Amélia Vieira VozesUm papa na cidade Deviam ser umas nove horas da manhã quando um grande som nos céus despertou os notívagos das noites de Verão. Era o Papa! Estremunhados fomos logo ver a curva do projéctil que se insinuava nos céus de Lisboa, onde desceria um senhor gigantesco, risonho e velho, vindo das nuvens de um céu de Agosto. Estamos no começo de uma fábula. Ele chegara. Vinha sentado, branco, sublime e encantador, no entanto pareceu-me cansado, como se a nuvem estivesse ainda em seu redor cobrindo-o de madrugada. Era Francisco! O Papa mais a sul do mundo conhecido, e na mais extremada periferia de um continente. Tinha havido uma Lua-Cheia com grandes recobros e vastas sombras, num tempo de Estio onde tudo sabia vagamente a múltiplos manjares de rosas. Havia jovens às centenas em grupos pacificadores que distribuíam sorrisos e gestos de bem-aventuranças, a que chamamos, peregrinos, e lembro de pensar que num instante toda a energia mudara, e mudaram as causas, as coisas e as gentes. A cidade, outrora grisalha, volveu-se rubra, loura, morena, negra… e toda a velhice teve fim, como se uma corrente mágica tivesse eclipsado as esferas etárias mais pródigas em bem-estar e manutenção nas suas longas vidas, para um nada existente. Que o que se via, subia a escala de outras necessidades que não estavam à mostra em seu bem-estar todo poderoso por modalidades que se adentram: e gostei! Adorei esta vibração como se tivesse percorrendo um sonho sem recurso a qualquer análise. Há momentos em que a razão deve ficar de lado para não transtornar a delícia dos instantes, saber isso será mais um exercício de observação do que uma qualquer capacidade de averiguação de danos. Danos, são aquelas coisas que sempre existirão. Somente o brilho do olhar nos pode devolver um estado de novidade em que nós mesmos seremos a excelência do novo, e se na cidade onde o Verão que nos dá a imagem branca de um Papa não se fizer sentir subitamente, branca e leve, ela ter-se-á já afundado na descrença da luminosidade. Nós vamos com todo o corpo ver o que se passa, e ele informa-nos das coisas a acontecer. Não vamos com uma ideia para ver, apenas estamos observando a partir do ponto único da realidade que nos é mostrada. Seguimos adiante. Neste pequeno terreiro onde o rio é amplo e a cidade alta, tudo fica subitamente tão branco como o luar da noite passada, e o mote serve de energia articulada para o fim dos conflitos mais bisonhos, acreditando que devemos a todos uma vontade de suplantar um atávico estado de consciência onde regra geral não fomos felizes. O que rola de veículo automóvel deve ser suspenso em hora assim, e não se vê grande transtorno por causa desses navegadores solitários que seguem caminho entre os esteiros batidos do que julgam ser cordões de invioláveis liberdades. Podem parar, perscrutar, andar a pé, sentir o tempo a encaminhar sonoros outros passos. Nós sabemos que nada fica por tempo indefinido, e também o ciclo do carbono deve por momentos esmorecer para que se tenha uma perspectiva mais dinâmica de tudo aquilo que nos espera, e é aqui que a cidade se abre para qualquer coisa de radicalmente novo. Um Papa na cidade pode ser como um guindaste que levantamos para ver o horizonte em todas as suas dimensões e se a coberto de um véu púrpura de cardialíssimas presenças não tivermos o discernimento do emblema do signatário representante, a confusão pode instalar-se como um sono blasfemo nos ardis de uma República que é frágil para julgar o que nunca soube vencer. Ela esmoreceu no tráfico, esqueceu a sua marcha, conserva ainda o seu desejo que nunca fez entender como símbolo de uma trajectória diferente. A nossa República deve ser tão esclarecida como os subtis dons que a corrompem, mas nunca avessa perante aquilo com que não sabe lutar. Por ora o Papa veio dizer o que não pode deixar de dizer sob pena de não ser Papa, e mesmo que as leis o atravessem na zona de impacto, ele prossegue na voz única que não sabemos calar. Nem nós, nem os outros. Ninguém. É o quinto elemento no país das cinco quinas. O que ele vem fazer, só Deus sabe. O que nós demonstramos fazer há muito que até o Diabo esqueceu.
Amélia Vieira VozesO último sortilégio Problemas de género à parte, indagações sobre sexualidade, e será bom reflectir acerca da complexa natureza de alguns, agora que se escrevem tratados sobre a hipotética homossexualidade ou não de Pessoa, à margem, creio, de tudo aquilo que deve ser preservado quando estamos diante de personalidades assim. Mais para trás, vamos encontrar os mesmos desvarios face à natureza celibatária do mesmo, das suas cartas de amor, seu idílio platónico, tentando explicar o que não é passível de explanação sem um grande estremecimento de ridículo, vacuidade e, por que não?, uma derrapante ingenuidade. Se fôssemos todos tão previsíveis enquanto títeres de uma espécie, seríamos ainda bem mais entediantes. Não se pede que se compreenda, mas deseja-se que se respeite com sujeitado encantamento estas naturezas tão diferentes de cada um de nós, nos cálculos, análises, formas de viver, pois que acrescentam dimensões novas ao estreito circuito das motivações alheias. Isto, um breve intróito ao que aqui nos traz. Nenhuma mulher por aí conseguiria hoje na vertente “literatura feminina” acoplada a discursos de correntes várias, escrever este muito fêmeo poema feito por um homem. Ou se esqueceram, ou já são outra coisa, o que faz que tudo o mais seja revisto, dado que a natureza de uma tal realidade parece ter-se apagado, e quando não houver mais explicação para nada, vamos todos ler os poetas, em vez de andar a fazer e ler tratados de vacuidade frouxa, ou a deslizar para correntes de escritas derrapantes. «[…] Mando-lhe uma composição minha. Chamo a atenção… verificar como essa pessoa é mulher (e, digamos, bruxa) que os adjectivos não saiam no masculino onde a pessoa falante se refere a si mesma. Estamos diante do seu Sortilégio! Digamos que nem por um instante nos ocorre que este mesmo homem no início de um recuado século vinte, ousasse mesmo em seus sonhos mais improváveis mudar de sexo; afinal, não é preciso. Tinha os dois de tal maneira bem interligados que até lhe interessou o aspecto dramático da feiticeira. Confesso que jamais vi tensão maior na compreensão do feminino. Talvez até nem seja por acaso que recorra ao mais audaz da mulher, o encantamento, e que diga em forma de advertência: «este poema é uma interpretação dramática da magia da transgressão». O mais interessante é que não se prende aos aspectos juvenis da feminilidade (facilitismo martirizante dos homens) e recorra a uma maturidade que põe fim aos dons, no começo de uma ininteligível outra marcha. Memorável! A partir disto, e como foi referido acima, pouco ou nada interessa o folhetim de suas sexualidades, que deve ser visto como arrivismo áspero e grosseiro, aquém desta compreensão. Vidas há, que são também um grande exercício de elegância “lançadas à sorte” e onde tudo se corrompe, entristece e se confunde, deveríamos para o bem da saúde mental deixá-las intactas. Nem todos sabemos afinal o poder de um sortilégio, que outros, parecendo maiores, não entram no futuro que nos bate à porta. Mas este tipo de seres estarão lá à nossa espera. «Outrora meu condão fadava as sarças………….. Converta-me a minha última magia Numa estátua de mim em corpo vivo! Morra quem sou, mas quem me fiz e havia, Anónima presença que se beija, Carne de meu abstracto amor cativo, Seja a morte de mim em que me revivo; E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!» Se perscrutarmos as coisas vamos até aos altares de um país que duvidando de um certo “sortilegium” perdeu a capacidade de vasto entendimento. Não soube… não quis… não pôde… Não é subliminar, e muito menos sublime, e de seus ilustres acabou por fazer esteiras de conveniências. Reverberações que vêm de «Abdicação» para nos transformar na grande unidade, que é ser total no corpo e consciência repartidas.
Amélia Vieira VozesTagore Contemplamos-lhe o perfil e vemos de imediato que se trata de um aristocrata, de frente parece de uma imponência serena tal que não somos capazes de nos desviar daqueles olhos fundos, lindíssimos, impressionantes. Contemplamo-lo. E este brâmane ensina-nos que a beleza é uma conquista da alma, o seu melhor requisito, e que nestas castas ela se aperfeiçoo. Um poeta deve ter esta qualidade, ou então, o que o instrui pode correr muito mal. Não só pode, como geralmente assim acontece, e concluímos que muitos vingam soberbas ofensas através de uma lei que não lhes pertence, e assim na vingança absurda, atiram-se à corrente da escrita como camundongos. Rabindranath, “Rabi” nascido em Calcutá, o último de treze filhos (uma mesa de irmãos para nós de triste lembrança) e uma mãe que dava pelo nome de Sarada Devi, e de patriarcas fundadores da fé Adi Darma. Para além de ter sido o décimo terceiro filho, ganhará em mil novecentos e treze o Prémio Nobel de Literatura sendo o primeiro escritor asiático a ser agraciado. Tagore não se extingue em um qualquer percurso lacrimoso a um tempo, e de herança tamanha, todos os caminhos da justiça social, da igualdade, de temas, de obras, de poderes, ele se fez presente. Foi ao que chamamos agora um homem do mundo, mas sobretudo, um homem para o mundo. E escreveu. Oh, se escreveu! Em primeiro lugar ele era o poeta, e por isso, o que se lhe seguia enquanto autoridade natural pronta a servir a sua própria humanidade, foi ouvida, valorizada. Mas não nos esqueçamos do prolífico compositor, sendo mesmo conhecidas como rabindrasangit ( Canção de Tagore) muitas das suas composições musicais, e o mais espantoso é que ainda hoje o Hino Nacional do Sri Lanka é daqui que sai, e também os Hinos Nacionais da Índia e Bangladesh estão consagrados pela escrita dos seus poemas, e se tudo isto não bastasse, aos sessenta anos, ei-lo pintor! Ele pintou a escrita, escreveu a música, mas a sua superioridade pareceu falhar no trabalho da imagem. Só os bárbaros gostam de imagens, efetivamente, para nós, basta não ser cego e poder olhá-lo: não necessitamos que se transforme em pintor. Aos sessenta anos todos achamos que pintamos. Mantas ( mas seria melhor, mantras) mas ele, estilisticamente mais talhado, vai trabalhar algumas noções visuais para embelezar os seus próprios manuscritos. Uma espécie de poesia visual a algumas décadas de distância Percorreu o mundo, conheceu os do seu tempo, e estancou perante um beduíno do deserto do Iraque, para designá-lo a voz da humanidade essencial. Interessado pela ortodoxia – todas as ortodoxias – os movimentos nacionalistas indianos onde irá em 1920 liderar o de libertação: a guerra contra o imperialismo inglês tinha dentes fortes, mas não se crê que a sua relação com Gandhi tivesse sido muito compatível. Parece que Tagore era uma personalidade sistémica, com enorme capacidade associativa, de princípios e ideias, e pouco dado a interpretações através de castigos abstratos. Os homens cruzam-se, e nem sempre a cruz de cada um é perceptível para ambas as partes. Uma muito bela aparição foi sem dúvida « A Asa e a Luz» um livro que compreende duas obras, Pássaros Perdidos e Pirilampos, e cujo título é feito dos elementos que mais se destacam nos dois ( pássaros e pirilampos) pela primeira vez editadas entre nós. Este livro é todo a Oriente, a sua viagem à China e ao Japão. Dizia: « Na China e no Japão pediam-me muitas vezes para, sobre leques e panos de seda, escrever pensamentos: assim nasceram pirilampos.». Acrescentando então que o rigor e a escassez de palavra o norteiam, coberto por um guarda sol muito haiku. Os nossos aforismos são mais ásperos… mas se quisermos, poderemos equipará-los. Que esta Asa nos transporte e esta Luz nos ilumine.
Amélia Vieira VozesO Livro de Horas «Tempo! Suspende o teu voo». Lamartine implorava assim num magnífico poema: «parai, horas propícias!», mas o tempo não se detém e circula até desfazer todas as Horas. Propícia se devastadoras. Outrora apelidava-se assim por uma questão litúrgica, sendo um missal da regência quotidiana composto no século VIII, ao tempo de Carlos Magno, por um dos seus abades que desenvolveu tanto os ritos consagrados, quanto a pintura, por suas ricas iluminuras. Um livro destes era mais que um grafismo alfabético, destinava-se a ser contemplado, mas também é certo que só uma escassa minoria teria acesso a tão precioso objecto dado que todos eram compostos manualmente.O conjunto dos leitores também seria restrito, daí que, as imagens trabalhadas se apresentassem para grupos mais alargados tendo em conta sempre a maior sensibilidade plástica dos povos. Escrever era tarefa prodigiosamente morosa, e a palavra escrita um hermetismo tamanho de signos visuais, que ainda hoje proferimos a expressão «uma imagem vale mais que mil palavras». Só que não!Podemos ter muitas imagens sem jamais imaginar o poder do sopro do verbo. Os grandes poetas retomam os temas, por isso nada se perde e, neste circunscrito e audacioso tema, pouco ou nada se transforma, que Rilke assume para si esta grande marcha criativa que vai encontrar intacta pela forma como nos devolve, uma das suas mais honrosas obras, «O Livro de Horas», em busca da alma russa, tão em voga no século dezanove enquanto entidade espiritual. A devoção das gentes aos seus ícones e a forma como dialogavam com eles deve ter sido um sintoma forte de um veio longínquo que nele tomou posse, e vemo-lo encantado debruçando-se quase no sentido contrário como que a legendar imagens, que o paradoxo é toda uma temática russa, idem, em sua grande dimensão: pois foi aí que a propriedade privada se cancela e ganha corpo uma nova sociedade, que as mais pequenas são feitas de muros e basta levantá-los para que todos tenham direito a ela. Mas o paradoxo maior é que ele mesmo sendo tão frágil, derrubou nas estranhas estradas de Eros candidatos de maior monta quando a bela Salomé por ele também se apaixona, tão russa quanto os seus apaixonantes ícones onde encontrou leituras até então inimagináveis. Primeiro Livro, Segundo Livro, Terceiro Livro, e temos o seu Livro de Horas. Primeiro: «O Livro da Vida Monástica». Segundo: «O Livro da Peregrinação». Terceiro: «O Livro da Pobreza e da Morte». Quando isto acontece num só Rilke, a única coisa que me vem ainda à lembrança é Outubro Les Très Riches Heures du duc de Berry», mas também aqui me sinto longe. Outubro é demasiado burguês, tendencial, ornamental e evasivo para nos transmitir tão completo memorando e, ao adentrarmo-nos, vemos enfim diálogos raros em forma de poema, que é a única forma de transmitir o que subsiste de toda a aparência, e encontramo-nos de novo em presença de um livro de orações. Que nós também não devemos politizar o mundo desta maneira áspera que nos inunda se desejarmos uma rectificação mais abrangente, que todo este artifício com que somos contemplados nos desvia de todas estas outras coisas essenciais. A França arde, mas o mundo também aquece, exactamente pelas mesmas razões em que tudo entra em rápida ebulição, que o ensinar esqueceu uma silhueta que não se sombreia entre as gentes, mas que teria dado forma a realidades mais humanas, assim a Humanidade tivesse desejado. Que toda a aflição nasce de situações ofensivas, e que há muito passámos colectivamente a barreira de ajustados diálogos que não nos servem absolutamente para nada. Neste livro tocamos as lamentações dos desvalidos, mas Rilke é apenas um poeta, mas talvez que tudo o mais não passe afinal de um desesperante efeito pernicioso. Minha vida tem a mesma veste e cabeleira que todos os velhos czares a agonia…. Rilke, O Livro da Vida Monástica, Primeiro Livro de Horas
Amélia Vieira VozesPlume Há sempre aqueles que parecem de vento e são artífices laboriosos da transparência. Este extremo refinamento é talvez a mais conseguida capacidade humana para uma transfiguração, que este saber em dimensões aperfeiçoadas, pode passar incólume aos pesados seres das sombras por causa de toda uma sujeição que elas imprimem. Claro! Estamos num mundo pouco depurado, e não se sabe bem porquê, agora que as tecnologias permitiram avanços prodigiosos nessa matéria, também vieram com ela os pesos mais agrestes da nossa truculenta condição: a inteligência pode vir a ser artificial, que o ser natural é concreto demais para ser já às portas de um futuro breve, contemplado. Essa leveza que faz o cérebro fazer as melhores ligações, possuem-nos alguns poetas como ninguém, e também será por isso que lhes testemunhamos semblantes esguios e finos como se fossem catedrais. Revisamos as suas anatomias! Por incrível que pareça, há ali elementos de éter puro. Henri Michaux. Se há beleza, que o vento a traga, sinalize a forma, e seja ” lointain intérieur” que a lonjura a que nos mantém destila pródiga maravilha. Essa lonjura será ainda um propósito severamente poético ( que para proximidade temos os narradores, e a descritiva composição, que não sendo artificial inteligência, deve ser considerada por vezes aberrante função naturalista). E a voluptuosidade também deverá esconder-se de vergonha ensimesmada perante a mais impressionante construção de beleza “gasosa” deste outro instante a que passamos a chamar, poema Le Malheur, mon grand labourer, Le Malheur, assois-toi, Repose-toi, Reposons-nous un peut toi et moi, Tu me trouves, tu m´éprouves, tu me le prouves. Je suis ta ruine. Mon grand théâtre, mon havre, mon âtre, Ma cave d´or, ………… Dans ta lumière, dans ton ampleur, dans mon horreur, Je m´abandonne. Não há muito a dizer acerca deste magnífico poema oxigénio que se respira mas que não se vê. Nós deciframos os signos linguísticos, damos reformulações aos enxames de associações comparativas…mas chega o vento, e perante o domínio do leve, calamos. Creio que interrompemos estes seres para que se escutasse o defeito generalista, e isso abriu feridas gigantescas, grotescas, no domínio da linguagem, que deve sempre servir para muito mais do que debitar ideias e estados sensoriais. Em última instância, poder-se-ia concluir que não tarda, seremos traduzidos até para esferas telepáticas, outras linguagens, portanto. Devemos somente, e doravante, dizer como Michaux aqui, o que descobrimos, que isso será futuramente o maior dom saído da palavra ” on veut trop être quelqu´un. Il n´est pas un moi… MOi n´est qu´une position d´équilibre” Se formos para a sua obra gráfica, vamos ainda olhar para o desenho do vento, e não dissociamos as linguagens que formam um acordo onde tudo se lê, contempla, e ganha dimensão estranha e espacial. Olhamos a sustentabilidade de uma impressão que nunca se fixa, como a chuva e a sombra, e quando contempladas nos parecem diáfano nos seus impressionantes efeitos ideográficos. O autor de « Um bárbaro na Ásia» deseja o que a este lhe fascina, saber como pode penetrar na sua espiritualidade. Que ele de facto não quer descrever coisa nenhuma em termos factuais, romanceiros: é um poeta, e quer a rota daquilo que a sua natureza impele para o símbolo. Nunca deixou de percorrer os « Paraísos Artificiais» mas ao invés de um Baudelaire, vai bastante mais longe. Se a alucinação for tudo isto, então quem se deve sentir alucinado são aqueles que não sabem afinal de contas aquilo de que um cérebro é capaz. Escrever e desenhar o vento.
Amélia Vieira VozesCampo de flores Os grandes poetas amadureceram no tempo e tornaram-se iguais às lendas. Ao falarmos deles não o fazemos com a linguagem devida, isto porque ao aludirmos a debutantes costumes de poemáticos desfiles, nos iludimos também quando pronunciamos a mesma língua por eles trabalhada. Aqui falamos de Drummond de Andrade a quem a língua deve momentos verdadeiramente abençoados. Herdeiro do modernismo brasileiro que irrompeu com o verso livre e se dividiu em duas correntes, a primeira mais lírica, a segunda mais factual e concreta à qual aderiu Drummond; porém, pareceu não marcar território em nenhuma parte onde a poesia se quisesse explicar, formatar, alinhar. Pessoal ou socialmente «a poesia é incomunicável», definição que não deixará de seguir. No longo exercício da escrita, não esqueceu, como era apanágio da sua época e dos melhores, ser um elemento activo do Partido Comunista, mas era um poeta e isso nenhuma estrutura, poder, regime ou força, sabe ainda exactamente o que seja. Este título alude a um poema que se insere inteiro na Primavera; porém, não são primaveras contadas, mas desfeitas em tempo e longos anos por onde os Invernos foram acontecendo, e não será demais lembrar que entre toda a beleza estilística da sua obra, ele é ainda de uma concentração de forças que nos prende e sustém como a mais bela lucidez da alma. É um poema não muito longo, que nos interpela e relembra do dom do merecimento: fala então no amor no tempo da madureza, nesse assombro que já não é esperado nem acontece de forma calculada. Por ser tão tarde, as coisas tornam-se diferentes, raras, exatas, como um último presente de Deus, ou quem sabe do Diabo, mas sem dúvida uma conquista recebida por méritos que a vida desejou consagrar. Quando analisado em seus componentes estilísticos reconhecemos como a sua embarcação na vanguarda dos sonhos foi importante para produzir semelhante compreensão: ele fala do que tece a vida, e o poema vai com ela como se desfia-se o conteúdo da sua melhor essência; temo-lo intensamente poético, sem suor, lágrimas e vontades extemporâneas, seguindo a marcha quase profética do acontecimento que tinha de ser manifestado, que o tempo que já não ambunda, é agora proporcional ao espaçoso exercício de o poder contemplar sem a dúvida que outrora fora tão presente, sendo por isso mesmo imagem de terror convertida agora em jubilação perante a visão de muitos amores desgovernados que o tardio amor olha e sente como um (talvez) agradecimento para ter chegado até aqui. Será certamente um campo de flores a análise de um poema tão contido, total, e ferozmente crepuscular, instado no tempo numa reflexão sobre o amor e sua jornada, mas que em nós se adentra como mistério, e para resolver a questão, o poeta alude ao justíssimo merecimento. E ele agradece em forma de poema esse inusitado amor que tudo clareia como um raio de lucidez e vida de quem não foi esquecido. Há reserva e humildade nesta conduta, e bom trato com forças antagónicas, o que supera em muito o que podemos achar que amor seja, que ele, é voltado então para os “mitos pretéritos onde acrescenta aos que amor já criou” que o amante se torna “o mito mais radioso/ e talhado e penumbra sou e não sou/ mas sou”. São campos que não esperávamos saudar no tempo da Flor onde o poeta consegue dar a entender como são diferentes as Primaveras, ladrilhando suas mãos na terra fecunda de um momento diferente. Que o vigor deixado talvez seja agora a lembrança dos despojos que procura arrastar para fora do tempo, para aceitar a bela luz que baixa e o confunde. Pode bem ser um dos mais belos poemas em língua portuguesa, reconstruída em acordos, só que talhá-la vale tudo o que não acorde em nós o esquecimento de quem tão bem assim a trabalha, que a ironia dilacera a melhor doação, e por isso há que a amar e calar.
Amélia Vieira VozesImperatriz Há jogos, como aqueles de Michel Tournier no seu Tarot de Marselha em «Sexta -feira ou os limbos do Pacífico», em que a jogada era estranha e dava repostas desconcertantes, mas todo o enredo acaba por corroborar a resposta de xadrez do jogo visionário. O herói cai ao mar, não morre, vai para uma ilha, e ali irá passar longos anos que vamos conhecendo pela narrativa do autor. Mas as cartas do Tarot não ficaram, contudo, naufragadas, circulando por aqui em forma oracular, que entre o Mediterrâneo e o Atlântico há forças bem diferentes, que mares não são oceanos, embora tudo seja água. A trajectória vai dar ao Pacífico e a passividade a lado nenhum, que viajar é preciso e viver não é preciso, trazendo à lembrança os velhos Argonautas. Preciso, só mesmo o acaso. Pode uma Imperatriz ficar dentro da gaveta sem que no jogo oracular ninguém dê pela sua falta? Não só pode, como aconteceu. Também lá poderiam ter ficado o Diabo, o Imperador, o Mundo… enfim, todos afinal cabem dentro das gavetas, mas sentiriam sua falta os consulentes, que estas coisas são como os alfabetos, uma soma de caracteres que em média dá vinte e dois, e se aos diálogos faltar alguma destas componentes, lá estão os mestres escola a procurar as faltas, que estes atentos ao erro são em si mesmo uma paralisia que não deixam espaço livre a falhas alheias. Ora num jogo de imponderáveis vamos então saber que não há excluídos, e que a força do domínio de cada um, impera, e se nem com a razão altaneira conseguimos vislumbrar por vezes um elefante à frente do nariz, imagine-se fontes outras em que nada está de acordo com a sistematização da infalibilidade racional!? Não acreditar é como não saber, duvidar é medir com o ponteiro do relógio a vida que se teme, estar preso a si mesmo é a denúncia de uma condição tristíssima, e assim jogamos a extenuante falta do aprendizado que continua sem ver a falta de uma Imperatriz. Mas vamos voltar então às nossas gavetas onde escondemos, guardamos, atolamos, vislumbramos… e saber que tal como escondemos as coisas, também as coisas se escondem de nós, e que na medida que as vamos possuindo elas também nos possuem, e que depois de nada estar a resultar no jogo desta travessia me lembrei então de súbito ir de novo à gaveta: e ei-la deitada, olhando para cima como um sinal. Neste aparato deveras transformador, lembrei todas elas e a marca deixada de um poder com raízes tão terrenas que os céus se fecharam para que as pudéssemos contemplar, e que um simples jogo de Tarot numa noite amena de quase Primavera fustigou a buscá-las. A primeira lembrada foi Teodora, depois Catarina, no centro uma impressão grave de que uma Imperatriz era muito mais que uma Rainha, que estas espectaculares mulheres não nascem na Europa Ocidental senão em forma de caricatura, e que a caricatura impressa por esposos governantes fê-las muito governáveis. Era a noite para contemplar a Imperatriz que não desejou pertencer a nenhum baralho onde a sua influência contemporizasse com forças outras. Ela ficou fechada, por fim falou. O que disse em sua divisa foi enorme; não estava ali para prestar favores, nem seguia nenhuma romaria ao altar dos poderes, ela era um poder. Esta impressão transversal ao que desejamos incluir, pode ser por momentos um instante extremamente angustiante…não sabemos se nos fustiga… interroga… suplica… ou nos dá um código para denunciar grandes equívocos. Justiniano era forte e não lasso, Justiniano era feito de aço. E agora Justiniano, o bravo, Está aí de uma mulher escravo Situacionismo! Falamos do Código Justiniano. Teodora elaborara as leis que restringiam a liberdade dos homens, destronara de seguida um papa presidindo a todas as petições e julgamentos. Teodora não era a consorte, em termos de sorte também nem sempre fora bafejada, sendo aqui o império Bizantino a fonte imperial mais conseguida para uma evolução gigantesca que o mundo de então, e o de agora, ainda desconhecem. Julguei vê-la no baralho do Tarot, mas logo surgiu Catarina, e na contemplação arquetípica que se havia dado por esquecida, era evidente a supremacia a Leste destas figuras. Catarina, a Grande, a mediadora nata que já lá para trás pelejara na guerra Russa-Sueca, no Império Otomano, soube como transformar a relação com a Europa Ocidental, reduzir com firmeza o poder da igreja ortodoxa russa, e ainda ampliar as fronteiras do Império para sul e para ocidente: Crimeia, Ucrânia, Bielorrússia, acrescentando assim 518 000 quilómetros à nação. Uma Imperatriz que se ocupou das artes e da filosofia, um intercâmbio civilizador que viria a resultar como modelo humanista. E dito isto vamos omitir agora a sua águia de ouro e a cruz que encima o orbe e buscar sua outra imagem ao livro do Apocalipse: “…e surgiu uma grande maravilha no céu; uma mulher vestida de sol com a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça, uma coroa de doze estrelas” Nada mais parecido que o seu desejo de um vestido branco em sua mortalha, apenas ornado com uma coroa dourada na cabeça.
Amélia Vieira Vozes50 anos da morte de Picasso Onde estava no dia 8 de Abril de 1973? Lembrei-me disto a propósito de Baptista Bastos e do Abril do ano que se seguiria. Ora, nós estávamos a crescer, pelo menos os da minha geração, muitos já iam avançados, outros não sabem, e muitos ainda hão de lembrar. Estávamos exatamente no dia da morte de Picasso […] sim, ele é um acontecimento como qualquer revolução, intempérie natural ou mesmo sobrenatural plasmado nesta nossa humanidade. Este, ainda por cima lindíssimo ser, nasceu lá para os lados das boas heranças peninsulares: Málaga, na Andaluzia, e nunca é demais vincular tal facto: é até bom lembrar a boa origem do sul, que por lá nasceu o melhor da Península Ibérica. Por quê? Não sei. Talvez pressinta que nada há de melhor que estes mundos atravessados por povos tão morenos como luas, tocadores de cítara, amáveis e culturais, fecundos e macios. São católicos há tão pouco tempo na escala da civilização que nunca enfiaram bem o “barrete”, mas prodigalizaram-no à sua maneira tão terna e trágica! Afinal, é este Sul que nunca parou de jorrar as lendas mouras, a errância cigana, os judeus e os árabes, o vinho e as laranjas, a liberdade e a vida, que sempre nos trouxe a graça dos bem-nascidos. Não se pode escrever acerca de Picasso sem uma humilde reverência e alguma natural intimidação, afinal falamos de um prodígio que marcou a arte do século vinte como nenhum outro e, por instantes, pensamos que ele tem qualquer coisa que nos escapa como se abordássemos a fonte por onde os feitiços nascem, a razão se esconde, e a prodigalidade acontece. A sua mãe dizia que, quando rapazinho, “ele era um anjo e um demónio de beleza”, ninguém se cansava de olhar para ele. Já o seu pai era um professor de desenho que muito cedo se apercebera da genialidade deste filho, passando-lhe os pincéis, e mais tarde todos os homens seriam esse pai destronado na versão do homem que o filho viria a talhar. Ele é tido como alguém de muito generoso, preocupando-se com os outros, fazendo que um amigo dissesse que ele deu muitos mais quadros do que vendeu, mas Picasso era também um homem duro por necessidade de se autoproteger, e não perdoava faltas que talvez lhes parecessem absolutamente inestéticas. Mas estamos ainda nos primórdios e Espanha parece cada vez mais atarracada mesmo quando entra na Real Academia das Belas Artes, e vai então para Paris. Corria o ano de 1900. Passa da Fase Azul, passa para a Fase Rosa e rápido entra no Cubismo. O geométrico andaluz elimina o paisagístico e entra na sua herança cultural mais remota. Acabara-se o dom maneirista! Mas Paris não é uma festa nestes primeiros anos ao contrário do romance de Hemingway e Picasso conhece a grande tribulação – mas Picasso é Picasso – e com seu amigo Max Jacob, que o acompanha no início da jornada, vai ensinar-lhe uma grande lição no meio dessa logística desesperança: aconselha-o a pôr de lado as suas lunetas e deixar de vestir-se como um lojista, dizendo-lhe: — Vive a tua vida como um poeta! Aqui sentimos-lhe a estirpe e a vocação de um anti-miserabilista, um certo garbo e lindíssima definição para neutralizar de vez o temor da sobrevivência. Tudo isto devemos reter. «Nessa época, não nos preocupámos senão com o que fazíamos. E todos os que faziam se reuniam entre si. Apollinaire, Max Jacob, Salmom… Que aristocratas!» E, como a velha frase de Shakespeare «não há lembrança mais feliz que o tempo feliz na miséria», a morte de Apollinaire põe um fim definitivo à época extraordinariamente produtiva do «grupo Picasso». Era a Primeira Guerra Mundial. Prossegue. Vamos encontrar então mais tarde um Picasso mundano, bastante mais rico, frequentador de serões, dizendo: conduzir um carro é péssimo para os pulsos de um pintor. No seu “smoking” contrata também um motorista. Mas Picasso, rico ou pobre, nunca será um burguês. Já estávamos na Segunda Guerra Mundial, e Matisse afirma que se todos tivessem feito o seu trabalho como ele e Picasso, nada disso teria de novo acontecido. Picasso adere ao Partido Comunista em 1944 e conservará o seu cartão até à sua morte. No entanto a sua lúcida natureza de criativo insurgia-se contra o trabalho artístico poder ser inscrito nas lutas sociais, e dizia que um Rimbaud na Rússia seria tarefa impossível. Picasso foi um ser humano devorador, pois que a sua noção de vida não era dada pelo cálculo da partilha ou de uma qualquer equidistância para a fastidiosa felicidade, por isso os seus amores foram sugados até ao tutano, mas creio com sinceridade na sua vocação de amante ilimitado, de tal forma que tudo brotou como alimento dado pelos efeitos das suas paixões. Tudo nele vibrou na presença da mulher que em seu tempo amou. Casou-se cinco vezes, por último comprou um castelo no sul de França, instalou-se com Jacqueline Roque, e o efeito foi como sempre: surpreendente. Picasso arde-nos entre os dedos, ele teve vida longa, ciclos diferentes, múltiplas vidas, e em todas elas encontramos o Avatar, aquele trabalhador incansável, o homem justo, o ser raríssimo, a treva e a luz, e a fecunda necessidade de se livrar do medo. Nasceu a 25 de Outubro de 1881.
Amélia Vieira VozesTrágico Meglio oprando obliar, senza indagarlo, Questo enorme mister de l´universo! Tem de ser! O tempo que levamos a fugir aos nossos medos atravessa-nos mais tarde em forma de destino, com ele vêm todas as figuras que dão forma manifesta ao fundo terror, e talvez que sem elas tivéssemos apenas impressões intangíveis de temores pouco governáveis e solicitudes nunca defrontadas. Queremos trabalhar, sim, e não indagar nenhum desses ângulos, mas a pesada forma visível não só nos impedem de sondar, como nos impõem medidas reais, duras e concretas. E quais são elas? O abdicar de tudo o que amamos. A isto podemos sem mais nada chamar de tragédia, e nem por isso ela se abate de modo a fulminar o herói. No mito de Édipo, o oráculo desaconselhara a Laio que tivesse um filho, mas este desconsiderara o aviso entregando-o depois a um servo que o deixaria na encosta da montanha de Cinterão, e ao não morrer, teve outra existência e outra família, e mais tarde ainda procurou o oráculo de Delfos para saber da sua progenitura. E foi aqui que tudo claudicou! Édipo fugiu para Tebas para escapar ao oráculo acabando por matar o pai quando este também vinha de o consultar tomado por estranhos presságios. A cidade ficara entregue à esfinge. Todas estas contemporâneas criaturas estão também entregues a ela, à Esfinge. Que ela falou, e o sombrio destino não deixou de perseguir a Humanidade verdadeira filha da Quimera, colando-a imperceptivalmente à sua imagem mas já sem rasgo nem merecimento, aquilo que fulminava toma então carácter depressivo. A Humanidade não é a Esfinge, mas finge que essa esfinge é um mito que apenas resiste ao seu teor programático. É uma das desordens que em nós subsiste, o não saber acreditar num programa ulterior ao governável sentido de orientação que humanamente impusemos para nossa frágil e possível continuidade, que a tragédia bem que pode ser a funcionalidade activa de um memorando onde não sabemos como, e onde, poder indagar, mas ao ser respondida sempre arrancará gargalhada sonora repleta de lágrimas incontidas. O Mar Negro, navegável pelas Fúrias, não nos parece contudo trágico, o Mediterrânio também não, a peste, a fome, a guerra, os naufrágios… tão pouco; e nada mais nos traz à memória Esfinges em silêncio que nos interpelam no emaranhado das análises, e da combustão lenta do armar territórios para o fim merecido da nossa extinção, olhamos ao redor, e tudo é o centro desta “qualificadíssima” civilidade que acreditámos cegamente ser o prodígio vivo de uma soberania quase eterna. Uns refazem-se na dupla cegueira investida por supremacia caricatural encadeados por mecanismos que o próprio diabo já não lembra. Afinal a tragédia maior foi acreditar que tudo seria doravante um grande comércio livre, e que a beligerância pertenceria aos arquivos empoeirados da História. Sem consciência, e com a soberba dos velhos imperialismos, sentimos mudanças, mas o melhor é nem pensar nelas. Creio que isto tudo fora anunciado, ninguém escutou ou mesmo esteve atento, tal a alegria breve que nos tomava…! O sentimento trágico não será recompensado com os alvores filosóficos, e mais tarde do bando dos cilindrados só um escapou que o reconheceu, Ezequiel. Toda a sua génese tem atributos poéticos, e os gregos bem que poderiam ter resistido ao fluxo do pensamento que hoje erguemos como bandeira, -que nós estamos presos, e ainda bem,- ao seu primeiro e secreto sentido trágico. Mas quando a escrita terapêutica irrompe como uma conspiração contra o pensamento, também com ele atravessamos o chão para chegar a uma qualquer coisa que nos sirva de ponte para passar tal treva. Haverá sempre duas hipóteses: ou a humanidade já não é pensante, ou a tragédia será uma outra coisa. A sublimação deixou de acompanhar o herói nas suas façanhas, e só dele se pode receber o dom da transformação que sagre a natureza humana como algo como jamais fora visto. Mas o que vemos, é que vendo e revendo a totalidade desta situação, tudo bruscamente nos parece igual, fruto de uma multiplicação do efeito traumático de um humano que expande numa semelhança para coisa nenhuma. A morte da tragédia produziu uma impressão universal e profunda de vazio monstruoso… A própria poesia também morreu com ela! Nietzsche Não será menos trágico o que hoje nos acontece, só que há uma Comédia que insiste em preencher uma muito estimada lubrica jornada. «Esvaziando o cálice, ainda existe um tambor…mas esvaziado o cálice, não querer mais nada, eis a chegada» Metáfora do Apocalipse.
Amélia Vieira VozesCorpo a Corpo Crescemos a espaços de coisas que nem lembramos, somos da cadeia um elo projetado à amplificação. Enquanto isso, as dores do crescimento quase ofuscam o prazer da expansão que deve ser acompanhado do sonho da vitória contra a morte insolente, presente em todos os caminhos- e esses seres tão frágeis diante tudo – de todas as adversidades, parecem sair vitoriosos quando dobram os seus cabos. Temos um corpo guiado por forças tais, que na emboscada de um outro, revolve toda a soberania sonhada só para transitar para ele, sua cúspide revelada. Porém, a virgindade renova-se como a Lua, e ser mulher, altera esta noção de fusão latente, pois que semeia em fundos vales uma intrepidez que não pode ser adaptada a nenhuma circunstância. Para um japonês, a melhor porcelana fabrica-se nas paragens onde as condições de vida são mais duras, já o coração é difícil de fazer arder em brasas acesas, e todo o hedonismo cai por terra se nos esforçarmos na reabilitação das fontes essenciais. Talvez nem seja necessário nenhum prazer entorpecedor e vinculado aos veios das comemorações mercantis, que o corpo do desejo é uma impermeável película que atrai o desespero para os confins de uma busca a que chamamos conquista. No corpo encontraremos as reservas de sombras e deslumbres que se aglomeram como ressonância do que somos. A terra então se abriu, «fendida pelo amor», onde dizem para aí que o seu centro parou. Que centro sabemos nós ser esse, vasto manto ebulitivo da sua natureza?! Vamos até onde podemos ir por explosão ou implosão, no entanto, somos mais orgânicos no acto explosivo, que a paixão dos corpos provoca choques magnéticos que se dissipam na atmosfera, onde só por ela é possível embater para que se alinhem como fabricantes de energia viva, já os do prazer, não saberão reproduzir o rastilho dessa força transfigurável, nem saberão reconhecer a viagem entre correntes contrárias que levam a um certo estado de clarividência. Delfos, esse umbigo, falava e muito embora pudesse assustar, aterrorizando, falava de poesia. Continuamos a levantar questões no corpo que nos acolhe, mesmo quando estamos certos que cumprimos uma maldição. Enterrados em lamas saem braços de mulheres com unhas pintadas – é a guerra – por instantes parece-nos que foram expelidas para a superfície da crosta exposta aos ventos, ao sol e às neves, mas não; foram empurradas para um fundo à superfície- corpo de terra- e ficamos magoados com a fina camada que separa os mortos dos vivos, que o abstrato encanto de mergulhar no Hades nos dava distância e gravidade. Ter visto os nossos corpos a partir dos recursos de transmissão tecnológica em transe mortuário foi um estrondo ainda imperceptível que nos levou à perspectiva da Terra oca. Os hiatos que criámos davam bem para atravessar desertos de tecido cerebral onde grandes ligações ficaram desfeitas. Por ora as nossas mais elaboradas estruturas belicistas recriam o cenário terráqueo de uma guerra das estrelas, mas não anda longe a luta corpo a corpo, que das estratégias não sobrará muito mais que terra desfeita, e nesse abraço mortífero quem sabe se não penetraremos de novo no núcleo parado, que mais que tempo anulado, é rasura para qualquer memória futura?! O que nos acossa agora? Canibalismo. Ainda hoje aterrou no aeroporto de Lisboa um homem com pedaços de carne do ser que subtraiu à vida.- Nós já chegámos aqui! E saber isso é como entrar nos abismos mas de olhos abertos. Quem não sente, é como quem não vê, e por isso, felizes os cegos que entrarão no reino dos céus. Essa brandura é tudo o que gostaria de resgatar antes dos altares do mundo serem extintos por força inferior que fora inscrita como alto desígnio. Entretecidas por personagens modernas e antigas irrompem sem fronteiras nem contornos – corpo de texto – a descida e a metamorfose dos nossos corpos dados à combustão de uma sagrada desdita, e dos Triunfos, a Rosa obscena da trituração. Este é um índice remissivo de um livro que nunca escreverei «Disseste o que queríamos que fosse dito», que as odes confessionais perderam o seu tempo na emaranhada insanidade dos disfarces.
Amélia Vieira VozesPassarola voadora Não é noite de João, mas há balão! Ora, tanto balão, sugere que vigiados andam os céus do mundo. Céu, essa grande abóboda que não é passível de ser tomada por tantos atiradores furtivos. Efectivamente, não creio em extraterrestres, até porque o que se detona aqui é bem terrestre e volátil, de tal forma que caem como maduros cá em baixo. Há navios a carregar os destroços brancos das insufladas “mensagens “que a matéria não entra nas investidas dos visitantes extra Terra, eles devem ser só energia com movimentos súbitos, e tão rarefeita, que o rasto não será passível de ser apontado. Esta história por incrível que parece deve tudo a um português, Bartolomeu de Gusmão, e quando em meados do século XVIII, quando a Revolução Francesa vinha ainda distante, preparava-se em território nacional aquilo que viria a ser para essa altura os balões de observação de uso militar, mais tarde a Guerra Civil Americana volta a usá-los, e assim continuou até à Guerra Franco-Prussiana. Havia balões por todo o lado! E veio a Primeira Guerra Mundial, expoente máximo do princípio do uso dos balões, como tal é fácil saber que estão associados a beligerâncias de ambos os lados das trincheiras, havendo a equacionar no momento presente que eles andam aí, e que a bela forma posta nos ares indica: GUERRA. Se não formos só enchedores de balões, podemos sem grande destreza dar-nos conta da sua presença nos suaves enredos europeístas todos organizados para descalabro mais bicudo. A Europa vê os balões passar como se estivesse em fase constante de Lua-Cheia! Os mais quiméricos tentam descortinar salvíficas visitações ou culpar o seu oponente estratégico de disseminação, e aqui entra até a suspeita que aquele que se vê cada vez mais encurralado comece a dar tiros para os pés dizendo que são os outros. Apanham aquilo tudo e não há nada que depois produzam de revelação encontrada!? Claro que é estranho. Seja como for, eles andam nos ares. Há mesmo uma expressão que diz “O balão está subindo!” grito de guerra iminente, daí que devamos circular de modo a permitir que as nossas memórias deles não se esqueçam. Efectivamente, o mundo hoje é mais tecnológico, bastante captativo pelo rigor mecanicista, mas lidamos com nós mesmos, que estamos ainda mergulhados nas práticas anteriores sem saber muito bem como lidar com outra consciência, e quando os tempos apertam, reconstruímos sinais conhecidos. Também é certo que foram realizados milhares de voos de observação por balonistas pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas estávamos em áreas circundantes bastante mais próximas. «A China fica ao lado», belo título de um romance de uma saudosa amiga, Maria Ondina Braga, que hoje me parece de máximo interesse estratégico – sim, fica ao lado – mas um lado suficientemente centralizador para começar a ser aquilo que pode ser visto como um estremecimento a Ocidente que não sabe descodificar nenhum sinal. O cerebralismo impactante das nossas sociedades crê saber ver tudo e o seu contrário, mas nada se processa por antítese, e o tal Mundo muito unido não é assim tão unificador como julgáramos que fosse. Por outro lado, há os tais movimentos irreversíveis, nada dura no mesmo lugar para sempre, e nas voltas e rotas que a vida dá, os ajustes do todo e de cada um, são condição permanente. Parece que longe estamos dos tenebrosos ataques terroristas de um Islão em rota de colisão com o real, mas não estamos, foram ontem, e geraram analistas como cogumelos envenenados. Quando nos olhamos mais seriamente, parecemos enlouquecidos. Não estamos ainda em Guerra, mas toda ela nos faz estremecer como antevisão de um grande passado sangrento e comum. Aos poucos deixamos uma certa percepção inexorável para um atoleiro de alta definição que já não é real. Voltando à nossa Passarola mãe de todas as infiltrações, ela partiu de uma bola de sabão elevada pelo ar quente da chama de uma vela, D. João V dá então permissão para tão insólita investigação, e Gusmão faz subir o seu balão, esse jesuíta, que acabará por fugir para Espanha sem beliscar a sua genial descoberta, apenas porque a Inquisição suspeitou que pudesse ser judeu. Passou o resto da vida, ao que consta, obcecado pelo Quinto Império e pela vinda do Messias. Eles talvez tivessem vindo, mas tão distantes da sua Nave de Ar, que o que nos resta são balões nos céus do mundo. Agora estamos no patamar «A volta ao mundo em 80 dias» a bordo de um balão, e se neste espaço de tempo não houver borrasca, é porque a órbita da Terra se alongou.
Amélia Vieira VozesA Bailarina A sua vida não saía agora de dentro das muralhas, o quarteirão era um país e a cidade fora há muito um local encantado onde se moveu por todos os seus recantos em passos de dança que pareciam não tocar o solo. Estava bem. Afinal era um belo sítio ainda não muito exposto ao êxodo dos seus moradores e com as formas intactas de um antigo feudo. A vida permanecia um dom que se dançava no estreito local, e mesmo assim caminhos do mundo se entrecruzavam nos seus passos, faltava um certo vapor, uma cantata, mas habituamo-nos ao som livre dos nossos passos quando se conhecem de cor os percursos. «Ela canta pobre ceifeira!» Só um homem podia ter escrito frase assim. Cantariam os navegadores? Não se sabe… mas alguma dança trémula alcançariam na monotonia que também atinge a aventura. Os passos titubeantes dos que visitam cidades tornam o rítmico processo, torpe, e ao nível do chão, causa de todo o desastre – rolam mecanismos insonoros, deslizamentos de velocidades várias – chegam carregamentos de malas, sacos, bagagens, e só não submergem porque a vontade impõe a resistência para as noites que hão de encontrar nas camas turísticas o conforto programado para populações exaustas. Que a labuta dos que se esforçam para a logística doméstica dos novos nómadas não é menos imperativa que a de estes navegáveis. Uma componente em que todos os recursos se concentram para tirar dividendos flutuantes das vagas de passageiros, fazendo ispersos como um chão de ossadas em velhos caminhos, uma impermanência que é lei e gere a cidade, que a deita e acorda num quase tristonho cenário de «Nau a Haver» onde a natureza dos seus habitantes se virou para outros soalhos, que os salões escureceram à passagem das massas. Dançar foi outrora uma função tão válida como hoje é andar, correr por aí contra o vento em festividade orgânica quase insolente, era uma proposta semanal, um estado de funcionalidade, que o corpo gosta da dança e lembra-se de como os seus passos ajudaram à árdua tarefa de se saber caminhar junto. Mas deixemos a dançarina entregue a seus cuidados! As pessoas que saem de pijama para o emaranhado das ruas deviam ter na chegada a casa um manto púrpura para se cobrirem e tentar olhar-se com alguma parcimónia, que isto de se ser tão casual, entorpeceu a natureza das funções e levou à subjugação através da moda desportiva. Andam os seres todos a treinar. Para quê? Não se sabe. Um treino é aprendizado para cumprimento de actividade que se deseja desempenhar contribuindo para o bem comum, ora, o bem comum, pode ser também um mal comum, que não se dá por isso, a menos que haja um evidente bom senso no meio desta estranha projeção. Se falarmos ainda nos ensandecidos hábitos alimentares que cortam as fontes do balanço para as bailias, vamos entendo o porquê do cansaço extremo e da má resolução dos problemas. A atmosfera não está para grandes carinhos, e sentimos que ela produz calafrios podendo estar a lançar madeixas de cabelos de uma cabeça decepada, que de forma lenta, tenaz e concreta, adoece a maleável natureza dos seres. – Não será então em mim louvada a conveniência da saúde ardente- que a saúde se saúda pela transformação constante desta luta até à inexorável falência orgânica. A Dançarina em nós nunca deixa de bradar, ela é mais lata que os movimentos estipulados, e agora amordaça-nos numa orquestração sem harmonia que julga os nossos passos apenas como capacidade muscular para se manter activa mas lhe retirou o tributo da função cósmica que é dançar: dançar em todas as direcções, com todas as formas, com todos os sentidos, um tributo ao Universo que não retém a conveniência de se ter um corpo apenas para se encarcerar, a Bailarina, tende a mostrar-nos a escassez de fluído que está em marcha nas nossas sociedades nazis reinventadas. « Anima Mundi» ou a alma do mundo, consistirá sempre a desencarcerar na “prima matéria” a natureza inconsciente. O Mundo gira na roda evolutiva, e com toda a nossa retenção de marcha, acena-nos para não destruirmos os tributos circulares da sua natureza ( a Dançarina é feminina) e ainda nos diz que o impulso criativo no seio de toda a vida não poderá jamais ser revelado. Podem os seres vestirem-se para uma mesma dança, despindo-se destas vestes tributáveis? Esperemos que sim. No ponto imóvel do mundo que gira. Nem carne nem sem carne; Nem de nem para; no ponto imóvel, lá está a dança, Mas nem parada nem em movimento. T.S. Elliot
Amélia Vieira VozesOitavos de final O número oito tem as suas benesses. Toda a gente ao redor dizia: «quem nasce a oito é rico»; hoje já ninguém sabe o que tal adjetivação possa significar. Oito é um número, e como todos sabem é também esse octógono que testemunha a lição fantástica das Capelas Imperfeitas. Abertas estavam para o céu acreditando-se mesmo que alguém, ou alguma coisa, desceria para revelar o que não sabemos. Imperfeitas?! Talvez não. Elas foram deixadas assim para uma qualquer esperada manifestação. Dito isto, há que os descobrir na arquitectura para sabermos quem vem ou virá que aterre em segurança, não vá por más escolhas ficar feito num oito ( significado contrastante com a boa estrela do número). Quem está feito num oito não volta a ser numericamente mais nada, a menos que descubra que esse recolher em S possa ser um retorno perfeito, que a Oriente cede passagem como número sagrado e se inicia na profética demanda, mas quatro, ninguém imagina a tristeza que transposta! A própria língua dá-lhe sonoridade de morte, ele dobra, transcendendo assim condição mortífera. Por outro lado, oito é bonito. Deveriam os signos alfabéticos e numéricos ser mais ou menos perfeitos? Sem dúvida. Foi essa definição gráfica que nos fez acercar do conteúdo verbal /numérico. Ao agrupá-los numa rede de signos, conceitos, abstracções, criámos estradas que a própria natureza desconhecia, alterando-a. Criados os signos, as condições estavam definidas para pensar grandes artefactos de um monumental esquema civilizacional. A China ama o oito, nós o cinco, e outros amarão o que muito bem lhes aprouver. Por tudo isto cada um caminha para os seus domínios onde se encontra uma geometria muita própria. Cada um avança em sua deidade numérica entregue ao fluxo dos anos, e tende a expandir ciclos florescentes nos seus numerários «Ir aos oitavos» é ser escolhido para o duelo final “após os sete dias da lei veio o oitavo da graça”: prepúcio cortado, oito almas embarcadas na arca de Noé salvas pelas águas numa já muito marcada senda da transcendência do número que “ao seguinte dia de sábado” existiria ainda como símbolo de ressurreição. Octávio, Outubral… Octávio Augusto, primeiro imperador de Roma, tinha a marca dos oitavos filhos nascidos das famílias romanas; por cá, a tradição dizia-nos apenas que entre sete filhas, a sétima era bruxa, e para escapar a isto, só um redondo numérico. Tudo expande para formas renovadas, ampliações fora do clã… tudo toca mais perto o longe que vem por força giratória ao ciclo da vida que se refaz. Não há linear conduta, andamos no invólucro giratório onde a morte se descontrai para entrar na ordem invencível. Esta vitória da curva sobre a recta diz muito da sua composição gráfica que tendencialmente constrói nas correntes da visualidade o sucesso sem fim à vista deste número. A recta final não é uma oitava, e mesmo assim, ambas se confundem em seu términus. Há que chegar à final! – E, afinal, quem pode escrever direito por linhas tortas? E quem distende a recta quando o tempo começa a ser escasso? Lebres e Tartarugas nas meias Finais. Entre o círculo e o quadrado ele pode ser ainda uma clave de sol que penetra geometrias opostas servindo de melodia para os contundentes ângulos do pragmatismo, alisando as arestas das fronteiras agrestes… Ele dança! É a dançarina em nós. Deitamo-lo e eis o infinito. A sua esfera totalizadora levantou-se, e como os antigos reis do Norte, abeira-se um extenso conflito para reparação das forças onde no centro da sua curvatura nada pare de girar. G8 foi abatido. E agora aguardemos as voltas que o mundo dá.
Amélia Vieira VozesAno do Gato Começa assim na primeira Lua-Nova do Ano um ciclo a Oriente, que é também um momento de grande festividade, um rito de passagem repleto de significado dando a Buda o que é de Buda, que notificou como nas fábulas os animais. O ciclo das doze Luas iria marcar cada Ano e inscrever na mandala as características de cada um, entrando este com as prerrogativas do nosso amado felino. No entanto, é também designado por Ano da Lebre ou do Coelho, existindo sem dúvida a conexão lunar que os associa, que seres míticos como o Dragão, estarão sem dúvida associados a Anos solares (mesmo que o horóscopo seja lunar) e o Cavalo, o Macaco, o Tigre, a virtudes mais “yang” num certo calor que marcará as suas regências. É altura de calmaria! – Um Ano de Água no contraponto deste Bestiário trará enfoque ao elemento assinalado, esperando-se por isso manifestações aquosas de monta como bons banhos, óptimas viagens de barco… e na pior das hipóteses, naufrágios, tsunamis, chuvas torrenciais… a chamada «água pela barba» que quem as tiver, melhor será que estejam de molho. No início de 2020 a China pareceu assustada com o singular Ano do Rato tendo razões para isso. As Festividades quase foram canceladas quando muitos estavam já a caminho quais Flautistas de Hamelin ao rebentar da temida pandemia. Era aquele Ano do Rato que só se produziria ( reproduziria ?) de sessenta em sessenta anos sob a égide do Metal, que neste caso competiu com o vil metal, e tão dado como nefasto que cumpriu à regra a sua missão. Por isso (que mais coisas se passam ainda do lado do Sol Nascente) nada de superstições acerca do Gato, que mesmo que seja negro, será antídoto para um mal que não passa e parece recrudescer. Que o faça em silêncio, como fazem todos os felinos, e não se grite daqui: obscurantismo… de retro satanás… digam já…! Não digam nada, que a China não é um Parlatório. E salve-se a qualidade social destes festejos cuja cor, alegria, fantasia e grande performance, corroboram o grande poder imaginativo, quase onírico, de um mundo que pouco lembramos agora de forma salutar. Há muito mais mundo para além da economia, da pandemia, da democracia, da tecnocracia e da autoridade política. Há os povos, os seus emblemas, os seus ritos, os seus cultos ( que os incultos não cumprem passagens nem estão alinhados com o movimento dos céus). O desdém tristonho do aglomerado europeu tentou pela prática do prático valor dos instintos, (bizarramente apelidado de científico para as nomenclaturas de culto pragmático) esquecer a demanda dos povos em suas naturezas transcendentes, e fez-se então nestas gentes, nestes povos, prestes a morrerem de estrangulamento inoperacional, uma jangada deitada às águas infernais, estrebuchando a maioria em manifestações insolentes perdendo o ritmo dos questionamentos. Esta via oral é uma reminiscência defeituosa das teorias, uma reverberação alargada de um ciclo civilizacional que não se soube cumprir. Nós vivemos todos muito bem sem ter Partido, Regime, mas falhas as regras civilizacionais nada subsistirá, que também este aspecto para um tempo próximo será de somenos: preparam-se as hostes para a aniquilação progressiva de uma Humanidade chegada a seu términus, suplantada por todas as formas de inteligência a seguir que nos hão de fazer inúteis. Se ao menos levássemos connosco uma certa saudade do remoto transcender… Nem isso! Morreremos como inqualificáveis herdeiros de coisa nenhuma. Entrados que somos então no Ano do Gato (Lebre e Coelho são herbívoros) e testada a infalibilidade dos sondadores dos céus, este pequeno carnívoro nos irá conduzir a um ciclo novo. Sim, ele é um carnívoro, e tenho uma pena muito grande que não se respeite por quimérica partidarização a sua natureza. Isso não nos deverá preocupar. É assim! Nós, a espécie dominante, devemos e podemos fazer escolhas, mas amar a vida não é condicionar os seres aos nossos dogmas: «Tu podes não comer carne, mas não te esqueças de a dar ao teu Tigre e ao teu Gato, caso contrário serão eles que te devorarão». Um felino não existe para ser bom ou mau, isso são juízos de valor, eles existem na Terra para nos indicar também que a beleza é terrível tal como o anjo de Rilke. A ambivalência de que são portadores não nos encaminha para uma conquista sem que haja muitos danos, mas que a beleza por fim enfim, e para sempre, esse grande elo divino que nossas prazenteiras essências temem ver de frente. A Beleza é Terrível?! Sim, é terrível. Para nós, que vamos em busca, a Beleza será tudo aquilo em que nos devemos tornar sem nenhum padecimento. Os heráldicos seres — Águia, Touro, Leão e Anjo — ornam a imagem do Mundo dos arquétipos a Ocidente onde uma dançarina orlada por forma oval olha os Tempos defendida por estes personagens seus guardiões… que o Mundo não é plano, nem as teorias personalistas e conspiratórias entram no seio destes mistérios, mas na realidade a Oriente, entramos no Ano do Gato que nos fará sinais vindos de ângulos impensáveis. Estou certa que será um imponente Ano! Deveria temê-lo orientalmente falando? Não. O amor, ao não ser real por constatações diversas, sobe ainda assim, ao existir, como um Gato à Árvore mais alta para que testemunhemos a diferença entre nomeá-lo e saber sê-lo. Bom Ano para todos.
Amélia Vieira VozesVozes A palavra, esse estado gasoso, é a mais refinada das percepções sensoriais, tanto assim é que a divina presença se manifesta por essa brisa, em que o Verbo só depois se faz carne no corpo, ideia onde a transfiguração acontece pelo sopro, é a Teofania, o captar da voz. Por isso, estar atento a uma certa constância deste estado faz aparecer no campo onírico o processo visual que tendemos a ajustar como primeira essência, e é aqui que entra a tão aclamada face de Deus, esse antropomorfismo que carrega estranhas feições «Ouvistes o som das palavras, mas não vistes forma alguma. Era apenas uma voz» (Deuteronómio 4:12) Sim! Essa corporeidade não é aclamada na orquestra dada pelo som das vozes, mas nem por isso ela se torna menos verídica neste abismo da Transcendência, de que a Revelação é ponte. Mas, e pronunciando nas fontes, e o mais fascinante dos abstractos sistemas entre plasticidade visual e som, é pela primeira que neste caso procuro dar testemunho. Nós chegaremos assombrosamente ao momento em que emanemos somente a consciência e mais que isso, a existência por fluxo, deixando para trás a complexa estrutura do peso das coisas e, de tal forma acontecendo, que separados do corpo originário também ninguém o poderá ver mais de frente sem risco de morte total. O nosso corpo humano nessa outra natureza fabricada será então o mesmo que no discurso com Moisés «Porquanto homem algum verá a minha face e viverá» como se, remotamente e já, esta experiência se tivera passado num ângulo não visto da nossa visualidade, que sendo procura, não obteve jamais certezas, mas o que fazemos na língua construindo as Vozes, dá-nos sobeja experiência dessa dimensão em nós disfarçada, com um rosto que o volume do tempo só apagará se nele não tiver inscrito toda a renúncia a este real. Não vivemos claro está, em todas as dimensões enaltecidas do nosso corpo sensível, que mesmo algumas épocas ou ciclos históricos são mais propícios ao desenvolvimento particular de um deles, vendo como a ideia da Voz se manifestou em corpo acolhido no Catolicismo, e como desenvolveu as técnicas visuais dando o melhor da pintura mundial, e somente o poeta se manteve cativo da experiência das Vozes como não reconhecendo mais nada para além dessa primeira essência. Procura ainda a ressonância da reverberação do efeito dado por essa natureza a cujo enigma não deseja fugir. Depois, a música, que ela iguala uma fórmula acrobática de dimensão maior, que nada que se projecte pode ser tão divino que a melhor das sinfonias. Mas também os orientais, na subtilíssima essência florestal, escusam a imagem humana em seu instinto plástico, não tanto por impossibilidade canónica, mas por elegância de alma. Este aspecto é de sobeja importância para o reflectir da noção do corpo como não veículo, dando-nos por isso a conhecer a Árvore – que a Árvore da Vida vem do Oriente. Entre filosofia e religião demarcamos com hastes a definição dos factos tangíveis. Para nós somam-se os Profetas, para eles os Mestres. Ninguém viu coisa alguma que fosse maior que a Voz transfigurada dessa essência comum, e a Teofania abrange ainda os aspectos da natureza que convém entender como linguagem. Patologicamente designamos então, a todos os que escutam ainda as ” Vozes” de esquizofrénicos, uma tendência que a Árvore do Conhecimento infligiu no robusto Norte – seu reino – e área de provação dos males, onde as nossas vozes contemplam estridentes todas as peripécias de um aglomerado animal que nos é servido nos pratos. Parecemos confortáveis nesta demanda e somos alvejados pelo preconceito comum da sustentabilidade, mas os nossos sonhos talvez nem reflictam já a voz da imagem de alguém que do outro lado, sempre e de modos vários, desejou falar. Quando não somos atendidos é apanágio a desaparição. O mais perto da consciência que estivemos actualmente foi a de um Grilo, que na nossa soberba nomenclatura foi designado por «Grilo Falante» e também ele nada conseguiu face às tormentas que esperavam o herói. Como nuvens, como pó, como essência primeira, a Voz se uniu aos anéis de Saturno. Poderemos saber da alma das gentes pelo som que emanam? Poderemos, sim. E também das coisas que faltam para concluir o ciclo das abominações. Longe estão os sermões de insuportáveis manejos frente ao Grito conjunto que nos espera para uma grande libertação. A uma só Voz.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasFinis Patriae Estamos por conseguinte em luto nacional, o que não deixa de ser assaz estranho numa República, mas dada a mundividência em que a morte da rainha se tornou, e nessa quimera feliz «dos amigos para sempre» como se o fogo da memória varresse aquelas partes menos boas, e se esquecesse mesmo da aceleração que a própria Inglaterra nos deu para a instauração da República, que nestas coisas (como em outras) sempre melhor escutar os poetas que os políticos, e na circunstância vivida, relembrá-los, que ele, Junqueiro, também exercera funções políticas, mas é no último verso deste livro que vamos encontrar a indignação de uma Pátria ferida, a voz de um panfletário, o génio de um poeta, tudo junto à escala da insolência pela grave ofensa sofrida. Precisamos lembrar! Sair das mordomias esclerosadas e garantir o deslumbre dos vindouros. Que o Ultimato vale bem um sabre envenenado pela mais fina matéria do verbo para que se saiba que não vamos esquecer. Guerra Junqueiro era uma espécie de rabi português, um perfil tão puro que nos perturba só de olhá-lo, tinha a intensidade e a sagacidade entrelaçadas na vasta barba, e ninguém contempla um ser assim sem um rebate de consciência por o não ter sabido replicar na visão colectiva, que nos seus olhos de lince se lhe notava ainda uma ternura que não sabemos explicar; tinha contornos de corvo e a silhueta negra indicava uma predestinação religiosa, que estas gentes são ainda aquelas que nos conseguem fulminar. Podiam fazer tranças em seus cabelos com estilos vários, que da sátira, ao saudosismo, ao panteísmo, ao verso alexandrino, eles condiziam articuladamente em suas majestosas cabeças. É desta aristocracia que a terra portuguesa é feita, muito mais que de súbditos nacionais a uma majestade que nunca fora a sua, é desta aliança com as boas práticas, feroz e intransigente, que nos devemos ocupar com carácter de urgência. Quando Pessoa enaltece a sua ama na canção de embalar, é também Junqueiro que nos vem à memória em seu «Regresso ao lar» uma longa jornada de retorno onde o amor mora, que ele não teme tornar… Toda uma vida que perdemos acontece mais tarde, quando ao reler lembramos a forma tão bonita como o fizeram, e sem saída, uns relampeiam, outros esquivam-se, ainda outros “deslizam sem ruído… no chão sumidos como faz um verme…” mostrando a travessia de todos nós. Não esquecer que foi já pela década de vinte que a República que ajudara a tomar forma, começa a contestá-lo, estávamos à beira dos tempos sombrios, e ontem como hoje, tudo se passa de igual maneira. «À Inglaterra» pasme-se então o leitor diante a virulência “que não é mal nenhum ser conhecido pela rebelião de um filho seu paterno…” Destas estirpes nenhuma diplomacia é feita, e o Estado nunca nos representa por inteiro. Que os estados de alma também não fazem poetas, mas onde a alma não se encontra em fina conexão com a justiça, essa nem sabe de que epíteto é feita. Nós somos agora todos mais ou menos panfletários, e não conseguimos sair deste registo que atiçamos como se estivéssemos em eternas campanhas, o risco de tudo isto é que perdemos a capacidade de louvar coisas outras. Há-de ainda chegar o tempo em que estes livros já esquecidos, serão ainda proibidos, nesta Assembleia das Nações que a troco de uma vida repleta de coisas, perdeu tudo no esquecimento mórbido face àqueles que nos deram tantos sonhos, que a morte da rainha é também o início dos tempos funestos, ela que nunca soube que tanta verve contra o seu reino tivesse sido tão emblemática, baluarte de um Império que será destroçado com um clamor como o mundo ainda não viu, repousa finalmente nestes dias de luto nacional. E neste Setembro em que o aniversário de Guerra Junqueiro se realizou, não sei explicar como iludir estes momentos. Quase duzentos anos! «Vencidos da vida»?! Tão diferente do “vencer na vida….” que é onde se encontram agora os derrotados de uma experiência triste. Eles, porém, são quem renasce perante o assombro da morte colectiva.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasPrestidigitação Conhecemos entre nós o de Mário Cesariny, chamado de «Manual de Prestidigitação» deste poeta e pintor, que as mãos trazidas da sua competência nunca deixaram a componente subversiva que estimulou este representante do nosso surrealismo, o que faz não poder ficar entre as mandíbulas dos escrutinadores, pois que se atravessa nele um longo ditirambo que é a sua anti-lírica nunca menor que a própria lírica. Aliás, o livro compõe-se de quatro partes, sendo a que dá origem ao título, a quarta e a última, talvez alinhando no pensamento de que os últimos são os primeiros, e que surpreendentemente diremos se tratar ainda da mais lírica. «É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia… é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano… é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora» e talvez seja aqui que transporte nas mãos a sua própria deidade. Mas o modelo da memória reflecte um outro prestidigitador, Jacobo Sureda, também ele poeta e pintor, autor de «El prestidigitador de los cinco sentidos», que constrói no Manifesto Ultraísta (movimento literário espanhol em oposição ao modernismo dominante do final do século XIX) um grande axioma das suas convicções: «Nosso credo é não ter credo. Não pretendemos rectificar a alma, nem mesmo a natureza. O que renovamos são os modos de expressão». É desta insubordinação de quem se opõe, reinventa e caminha, de que falamos, que ser contra tal movimento não significou estar mais atrás, ou somente atrasado face ao seu presente- não-! Jorge Luís Borges e Sureda assinam um destes manifestos em 1921, que Borges levará para a Argentina. São escritores que vivem muito da produção em revistas, panfletos, agrupamentos dinâmicos de pensamento… são gente que ao estarem juntas se prodigalizam. Aliás, Cesariny herdou ainda esta via, os debates em cafés, tertúlias e boémia, conjugaram-se nos seus alicerces muito férteis. E agora talvez seja tempo de perguntar o que têm em comum estas duas prestidigitações; diremos que bastante (se nos debruçarmos no Manifesto Futurista, também) mas é a novidade imposta em empreender novos balanços semânticos com total liberdade narrativa, pouco descritiva, que nos prende a tal métrica como se estivéssemos mais perto da telepatia, que o poema oferece uma abertura de espectro de tal forma improvável que ficamos limpos da razão bloqueadora que têm as sensíveis demonstrações anãs, exactamente por que se pensa e mede com a fita métrica dos impasses conhecidos. – Aqui não há nada disso! Talvez se pense que estejamos mais perto da reverberação que dê ao poeta sinónimo de louco, que ternamente as gentes dizem que têm deles um pouco. Não têm nada! E aqui nenhum louco entra pois que o infecundo distúrbio não chega para aguentar tais invitações, que nascem de um ainda estonteante poder criativo. Se há efectivamente um aspecto antipático no chamado “criativismo” é essa coisa insalubre do chamado plágio, e aí, a loucura ganha, pois que se assemelha quase sempre de forma arrepiante…! Que um doido, imita outro doido, e o que acontece? Nada. E a acontecer é sempre coisa má. Se tinham estes dois poetas pintores vasos comunicantes? Sem dúvida que é uma possibilidade válida. Mas mesmo assim, se Cesariny, homem raro, que teve como vida o ser poeta e pintor, e tudo o mais que a sua capacidade mantinha, conhecesse como à palma da sua mão Jacobo Sureda, isso só o engradecia. Como a Humanidade é cada vez maior, ela replica, e que bom seria ficar-se só por estes casos!« El religioso mar/ como una hostia azul/ Está en el paladar/ Del cielo y horizonte….» PRESTIDIGITACION e «Pomo-nos bem de pé, com braços muito abertos/ e olhos fitos na linha do horizonte/ depois chamamo-los docemente pelos nomes/ e os personagens aparecem» ARTE DE INVENTAR PERSONAGENS. In Manual de Prestidigitação. Pode um choque atravessar as nuvens num instante, diluindo a conveniência? Eles dizem-nos que sim, que neste afã se registaram tais sinais.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO sentimento dum ocidental Dedicado com amor a Guerra Junqueiro É sem dúvida alguma uma designação feliz este nomear visto por um ponto cardeal só concebível por um poeta que em tudo via captações sensitivas dos espaços, Cesário Verde – tribuna verde para um Ocidente que desde há muito encetou o êxodo para as cidades e que tem sido rasgado a fogo nos últimos tempos – que ainda pode ser apelido, verdi, na linha de uma ascendência italiana, dúvida que recai na zona que ao poema interessa. Um ocidental não será contudo mais sensível à flora que um oriental, antes pelo contrário, mas tende a contemplação mais difusa a ver por onde conduz o interesse das suas visualidades e centros nevrálgicos nessa projecção. Mas é com ele, o poeta, que hoje seria certamente um ecologista pioneiro ou um lutador pelas causas dos mais desfavorecidos, que esta ocidentalidade nos interessa. À extrema ocidentalidade, junta-se-lhe quase o deserto, esse espaço revigorante onde os oásis se dão, e onde tudo fica tão bonito que não precisamos de florestas defuntas de abandono, nascendo-lhe gentes talvez com verdes olhos, e nessa visualidade um Cesário em seu binómio cidade/campo, o qual nos foi deleitando na construção de um outro planeta sonhado. Este sonho partia no entanto de uma atenção prodigiosa do real, uma capacidade instintiva de religar as coisas como pertencentes a uma unidade mais vasta, uma certa diluição que lhe garantia a fluidez entre mundos, onde acompanhá-lo é deleite, e também um grande alerta. Como um ser tão débil consegue tal acutilância, é sem dúvida o seu deslumbre. Usa as sinestesias como bailarino em trampolim e somam-se-lhe recursos linguísticos tais que ficamos elucidados acerca das componentes de suas inquietações. Não segue um estilo caracterizado, notando-se retalhos parnasianos, impressionistas, românticos e realistas, onde vai escavando uma modernidade a acontecer, inspiradora e readaptada em Fernando Pessoa. Um cego pode ver as coisas escutando o Verde Cesário, que ele erradicou a cegueira como impedimento à compreensão; mas nós, videntes muito incapacitados, continuamos baixando a guarda ao bom entendimento, que ainda o terceiro conjunto deste poema é dedicado «Ao Gás», uma súmula de bem-dizer em verso raro que nos perturba, sim, mas nos orienta para olharmos a injustiça, a fria realidade das coisas vãs, e nos protege numa certa miséria a acontecer. Por quê? Por uma compaixão de si que a todos abrange, lúcida e leal. A estesia com a qual nos contempla vale bem uma outra Missa. Ele que não era freirático e desdenhava dos reis, que entravam a galope pelas cidades dentro, é no entanto o sentimento que nos transmite, o de um inacessível perdão, parecendo assim um para-raios que não chega até à locomotiva em marcha no momento que nos acolhe. Fora um paciente de Sousa Martins que julgou não lhe conhecer a identidade, mas o médico que se revelou uma alma curativa, sabia quem ele era, e a outro confirmou o quanto já estava irremediavelmente perdido! (perdido para a vida, mas não para nos lembrar que a vida de nada vale se não a soubermos olhar). O sentimento ocidental não transpõe agora visão alguma, atropelando várias sensações com conduta errática e olhar vitral, que nós não vamos longe e daqui ninguém parece saber sair: a luz decresce na ocidentalidade que, cansada, acende fogueiras, enfrenta o escuro, apaga o gás… que a Guerra por gaseamento acolhe a “repaga” na memória colectiva. Bom! Vejamos. Ainda a procissão gasosa vai no adro! Está quente e não tarda a arrefecer, que o extremado mundo não anda para subtis Estações intermédias, podendo deslizar para coisas bem piores, que os ferros com que matámos, nos matarão, tal qual como o belo Cesário aqui afirmou «Tudo cansa! Apagam-se nas frentes/ os candelabros, como estrelas, pouco a pouco; …tornam-se mausoléus as armações fulgentes…» Por acaso estes instantes são de seda e pranto e não nos tornaremos menos pessoas se, de trás para a frente, as gentes contemplarem a vida dos que não morreram devagar. Estamos sitiados. Só os poetas nos podem agora falar de forma ampla e futura, pois que nem sempre somos assim tão felizes na virtual memória do vivente tempo que passa. E disse ainda uma coisa linda um seu amigo: a bondade suma está no poeta, mais visível pelo menos do que em Deus. Estão ainda verdes estas belas pinceladas alfabéticas! Não as podem tragar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasFelix Salten A Europa arde como se uma grande inflamação a tivesse assistido para acelerar o colapso da sua derrocada previsível e ainda não dramaticamente olhada como a que está a acontecer: pois que seja das alterações climáticas, e também pelas vicissitudes do chão do mundo mais regado a sangue de que há memória neste agora ardente planeta, que neste momento lembramos os bosques frescos que o coração dos filhos do Continente belo armazenou de forma a manter intocável a sua lenda. Não há já que nos debruçarmos nos mitos distantes de uma Europa cavalgando o Touro – não – pois que estamos bem perto do tempo de uma abordagem de autor com tudo aquilo que deveria ter sido a sua mais nobre função enquanto ecossistema, sendo sem dúvida um testemunho ambientalista raiado de respeito por todas as minorias. Hitler, odiava-o! Ao autor de «Bambi» que fez agora setenta anos de marcha improdutiva para alargar a sua urgência para um mundo capaz (que nós ainda nos deleitámos nas “conversões” Disney desta história de amor e resgate) atravessado pouco depois por razões paranoicas da “pedagogia do real” que de tão falha «Bambi» foi dormir para a sua floresta de sonhos sem desejo de regressar. Nascera em Budapeste, mas era austríaco, um austro-húngaro tal como o seu poderoso inimigo, o caçador das florestas europeias que derramando ódio ao ciclo natural da Floresta incendiou a Europa inteira[ que todas as ignições aparecem como forma de desespero diante de um mundo em colapso, e é com extremo respeito que esta obra nos parece encaminhar agora para exultação comum]. É tão ecológica que não precisa de menção, sendo a sua edição entre nós, verde- «E- Primatur» – e tão estranhamente crística que o pequeno cervo parece uma ovelha. Os livros de Salten foram para as fogueiras já em 1936, que a indústria do papel tem como ciclo programático criar depois uns delinquentes que transtornados pelo efeito da celulose fazem piras com “eucaliptóides” onde em terras lusas se mitiga assim o efeito da fornalha inquisitorial de incentiva à piromania em que o vegetal compromisso está sempre além do caçador, ou seja, o nazismo arde em frente dos “nossos narizes” que esperam a grave oportunidade de se juntar a ele com vestes que não estejam associadamente chamuscadas. Sem transtorno, que isso é coisa de antanho, e já apetrechados de virtual capacidade para se susterem, vão treinando o fim definitivo de todos os equilíbrios com informação de alto grau para denunciar os nichos de liberdade que andam à solta, que é talvez o que restou do nosso « Bambi» travestido ainda de americano, mas teluricamente implorativo face àquelas coisas que jamais deveríamos ter esquecido. Este é um livro que foi escrito em Viena em 1923 e publicado originalmente em Berlim, os ventos de mudança no Império traçavam vias onde as reservas de ternura deveriam ser apagadas para dar começo ao Urso e ao Lobo, no fundo, antropomorfismos desleais de uma seita humana tão decrépita que os grandes predadores a ela se escusam, mas foi neste ambiente quase premonitório de um adeus aos trilhos da floresta sonhada que esta dádiva se deu. O grande caçador como nuvem de um fogo negro iria abater as mães da natureza e dar todas as ordens para abertura à Caça. Felix foge para a Suíça, afinal era judeu, mas a sua lenda vai sempre connosco acompanhada de encanto e denúncia perante a sensação de que pouco ou nada aprendemos dos dons da vida através da escrita daqueles que nos alertaram para o perigo que somos, mesmos nesta torrente sem sentido aparente, mas que parece refazer-se em nosso destino comum. Esta alegoria devia ser enaltecida e construída para memória social, que os nossos povos já não sabem nada do que andam a fazer. A Europa é demasiado bela para os europeus e, no fim, mesmo no términus da viagem : « a vossa mãe não tem tempo para se ocupar de vós… Não és capaz de ficar só?». – Não!
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasImpermanência É ela a grande dama do chá «Anicca», um conceito a que se juntam dois outros e que nos fala de mutação, essa constante do universo na melhor acepção budista que assenta na fluidez e no vínculo temporal que mantemos com as coisas e a consciência; ela pode ser até a porta giratória para as várias situações que ao serem interrompidas, se esgotam, morrendo, ou voltam mais tarde de outra maneira, não havendo o caminho linear que produza ditame último. Talvez tudo deixe de existir quando não fizer sentido, que o sentido do universo será essa forma de ” bailya d´amor” associado ao fluxo do tempo que passa. Este maravilhoso princípio aplica-se a tudo, e não será de mais lembrar « o banhar nas mesmas águas» que manteve para sempre jovens os filósofos gregos, onde mais tarde dogmas vários foram abrindo fissuras para essa capacidade de se conseguir estar vivo por sucessivos fenómenos que transpõem o fim de considerados limites: aqui a morte entra no conceito, não como términus, mas ainda como processo constante de dádiva permanente, e é bem por esta perspectiva que o fluxo das coisas deve ser constante, que o mesmo universo de movimento vasto deverá ser um só e único Poema num verso que aqui se integra condensado. UNI(VERSO). Os dramas agarram-nos como âncoras, e quando reparamos, sabemos que interrompemos o ciclo fluvial das marés e questionamos os pescadores sobre o canto de amor das baleias, que eles pensam ser sereias, sentindo-se atraídos para o mar profundo pela melodia cuja princípio fluído desconhecemos em nós. Esta imponderabilidade é mãe de lendas e narrativas, encanto que não devemos incapacitar pela sorte artificial dos bens terrenos agarrados a férreas estratégias de fixação. Que a terra dura, se refaz, e se transmuta tão insistentemente como qualquer outro elemento prendendo aos mastros os Ulisses, e embarcando-os em todas as «Naus a Haver», que em nós, nunca repousa a dúvida nem permanece o estanque sentido da certeza; não há certeza, ainda assim habitamos em tudo. De repente, a vida não quer que a nossa própria vida caminhe pela rota traçada, e traçamos mais caminhos cujo futuro desconhecemos – que o futuro se esconde enquanto o olhar de ontem permanece imóvel- e ao não controlarmos coisa nenhuma deixamos todo o espaço de uma fonte, vazia, para requerer a sua habitação, mudando-nos na via da composição como uma outra qualquer estrela. Nunca saberemos quem vamos encontrar, ou melhor, integrar, que o encontro, marca já o desencontro, mas na integração não existe mais a chacina da ruptura. A Desfiguração, esse gigante imanente a toda a nossa produção da ideia moderna, não entra aqui. Não se está alinhado aleatoriamente compondo um sucessivo historial de coisas na vertente do ego, não morando portanto nesta inqualificável unidade que se diria inefável a todo o sábio budista, que para tal leveza teve de ter toda a disciplina de uma vida, mas onde podemos recorrer a algumas semelhanças mesmo na mudança de rumo que vemos flutuar entre as duas injuções. – Mutável, não é mutante, diferente, pode acabar por ser igual, mas unido, é um algoritmo que transcende a base de dados até do espectro virtual. – É belíssima a capacidade oriental de saber contemplar o cálice vazio! Mas, vazio de quê? Esta pergunta separa-nos para sempre, que velozmente as nossas sociedades perdem também a sua dinâmica de “cálice cheio”. E cheio de quê? [Quem estava antes virá depois, quem estava longe estará presente, quem acreditou será traído, quem venceu será derrotado] por instantes tudo parecerá a antítese dos construtores de verdades, mas quem trilhou o caminho do meio estará ausente das consequências finais. No centro não há princípio nem fim, o Cabo das Tormentas engloba as escusas que fizemos a um tal encaminhamento, crendo-nos o centro de uma centralidade indevida manchada por exaustivas imprudências de contemplação. Entre «Encontrado» e «Encoberto» prolonga-se na vida o silêncio escuro da paz, que a luz faz desaparecer a escrita terrena que cega os seres que não sabem da leitura para além de seu limitado alfabeto. Que nesta impermanência, toda a luz sobeja. Ela que nos queimou os manuscritos não resguardados e nos fez soletrar a treva sem a disciplina para o nada da imponderável manifestação. Digo, esquecimento. «…. Quem consegue desligar-se do mundo E sentar-se comigo no meio das nuvens brancas? Han Shan
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasRomantizar o mundo – Neste asfalto em que tudo é a causa de um efeito imediato e onde a casualidade se interpreta como sendo ela mesma matriz de esperado movimento, todos os seres deviam estar unidos por vínculos perecíveis, sim, porém de longo afecto, até se atingir no grupo a quintessência de um movimento maior. «Le Monde doit être romantisé» – é Novalis quem o afirma de sua época nada remota e que ecoa agora como necessidade e urgência: se não o conseguirmos, perecemos. Abandonados ao medonho das configurações onde se ajuíza tudo de todas as maneiras, retemos o grau de aceitação para mostrar os caninos ungidos em despudoradas formas felizes onde se nota o predador triunfante e grosseiro de um mundo “trincado”. Este triunfalismo “sadio” tem de ser abatido! – Devemos então romantizar o mundo dando espaço aos mais constantes temas da nossa civilidade que vão muito para lá da sepultura das políticas locais, dos pareceres domésticos, e do transe obsessivo da fealdade do atrito como segmento de complexidade cheio de interesse sórdido mas nunca buscado pela inteligência pura. É claro que o desassossego de se ser algo para o qual não se tem aptidão pode provocar em sociedades assim embustes medonhos, onde alguns apelam a uma certa reserva de bom-senso para não partilhar do seu alarme. Por derivas misteriosas, encontram-se os seres manifestamente repulsivos, e em suas manifestações tributáveis são ainda a senda de todos os pareceres em tentativas de torturante afirmação; decrescemos em civilização perdendo o pulso sanguíneo de nossa lenda distante. – Há vidas acelerativas! Novalis viveu vinte e oito anos, a sua vida breve produziu longos tratados e a sua romantização sincopou o estatuto dos mais fiéis depositários do estilo. Não falamos de “efebos” politicamente tidos por alguns governantes como grandes beneficiários das ablações entediantes produzidas pela longevidade, falamos de um homem que num espaço curto de tempo não teve intenção de reproduzir vícios, e através de um sintoma autónomo cujo grau de competência desconhecemos, nos vem dar mensagens essenciais para os dias de hoje. Pode-se escrever em fragmento de uma forma concebível, mas apenas e só, aqueles que de tão inteiros se não querem imobilizar no labor da inércia narrativa, que o que existe de belo na fragmentação excede os ciclos de composição passiva das descrições, pois que este livro, se encontra alinhado na grande correspondência de um monumental alerta contra as derivas mórbidas dos especulativos exercícios das personagens esdrúxulas. – São cinco manuscritos escritos por Novalis a Freiberg, na primeira metade do ano de 1798, e não creio que exista ainda uma tradução portuguesa, mas nós faremos o melhor na esperança de conjugar o que está suspenso na esfera salvífica que é dar a conhecer em português transfigurado aquilo que na grande composição foi ainda, e também, o nosso Romantismo. Descrer de tantos dons por imposição de uma época é uma forma de assassinato colectivo, e nada existe mais fácil de reverter que a tendência suicida. É fácil, sim, porém, não ajustada a um princípio que a impeça. Já todos jogámos às originalidades, porém «Le monde doit être romantisé. C´est ainsi que l´ on retrouvera le sens originel.» Tal operação, diz ainda- é totalmente desconhecida- (já o era no seu tempo?) – [apesar disso dou ao trivial um sentido elevado, às coisas comuns um aspecto misterioso, e ao conhecido a dignidade do incomum, ao finito a aparência de infinito, e é então que tudo romantizo] – Paramos diante das lendas dos sonhos por resolver, que eles esperam de nós maiores proezas que não correspondam à ruptura do pensamento, fórmulas estilísticas de omissão, e outras coisas assim… – Estamos diante de uma beleza prestes a ser conceptualizada sem a afronta temível da razão obscura dos ideais gregários, estamos na Romantização que precede o mundo, onde um dia encontrar um Homem será felicidade tanta que ficaremos ardendo de memória universal e de contentamento constante. Pode ser para breve esse tempo em que iremos enquanto espécie sentir saudade imensa. Depois, virão «Os filhos do Homem» mas não serão Românticos, ou aqueles que considerámos romantizados para inaugurar aquilo que foi este nosso destino. Comum. Que incomuns serão sempre os humanos que farão obras como esta: “cada palavra é encantamento, e todo aquele que a chama pelo espírito o fará aparecer” que o nascimento do Amor requer a proeza de não sermos ninguém, apenas essa grande centelha que uma luz transmite pela eternidade fora.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasNão nomeado Sabemos, sim, que não podemos nomear o inominado até por uma exclusão de partes que não é mencionável, e mesmo assim, nós que fizemos da linguagem o agente criador de realidade, ficamos aquém do dizer que a palavra transmite, que em última instância a linguagem não se quer agente para demonstração lógica de factos, mas sim para uma inventividade que é necessária para ultrapassar o limite- todos os limites- que a sua própria corroboração nos ordenara. Entre a intenção do dizer, e o “trans- dizer” existe ruptura e novo diálogo. O domínio da sua transfiguração cabe aos poetas, aqueles da insondável formatação por vertentes não equacionáveis, recusando-se talvez aos do bem – dizer nas suas bases de mero exercício formal, que em última instância só têm linhas tortas. Sempre será preciso muito além para se prescindir de aspectos seguros e bem acabados, rompendo por dentro a expectativa de se ser compreendido. O poeta, por que o é, será sempre o ser de fronteira e do limite das coisas, e ao mencioná-lo enquanto elemento transgressor não o devemos servir a frio numa plataforma de quentes centralidades e inspiradas melodias. Nada disso lhe é subjacente, ou então ninguém saberá para o que vai, dado que depois de todas as conquistas e actividades laborais, cada ser, quer afinal, e no topo de seu desejo absurdo, ser um poeta. Ainda bem que tais desejos não implicam resoluções, e que nesta dobragem um tanto ou quanto falaciosa, vamos encontrar uma massa do grande SNI em nossos “artistas de fim de semana”. « Sentimentos todos nós temos» F.Pessoa.- Sim, e depois? Estranhamente não são os sentidos e os sentimentos que fazem poetas, mas como dizê-lo numa sociedade que se pensa livre e que “livremente” exercita a sua anedota de grupo de maneira tão libertinantemente natural? Creio que a grande resposta é enfim não dizer nada, mas sempre retirando qualquer vestígio de soberba e de cinismo. Kabir exemplifica este ser só no meio da jornada onde em vão se deseja colocar a natureza entre uma e outra influência, este poeta cuja primeira edição aparece na Europa na tradução inglesa de Tagore em 1915, foi um poeta de uma India Medieval nascido no século XV que muitos crêem ter sido uma síntese sincrética do Hinduísmo e do Islamismo. Mas não! Foi deles um crítico, indo até ao insuspeito Sufismo. De todas elas, por educação e herança cultural teria de ter total conhecimento, mas que transformou em outra visão e iniciação. Mais tarde reindivicaram todos a sua posse decididos a chamar para si o poeta que ousara não ser nenhum deles. E eis então que nos surge entre as mãos um maravilhoso título «O Nome daquele que não tem nome», Kabir, numa pequena e preciosa edição, e sabemos qualificar a dimensão de um poeta assim. Basta ter saído das estruturas que fabricam talvez essa ilusão do ente criador, para sem dúvida ter sofrido alguma opressão no tempo que lhe fora dado viver, e depois, talvez se tivesse inexoravelmente colocado nessa parte silenciosa do difícil poder criativo. Não o vamos porém encontrar circunscrito ao nada niilístico gratuito e solitário. Não! Esse não foi o caso – ele fizera parte de um grande movimento iniciático da Índia, no conceito de Absoluto, e por aí trilhou caminhos cujo alcance estão fora da rota canónica e das grades das vontades alheias, crê-se que no seu caixão foram encontrados manuscritos de negação a essas duas correntes teológicas bem como um “bouquet” com as suas flores preferidas, isto porque, uns queriam cremá-lo segundo os costumes hindus, e outros enterrá-lo de acordo com os costumes muçulmanos, mas nunca ninguém viu o seu corpo morto. Talvez que entre céu e terra e muitas certezas, muitas outras coisas existam que desconhecemos e que preparam o tempo de serem vistas. «O nome daquele que não tem nome» continuará a ser uma busca na definição de coisas outras ( não em forma de metáfora) e de um além não nomeado: os Hebreus sabiam lidar com esta componente por meio de uma exegese magistral dando sempre nomes vários, dezenas, mesmos, mas em nenhum se retiveram, procurando sempre, o que os tornou sem dúvida muito fortes ao nível da inteligência pura, os católicos também sabem por inerência que não se deve pronunciar o nome de Deus em vão, mas vã foi esta determinação na Família Católica. Há no entanto a ressalvar que na antiga Pérsia os povos oravam aos poetas, e talvez essa prática tenha passado para o Islão. Não havia separação entre estas coisas cuja simplicidade Kabir deu testemunho extraordinário, talvez por serem os mais próximos daquilo que não pode ser encontrado, ou seja, nomeado. Lendo livro após livro o mundo inteiro morreu e nunca ninguém aprendeu!
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasPães de Deus _ Insurgiu-se a caridade por via católica com aspectos que nos parecem iniciais e só por ela continuados como um solfejo de garantias eternas, mas esta interpretação que nos remeteu para o Humanismo actual não é ainda uma originalidade nascida no ventre de Maria. Já Buda nascera contemplando a caridade, enquanto uma certa apostasia monoteísta inventava os seus dogmas para a circunscrever a eventos só seus, que um tal dissidente judeu, pertencia ainda a um grupo ascético dos «Puros do deserto» e não fora jamais por si mesmo capaz de criar o seu próprio dogma. Neste xadrez das coisas feitas e pensadas, não facultaremos a vinculação aos dados de quem por inépcia e mau caminho, recriou uma narrativa que por séculos fez vítimas e Concílios de terror. _ A fome faz parte da condição humana, e também animal, sendo o grande impulso para a capacidade da manutenção das espécies, a fome feroz obrigou a legislar e a capacitar os seres a uma justa retribuição das fontes alimentícias, o que acabou por fazer proliferar a nossa espécie com redobrado sucesso, mas, não é uma componente caritativa, e muito menos dirigida aos menos ou mais necessitados; trata-se de função vital. Ser-nos-ia inconcebível enquanto alcateia maior condenar um outro à fome, essa – monstruosidade de grupo- e alguém ainda se robustecer de influência no cumprimento de tal matéria. É por interpretação irregular que nasce a subserviência e a triste condição daqueles que têm fome. Se por incapacidade mental os seres não se sabem nutrir, haverá sempre recurso médico para a disfuncionalidade, e garantias de que a situação se reverta com as leis certas do tempo social. Que Bancos Alimentares são Bancas Rotas de imodéstia, e por que não dizer, de redes mal posicionadas para a dignidade e transparência enquanto práticas maiores. – Não ao escuteiros meninos nos peditórios! Não às senhoras fedorentas nas actividades de nutrição no espaço social- . Sabemos que há fomes atávicas, e a memória dela como instinto maior gera a ganância produzida por esse indomável espectro que leva a armazenar ao que a outros faz falta. Mas, voltemos aos pães. _ Os pães que prodigalizam o produto da primeira transformação tal como o vinho, nascem longe no tempo, inserindo-se no sedentário caminho de Noé quando planta a vinha depois do Dilúvio, e vamos posteriormente encontrar no «Livro dos Reis» o efeito socializante da sua multiplicação e a dádiva benigna daqueles que repartem « REIS 42»:( mais tarde iremos ver a adaptação desta passagem em São Lucas « Primeira multiplicação dos pães») e constatamos que não há muita capacidade para interligar os diálogos que ficaram interrompidos no sectarismo de séculos junto aos povos cristianizados. A mesma história não requereu entre estes últimos a exegese merecida para cumprimento da compreensão, e foi nesta base semi-ignorada que levámos a outros povos batalhões de equívocos que bastaram. Esta multiplicação, no entanto, é mais que uma noção de quantidade (ambas chamam a atenção para tal facto) nas duas passagens elas mostram-nos a consciência do bem que é repartir e comer na boa repartição de grupo; não precisamos de muito, talvez do melhor que a vida dá e transforma em Ceia comensais satisfeitos. Como o alimento era abençoado ele percorria a divindade do ser que estaria nutrindo, tudo isto ainda à margem da conspiração prazerosa das inqualificáveis receitas culinárias dos nossos dias. _ Para dizer que não desvendaremos jamais a “Encíclica” imposta sem nos debruçarmos nos Hebreus que ditaram nas muitas transformações do texto bíblico as bases da composição que fez nascer um Cristo. Mas, também, toda esta trança entre língua hebraica, aramaica, grega e romana (latim) nos distanciou, quem sabe, do sentido profundo da mensagem.- Que uma Mensagem existe! O nosso poeta, aquele judeu da Covilhã, interpretou-a poética e conscientemente à sua maneira, e talvez lhe tenhamos perdido o rasto, de tão absortos que andamos na genialidade individual fruto do acaso e de outras patranhas. «O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo» de René Guénon dá-nos ainda ampla amostragem da derrota que foi a avidez, aqui, onde já nada havia a fazer para a transfiguração maravilhosa da « Multiplicação dos Pães».- Quatro planetas não bastavam para tanta fome! Aqui chegados, talvez ir de novo ao «Livro dos Reis» que um Cristo é afinal de contas tão alto que não há guindaste para o alcançar. Mas ele veio deste veio de vida que um Povo em marcha ditou nestes sinais.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSentido figurado Parece ser, sim, o que suporta a narrativa quando falamos de realidade, longo epílogo de conclusões que se fecham sem que a atenção tenha de ir ao princípio retomar fôlego, que sem tempo para a origem, recriaremos frágeis originalidades, não estando nada acontecendo que não tenha acabado já. Este escalar de rupturas sucessivas reúne fragmentos que pode condicionar a tenacidade, derrubar a ternura e romper com ligações nervosas fundamentais para a transparência do ser. «Vocês, melhor aprenderem a ver, em vez de apenas arregalar os olhos, e a agir, em vez somente falar;… O ventre que gerou a coisa imunda continua». Bertolt Brechet no arrebatador Epílogo! Esta pressa de rematar nas várias formas de abordagem é contrária às leis da vida, e pode fazer que tudo se precipite para a tal “coisa imunda” que compõem as dissertações finais. A figuração é como a desfiguração, formas que se contraem e distendem à medida da ressonância do tempo, que também existe a transfiguração, essa capacidade que se tem em ser-se tocado por forças tais, que redobra em outras maneiras, quase iluminadas, como Moisés descendo a Montanha todo repleto de luz pelo contacto com essa escrita ditada…aquelas coisas que os outros notam e alguns carregam… Em sentido figurado podemos falar de toques assustadores, mas carregados de esperança. A mente que pode ser de Fogo, é capaz de ir buscar a essência para nortear as aleatórias vidas que nem a alma quer, só para colocá-las no rumo da sua viagem. Parece-nos sempre que o fim nos inquieta, mas que há mesmo assim uma vontade arrebatadora de se chegar a uma conclusão, e como o mundo se encontra numa grande deriva, há essa necessidade de términus que pode bem apressar tal desafio [não andamos sobre brasas acesas] que essas atestam o pulsar de vida pela dor que infligem, mas muito mais numa órbita cansada por não entender o propósito do encantamento para o próprio suicídio. Talvez que o sentido fundamental já não esteja entre nós, e nem figuradamente o possamos reclamar nesta grande epopeia das lutas finais. Não há «Epístolas aos Vindouros» que o significado da não “vinda” diz muito acerca de tudo aquilo que também já não esperamos, o que deixa remota saudade daqueles que acreditavam num futuro para além da sua circunstância. Somos um documentário em andamento forjado pelo peso das contemplações de todos os abismos, acresce que nos entendemos sem esperança renovada, nem capacidade de fazer mudanças que não sejam fugas, e nesta diáspora os sentimentos embrutecem. Tolhidos por todos os lados pela complexa rede que o capitalismo impõe para nos absorver toda a atenção para substâncias mais vastas, irrompem ainda alguns como cegos no meio de ilusões ditas pensantes: são os mais desgraçados, apenas por que não recriam a liberdade de ser de outra maneira. Não há plasma que embrulhe um negociante de artefactos numa dimensão que se veja ao longe! Ao embrutecer neste sentido figurado que se prende à grande caricatura, esta frágil Humanidade já na orientação de outra qualquer coisa “imunda” requer atenção. Tanto garantismo volveu-a à estaca zero em face dos seus valores fundamentais, que nós somos humanos não por causa dos sentidos, mas por tudo aquilo que foi elaborado nitidamente, e de tal forma, que concebemos a noção do amor. Somos todos mais ou menos espectadores e directamente criámos o espaço certo para o discurso traumático que pode irromper dentro de momentos na orbe que nos une, pois tudo agora nos distancia se não for decretado, dado que deixámos de viver de maneira a saber impor as nossas leis de forma consciente, irrepetível e soberana. Somos o reduto das provas que os sonhos desejaram resgatar da insolvência a um sonho ainda maior que não se deu, e mesmo assim, achámo-nos dignos de valorosas atenções que tendíamos a não distribuir. Uma fumaça de egos em quadrigas incendiárias fizeram regredir tudo isto para o tempo de um relógio cósmico que dávamos por certo ter sido ultrapassado, mas todos os dias ele acelera um pouco mais, até a um tempo ulterior à frágil memória. Em sentido figurado, somos agora a coisa imunda.