Jerusalém

«A cidade santa de Jerusalém» traduz nesta nobilíssima expressão um oxímero e o que a reveste não foi jamais conseguido, os abismos não serão menos santos que as suas colinas- que eles não olham para penhascos- e se não é a santidade que a governa, nem por isso todos se sentem próximos dela. «Todos dizem que chegaram a Jerusalém (judeus, cristãos, muçulmanos, socialistas, anarquistas e reformadores do mundo) acudiram a Jerusalém, não tanto para a construírem ou serem construídos por ela, mas para serem crucificados ou para crucificarem outros. Há uma desordem mental muito arreigada, uma reconhecida doença mental chamada «síndrome de Jerusalém»: uma pessoa chega, inala o ar puro e maravilhoso da montanha e, de repente, inflama-se e pega fogo a uma mesquita, a uma igreja ou a uma sinagoga.» Assim a descreveu Amos Oz e, sem dúvida, que deve haver na sua origem uma qualquer influência alucinatória que ao longo dos tempos contribuiu para severas lutas, acontecimentos únicos, transcendência e queda, desolação e esplendor. Vimos como pela Porta dos Leões o movimento sionista conseguiu finalmente entrar e fazer que os judeus ausentes do Monte do Templo por mil e oitocentos anos caminhassem em júbilo destronando camadas de culturas instaladas junto ao Muro Ocidental.

David já tinha conquistado a cidade aos jebuseus e Maomé feito a sua viagem nocturna, Jesus entrado para celebrar a Páscoa, intricando a cidade numa seminal fundação religiosa de que nunca saiu. Jerusalém é santa, Jerusalém é noiva. Todos a disputam, por ela a humanidade enlouquece. Não será uma torrente de leite e mel e muitas vezes transforma-se mesmo num jorrar de sangue e fel, e nem mesmo assim perde a brancura da sua santidade e o encanto do seu legado. Agora são os arménios na Cidade Velha a chorar as ofensivas, estão ali há oitocentos anos, não crescem nem diminuem, fazendo parte intrínseca da paisagem, e claro, quem por lá andar pode sempre testar a possibilidade de estar entrando num outro umbral.

Nem Adriano tão cheio de seu Império consegue nomear por muito tempo o nome sombrio de Élia Capitolina, que o Templo destruído, não consentiu, nem o povo da Judeia alguma vez ousou pronunciar, em consequência, foram proibidos por séculos de lá entrar. Depois de persas e romanos, só no Califado, já sob o domínio árabe, os judeus tiveram autorização para regressar. Mas viriam os cruzados, que matariam uns e outros até ao extermínio. [Jerusalém, a Bela das Nações, foi palco da avaria rotineira da sede de conquista e da uma eloquência passional]

No turbilhão lançado podemos estar confrontados com um tipo de atracção fatal que, e voltando a Oz, enlouquece povos, nativos, e quiçá os de passagem, um umbigo nevrálgico para onde converge a saga do mundo para transcender do infortúnio de uma demasiada, e ainda, humana condição. Que somos atraídos para os centros do milagre, e somos dirigidos como taumaturgos por visões celestiais cuja presença ao não se dar, pode reverter em pasmo e dor. Por pouco tempo seria o anfitrião Saladino bem sucedido, viriam mamelucos agora correr com os cristãos, logo após ter ficado saqueada por tártaros. E a Bela não descansa! Mas vai adormecer por alguns séculos na regência do domínio otomano, não que tivesse estado parada, mas menos abrupta dentro das suas muralhas que se quebravam com trombetas. Esta Jerusalém quase vira Feiticeira no amplo emaranhado das transfigurações de uns e de outros, mas, como sabemos, ela será sempre a cidade de Deus.

Nos tempos bíblicos parece que tinha o odor do Paraíso, que as suas cercanias cheiravam a pinheiros, cedros, árvores de fruto, rosas de Sharon, e crê-se que corria pelos seus desfiladeiros leite e mel. Os santos homens comiam gafanhotos, alimentavam-se de néctar, oravam, enchiam os pés de areia e por ali seguiam o trilho de um percurso de retorno ao céu. Ao lado do Mar Morto ainda podiam andar sobre as águas vencendo assim a lei da gravidade… e ainda em seus rios há pássaros com asas. Todos nós já fizemos esta viagem nocturna como Maomé, e lá nos encontrámos com a sarça-ardente, os profetas, e o cheiro a rosas… todos caminhamos, somos expulsos, retornamos e choramos na margem de um qualquer Sião. E todos achamos que esse sonho foi único, profético e só nosso. Mas não! Esta é a saga humana.

E talvez Borges responda a este último parágrafo «Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu. Israel aconteceu quando era apenas uma antiga nostalgia. Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos».

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