opus ensemble” tiveram em conjunto o seu Kadish.

Devemos por contenção abster-nos de queimar os dedos na transcrição de tais poemas, o Fogo é elemento que inflama até a forma dele pensarmos, mas nele existia ainda em alta combustão a arte de pensar, ou seja, o dom de escrever como se o pensamento mais voraz se não transcrito fosse adoecer o ritmo essencial que requer a palavra escrita, mas nós, todos tão compulsivo- dialécticos estranhamos o que a literatura afinal quer dizer perante desdobramentos assim. Faz lembrar Ângelo de Lima, mas este seria por conduta induzida bastante mais suave, menos escatológico, portanto, mas a beleza dos que passaram por infernos é de considerar como experiência de escrita.

Existe ainda a «Nota de Rodapé ao Uivo» e começa estrangulada: … [ Santo! Santo! Santo…. ] vão ver, cinjam-na, aconteçam-na: Santo o perdão! a misericórdia! a caridade! a fé! Santos! Nossos! corpos! sofrimento! magnanimidade! Santa a sobrenatural super brilhante inteligente amabilidade da alma!

Jamais me será possível decifrar a beleza dos signos linguísticos de poetas assim. De tanta coisa que fez, foi a parte escondida do lobisomem aquela que encantou. Estejamos então mais perto de construir harmonia ao invés de felicidade, transtorno, ao contrário de perturbação, e olhemos as últimas alcateias que por mais que uivem estão agora blindadas por torrentes de sons de indigentes. Faltará uma última nota a tudo isto: ele foi um jovem muito bonito. Tal qual como qualquer lobo.

12 Jun 2024

Opus Magnum

Vimos estupefactos aquele instante de forte voltagem cósmica produzindo na Terra claridade tamanha – dezanove de Maio de 2024 – sem boletim meteorológico capaz de o prever, onde coube ainda a cada um retirar suas ilações ou, tão-somente, mergulhar na beleza do contacto inesperado nessa maravilhosa e cálida madrugada de Primavera, que enquanto êxtase, não poderia ter sido mais intenso. A Península Ibérica fora contemplada por feéricas luzes azuis e verdes como se tivesse permissão para um vislumbre celeste, um rasgão de auroras, uma súbita maravilha, e mesmo assim, foram tímidas as pronúncias e confusos os depoimentos.

Em todo o caso foi de natureza onírica o que se passou em nossos céus tão falhos de acontecimentos excepcionais, e talvez que a alma do Universo nos obrigue agora a depor, de como é ser rasgado de luz tamanha nestes céus noturnos do hemisfério norte.

Os sinais são sinais, ou seja, sinalizam, e eu creio que há sinais dos céus. Até mesmo há sinais corporais quando estamos em caminhos benéficos ou menos bons, quanto mais em esferas superiores em termos de manifestação tamanha! A nossa vida, toda a vida, é um radar, disponibilizamos energia telepática para coordenarmos movimentos e sabemos de modo instintivo dimensionar a textura das coisas sem aludir a grandes factos, que também não saberei dizer onde caiu fonte de energia tal, crendo mesmo que não caiu em lado nenhum. A energia arrefece, quem cai são os corpos.

Acredito que o que se passou foi sem sombra de dúvida uma obra-prima «Opus Magnum» estamos abeirando-nos de uma Guerra que não somos capazes de interpretar, e tudo aquilo que nos acontece nem sabemos já descodificar – dizem uns; sempre caíram meteoros, mas este foi bastante diferente, e se dúvidas houver, delas não me apartarei, somente acrescento grande esplendor de instante feito.

Este nosso refrão está assente em tangíveis etapas que cientificamente corretas acusam falhas, só que a ciência prossegue, é futuro, transformação, e aos poetas a noção de transcendência dos efeitos manifestos. Buscamos nuns e noutros, certitude, esse amplo domínio de precisão, mas quando o inqualificável transborda, são os poetas que têm uma palavra a dizer: não acredito que tenha sido um meteoro, por outro lado, nem sequer deixo de acreditar, que: «o olho no qual vejo Deus é o mesmo olho no qual Deus me vê; o meu olho e o olho de Deus, são um único olho, uma única visão, um único reconhecimento e um único amor» que nesta alquimia os invisuais transbordam de ternura por tudo aquilo que a visão alcança.

Que o azul não nos falte nem a verde composição se deixe de manifestar. Maio pode ser verdejante, mas ondas tão fortes de azul esquecido, nos deu qualquer coisa capaz de achar o mar uma sombra, uma pradaria, um aterro, e os néons artificiais, grosseiras formas de luz. Estivemos assim diante de uma obra-prima, de algo melhorado que parece acontecer só uma vez no espaço de uma época, o factor surpresa não foi visto como grande sinal, mas sentido por muitos apenas como temor. Dito isto, e aqui nas funduras da Terra, o que importa afinal são outras coisas, todas as coisas, tangíveis, risíveis, modelarmente humanas, que ninguém parece receptivo ao acaso, nem ao seu teor vibrante que talvez pareça querer despertar-nos. As evanescentes vozes foram então de jovens para quem os fenómenos são expressos com um misto de sagrado e de deleite, e nas suas vozes entrecruzadas captámos aquilo que falta em grande escala, ser maravilhado, deixar-se maravilhar. Escutando-os: não era parecido com nada que até agora conhecêramos!

« Chef- d´oeuvre» ou a beleza do céu vindo a nós como sinal de coisas melhoradas. Que obra de arte é clarão tamanho em diferentes áreas, que muitos de seus obreiros até se esquecem de assiná-las.

28 Mai 2024

Cernuda

Um andaluz será para o mundo o grande civilizado, não o entendamos como a uma gratificação da espécie, mas apenas enquanto sentimento meridional que tudo reverte em luz, fruto de umas poderosas entranhas onde até a lua toma contornos de vasto clarão.

Esta energia nunca deixará de jorrar nos nossos sonhos pelo muito que a Terra nos deu, fecundou, e fez conciliar em terreno andaluz, seu jardim das Hespérides. Falar dos seus naturais também nos dá prazer, que neles perpassa um denominador comum difícil de ser ocultado pela graça de suas naturezas de um sul enfeitiçante. Luís Cernuda nascido em Sevilha é um dos muitos ilustres filhos da terra que nos deu a alma inteira na sua excepcional poesia. Cernuda é um imenso poeta que nos enche de reverência e encanto.

Nasceu logo no início do século vinte e foi na universidade de Sevilha que teve um professor, de seu nome Pedro Salinas, que o viria a inspirar, e definitivamente conduzi-lo a ser esse grande poeta em que se tornaria, indo então para Madrid onde nasceria o embrião da “Geração de 27” que integrou, e onde publicaria a sua primeira obra “Perfil Del Aire”.

Um grupo que marcaria um movimento moderno, revolucionário, que durante a Guerra Civil de Espanha foi a maior oposição ao fascismo, vanguarda de que nunca deixara de participar activamente nas trincheiras com a sua voz, intervenções e congressos. Cernuda era no entanto apaixonado pelos românticos, e deles certamente recebeu influências, sendo que, e ainda, vamos encontrar essa marca em sua poesia que transporta sempre o cunho dessa aura e o eleva, e como dizer – um utópico no meio da realidade do século vinte- mas os poetas são os poetas, e sem a marca de água das suas simpatias nenhum século tem nada para lhes oferecer.

Depois, parte para Toulouse, sul de França como leitor de espanhol na universidade desta cidade, mas ficaria aí por pouco tempo, fora proclamada a República, e tinha de estar presente no seu país para ajudar com seu tributo à causa que desejava livre, menos bravia e culturalmente mais humana. Não duraria muito a sua jornada em terras nacionais, a guerra instalara-se, e segue para Inglaterra inaugurando o seu exílio, e foi nele que aparecem “As Nuvens” no ano de 1940.

Estas Nuvens têm contacto com este nosso nevoeiro, as nossas, envolvem-nos de forma mais impenetrável, estão rentes ao chão e levam à cegueira o branco enquanto guia, as de Cernuda, porém, eram altas- alto- cúmulos- e falam-nos daquele que não regressa mais ao seu país e o vê por entre os céus desses flocos altos onde já não lhe é permitido tocar. Ninguém pode explicar melhor a dor que um livro de poemas assim “ya la distancia entre los dos abierta/ se lleva el sufrimento, como nube”

E agora errante, o nosso poeta parte para os Estados Unidos da América onde irá lecionar, mudando-se pouco depois para o México onde outras obras de relevo apareceriam ” Desolación de la quimera” uma continuação de “Nuvens” e todo um trabalho ensaístico em jornais e revistas mexicanas. Dos seus amigos da “Geração de 27” só Alberti chegaria a velho, muito velho, e creio que ainda manteriam contacto, aliás, ambos nasceram no mesmo ano Ano de 1902.

Afinal foi em Sevilha que o movimento começara, celebrando o mais alto instante da participação cívica nacional pela iniciativa de grandes poetas, nessa Andaluzia onde a justiça se impõe, a beleza se faz lei, e todas as formas de arte acontecem, e foi a partir de Gôngora que esta saga intrépida se juntara, também ele um andaluz, na conquista de um marco radicalmente novo e civilizacional. A sua proximidade ao surrealismo fê-lo um artesão continuado de certa intimidade, mas longe ainda do seu amigo Garcia Lorca que se fez matar em jovem idade e onde as abordagens às suas homossexualidades nem sequer coincidiram.

Enquanto amante do romantismo escreve “Pensamento poético na lírica inglesa” talvez em honra de Keats, poucos anos antes de morrer em 1963. É um poeta que a Ibéria deve tentar refletir na sua assombrosa diáspora onde nos foi dando razões sempre para partir. Mas não voltar a essa Andaluzia natal, tê-lo-á interpretado como sendo expulso do paraíso, que ela viu nascer em seu ventre os seres mais impressionantes desta nossa Península.

aos vossos escritores de hoje não os leio já.

daí o paradoxo: sem terra e sem povo, sou

um escritor muito estranho; sujeito fico ainda mais que outros

ao vento do esquecimento que mata quando sopra.

In «Aos seus compatriota», tradução e selecção de José Bento

16 Mai 2024

A noite funda do tempo

Sem preces o mundo adormece. Estamos no ciclo mais baixo das alvoradas e dessas madrugadas que trouxeram as boas-novas e que passaram a lendas encantadas face a este escurecer de todas as auroras. Como se chegou tão rápido a esta realidade é questão de maior interesse. Nunca seríamos capazes de abranger num só diálogo coisa tamanha, mas por algum lado devemos começar. E comecemos por este instante todo em ebulição guerreira onde faltam soldados e onde a devassa da opinião atingiu níveis de guerrilha e a mordaça do sentido da vida uma caricatura que fere uma certa noção de humano, e veremos que estamos aqui, silenciados no meio do ruído em modo de espera por uma coisa qualquer que virá calamitosa. Não vem como o chamado ladrão na noite – não, não- todos nós estamos formatados para uma disrupção de nível avançado que nos tirará da jaula do nosso [melhor dos mundos] e nem por isso a nossa atenção se volve pertinente, precisa e urgente. Vamos ficando até a corda partir.

A Guerra é a Guerra. Ponto. Temos toda uma certa componente guerreira inserida nos genes e dela não parecemos sair, nem distantes nos foram ficando as tormentas do sangue assassino da espécie que a matança elegeu como seu mais alta representante, e nesta exorbitância toda feita de razões, pretextos e códigos armamentistas, vamos flutuando como escribas de um duelo eterno. Só que não. Está tudo à beira de um qualquer fim. Basta abrir o tabuleiro de xadrez e passar ali dois dias seguidos para compreender a perfeição do organismo assassino que integrará os vates, valetes, reis e cavalos da parte potestativa do desejo de ação, que nós veremos como a matéria negra engole toda a formatação do jogo, onde, e sempre, as táticas de defesa, perfídia, crueldade, acabam tão menorizadas como o próprio Xeque- Mate. Dois dias a jogar serão dois anos…ou, dois anos jogando a razão cruente de uma extinção certeira.

«O acaso não traz nada de novo, encontra cada um como está» por isso não será de forma abrupta todo este desvincular para um trevoso quaternário onde a memória faltará ao ciclo dos vindouros. Vamos ser desprogramados – grande ” crash”…apagão, apagar… – começar de novo sem a faculdade da memória para bem do ciclo futuro, que desta consciência agreste e difícil não restará nos espelhos aquilo que fora a nossa imagem, creiamos então que todo este fulgor destrutivo será somente o ardil varonil do suposto herói, e que no mais distante dos mundos será finda a insígnia que o segura. Ver para crer? Não se acredita que tenhamos de ver mais do embuste que fora chamado ” evolução” pois que involuímos já com hora marcada para as calendas onde só o Inferno nos nomeia.

Gaza derrubou de vez a esperança na inteligência humana, a Europa fartou-se de pensar e está exangue, o muito que resta do planeta deixará a marca da sua futura vinda global, e mesmo assim, atravessada por transformações abissais que não comportam nenhuma sustentação, que outrora falávamos no fim dos Impérios, mas o Fim dos Fins, nunca foi falado, e Impérios são calendas que o nosso imaginário já nem comporta. Se estamos tristes? Não. Não estamos coisa nenhuma. Estamos a festejar a Batalha de Aljubarrota, o 25 de Abril e o 14 de Julho como se isto tudo fosse uma una e grande Festa. Ao menor sinal de empolgamento dizemos logo em coro: estamos contra a escalada dos conflitos! Há um Napoleão que quer ir para a Rússia armado em Valquíria, e lá vamos fazendo os nossos negócios, mudando os sexos (cansados e irreprodutíveis) escalando ainda mais a montanha da irrelevância. Pode haver um senão, como aquele antídoto da Bruxa da Branca de Neve: e se nos galgarem por cima e o bruxedo se desfizer? Pois bem, encontrarão apenas povos desolados a jogar futebol e a palitar os dentes artificiais. As dentadas nas carnes frescas desses caçadores- recolectores desfizeram-se em estrelas «Michelin» de aldrabices gastronómicas tais, que mais vale morrermos todos. Ai ai ai… que não! Afinal foi este o melhor dos mundos…! Até ao dia em que se tornaria também o mais anacrónico.

E nunca esquecer que o melhor que a Terra tem, os poetas o fundam. Eles desapareceram no meio deste enxame de banditismo escrevente, mas sem eles, também perdemos de vez a única solução.

17 Abr 2024