Vladimir Maiakovski

Seria então cometer duplo suicídio colectivo se neste instante – Hora do Mundo – deixássemos de lembrar o que define a qualidade dos povos, os poetas que lhes nascem. Este é um Vladimir para a eternidade (se a houver) e alguém de uma exasperante beleza. Nasceu na Geórgia, como Estaline, parecendo-nos duro, grave e cheio de magia- é Maiakovski- o agente da transformação poética do século XX; revolucionário, futurista, coração gigante e tudo o mais que o melhor englobou; é o rosto de um século espectacularmente fecundo, logo a abrir num arrebatamento que transfiguraria para sempre as sociedades, essas imponderáveis organizações que podem capitular repetidamente o seu pior, esquecendo o quanto de bom lhes assiste.

O Futurismo russo separa-se do italiano por vertentes bem mais refinadas e labirínticas, pois que nele o fascismo não entrou, como foi o caso do primeiro, e foi todo ele feito numa utópica capacidade de mudança sem mencionar os dotes tecnológicos de impactante frieza logo a abrir e, por isso, o grito Maiakovski ” exigimos respeito pelo direito dos poetas (…) a uma raiva irreprimível existente antes deles; a arrancar com horror da fronte orgulhosa a Coroa, feita por vós duma vassoura de ramos e duma glória de dois patacos”, estando destruídas as conveniências de qualquer composição idólatra face aos regimes que sobre eles e pelas suas lutas avançariam.

Escandaloso! E pode ser a expressão exacta para definir tal comportamento em rota de colisão com a floresta de dogmas e tradições paradas mas, no caso do nosso Vladimir, tudo se tornaria bem mais exigente findo o arrebatamento deste primeiro embate. E ei-lo avançando com o rigor poético de sentido de missão, levando esta experiência da sua escrita a patamares de comoção e qualidade, quase insuperáveis.

Tem a alma do Império Russo estampado na fronte, este ser que ajudará a quebrar uma primeira etapa de um ângulo que nos parece lendário, e todos os regimes serão nesta perspectiva tão necessários quanto medonhos, disso temos experiências e certezas e, via Molotov, ver-se-ia pressionado por todo um dirigismo em matéria literária saído paradoxalmente da utopia que na sua paixão ajudara a edificar. Não irá permitir que o domem, ser preso uma vez mais e suicida-se. A construção do Homem Novo sofre revezes que os sonhadores desconhecem.

Transbordamos de manifestações políticas e pode ser este o momento da manifesta noção exacta da nossa pequenez, do nosso transtorno, do nosso atavismo, mas também isso nada quererá dizer face a monumentos como o poeta Maiakovski, que os povos devem ser lembrados e julgados pela qualidade dos poetas que lhes nascem e nada mais.

Reflectir o que nos trouxe a Hora amarga e não sublevar as conspiratórias doutrinas de uns e de outros, dado que as coisas grandes como bem disse Holderlin “os poetas o fundam”. Se os lêssemos, as guerras não seriam possíveis. Se com eles nos familiarizássemos, as agruras dos dizeres acabariam por ser esquecidas, mas o tempo ímpio devolve uma natureza imprópria para a paz. Que a guerra, pode ser feia, mas mais terrível é o nosso estranho estado de párias de uma dimensão desconhecida.

 

Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zôo,
sorridente.
Ela é tão bela,
que por certo, hão-de
ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas, […]
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava como um poeta

9 Mar 2022

Arcano XXII

Falar de loucura nunca é assunto agradável, muito embora (e pese as devidas considerações que lhe assistem) seja tratada pelo desaire normativo como qualquer coisa de extremamente interessante indo ao ponto de a considerarem até libertadora. Mas só os escravos têm tais interpretações, sejam eles de que natureza forem, e se empolguem depois a fingirem-se de loucos sem nenhuma apetência trágica para tal condição.

Penso que assistimos impávidos a um drama de autoproclamados loucos, que mais não são que mentes equivocadas, e questionavelmente interceptadas pela falsa sugestão de se parecerem com uma sistemática ideia de génio. Esta forma arbitrária de tocar em tal noção tem produzido uma escalada daquilo a que designamente apelidamos por tontos, que é uma forma de cretinice moral com alto espectro à boleia de múltiplas “originalidades”. Só que a loucura não lhes toca – nunca os tocou – e por isso seguem sendo, assim, sem consciência, que de tão apavorante e não emblemática, avivou ainda mais a noção da malignidade da espécie.

Sobre o tema, parece que já tudo se falou, todas as grandes obras dela transbordaram, o que a faz muito próxima, e ao mesmo tempo tão intrigante! Dela nos dá Erasmo o seu Elogio, nos fala Gogol no seu Diário, e claro, são obras que devemos saber de cor para nos abastecermos de lucidez, que tempos diferentes têm no entanto este domínio imutável que os trespassa e flagrantemente o número do Arcano que nos é dado por Jung na sua busca sempre memorável por este nosso inconsciente colectivo, numa incrível viagem arquetípica acerca dos arcanos menores do Tarot. Esta viagem irá levar-nos a aspectos razoavelmente aperfeiçoados da sua funda natureza – o que se compreende – as grandes questões, por mais que se desenvolvam, têm apenas dois ou três pontos fortes, tudo o resto são derivadas, e não será por elas que o cerne poderá ser visitado.

Quando o Ano começou, bom de ver que o número vinte e dois anunciava uma qualquer inquietação numérica muito própria, ele é exactamente o Arcano do Louco, «Le Mat», pela interpretação simboliza também o zero, essa invenção numérica árabe que tanto fez avançar a ciência construindo o sistema decimal e a noção filosófica do nada, não estando numerado, e vagueando acima das vinte e uma cartas que compõem o baralho, ele é naturalmente o número vinte e dois (com que definir o Louco?) e assim poderemos começar a pensar no Vagabundo, senhor de dores tamanhas que precisa de espaço para a sua caminhada. Pode parecer-nos risível, mas ele contém doses letais de martírio e sofrimento prestes a pôr fim a tudo o que dele se aproxime.

E começam as doenças mentais! O grande emblema de uma sociedade patológica cravejada de felizes dogmas, mas de componentes desprezíveis de amor, que eles, liquefeitos de transtorno, irão lançar à cara estupefacta de todos os incautos. E vêm doridos, feridos, trágicos, inconsequentes, insurrectos, opressivos. Ninguém parece saber lidar com tal desastre que só se manifesta quando a sociedade requer uma pragmática definição de reais funções, e não há nada de alegre, de compensador, de iluminado na loucura, ela é trágica, e firma os seus ajustes na incompetência humana para testar a sua culpa.

Jung, no entanto, parece-nos muito menos lacrimoso, e vai juntar aspectos enaltecedores ao seu Arcano, não suspeitando nunca como o colectivo se transformaria numa amálgama cega, e já de si bastante “inconsciente” acerca do significado de tudo. Há patologias raras e tão capazes que ajudam até a rasurar a vã escolha dos assaltos à saúde, como existem outras do mesmo naipe, que ficam reflectoras da conjuntura estranha a que esta espécie está submetida. Uns passaram por cima, outros passaram por baixo. Eis a diferença. As instituições dos Estados esperam ainda que as tribos sejam mais eficazes que as normas da cidadania, só que as tribos são loucas e delas deriva hereditariedade pesada. Que pode um ser diante desta loucura?

” Nós fazemos vasos de barro mas a verdadeira natureza deles está no vazio interior” Lao Zi
Talvez ele responda ao nossa Arcano.

1 Mar 2022

Perdidos e achados

« Aquilo que é já existiu, e aquilo que há-de ser já
antes foi; Deus vai à procura daquilo que não se encontrou»
Eclesiastes-9-15

 

Um movimento perfeito é aquele que não desiste de procurar e com a busca transforma a forma ida na forma tida, mais além, ainda transformada. Nem a vida é circular, nem a Terra plana ou redonda, nem o tempo dado uma circunferência para o estertor do fim: a elíptica nos suporta com delicadeza quando o cansaço da roda nos afadiga, é isso de que Deus vai à procura, daquilo que não se encontrou.

Podemos contornar todas as fórmulas do processo, tentar pedir pela sua continuidade, mas de nada serve se com tal ensejo apenas se reproduzam as coisas conhecidas. Há uma qualquer outra, fora da tribuna, que é passível de uma atenção desmesurada, de um amor louco, de uma inteligência pura, de uma inocência não contemplada… isso, é o procurado na igualdade de quem busca.

Este é Jesus, Jesus Ben Sira. E se toda a casa de David pareceu amaldiçoada, quem achou no vindouro a fina e delicada mudança, não poderá subtrair este apenas a um parente mestre. O que procuravam na grande luz dos céus nocturnos, os magos, e os filhos das tribos que já não vemos, é matéria de puro encantamento, mas serve ela para demonstrar que padecemos da ausência de um “cordão de prata” unido a um Altíssimo que por nós fez interceptar os que não foram encontrados: nem no Livro da Vida, nem na própria Vida, nem no vasto Cosmos onde por deleite ainda estendemos o olhar procurando o significado de todo esse desconhecido.

Soçobrámos!- É certo que renovados. Mas renovados de quê?

Por uma contorção fora da averiguada tendência da análise podemos estar perto de uma mudança que as células desesperadas por continua actividade cega, não se dão conta. É embrionário o nosso “mundialismo” muito galvanizado pela palavra que já pouco diz.

O dizer daquilo que nos globaliza fere a procura dos signos por encontrar, e nem aqui paramos mais depressa que as feras maternais nas suas maravilhosas matanças para os filhos pequenos.- Qualquer deslealdade para com todos pode subjugar agora o mundo inteiro! Ampliado o espectro da consciência nenhum de nós pode retroceder e parar a marcha para aquilo que ainda não se encontrou. Bem- digamos os avanços, e sejamos rectos para enumerar as nossas faltas.

Este Jesus é o mesmo que também nos dissera que havia um tempo para tudo numa vida conseguida. «Tudo tem o seu tempo», mas nele também acrescentar que não haverá mais tempo para o ódio. O que será o ódio? Um desajuste que se encontrou e não fez sentido.

Mas para tudo isto, também as formas de sentir e viver estão agora obsoletas. Nós vamos andando, procurando, e pouco desviando a vida breve para terrenos intransponíveis. Nós somos monstros. Monstros sem capacidade para nos tornarmos coisas novas, grandes, não encontradas. Encontramo-nos monstruosamente uns nos outros como gentis bestas de uma era acabada. Achámos o nosso poder, o nosso dever, o nosso transbordar, mas mais nada nos quer encontrar. Isso é o nosso processo -hiato- mais lendário.

Quando Pessoa ousou afirmar que «deus é um deus de um deus maior» apenas quis dizer «porque o que está alto tem acima de si outro mais alto, e sobre ambos há ainda um outro mais elevado». Foi encontrada alguma coisa que ninguém entendeu, é que Deus, vai à procura dos poetas.

23 Fev 2022

O Ouro dos Tigres

E estamos em trânsito para o Ano Novo chinês engalado a Oriente com muita cor, fantasia e dias cheios de esperança. Este irá ser representado por um belo ser que vive na nossa memória colectiva como um abrasante representante da beleza: o Tigre.

Foi o Ano do 25 de Abril e, claro, só isso faz dele um estímulo sem freio para as nossas festividades. Raiado e real, alistemo-nos em sua pelagem de gigante solitário, altivo, cruel para com a progenitura, e coberto de dons que parecem malefícios: é um Tigre, e enfrenta a vida com a mesma crueza com que ela se nos apresenta.

Este é o título de uma obra de um seu grande amante, Jorge Luís Borges, fascinado e transido de emoção por tal criatura existir na Terra, sendo então uma colectânea de quarenta e oito poemas que viu o seu nascimento em 1972, que eclodirá na fórmula ” O ameaçado”: “o horror de viver no sucessivo”, que irá expressar a impotência dos seres majestosos e enjaulados, mas foi o tigre de fogo de Blake, que rondou os seus sonhos mais de uma vez em torno do poema; que estes gigantes encerram faiscantes dons que só o poema sabe cantar.

A gravura de Blake nele surge para ilustrar um dos mais belos versos da literatura inglesa, e dos tigres de um e de outro, as colectâneas encheram-se de listagens – do Ouro dos Tigres só sobrou na cegueira a cor amarela –
Nesta recolha há sem dúvida um dado mais a reportar-nos ao Oriente, pois que foi aqui que Borges tomou para si “Tankas”, a estrofe japonesa. A construção obedece a esta técnica de escrita, uma adaptação arrojada que só ele se poderia dar ao luxo, sem falhar, tal como um Tigre. Nós vamos coabitando neste Ouro como que movidos por forças estranhas, que obras assim nos dispensam problemas menores e pessoais, de todos e de cada um, na pouca interessante selva das nossas vidas. No «Fazedor» ele tem um poema chamado “o outro tigre”: “terceiro tigre buscaremos/ este será como os outros uma forma/ do meu sonho, um sistema de palavras/… buscar pelo tempo desta tarde/ o outro tigre, o que não está no verso/.

– «The Tyger» de Blake é um poema gnóstico, que ainda tem tudo de romântico – tigres da ira- mas aplaudidos mais como tempestades de beleza do que precursores de Leviatã, e se o Cordeiro aparece, lembrar-nos-á as pazes feitas com o Leão. Compenetra-se na simetria que deve ser uma matéria cara a um poeta que busca ordenar a matéria ferida em espaço harmonioso, que o seu caso é tão lendário como o do belo felino. Fala ainda do martelo e da bigorna, e nós, devemos seguir a retirá-los de todas as jaulas, que as forças divinas não são para subtrair a prisões para espectáculo de seres ensimesmados.

Que nos traga então Ouro, este Ano do Tigre, de natureza vária, e não tenhamos receio de atravessar a nossa fera interior para não sermos esmagados pela ferocidade alheia. A Oriente ruge o Tigre para que o seu Ano seja anunciado no cimo das multidões. Bom Ano, então.

17 Fev 2022

Falar de nós

Falando de nossos feitos, são os efeitos melhorados, seguros, e naturalmente previsíveis no que à autossugestão diz respeito. Muitas vezes nem acrescentamos mais interesse que o imenso prazer dado pela valorização das coisas que em nós se enaltecem. Mostrar de nós coisas tão iguais a outras quaisquer nem é bem uma disputa, mas tão-somente um reflexo comparativo que todos tendemos a distribuir.

Depois os que se afundam na intrigante “originalidade” que nunca, ou quase nunca intriga (exatamente pela ausência de tal componente) podendo nós mesmo afirmar que alguém carismático pouco se apercebe desse impacto em seu redor na medida que ele é inato, mas, e dado que é particularidade perturbador e sem resposta, os que falam de si falam também de outros «sis» “de si” “de sim” “de não” e assim, num alvoroço que desconhece o poder central, se vão ajaezando à andaluza (que ao vidente nada se recusa) os que falando de todos, de si falam com demarcação e lunatismo padecentes.

Falando de nós que também merecemos, nós, aqueles que fazem, que estão de pé, que não baixam a guarda, que todos os dias lutam na aflitiva selva do desarranjo mental do mundo, dos que estão sós por destino e suprema ambição de liberdade – falando de nós, digamos – nós nem sabemos bem o que de nós mesmos dizer. Parece-nos irrisório, por outro lado, uma grosseria ocupar tempo alheio com tais voluntarismos, e por isso somos sempre aqueles que menos falam. Gente existe que opina de modo reverberante qualquer tema como instigados pela pressa de uma revelação, depois, ela não vem, as palavras estreitam-se e uma pessoa pensa o porquê de escutar as gentes em seus delírios onde se depreendem males de cognição avassaladora. Mas a vida tornou-se nisto, ou mais ou menos isto, patranhas, entranhas, e muita molécula solta de ilusionismo egótico, erótico, entrópico… Sem nos darmos conta deixámos de ouvir os sinos da Cidade, que ela se tornou um negócio de casas, casarios para mentes não casadoiras, intermitente e bastante decorativa, caríssima e carente de inquilinos de condição sustentável.

As coisas de que se fala! Coisas gentes, agentes das coisas e outras mais, e o que dizem parece uma obra ficcional ao negro tecida por escaravelhos. Dizem que dizem, fala que falam, e o certo é que quase nada se escuta da amálgama tecedeira de uma irrequieta imaginação daninha que só dá frutos estranhos: que há nisto até quem conte com o nosso testemunho! Nestas dissonantes matérias faladas existe sempre o depositário bom senso prestes a normalizar pelo verbo mofo uma “poliquice” tão correcta que o som das vozes prodigaliza o sono que por vezes não vem e por elas logo aparece. Desta estirpe de faladores os mais monótonos são ainda os negacionistas; negam até a obsoleta razão de haver tais pensamentos com roteiro de muito poucos caracteres. Mas temos fala para muito mais!

Comovemo-nos perante todas as formas de energia móvel lançadas ao vento quando se transformam em energia limpa, são aquelas vozes que se transformam em canto ao dizerem o inesperado sem dar azo a nenhum contraditório- solilóquio, narração, encanto e forma- que a palavra tem o esqueleto dos verbos altos, é como os segredos, nós escutamo-los como feitos apenas para nós.- Que esta outra coisa fala de nós, mas nós não falamos dessa “coisa” que nós devíamos falar pelo espírito das coisas, e não pelo fonador, o aparelho mais estridente que nos pôde acontecer.

E como para falar são sempre precisos dois, o que falam dois o tempo todo metidos no falatório de cada um? Empolgam-se palavrosamente numa constatação de que nada têm mais a dizer, e isso seria até bom se para tal se calassem de vez. Mas não! Há sempre uma reverberação pronta a soltar-se no trilho das causas, que os efeitos se geram por si. E dito isto, falemos então.

Não tanto que nos impeça a vida de colocar questões, nem de argumentar o irrazoável, mas das coisas concebíveis e nada mais, que o inconcebível foi esta natureza do eco partilhado por vozes tais que diríamos falácia. Falemos como nos sonhos nas noites de Verão, e se não nos doer a voz, cantemos! Nós devíamos retorquir às perguntas, respostas cantantes, e retirar de uma vez por todas a carga episcopal dos retóricos de serviço, libertá-los, que é gente amordaçada. Devemos uma certa misericórdia aos algozes frenéticos da palavra, sem a qual, a sua condição de escravos fonadores não se daria.

E soltos e mais livres, digamos pois somente o que nos inspira o pensamento, que nós sempre falaremos, e iremos Rumo a Bizâncio, o belo poema de Yeats, dizer a sua primeira frase a título de filme, que também «este país não é para velhos».

9 Fev 2022

Da serenidade

E o colapso não é uma fronteira última, nem o que vimos descer uma vitória da queda, sempre em algum lugar havemos de cair mais fundo que o nível da interdição. Mergulhamos até ao chão oceânico por que tudo são partes do mundo conquistado – que nós, somos grandes produtores materiais, somos a própria substância da multiplicação, e «se morre, nasce…desmorre… » não nasce o organismo morto, mas a montagem da carga em cadeia na sua ampliação.

Conhecemos o descanso depois da luta, e o entusiasmo renovado após as derrotas, que enquanto predadores não nos é possível ficar sem cair, apenas quietos, que esta combustão tem de queimar, mas nunca os serenos destinos servidores que carregam outras leis, planeiam a deriva da condição (perigoso bem, este também) pois que estão revestidos de colunas salvíficas, de frente para a circunstância, o tangível, com todos aqueles que afrontam a existência em golfadas de ambição e movimento descontrolado, eles alinham os desígnios e impedem a derrocada, que a vida em ondas de choque contínuas terá as suas sentinelas a impedir a força do Trovão.

E eles estão sós. O mundo necessita da sua solidão, passa por eles a estrutura subtil da restauração da harmonia, do controle do desastre, desviando-o, e melhor que isso tudo, transformado. Necessitam de pouquíssimas estrofes estes tocadores de harpa de teias de aranha, eles que se infiltram, onde queda e condição não devem cegamente passar .

Não os reconhecem as gentes enquanto pedras angulares no seu exaustivo labor da pouca arte de viver, mas, ser-lhes-á servida a lembrança quando as coisas serenarem.

A eles, sempre lhes custará assistir à queda que parece sem fim dos grandes infortunados, à zanga terrível dos insubmissos, à rudeza dos factos, e aos seus inesgotáveis sofrimentos, por serem mais frágeis, por não conseguirem entender tais realidades: pois suas realidades têm um olho dentro da circunferência que perscruta todos os lados em simultâneo, e nesta paragem, dão-se conta da energia perdida que só eles ainda imaginam para onde vai.

Tudo isto é vida? É vida! Mas não entendível. Os condenados parecem ter dela áspera memória, e por isso inventaram as chacinas como acto último de uma estranha compaixão. Ficam então em órbitra os intocáveis, aqueles que entre a plenitude e o abismo se mantêm serenos, que a estranheza de que dão provas não é senão uma conquista pela graça, uma certa aceitação que não renega no entanto a dura coragem para defender aqueles que dependem do fluxo dessa mesma vida.

Terminamos dentro de momentos o mundial circular agente pandémico, mas a força dos materiais nunca se dissolve, esculpindo ao redor fileiras de intenções. E outros grandes desassossegos em marcha ocorrerão: Gaia magoada, em revolta fera por dentro das suas raízes – dores fêmeas de um planeta cuja revolta já hoje desconhecem os homens – trazendo-lhes o conhecimento inesperado do que é uma mulher, que embrulhados nas avalanches e nos fogos, incapazes de conduzir a própria marcha humana, Serenamente vimos estes abismos de olhos abertos, e nem sinal de julgamento foi equacionado.

Nessa dimensão não se desejará apartar os seres das suas quimeras, eles sofrem já demasiado. Todas as épocas foram duras, porque duro é o Humano, e se houver entre eles baluartes, será ainda essa voz escondida e vivificante dos poetas trazendo lembranças. Só que estamos num outro patamar da consciência, e o que aqui foi dito, suspeito ainda que devia ser calado, mas há momentos que não podemos mais.

4 Fev 2022

Nevermore

Falamos de um refrão, uma repetição para reforçar «Nunca mais» que o que passa não virá, anunciado pela asa negra do Corvo, que no fim de cada estrofe nos relembra que não se prolongue jamais a vã esperança. A vertigem sombria torna-se ainda aqui mais importante que uma narrativa moralista de intenção redentora na medida em que o puro objecto da linguagem não se encontra ao serviço de coisa nenhuma, escapando a todas as categorias, e apenas se centra na criação rítmica. Como conclusão, é tudo o que desejamos que a linguagem seja, um festim de boas ligações que concebam beleza e estranheza concertadas com um código de inspirador instante, que a temática sempre ensombra a qualidade dos textos podendo até suprimir a sua autonomia para se curvar a julgamentos redutores.

Um tal poema é tanto mais importante, agora, do que o foi sem dúvida no seu tempo, na medida em que desfizemos a linguagem num macerado volume de causas e efeitos que ditam a manifestação chamada realidade que não passa de exercício mórbido do nomear compondo as circunstâncias onde até a poesia, tomou para si, também tal suborno, retirando a capacidade do saber como marca da sua efabulação para ir sempre mais além. Sabemos, mesmo assim, onde andam as dores, e se amor existir, onde se encontra nos agrafos da melodia, que nestas coisas, amor ou desamor são apenas nomes que pouco nomeiam o fluxo da criatividade. – Podemos sim, criar realidade a partir do verbo, e quebrar realidades com o trabalho saído do seu génio, mas para isso, devemos estar livres para desempenhar funções que são invariavelmente difíceis.

Este belo Corvo não jaz nas calçadas flutuantes da cidade, não transportou nenhum mártir, nem viu martírio algum em que continuasse moura: «nunca mais» poderia ser cristã a tempo inteiro como desejaram as gentes, este outro Corvo fala-nos mais da desintegração final a que preside o nada. E no entanto, o sofrido Poe, range a sua dor por ter perdido a jovem amada, que sabe não poder ver mais, pois que para diante nada mais se vê. Ele ensina a esvaziar o cálice da ilusão com batidas nocturnas na janela, e espera que reponhamos a lucidez para encararmos que tudo é «apenas isso e nada mais» continuamos com ele até o sono chegar como um desejo antigo e confundimo-lo com o vento, a asa, o sopro, a substância.

S. Vicente vem numa nau qual Creonte para um mito daqui saído «Encoberto», mas o Corvo de Poe não carrega tais excessos, nem se balança em ondas acompanhando o corpo morto, ele deflagra toda a quimera numa componente calma e rasura a esperança florentina numa actividade onde tudo o mais nos parece rebuscado. É um talismã que nos vem alertar para o esquecimento. E nem nunca se conseguiu coisa igual! Não queremos, é certo, só que não podemos com estas leis tão fortes que presidem às nossas causas, que num ritmo belo na linguagem circunscrita, ele se despede das superfícies por onde a nossa loucura mergulhou como num lago de Narciso.

Até a saudade está ausente, e não será matéria de opróbrio que um poema tão raro se desfaça de todas as coisas conhecidas como sentimento, pois o que fica para além dos sentidos continua tão poeticamente puro como o grau de emoção que todos pensam que não lhe preside. Estar em nenhures falando com as trevas infindas corre o risco de ser ainda a grande paz, que sossego não há na busca de muitas coisas, que tudo vem de um simples efeito multiplicado.

«Deixe minha solidão intacta! – saia do busto acima da minha porta! Tire o bico do meu coração e tire a forma da minha porta!» Tantas coisas ainda para retirar! – “Lembra apenas corpo o quanto foste amado” e não esperes que a alma de traga recompensas. – Que nunca ninguém amou, é certo, e permanecemos sem ver o desastre imenso desta consciência que se desfaz, Nevermore. Nós brilhámos e ficámos saciados, já nada produz mais vida, na desesperança alongamos a espera como os monges se levantam para orar na madrugada. Depois, o negro Corvo, interpela-nos e ficamos bem, seguimos para o esquecimento.

Ditar aquilo que a nomenclatura linguística ilustra como materialismo e coroá-la de beleza, faz necessitar outras formas de dizer, que ditas pelo pragmatismo, elas se tornam rudes para fazer o trabalho imenso do descolar da condição: não devemos ser bruscos nem grosseiros face à evidência de uma realidade terrível, saibamos escutar o nome, Nevermore, como uma libertação, e toda a propaganda sobre a morte como um dolo a que nunca deveríamos estar sujeitos.

25 Jan 2022

Outras caravelas

Quando os cavalos estão com sede e a praça cheia, levamo-los a beber aos poços de Monsanto.
No topo da cidade aterram aviões regressados da guerra das estrelas.
E o bulício entre tempos cruzados sacode a vista do alto.
Um rei que se julgara perdido regressa enfim, teletransportado, envolto em matéria rarefeita.
O rio secou, é agora uma pista de aterragem de lava prateada, densa, brilhante,
Qual magma iluminado.
Custa a crer que tivesse saído daqui matéria oscilante e com ela navegado mundo.
Agora no frontispício deste livro que alguém escrevera, soletrando-o.
A capital, o país, a Europa, o gelo, as brasas, parecem lendas.
Neste ecrã vagueia-se pelo tempo em várias dimensões e todas as visitações são estranhas.
Descendo encontra-se muito caos. Os organismos de circuito fechado defendem-se em absoluto.
Dizem que é vida, e olhada assim, é tão singular como será por ventura estar aqui.
Entretanto os meus cavalos já devem ter bebido, vou sair da fórmula, pegar nas rédeas e olhar um pouco mais a cidade.

Caravelas?

Foi quando descemos da Arca
Havia animais- amámos os animais- e todas as aves do céu.
Éramos humanos, lembrávamo-nos de Deus.
Que a Terra já está no tempo da memória
Nem sempre ela rodou, e quando fixou o eixo
Nossas caravelas deixaram as águas para se encontrarem no deserto.
Nenhum sábio foi escutado, nem se sabia se sábios havia…
Foi tudo de repente.
Escuto agora, que Noah, um menino, apareceu.
Voltou a criança perdida, que estando despida
Foi à procura do Jardim.
Foge tudo. Fugimos uns dos outros em camadas etárias desenvoltas.
Que estando na roda – a roda gira – e sempre nos encontraremos nas entradas como nas saídas.
A vida era uma história de terror, aqui se nota a grave batalha dos titãs.
Muitos deixaram o planeta e nunca mais foram vistos, resgatados pelo grande guindaste
Do sistema paralelo, mas não se sonharia com a presença do infinito temporário
Nessa rede de circulação de sangue fechado.
Alguns, de tão rudimentares, queriam ser muitos, e se fosse apenas um, queria ter de tudo em abundância. De tanto ser nada perdeu-se a abastança.
Depois enlouqueceram quando a vaga [zumbie] resolveu atacar a frágil cobertura vegetal.
Atiravam-se uns contra os outros como choques elétricos e nunca mais houve trovoada.
Cada dia tinha então vinte e quatro horas quando o sol era um motor sem freio.
Nós aqui, somos sistemas extrassolares, nem nunca vimos sol.
Que entretanto explodiu muito antes do previsto instante que davam como certo.
Mas nada era certo nesse planeta.
Acertavam em coisas que nunca o pensamento teve.
Aqui, estrela paralela, estamos abismados com o filtro das coisas vindas
Pois que de todas as funções foi a emoção que retivemos.
Como foi possível ter a ideia das coisas e nunca as ter experienciado?
Que o amor era um nome que enganou a todos e mesmo assim ele parecia sempre novo.
Tudo é espantoso quando os cavalos bebem água numa grande clareira que já não há
E ficamos no som do Universo a ver como se pode criar uma ilusão.
Nós não temos corpo, a manifestação está distante.
Que tudo é maravilhoso, mesmo quando encontramos uma frecha
Para um abismo repleta de flores.

18 Jan 2022

A Terra furiosa

O ciclo das batidas deste nosso Quaternário deixou de ser há algum tempo o da plurivalência de um planeta diverso, sim, porém indiviso no seu todo orgânico onde por longas eras espalhou equilíbrios sem deixar nunca de ser duro, brutal e repentino. Nesta última regência onde muitos ciclos humanos prosperaram, era ainda ele a inquebrantável sustentação do nosso mérito evolutivo, e nós, assim habituados, não soubemos antecipar o evidente choque que hoje vivemos.

Tempo anunciador esta década vivida! Apercebemo-nos como se rompem os complexos laços da sustentabilidade que nos pareciam infindos e como a radicalidade é afinal uma lei física que não deixa espaço para titubeantes e fraudulentas interpretações. Os sinos tocaram, e cada um, com mais ou menos capacidade de interpretação, lá foi gerindo a sua dinâmica do impacto, é certo – mas ninguém nos prepara para a crueza dos factos, nem para as disfuncionalidades dos programas, nada adianta elaborar perspectivas face ao repentino, inaudito, transfigurável e imprevisto. É aqui que chegámos, puxados pelas “correntes” atmosféricas.

E eis-nos a perscrutar os serviços meteorológicos como se fossem oráculos, pois de tudo o que de tão interessante existe ou deixa de existir, é essa efervescência que domina o frontal occipital que teve rápido de saber confrontar-se entre vital e acessório – mas uns dormindo não terão nem tempo para ligeiras metamorfoses, serão absorvidos com os neurónios intactos na grande Transformação. Melhor para eles!

É agora, e nunca como agora, que temos de ser progressistas, pois que não haverá mais nada para onde voltar: voltar à terra, aos prazeres bucólicos, aos muitos “aos”…. Não vamos voltar, na medida em que é neste grave instante uma ideia de miragem, pois que nada nos acolhe com a mesma estrutura encaminhada no sonho humano que gerou com a vida coisa prodigiosa, sim, mas que se rompeu, e também o Coro clamoroso dos que andam há anos debatendo a mesma coisa, com a paciência a que se atribui muitas vezes alto grau de pouca convicção, e sempre (ou talvez?) de ilustre incompetência, nós não vamos sair daqui da forma como chegámos.

Já entendemos que ficar brandido em cima da onda é o último púlpito de um grande acontecimento que a todos ultrapassa, ninguém largará o seu pódio antes da última enxurrada (como também alguns não largaram os seus livros quando foram para as câmaras de gás, e disseram: «o último segundo de vida ainda é vida» estando até aí corrigindo textos) – É! Chamar-lhe-emos resiliência? Não sei. Mas sei que é apanágio humano ir até ao limite de um processo, sempre em marcha lenta, que o ruído dos impactos nos aterrorizam ainda mais.

Se nos ocuparmos a discutir tal temática averiguamos como o mundo está prenhe de Carlos da Maia em direcções de onde até o fogo vem, o degelo endoidece, e as neves se transmutam, e num ápice, estamos numa estação pequena, todos juntos, para apanhar o elétrico: é que, mesmo que o mar já se levante na última maré, estamos atrasados para o jantar.

Merece-nos no entanto uma consideração dolorosa o que temos visto de fauna e flora literalmente engolidos por esta nova realidade de contornos bíblicos, e não raro, quem for ainda mais perscrutador, pensará escutar um estranho uivo das entranhas da Terra.

– Embarques para Cítara, perfeito! Local mítico paralelo a esta vida gerada, levando amigos, pajens, nas barcas do sonho… foi porque assim sonhámos que somos humanos e que hoje entendemos que não tarda teremos de procurar novos habita (s) se para tanto desejarmos continuar viagem. Não tardarão “bolhas” que são construções adaptadas a uma necessidade de oxigénio na nova vida planetária, com estruturas tais que não consideramos, só que elas não vão esperar pelo entendimento na voragem de um planeta que nos faz agora os mais intrigantes reféns.

– Inviabilizámos muitas coisas, mas face a isto não estamos preparados como seria conveniente. O Filme acabou, estamos numa produção de autor.

– Outrora, creio que a Terra sorria, lembro-me da força do iodo, do chão, das glândulas que cheiravam a estonteantes coisas que já nem sei explicar, tão forte se nos apresentava que a teríamos dado como imortal – não, não foi num outro Quaternário, foi tão só há quarenta anos- nós já morremos no espírito da Terra, e não aprendemos leis que nos libertem das suas inevitáveis agruras.

12 Jan 2022

A tecelã

29 de Setembro de 2021.

 

– E agora que na Canção de Gesta o sangue dos homens corre como seiva há nela páginas difíceis de decifrar- Quando nos encontramos mergulhados em épocas remotas e os tambores da guerra são a matéria do seu ciclo poético, observamos melhor como os homens eram máquinas de sofrer, teriam certamente mais belas anatomias, não podendo ser obesos para se ajeitarem aos seus elmos, cotas de malha e escudos, e no que diz respeito à lealdade, metem de lado qualquer alcateia. É bom pensar em vê-los nas grandes artérias atirados para as lanças inimigas neste outro tempo em que um Rei tinha a barba florida e todos estes homens que nada mais são que mistérios sanguíneos.

Perguntamo-nos como seria a ida para casa, para as suas mulheres, que estavam ausentes neste sangrar de campo aberto dos heróis, o que teriam em comum para sangrar a dois, que homem houve que afirmou «imagine um ser que sangra mas não está ferido. Imagine um ser que sangra mas não morre. Será uma criatura mágica, mítica, ou apenas uma mulher?» Esse ser que nasce de si a cada lunação deve ter ferido a consciência do herói, que na saga aparece como elemento de pranto e choro, apenas na matéria líquida das suas lágrimas, desaparecendo como que se liquefizesse, e a questão põe-se: podem estas duas criaturas amarem-se? Não creio! Deverão sobretudo ter paixão, que é o que a vida lhes exige impedindo o enredo moralista criado perante as suas naturezas.

Existiu uma rainha mais tardiamente que apercebendo-se da indignação dos súbditos quando ousaram dizer: “não vê que está nua”? Respondeu: – não reparei. A sala estava aquecida – Efectivamente reparamos que estamos nus quando alguma dor circunstancial se faz sentir, mas se estivermos bem, nem nos lembramos dela. Com tanto sangue que correu, devem os corpos estar vedados à tragédia, e deve uma mulher não consentir que tapem o dom da sua alegria, que as histórias estão carregadas de anciãs dizendo: picar-te-ás! Que por mais interdições e fadas boas, deve o corpo da jovem mulher, crescer, e não adormecer para resgate de uma noção de amor, e quando todo o desamor lhe cair vertiginosamente aos pés, deverá ainda assim saber que não carrega culpa alguma.

Quanto aos homens, sempre morrerão e, mistério maior, existirão mais, sangrando ou espalhando sémen, que a mulher continuará, sem que lhe descubram o mérito maior. Que das fêmeas não falamos, nem dos azares que as atormentam, que depois de tanta morte, quando uma se vai embora, é nela que o mundo repara.

 

Eu vi uma mulher que dormia. Em seu sono, ela sonhou que a Vida estava de pé
diante dela e segurava um presente em cada mão- numa o Amor, na outra a
Liberdade.
E disse para a mulher: “Escolha”
E a mulher esperou muito tempo; então respondeu: “Liberdade!”

« Presentes da Vida» in- Olive Schreiner

4 Jan 2022

Isaías

Tudo começa pelo nascimento de um filho. Vem de Abraão, e assim se vai repetir na saga tribal até à construção de um messias, podendo mesmo afirmar-se que a frase que a todos unira foi esta que de tão natural quase nos esquecêramos – «e um filho lhe nasceu» – e no livro de Isaías encontramos o tempo certo do anunciado em oráculos, cálculos fervilhantes, sinais anunciadores, daquilo que virá a ser pela força da construção. Este filho anunciado será também aquele que irá cortar os laços sucessórios e romper com a transmissão alargando as leis tribais para planos mais vastos, daí a importância da interpretação, pois que será também ele a cortar com todas as prerrogativas que deram origem à sua própria realização.

O livro de Isaías é um testemunho visionário, chamando-se por isso mesmo «Visão de Isaías», sendo uma obra densamente poética que usa a lei das assonâncias para interpretar os tempos. Logo no início, emite a voz de Deus nesse ronco amordaçado que brada contra as regras que ele próprio impôs, dizendo-se cansado face às inúmeras práticas de prestação ao seu culto, e assim, anulando o valor da unicidade que decretara para com o seu povo, é pela voz de Isaías que irá chamar a tudo isso de dons inúteis: reuniões de culto, celebrações lunares, sábados, festas e solenidades, que afirma, diz, serem-lhe insuportáveis. Também não aguenta mais os holocaustos, o sangue dos vitelos, a gordura dos bezerros, Deus odeia tudo! O que aconteceu então que nos mostra a negação do guia desvinculado da sua própria causa? Mudança de rumo?

É importante desde já saber que a condição humana é toda ela o cumular de um antagonismo permanente, e que os elementos da sua insuportabilidade também se remetem para a acção fora de si, projectar a culpa da sua própria insuficiência numa construção quantas vezes feita a partir das outroras soluções, é uma lei que sempre consente, porém, desconhece como a pode integrar. Cansado e sem escape, há um momento em que o cerco se aperta e passa a sofrer de abominação tenaz. Mais tarde terá ainda de recorrer a Teses, Antíteses, retórica, e todo a uma estrutura de pensamento que lhe permita aplacar a densidade a que se encontra submetido e valer-se da memória, pois que o exercício pensante pode adormecer em contextos paralisantes. Por isto e muito mais, devemos assinalar este momento como uma metáfora memorável que nos fala da noção do devir que todos tentamos mapear e sempre nos escapa.

Estamos por outro lado num domínio estritamente poetizante, não se devendo excluir essa singular faculdade que tem o verso para se apoderar de elementos subtis do tempo por vir, e um menino a nascer, que seja então na leitura do poema o mais esperado.

Quando é necessário mudar, sempre a vida há de encontra formas de tensão, isto, se não obrigar a mudança a trajectos repentinos, muitas das vezes é preciso cortes tais que transcendemos a noção das coisas, no entanto, adquirindo o domínio da vastidão, a evolução permanece o resultado extraordinário das «Visões» e mais do que isso, da capacidade de as sonhar. «Porquanto um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.» Deus, esse, continua irado.

16 Dez 2021

Uma noite de Verão

[A quatre heure du matin, l´été, le sommeil d´amour dure encore…] Rimbaud, é preciso e precioso em tudo o que diz e sente neste poema, ele que não teve propriamente paz, e muito menos a deu, é um agente das coisas mais luminosas da nossa humana consciência. Sonharia então nestas noites de Estio da sua juventude – que ele, nunca foi velho – mas aqui mais novo ainda de quando a morte o encontrou, sentido estas coisas na hora dos condenados, que vinda a alba, o rosto da morte e das paixões se dissipam num esquecimento estratégico.

Lembra pois, corpo, de como eram radiosas estas noites! Ele não se fica por este laço do amor, e prossegue numa inspiradora manifestação para com aqueles cujo destino é muitas vezes injusto « les Ouvriers!» que “ils preparent les lambris précieux où la richesse de la ville rira sous de faux cieux”. Ele não cede ao labirinto íntimo, e o amor continua.

Nós diríamos sem grande exagero que as vozes hoje se dissociaram da sua responsabilidade que seria a de lutarem pelo lado certo da missão que sem dúvida Deus lhes concedeu, e que ao tornarem-se demasiado pessoais e confessionais nas suas “razões” mitigadas por nevroses insipientes, foram secando uma certa razão de ser. As emoções congeladas para mostrarem que sentem são bastante mais escorregadias que a falta delas, podendo chegar-nos ainda como devastações do ciclo da comoção o ardilosamente planteiam num esquema alternativo para o fim de todas estas expressões, atravessadas um dia por gente habitada. E nestas noites de Verão nada nos recorda abençoar o trabalho feito por todos aqueles de que dependemos, nem os “banhos” dos que se afogam e vêm de locais muito parecidos para onde o poeta um dia fora, nos sossegam, pois se no outrora breve, a poesia de intervenção era um estigma também nada interessante, o vazio de qualquer outra que seja, mostra-se devastador.

[Reine des Bergers! Porte aux travailleurs l´eau- de- vie] a noite curta será assim uma parte desse amor que nele pareceu ser sempre pouco, difícil e magoado, para se ir ampliando num amor total a todos, próximos de si, e neste bem-desejar, ele atinge o seu perfil de anjo. O poema chama-se então «Um bom pensamento matinal» e até ao meio-dia ele abençoará estas gentes para que as suas forças estejam em paz. Ainda crê que os trabalhos intensos venham lá de baixo, do jardim das Hespérides, e que nem sempre o mal vença tanto como se prevê – e faz bem em assim crer – pois que não se pode olhar o humano sem um misto de esperança e fantasia, se tal não acontecesse, seria tão insuportável como não ter nada mais nada para fazer, que isso é possível quando alguma coisa poderosa desiste de nós. Por ser Verão, devem ter o seu banho de mar, que bem diferente é de um tanque de água, que toda a água é pública, e quem transpira mais deve ser refrescado. Os tanques com água são as piscinas que proliferam por todos os lados individualmente e que visam refrescar as consciências que fecharam fontanários, e Fontes Luminosas, redes públicas do bem-estar operário.

Também não há jovens que invoquem a Rainha dos Pastores, já não têm recurso a «redes de cultura humanista» que lhes permitam laborar nos mitos, não havendo razão alguma para confiar no futuro breve quando o presente conseguiu abastecer cepas destas em todo os cantos da Terra. As laranjas, essas, estão por todo o lado e não são precisos Jardins tão remotos, basta um desfiladeiro de estufas de regadio até sugar todo o solo, ter bons escravos, para manter plantações exóticas, inúteis e atmosfericamente desvinculadas, e Vénus, esse, essa… é um planeta para este mundo, muito quente, de órbitra interna, incapaz da associação amante, isto, se os seres não forem agora produções sacrificiais para um terceiro sexo a nascer. Também podem ser a antevisão de um só género fenecente.

Ele, Rimbaud, evoca aqui de forma amorosíssima a justiça de que necessitam os seres. Não esquece os braços quentes dos seus sonhos de Verão, enaltece-os, indo buscar a manhã que lhes sucedem, contemplada com ternura imensa num mundo que para um poeta será sempre um lugar desconcertante. É um poema curto, límpido, magnífico. Não pretende mais que essa soberania, por que soberanos instantes, como bons diálogos, são prova de que a alma existe e regista apenas o que é essencial.
Por todos os Verões.

1 Dez 2021

Doutrina pouco secreta

Ao nosso redor a vida toda se manifesta, num raio pequeno podemos abarcar o mundo, e tê-lo, não raro, a nossos pés. Sabemos das coisas entre uma saída e outra, e medimos o pulso vadio das sociedades até na banca do quiosque da esquina. Sabido, é que há por toda a malha do tecido social muita enfermidade nervosa como a violência doméstica, pontapés de uns e de outros, raivas já não muito surdas, grupos muito mais terríveis que os javalis que se abeiram das zonas urbanas, e é claro, um estado de nervos impróprio para uma salutar vivência de grupo. – Sim, grande parte do cérebro reptiliano encontra-se intacto mau grado as tentativas da Civilização, recrudescendo num tempo como este. – Pois passemos aos factos.

Na vasta ausência de reparo todo ele atormentado pela moléstia observante, há ainda quem possa ver numa quente tarde soalheira, presentes que gelam as veias na imagem de facas gigantescas. Não será apenas uma imagem, mas de um objeto que publicitariamente funciona como brinde; – dizem, é para a cozinha!- Pode ser, agora que toda a gente se dedica aos alimentos com manifesta incapacidade para outras coisas, presentes assim serão grandes incentivos para golpear o que quer que seja. Passamos então por dezenas de facas como se fossem rosários, descambando pelos lados dessas revistas cuja trapalhada também é tanta que deixa antever cruéis desfechos, talvez, quem sabe, por armas brancas.  Tudo isto se passa no mesmo tecido social em que os agentes defensivos como a Polícia, que ganha mal e não pode accionar os materiais, habita. Um cidadão precisa dela! Sobretudo aqueles que não têm mais ninguém que os defenda. Mas um país que acorda armado com facas, à boleia de publicidade de imprensa enganosa, pode ter um breve instante de insuportável lucidez.

É claro que nem sempre passamos por chamamentos belos com almas lustrais em nossos caminhos, por vezes os mesmos locais dão-nos encontros diferentes, como este, utensílios que devemos denunciar num estertor momentâneo: e mais nos parece inquietante quando o senhor do quiosque nada pareceu intrigado, acabando até por afirmar: – facas? Até já vêm metralhadoras! – Na «Doutrina Secreta» esse ramo Teosófico que piscava o olho ao nazismo havia…havia…como hei-de dizer? Havia então um lado ideológico ou fantasista que se nos debruçarmos não é completamente displicente, códigos, extravasar do fantástico, enfim, não nos repugna a silhueta cénica e enaltecida, os doidos deitaram-se nela correndo, compreendendo tudo à letra de modo infantil que é por natureza cruel, o que nos dá uma perspectiva também incrível do poder de persuasão deste pensamento, tido então como pensamento mágico: mas agora isto, ou seja, este outro nazismo, é destituído destes graus iniciáticos, é tudo à “machada”. Não se lhes nota nas paragonas de qualidade duvidosa que por detrás esteja a noção de um avatar vindo da Atlântida e outros locais imaginários. É a vacuidade em estado puro, duro, com objectos muito cortantes.

A sugestão que se segue para oferendas passaria talvez por chupetas um convite «Baby-Boom» para uma sociedade envelhecida demais onde as casas foram transformadas muitas delas em campos de batalha, que este nazismo já está demasiado incutido nas células de casebre para dele tirarmos mais benefícios. Também, e por desenjoo, formas mais orientais de manejo culinário, onde: oh bênção! Nem faca cortante nem garfo dentado servem para com eles se comer, e até macerar os alimentos, estando os utensílios contundentes entregues a chefes “kamikases”. É uma pobre Europa, esta, entregue aos vícios lúdicos do seu passado trucidario que todos os dias encontramos ao redor mesmo da nossa vizinhança. É um emblema de uma não “desconfinação” e uma chamada de atenção para os monstruosos adereços da antiga gruta dos sacrifícios. Estamos a ser orientados para fins bárbaros, continuadamente, já sem os aspectos subliminares que respeitem uma comum cidadania, e não me espantaria se como bem afirmou o senhor do quiosque as metralhadoras forem para breve ali vendidas.

« a noite para mim?…mantém-te forte, meu valente coração!

     não perguntes: por quê? –

Nietzsche – O Sol desce…

 

Pensamos com todo o corpo, este é o momento em que tudo é linguagem e observamos como acordam as sombras.

23 Nov 2021

O mouro de Veneza

-Nomes que falam quando nomear cunha o destino dos protagonistas remetem-nos para a importância deles no destino de cada um – um nome é uma espécie de mantra codificado – e mais longe que as histórias dos Josés, Paulos, Antónios, Manéis, nos dão, nos contam ou podem dar, sem que haja aquele vapor a enxofre para entrarem nos cofres imortais, mas também sem generosidade aparente para ascenderem às altas transparências, o autor do nosso trágico mouro alteia-lhe todas as características da apaixonante natureza humana, e aqui, a estória, História, e historicidades, transformam -se, pois que nada mais extraordinário que ser humano, a essa condição chamamos nós de tragédia. – Poder-se-ia apelidar, fado – o fado de cada um – mas coisa pouca seria fadar gentes de parcas melodias com Severas parcas, que de nostalgias estamos fartos.

Morreu Otelo. Dito assim, nem parece que morreu alguém, pois todos sabemos que ele já tinha morrido vítima de sabotagem e autossabotagem, mas sobretudo, vítima de inveja e cobiça, o que o leva a matar a Dama da sua vida, Desdémona, suicidando-se de seguida; mas Otelo é um militar, um general, e o autor descreve-o assim «guerreiro, acostumado aos julgamentos de excepção, sempre muito rápido; matar ou morrer, sem maiores análises dos factos e das circunstâncias», uma personagem feita para emergências e não para atalhos labirínticos; fica perdida no meio dos ciúmes, das guerras de poder, dos falcatrueiros, e até dos Falcões – tudo conversa a mais – pois só ele sabe falar com a rapidez das rajadas e o encanto de um gladiador, características maravilhosamente hipnóticas nas questões linguísticas (que esta gente toda fala de forma apavorante pois que não têm pressa nem talento para emergentes) por vezes o poema sai assim, em carne viva, em golfadas germinais de macho alfa, todo abrasão, e nós sentimos por fim a presença rara dos homens. Nós, que nos esfalfamos para sexualizar os neurónios e encontrar razões nesta subespécie para o arranque erótico das idiotizantes jornadas, vergamo-nos diante a lembrança dos Homens.

– «Veneza sem ti», é! Canções que entoam lá do fundo das melodias de amor, e que debaixo do sol as leituras se façam na comparada análise, literal e literária, pois que tudo volta de novo a encontrar-se: capas, espadas, cotas de malhas, chaimites, amor, ciúme, inveja, traição, equívoco, mordaça, o corpo identitário volta com novas roupagens mas com a mesma essência, não para todos, que nem todos não são agentes do destino, para tal é necessário uma silenciosa aritmética que a visualidade não é capaz de alcançar: a maior parte destas boas e más pessoas que nos rodeiam ainda não nasceram, são ecos com direito a pensar que pensam… e quanto às suas caricaturas, bom senso e grandiloquências, uns até já vêm com direito a outras estouvadas características, mas não são “Oteis” são Hotéis, que um país com tantos “génios” à solta pouco mais serviu que para porteiro Hotel de luxo, fazer mixórdias alimentícias, e andar armado em rico, efetivamente, para tal desfecho não seria preciso ter havido Otelos, bastava uma «Estrela Michelin» e todas as vítimas se tinham agachado. No meio de tudo isto as razões são tão claras que gelam, e a ingratidão tamanha dá vontade de abandonar os pobres sem destinos dos abocanhadores, às galés.

– No fundo, Otelo não saberia viver sem a amada, a sua Dama, que vítima das vozes maléficas dos vencidos que depressa passam a vencedores, ele prepara então a tragédia para se tornar para sempre humano. Foi um equívoco bem o sabemos, mas era tarde demais. Esta belíssima humanidade de alguns só é possível na tragédia, que ora cómica, ora terrível, tem a força de nos estigmatizar até ao fim. A fornalha das forças contrárias e o labirinto por onde entoam, se escutam, e se nomeiam no elo da narrativa as semelhantes personagens, são tão nítidas, que entristece não haver aqui vestígio de consciência, talvez por que há muito também deixou de se saber identificar um poeta, mercê das enfadonhas armadilhas dos pretensos – “poetisos” e “poetisas”- que poeta acontece poucas vezes, é certo, tão raramente, que seria bom podermos ter uma maior assertividade quando da sua manifestação, pois que não ter visto em tudo isto o melhor Poema do Mundo em estrofe colectiva, é então não ter visto nada. « Há sempre aquilo que não pode ser preservado quando o Destino tem as rédeas na mão, mas a Paciência encarrega-se de fazer do prejuízo uma zombaria».

 

               “Suplico aos senhores que, em suas cartas, falem de mim como sou.

               Que nada fique atenuado, mas que se esclareça também que em nada

               Houve dolo.

               Os senhores devem mencionar este que amou demais,

               Com sabedoria de menos;

               Este que não tinha sentimento de ciúme e se deixou levar por

               Artimanhas”

                       Shakespeare                              

10 Nov 2021

A fome de Camões

A fome é meu final, o meu poente!
Saturnologia de Gomes Leal

 

Poema em 4 Cantos, este é um testemunho sem tréguas nem vacilações. Talvez que fomes tais tenham sido esquecidas no emaranhado das necessidades imensas e imediatas pela ideia peregrina do fim dos obstáculos e na procura do prazer a qualquer custo, não sabemos dar um nome para a nossa emergência, e na memória mais distante trazemo-la como a um espinho. Mas esta é também a fome ontológica da criatura em rota de colisão com a coisa criada, a senda de uma busca que bruscamente domina, faz destino, atravessa o ser – em 1881 já Gomes Leal tinha sido preso sem direito a fiança nem outras condições para contestar a acção, eram giratórias as portas dos desafios, e emblemáticos os Cantos desta matéria a tratar – estamos na presença de gatos, que mesmo escanzelados e empurrados para o cimo dos telhados nunca perdem a altivez dos invencíveis, uma teia difícil de ser tomada pelo medo, que fomes assim, impõem desassombro.

Nós que arquejamos e tanto nos deleitamos nas imediações do caricatural, devíamos poder vê-los lutar, seria boa essa visão electrizante, esse conhecimento das coisas tangíveis que colidem com as consciências, rever os jejuns das expurgas, tomar o punho das vidas no limiar, seria compreensível saber das suas fontes pródigas ao redor dos pântanos e por que não desertavam quando banidos da Cidade, teríamos mais tempo para saborear o que exigimos da vida e mais razões para agradecer uma saudável pequenez. Tanta gente de costas voltadas brandido na costumeira chacota dos hábitos, e nenhuma correspondência com estas coisas! O dom de esquecer pode ser bom, mas não deve seguir viagem para a vacuidade.

Que fomes assim deram a nascer as crias das feras que são sempre as mais belas, não nos ameaçaram com sua rotineira condição e ainda extraímos delas a maior doçura do universo ao redor, que muitas cresceram e se quiseram abatidas para pacificação da urbe de dentição escarninha, que não podemos meter o génio numa garrafa e deitá-lo ao mar, que se hoje dizemos como é, não conseguimos afirmar como se faz. Transfigurados com trechos de coisas ditas imaginárias e partindo da real razão do direito de cada um, a Maçã cai pela lei física da constatação toda feita ciência, aprendendo todos com a lógica as imponderáveis manifestações da vida. Há um dia que a Fome nos resgatará e não servirá de muito olhar para aqueles que tanto nos saciaram pelo seu frémito e que deixámos de saber ver. Um dia para voltar a rever estas paragens.

As vozes, essas, vêm de mais longe e os sinais estão intactos, nestas videiras já não se espremem as uvas, a beberagem não é forte, e os mostos são recolhidos em urnas; parece-nos normal a Abastança, este último estado de terror, que a Terra sem grades fecha tudo o que para cada um já não é vital. Já subsistimos parados como gado nos matadores, falando da estranha circunstância, e foi exactamente o que não muda aquilo que surpreendeu ainda mais.

Em Macau jogava xadrez, o poeta, bem longe dos Casinos e dos regimes, em «lôbregas jornadas» a política (inter)nacional era uma Barca que o levara e trouxera, sempre de longe, com os anéis do astro baço andaram rolando na matéria sem freio dos seus dias estes estranhos seres e ninguém pergunta agora por tais Fomes que os tornou tão desiguais.

« ……da Justiça sublime ao trono santo,
às solenes e eternas regiões,
Pedir justiça ao pranto de Camões.»

26 Out 2021

Os Leões de Daniel

Foi levantada uma questão muito recentemente que deve merecer um pouco da nossa atenção: animais, ou seja, carnívoros, passarem a ser vegetarianos, reportando quase em exclusivo para aqueles mais perto de nós, evidentemente estamos a falar de cães e de gatos. De certa forma, o deixarmo-nos de comer uns aos outros é a mais elevada das utopias e também uma conquista redentora que poria fim ao ciclo sacrificial, só que quando esta proposta foi lançada alguma coisa de genuinamente atávico ficou em silêncio. O amor animal é um valor adquirido, tanto, e de tal forma, que não seria possível viver sem esse laço que partilhamos com viva intensidade e gratidão, mas será que todas as vidas que se abeiram da nossa devem por isso seguir os tramites humanos?

O antropomorfismo é seguramente uma aberração que não é entendida como desrespeito, e para que desejamos nós seres à nossa semelhança?! A resposta mais plausível vai até ao instinto de poder, que não se sabendo, fica suspenso nestas vontades, a modos de combate por um mundo “melhor”. Porventura a ausência de medo provocou em nós uma demência contagiante, altiva e “sonhadora”? O nosso conforto terá dado azo a uma perda de sentido vital, aquela matéria impulsionadora de todos os crimes, e não só, de toda a maravilha? Bem capaz de ser assim.

Esta transgressão chamada “dor de dentes” no corpo físico das gentes deve ser também alongada aos caninos dos nossos amigos, que mesmo não sendo cães (canino é para todos): ou devemos arrancar-lhos para que não mordam, e sobretudo, não denunciem a “atrasada” evolução desse delírio natural? Há de facto, e cada vez mais, espécies híbridas ao serviço inumando de «Sua Majestade o Homem» que já não têm garras, isto, porquê? Para não arranharem os sofás! – Alguns, coitadinhos, repletos de pêlo nórdico no abrasante sul quais fantasmas iridescentes vão até às más réplicas da espécie egípcia para não acumularem matéria orgânica, mas jamais tão distintas como aquelas dos Faraós, e tudo isto, parecendo sedutor, não passa de uma perversão que denuncia desprezo, utilitarismo, e miséria moral num tempo verdadeiramente de arrepiar. Quem gosta de animais – destas animas – que de tão esplêndidas nos incitam a contemplar a sacralidade feroz, sente-se brutalmente ultrajado e sem força para se opor a uma barbárie cor – de – rosa. Sofremos de muitas desertificações… é o trabalho, as relações, a vida, isto e mais aquilo, e projetamos os afectos como uma imposição moral para com qualquer vida, quer ela queira, quer não. As vidas grandes odeiam que o amor seja da ordem do entretenimento, pois que na sua economia do esforço não pode falhar face às leis severas, devemos partilhá-las como os segredos, e tal como eles, sentir-lhes a maravilha, o instante, o último reduto, a transluzente compaixão…

Quanto a Daniel, não desmereceu nem a Deus nem aos Leões por força da sua grande aura de profeta, mas também é certo que os carnívoros se repelem no momento de se consubstanciarem, os carnívoros, só instigados se matam uns aos outros, porém, um dos engenhos humanos foi o de apaziguar as feras, e desde tempos imemoriais as cítaras tocavam nos dedos dos heróis para as acalmar, é que elas são passíveis de hipnose, ficando rendidas, e de olhar fixo e imóvel perante a melodia. Depois de uma semana de transe imobilista elas estavam saciadas pela beleza ímpar de Daniel, mas mal as soltaram estas lembraram-se que tinham fome, e tragaram os imigos do profeta, cumprindo o destino da terra de Judá; e se as abnegadas vítimas cristãs delas não tiveram medo, nem por isso deixaram de ser mortas, pois que o desplante da fragilidade excessiva perante uma força em andamento, faz parecer aos olhos de um predador que estão doentes.

Tudo isto traz à lembrança um vegetariano «serial killer» que enaltecendo o desperdício conseguiu instalar a maior forma de terror de que há memória, e se voltarmos ao início, ainda nos vamos debater com práticas de bruxaria em versão litúrgica, de sangue bebido nos altares, só porque Noé plantou uma vinha. – Parece que sim! A condição das espécies não é “fofinha” e ainda menos, se levarem com este Humano pelos seus magníficos focinhos adentro repletos de usura e transgressão defeituosa. Infecundos, com fêmeas tomando a pílula, e machos eunucos, agora vegetarianos, que andamos a fazer com os animais? Não, não é por aqui! Os lobos têm fome. Fomos nós que assaltámos a pradaria.

12 Out 2021

Pushkine e o diário secreto

Nunca perdemos este hábito de deambular pela intimidade alheia, sobretudo agora, que a moral atinge as raias da indecência contra a liberdade de cada um. Que isto de se ser indecente, acontece tanto por excesso como por escassez: não há muito tempo, ainda, o excesso devia servir de norma, hoje, porém, a variedade deve ser uma imposição numa atenta vigília para uma eventual mudança de género. Com tantas transformações do «orgão» o mundo finalmente pode dormir sossegado pois que não parirá com dor durante muito mais, sendo substituída a função por mecanismos externos de multiplicação e fecundidade. – [Aí sim, eu estarei aqui já diante a um outro plasma, que de forma poderosamente subtil, lerá então as minhas ideias num clima telepático e fará o resto daquilo que nunca vi]. E todo aquele que tiver ideias obscenas será lido em pensamento para a máquina do tempo que se encarregará de deitar no fosso cósmico a porcaria que por «pensamentos, palavras e actos» os viciosos andaram manifestando. – Falta menos para este tempo, que tempo houve para que conseguissem pôr-se de pé! Mas, escrevera ou não, Pushkine, um Diário Secreto?

Numa trama bem urdida que os limbos tecem, pensa-se finalmente que sim. Diário escatológico, amoral, vadio, radical, instintivo, que supera em tudo os desgarrados provocadores da matéria exposta, e que se pensa ter sido escrito nos dois últimos anos da sua vida: dois últimos anos de uma vida muito viva que baralhará os vivos e os mortos-vivos do hedonismo crente, aparente, do nosso prosaico tempo genital que tem o dom de enfadar muito mais do que provocar. Da negação à proscrição, da tradução à entoação, o que é certo é que ficará sendo ele o autor reverberado por formas várias e actualizado em todos os efeitos; seu pois, na matéria de facto.

Pushkine morreu num duelo bem por causa da sua vida amorosa, e é mais pela eloquente demonstração do seu carácter que nos parece ser dele, deste “alguém” e não apenas de um fazedor: este homem demonstra a falta de paciência que o ódio lhe traz, as inimizades lhes dão, bem como a compreensão face à inutilidade da vingança, e isso, claro, não passará despercebido nesta linguagem de grande fôlego pois que uma personalidade qualquer não descreveria tão bem este seu desprezo. Por demais, ele é munido de uma sensibilidade de premonição, uma componente rara, típica dos melhores, e não deixa de associar factos e números a um desfecho fatal que a sua descontracção insiste no entanto em tentar superar. Um certo desleixo com a autopreservação, tão cara aos inúteis.

Redige então em prosa com a embriaguez de um quebrador de estátuas um ditirambo lascivo que certamente estará perto do êxtase da morte, e não se crê nem maior nem menor que um outro qualquer desgraçado. No entanto, nada disto belisca o seu nome nem porá em causa a sua alma gigante de grande perdulário perante a adversidade. Conseguiu não matar! Mas nestas coisas, com homens comuns do outro lado da trincheira, é sempre, como bem sabemos, um atributo fatal. A ninguém faria certamente falta o seu oponente, mas, a falta que nos fazem os que foram mortos é até da concordância dos próprios assassinos. Um duelo por amor, ou honra masculina, seja lá o que for, parece-nos incrivelmente displicente, sobretudo num mundo onde as vivas mulheres pouco são defendidas. Os homens inventaram no entanto estas coisas para não terem de suportar a falta de talento que se esperava deles na resolução de factos simples.

Um dado severo encontrado para tão estranho assunto é a marca mortuária na raiz da própria sexualidade, e esse tema, angustiante, frenético, intempestivo, ficará como uma lembrança bela e terrível destes fins que sustentam os meios. Não vibramos todos ao mesmo nível na condição deste trilho sonoro e quando uma coisa destas nos é dada a ler, averiguamos por fim o grau de desfaçatez do lúdico estado actual em sua própria insolvência. – Maníacos somos todos nós por alguma frecha que não sara, mas contemporizamos com o desnecessário, contemplamos evacuações orgânicas como espectadores em morgues, satisfeitos, e creio mesmo, que muitos até já perderam os sentidos.

Terá Pushkine sorrido perante aquele homem louro que lhe estava anunciado? É bem provável que sim. Um ser como ele fará de tudo para não desmerecer o desdém que sente por esta coisa bizarra que se intitula humana. Vida, é coisa afinal, que jamais faltará aos imortais.

                    « Em toda a minha vida não encontrei forças para matar um homem. Em todos os meus duelos deixei que os meus

                    adversários disparassem primeiro e então ou recusava os meus tiros ou apontava para o céu.

                     A minha magnanimidade e sentido de perdão são mais doces do que matar segundo as regras.»

                              In- Diário Secreto

E com eles estaremos, com estes seres, a lutar contra o novo nazismo mundial. Que o nazismo é muito velho, formado pelo ADN ensanguentado da triste Humanidade. De facto, poucos escaparam a tão mau registo ( não falando dos ardores de alma de cada um sempre em rota de colisão com a ternura).

5 Out 2021

Torga e o Jardim

No meu jardim aberto ao sol da vida
Faltavas tu, humana flor da infância
Que não tive…
E o que revive
Agora
À volta da candura
Do teu rosto!
O recuado Agosto
Em que nasci
Parece o recomeço
Doutro destino;
Este, de ser menino
Ao pé de ti…

 

Esquecemos a ternura, esse saber de gostar de tantas coisas, de horas graves cravejadas nos sentidos, e dos caminhos andados em nossos sonhos, também eles de meninos.

Miguel Torga continua a falar-nos com profunda comoção, e a razão de ser assim reside na sua raiz telúrica que semeia lembranças limpas, inteiras, tão claras como os vastos sonhos que tivéramos, mas nada disto é fácil de alcançar na sua poesia que subtraída a este tempo de estagnação imaginária requer outra humana condição, perdendo no entanto o som das fontes de menino. Explanação de bem-dizer no tempo comum da singularidade, o que daqui sai é quase uma prece, e esse sentido remete-nos outra vez para as claras esferas: estamos sitiados de palavras, descritivas, abundantes, simiescas, andamos a responder a coisas e a designar outras tantas – verbo solto com o velo da beleza trespassado- e a importância dos poetas mais que nunca deveria ser imensa.

Tal truculência reinante não nos deve inquietar, servida de espasmos ortográficos e vozes sem verdade, renunciar ao dom maravilhoso da retórica seria agora um benefício em defesa do que restou de humano, e assim, calados mas com ritmo (que as palavras nos acendem por dentro) deve-se estar longe do martírio das vozes. Não valerá um segundo da eternidade uma conversa escrava na malvadez das palavras, e, no entanto, quantas vezes o nosso dom ardente que reverbera escatológicas vontades se desata neste estreito do barulho insano! Talvez replicar o estorvo vadio dos palavreadores, que ora arranjam convulsões quânticas para se manterem em grau no topo das barbaridades onde escrevinham entrincheirados volumes de ineficácia verbal, ora desmerecem o apreço pela conversação – se escutados amiúde, perdemos o jardim de Torga – e há jardins de onde não devemos ser retirados.

Todo o poema que contém esta ternura deveria ser evocado nos tempos mortos das mortas gentes, desfeitas em soldadura de coisas sem sentido, e, depois, começar por trilhar o ritmo do equilíbrio que é preciso para ser-se gente. Pessoa. Que tudo o que nos distrai acusa em nós a queda livre para um abismo inumano de desassossego sem causa.

Que dirão as máquinas vindouras da entropia maligna dos nossos diálogos? Que somos submecanismos impróprios para se fazerem compreender – que mesmo onde nada compreendemos, se nos fizer acrescentar estranheza, será digno de atenção, o mesmo é dizer, de vasta interpretação poética.

Muito mais que o desnorte da vida de cada um, nós sempre poderemos soltar a fonte do que nos é comum. A teia prateada das manobras da aranha que sedenta de fabricar nos transmite o cordão mais fino e resistente- seres de quebranto e pasmo- E só tu no teu jardim, permaneces o jogral de outrora, querido Torga, sem a caserna do amor de si em frangalhos indistintos – Um menino é uma maravilha! Já uma criança pode ser um transtorno com a qual a natureza não contava. Pode parecer soberbo, mas a evidência de ser menino não atinge as contingências magoadas de se ser criança entre adultos criancistas. Até para chamar a saudade preciso do teu tempo. Que a saudade deixou de crescer neste orfanato de desvalidos e abundantes detentores dos sonhos dos meninos. [que me lembrei de ter saudades dessa infância que já tive, mais normal, mas não banal, e quisera ser menina ao pé de ti]

Quando o fui, porém, lembrava ainda um outro Torga que me fascinou: «Senhor, deito-me na cama, coberto de sofrimento, e a todo o comprimento sou sete palmos de lama: sete palmos de excremento da terra mãe que me chama». Fui certamente uma menina muita velha. O que trazemos na lembrança! Jardins de fogo. Todos os homens, porém, foram meninos, e deles não conseguimos erguer esta delicadeza da entrega de um Torga que renunciou a ser criança. É um momento sem igual na rota dos dizeres. Ou talvez não … a coroação do menino, tema sem fim…Pessoa, menino quase sempre, e renunciar ao tema seria mais grosseiro que todos os atentados à memória da infância. Talvez o amor mude. – Talvez! Mas este, não devia ter saído do local onde estava situado. Criou homens fruto de um jardim difícil de ser alcançado.

Nasceu em Agosto no ano de 1907, tão longe de nós! – Como o Avô! Diálogos de seres que conheço e mereço pela substância activa do tempo.

Miguel Torga continua a falar-nos com profunda comoção, e a razão de ser assim reside na sua raiz telúrica que semeia lembranças limpas, inteiras, tão claras como os vastos sonhos que tivéramos, mas nada disto é fácil de alcançar na sua poesia que subtraída a este tempo de estagnação imaginária requer outra humana condição, perdendo no entanto o som das fontes de menino. Explanação de bem-dizer no tempo comum da singularidade, o que daqui sai é quase uma prece, e esse sentido remete-nos outra vez para as claras esferas: estamos sitiados de palavras, descritivas, abundantes, simiescas, andamos a responder a coisas e a designar outras tantas – verbo solto com o velo da beleza trespassado- e a importância dos poetas mais que nunca deveria ser imensa.

Tal truculência reinante não nos deve inquietar, servida de espasmos ortográficos e vozes sem verdade, renunciar ao dom maravilhoso da retórica seria agora um benefício em defesa do que restou de humano, e assim, calados mas com ritmo (que as palavras nos acendem por dentro) deve-se estar longe do martírio das vozes. Não valerá um segundo da eternidade uma conversa escrava na malvadez das palavras, e, no entanto, quantas vezes o nosso dom ardente que reverbera escatológicas vontades se desata neste estreito do barulho insano! Talvez replicar o estorvo vadio dos palavreadores, que ora arranjam convulsões quânticas para se manterem em grau no topo das barbaridades onde escrevinham entrincheirados volumes de ineficácia verbal, ora desmerecem o apreço pela conversação – se escutados amiúde, perdemos o jardim de Torga – e há jardins de onde não devemos ser retirados.

Todo o poema que contém esta ternura deveria ser evocado nos tempos mortos das mortas gentes, desfeitas em soldadura de coisas sem sentido, e, depois, começar por trilhar o ritmo do equilíbrio que é preciso para ser-se gente. Pessoa. Que tudo o que nos distrai acusa em nós a queda livre para um abismo inumano de desassossego sem causa.

Que dirão as máquinas vindouras da entropia maligna dos nossos diálogos? Que somos submecanismos impróprios para se fazerem compreender – que mesmo onde nada compreendemos, se nos fizer acrescentar estranheza, será digno de atenção, o mesmo é dizer, de vasta interpretação poética.

Muito mais que o desnorte da vida de cada um, nós sempre poderemos soltar a fonte do que nos é comum. A teia prateada das manobras da aranha que sedenta de fabricar nos transmite o cordão mais fino e resistente- seres de quebranto e pasmo- E só tu no teu jardim, permaneces o jogral de outrora, querido Torga, sem a caserna do amor de si em frangalhos indistintos – Um menino é uma maravilha! Já uma criança pode ser um transtorno com a qual a natureza não contava. Pode parecer soberbo, mas a evidência de ser menino não atinge as contingências magoadas de se ser criança entre adultos criancistas. Até para chamar a saudade preciso do teu tempo. Que a saudade deixou de crescer neste orfanato de desvalidos e abundantes detentores dos sonhos dos meninos. [que me lembrei de ter saudades dessa infância que já tive, mais normal, mas não banal, e quisera ser menina ao pé de ti]

Quando o fui, porém, lembrava ainda um outro Torga que me fascinou: «Senhor, deito-me na cama, coberto de sofrimento, e a todo o comprimento sou sete palmos de lama: sete palmos de excremento da terra mãe que me chama». Fui certamente uma menina muita velha. O que trazemos na lembrança! Jardins de fogo. Todos os homens, porém, foram meninos, e deles não conseguimos erguer esta delicadeza da entrega de um Torga que renunciou a ser criança. É um momento sem igual na rota dos dizeres. Ou talvez não … a coroação do menino, tema sem fim…Pessoa, menino quase sempre, e renunciar ao tema seria mais grosseiro que todos os atentados à memória da infância. Talvez o amor mude. – Talvez! Mas este, não devia ter saído do local onde estava situado. Criou homens fruto de um jardim difícil de ser alcançado.

Nasceu em Agosto no ano de 1907, tão longe de nós! – Como o Avô! Diálogos de seres que conheço e mereço pela substância activa do tempo.

14 Jul 2021

O Brasil do nosso descontentamento

Quando a Filosofia Portuguesa de inspiração messiânica (muitos alegam que ela não existe, mas existe, seja lá em que contexto) se mantinha em modo de ideal pela perspectiva de um Quinto Império, tinha sem dúvida elementos promissores de inspiração humanista que não devemos esquecer. Falei de inspiração messiânica pois que esta Filosofia é muito especial e não se desenvolve propriamente em modelos helénicos, ou outros, e ainda Pinharanda Gomes nos fala de uma inovação quase psíquico – sincrética de uma Nação de nuvens e de vagas. «Desejado» eis o seu nome! Mas o nome de quem desejamos, atirámo-lo para o nevoeiro, e de tanto desejar, ganhámos tempo para aprender coisas do pensamento que certamente coroará a sua vinda. Tivemos todos estes sonhos e pensámos muitos mais na forma filosofante do corpo colectivo, e não obstante, a nossa Jerusalém Celeste, esse apregoado reino do Espírito Santo, entrelaçar de raças e de povos, é hoje uma incubadora de morte para o mundo em estado impróprio para reflectir um sonho que se tornou um estrondoso equívoco.

É deste Brasil que é preciso falar. O do berço dos fascistas que a Revolução amedrontou, o das cinturas militares, daqueles que vão literalmente “cantar para esta freguesia” que em busca de não se sabe bem de quê se sentem injustiçados por meros aspectos que não sabem verbalizar, da descarga incivilizada de uma sociedade onde a pobreza crassa e se estende ao martírio indígena que o decompõe, e dos muitos nazis fugidos à Europa e perdidos na mata Amazónica. Também é preciso falar da quietude dos que deviam falar e não o fazem, de uma massa de gentes que nós gostávamos, e que hoje, no meio da podridão, da morte e da mais perturbadora irracionalidade cívica, finalmente se calaram numa inércia que nos enche de espanto e de um memorável sentimento de traição. Este Brasil que está no mundo como um traficante de cadáveres e que nenhuma racionalidade se lhe chega, é sem dúvida o fim das ilusões de um princípio filosófico que fora nosso, e no qual mergulhámos como na morte de todas as ilusões.

Que um país de novecentos anos não deve por isso ser destituído da sua “arraia-miúda”- sabemo-lo bem – mas não é preciso o escrevinhar de prefácios com pretextos de comparação sem nexo pois que nada que nos define pode juntar-se a tais estatutos mesmo quando as coisas nos correm incompreensivelmente mal. Não há nenhuma semelhança entre aquilo que continuamos a ser e aquilo em que o Brasil se tornou, e os que carregam na tónica comparativa saberão certamente que nem toda a «Irmandade» funciona por reflexo, e que aqui não há mais «Festa» para os embustes. Nem tudo o que se vê e escuta na presente e convicta noção dos iniciados a pessoa tem alguma importância, são oportunidades a que responderam da pior maneira, mas Nós, temos importância. E não será desta maneira que crescerá mais proximidade, até por que já nos fizeram literalmente andar a reboque de um português que insistimos em não reconhecer com toda a justiça e mérito. Não ajustamos nada! Estamos há séculos ajustados às nossas contingências linguísticas e não a desejamos (a) cordar.

Nada se fundará de promissor que interesse referenciar se estas vozes de estadistas menores, ludibriados, consumidos e consumados na nossa consciência, insistirem em fazer-se ouvir. – Não, não somos irmãos! Já não somos sequer, família.

Um Padre António Vieira merece que contemplemos outras coisas e que solucionemos este presente, que para ambas as partes é de opróbrio e equívoco gigantesco. E se «brasileiro é ainda um português à solta», na bela expressão de Bandeira, sejamos dignos dos nossos melhores, que nós não vamos deixar que atraiçoem os seus sonhos que se revelaram a única solução.

Sentimo-nos, no entanto, tristes e incrédulos perante o ceifar de vidas quotidianas, aos milhares, num país que algures ousámos sonhar como uma perspectiva de redenção. Para eles, o mais profundo pesar. Ninguém merece o abandono a que foram votados.

18 Mai 2021

Henry Fielding

«Diário de uma viagem (por Lisboa)» – preposição designativa – virar as páginas que «a Lisboa» é o título de um livro já com sombras no roteiro pois que se passa em 1754. As crónicas de viagem têm sempre muitos incidentes e uma narrativa que se procura factual para registo das sensações que vão dando corpo ao viajante. Mas Fielding, enceta-a por recomendação médica o que é bem diferente de uma aventura, mesmo assim, ela nunca perde o tónus de um velejar cheio de peripécias e Lisboa lá para o fim não é bem tratada pelo autor, cidade onde veio a falecer.

Quase sempre as ditirâmbicas histórias de cada um nos desinteressam na proporção que entusiasmam o narrador, os seres da primeira pessoa enfatizam acontecimentos que dão para nenhures e a menos que estejamos diante de alguém dotado para fazer da experiência pessoal um arquétipo da identidade colectiva, nos interessará então o que de si mesmo nos contar. Nós, que em versão oral já temos de escutar cada um no seu delírio pessoalíssimo, queremos que a escrita não reponha aquelas vozes mergulhadas em si mesmas pela inércia do egocentrismo. Mas a nós, pessoas singulares, acontecem-nos coisas dignas de registo e por isso o dever de participar no historial colectivo do relato dos factos. Partirei da sincronicidade.

O quarteirão dos ingleses a Campo de Ourique fora algures um local bonito e extremamente aprazível, a casa de Almeida Garrett estava aqui enquadrada mas foi destruída para urbanização habitacional de um político, menor, que estes políticos poderiam bem ter ido viver para Xabregas e outros locais. Arquitetonicamente feio, começou a destoar da paisagem que já vinha definhando com o fecho do Hospital Inglês que neste momento se encontra entaipado porque vai nascer uma coisa daquelas tão grandes que ninguém diz exactamente o que é, mas foi deste Hospital com encanto único, que algures via o cemitério de uma das suas janelas ladeado por frondosas árvores, e me parecia então nitidamente um puro jardim. Sempre passei por ele, mas por respeito à comunidade nunca entrei, mantinha-se solenemente um local de silêncio que a minha curiosidade não desejou desbravar, aqui tão perto, rasante aos meus caminhos, havia um local intacto onde só a lua me mostrava os contornos do arvoredo.

Acontece que por estranhos acasos tinha revisto nestes dias «Uma Viagem a Lisboa» a propósito de nada, apenas me veio de novo parar às mãos o singular livro, e com gosto o reli e foquei-me em algumas passagens, e quando na manhã serena de Primavera, após este revisitar, subia a rua do lado do Jardim da Estrela se me depara aberta a porta, entro então como que guiada por nuvens frescas matinais: estava no jardim! Entrara pela parte das lápides do século XIX que não davam aquela penumbra do sentimento da morte, e na rua que subia, o nome de Henry Fielding com uma seta para a esquerda, guiada assim, deparei-me então com um lindíssimo mausoléu sem arrebatamentos estéreis que a morte não precisa de coloridos vivos, de dignidade e beleza, impressionantes. A morte acontecera no dia em que nasci, o encontro, quase no aniversário de Fielding, e das rosas, sempre inglesas, um inefável perfume percorria o espaço mais bonito de toda a redondeza. Tudo estava à escala humana, desde as árvores que me pareciam frondosas vistas de fora, aos mármores, às flores, sem aquelas ameaçadoras raízes que quebram o solo no da Estrela ali ao lado. Tudo era gentil em meu redor. E mais encantos existiam; outro seu livro « Amélia». E naquela manhã, foi ali mesmo que resolvi um problema que a índole elegantíssima do meu interlocutor assim me facultou. Há dias que são como sonhos, somos guiados.

No reino da manifestação há que se ser abençoado, o mesmo que contemplado, pois que os felizes momentos são grandes demais para o nosso estreito entendimento, mas um poeta, por o ser, só o será de forma plena pela consciência de que as leis que o regem são bem diferentes das de muitos outros. As mais vivas coisas não fazem barulho. A Casa Fernando Pessoa ali ao lado é asséptica ao maravilhoso, e neste instante tive pena que ele não estivesse aqui, perto da sua primeira essência. Por momentos tudo faz sentido havendo um lado luminoso que não desiste de nós.

Parabéns, Henry Fielding.
Ele era parecido com Voltaire, talvez que estes seres se assemelhassem no seu registo temporal, e seria aqui encontrada a frase do entendimento “é preciso cultivar o nosso jardim”. – Sempre estivemos tão perto! Mas há sempre um tempo para os seres se encontrarem. E quem sabe ainda se desde sempre estamos unidos?!

12 Mai 2021

Interface 21

15 de Fevereiro de 2021

«… a face do amor é ausência de rosto»
«A Idade da Escrita», Ana Hatherley

 

Aproximamo-nos de um tempo em que a nossa componente fechada e dialogante a partir das vibrações fonéticas irá ser remexida, posta à prova, alterada, e quiçá, modificada. Estamos numa «Interface» mais complexa que as primeiras, apenas para fazer negócios ou criar plasma a partir de correntes sanguíneas demasiado alvoraçadas para o contemplar de outras realidades a haver. Vamos caminhar de forma rápida para um tecido apaixonante e desconhecido que fará acontecer a alma num projecto de luz, e transpor a barreira dos egos hiper-esclarecidos, vamos em sintonia experimentar um ritmo amoroso, telepatia, canalizar os dons, aproximando-nos da zona que os sonhos esperavam.

Lembramos a « Máquina do Mundo» camoniana e quase nos comove esta lonjura, este programa do saber ditado ainda no vazio dos tempos que foram permanecendo vazios até hoje, fora da imensa e maquinante composição da luz das trovas que o compõem, e esta metáfora de forte estranheza dada abeirou-se por fim do jovem e inssurecto século XXI no dia de amanhã que está chegando através do seu verso « estamos a passar o mundo da luz tão clara radiante….» e o poema se alinha com sua estrutura mais feliz que não é o debitar estados de espírito (alegando como também Pessoa bem viu “que sentimentos todos nós temos”) mas encontrar a alma do amor refulgindo nas formas imateriais de um domínio que a ciência toda poema e propósito, alongou para desocultar a palavra dos poetas, fora sempre dos procurados eu(s) que tem de ser extra ego para assim chegar também aos sonhos dos sonhadores mal dormidos que não sabem nem desconfiam ser estes, manifestos.

Chegados à exaustão por uma determinada maneira de nos exprimirmos será esta a encruzilhada que faz sentido anotar- Pixel – unidade de energia desmaterializada «vejo Deus e não sei quem é e penso que é um número que me empurra…» na zona do cérebro que ativada irá produzir a maior revolução em estafados conceitos de definição de humano; não intrusivo, menos instrumental, e esmagadoramente capaz de um rumo que não vamos ousar já designar. Efetivamente esta velha anatomia é demasiado enredada em estímulos sobreviventes e de passagem de gene para se consentir saborear a quinta essência da sua vasta competência, mas – telepaticamente a caminho, que a sincronicidade dos dados está lançada e sair do aterro da asfixia rumo a outros oxigénios que este mata nos fluxos da própria respiração- tanta virulência pode atordoar as mais elementares formas de expressão nas inúmeras “cabeças de vento”, que a morte, essa, é sempre cerebral, mas a vida longa celebrada, não será longa para martírio dos dias, mas inalterável até muito longe em interface com esferas que nos permitem a partir do futuro breve ir ainda mais longe até aos passados que pensamos perdidos.

Subitamente a compaixão, o contacto latente com a alma de outro vagueando no suporte, estamos leves e os sonhos transformam-se pelas superfícies reais que nos estão destinados para melhorar dons desconhecidos, latentes, e quase se atravessa aqui o poder litúrgico surgido da mão que bate à porta «estou à tua porta, e bato».

Cansado de errares. A estrela que te orientava e nunca viste perde o brilho
e o que em ti era sentido de orientação. Há uma noite absoluta para o teu seguir.
E a única verdade que te sobra é estares sentado. Cansado de errares.
Não te sentes. «Pensar».

– Enquanto te sentes, não te sentes, e passemos à Interface.
[Trazes de mim a notícia gritante do quanto o transbordo é urgente, fecho este postigo, silvado, agreste,
e outra vida surge na transparência de um novo nascimento. Quem não for encontrado, que não sofra, e espere o tornar da luz. Era vazio o início, e na longa caminhada vieram as sombras até serem de pedra e erguermos com elas as estátuas]

28 Abr 2021

Rima do velho marinheiro

13 de Março de 2021

 

O nosso tempo actual reporta-nos para as vagas como se andássemos sobre as águas, uma navegabilidade muito própria – andamos agora por vagas- navegamos incertos, e qualquer costa se nos afigura como uma miragem na fé de chegar a bom porto, andamos literalmente a «cavalgar a vaga» que devido às fortes monções se fica parado num viver ficcional como no ventre da baleia, e quando esta sofre ruptura, ou abertura, somos expelidos, e tudo parece recomeçar em chão seguro que parece outro. Para não entorpecermos ainda mais pela linguagem chã, arranjaram-se eufemismos esperançosos, como; bazuca, vitamina, e outras variantes, mas no subsolo, o dinheiro (essa designação assaz grosseira) é um bem que só os anões e os alquimistas sabem como preservar e fazer crescer. Estas vagas que têm sereias cantando ao lado das embarcações necessitam da coragem de um Ulisses que se amarrara todo para não se atirar a elas, e assim, foi ele para casa onde aprendeu a fazer mantas.

O facto das vagas se sucederem é até um factor de adaptação à jornada do navegante, onde, de ora avante não deve temer o sentimento costumeiro da adversidade imposta pelo ritmo das marés; é certo que em caso de tsunâmi toda a programação se desfaz, e a ideia de navegabilidade ao primeiro soar de calmaria pode mesmo fazer que ele se manifeste. Nestas coisas devemos lembrar-nos da frase «navegar é preciso, viver não é preciso» pois toda a Terra é agora a única barca. E se passarmos por cima, será um dom, diferente daquele que deixáramos que era, passar ao lado, uma verdadeira mudança de plano. E tudo isto não seria uma experiência de péssima qualidade se não nos recordássemos das Barcarolas, um legado antigo inscrito num tempo medieval: métrica simples, efeito de assombro, roteiro fantástico, na inesperada e renascida presença de Coleridge, percursor do romantismo inglês pela sua «Balada do Velho Marinheiro» o poeta que afirmava acreditar mais nas coisas invisíveis que nas visíveis, quando nós olhávamos ainda a Nau Catrineta, que de pasmar se foi quando passámos a ter «Chuvas Oblíquas» (que barcas afundam na vertical) e este Velho Marinheiro não gosta ainda de nevoeiro «…que trazia o nevoeiro. Há que matá-las, dizia, se trazem o nevoeiro/ Dia a dia sem um sopro que o movesse o barco ficou parado/ em vão como um barco a tinta num oceano pintado…»

É nesta atmosfera que nos associamos às lembranças e delas vazamos as vozes de outro entendimento, que tudo se liga como as redes dos pescadores, e se deita, e se arrasta…se dissolve, e quantas vezes se esquece. Trazemo-las renascidas e vimos o quanto os elementos se assemelham nas suas alternâncias, recordamos viver, que sem isso, o tangível espaço incubado que o acaso nos ditou pode não ser o tempo de reflexão que é preciso para o abate dos navios piratas. As vagas de ontem transportaram assassinos de marés, mas vimos como concordaram as leis, e como por elas somos dirigidos mais que dirigistas, e muitos ainda anseiam voltar para a morte há tanto anunciada. Hoje, porém, somos um instante no verso «É um tempo de cansaço/ a garganta ressequida/ e o olhar vidrado/ Um tempo… Um tempo de cansaço!»

Data de 1798 a primeira versão desta obra, a repercussão foi o ter firmado um estilo inaugural, mas o autor foi fazendo mudanças e em 1817 incluía-as em «Sibyline Leaves» e em 1828 volta então ao original. «Deveria ser encadernado em ouro» – disse um critico acerca do que dele restou, e os pescadores de pérolas sentados em tronos, por tão duros ofícios que a beleza requer. Por muitas vagas levamo-los e esperamos lembrar. Por ora, o pensar nos cansa, que este vaguear não inspira confiança confinante, nem nada se vê de muito nítido…que de nevoeiro, nem vê-lo, mesmo que para alguns seja o vínculo inconsciente de um desejo colectivo.

Começa num casamento em festa, coisas que os mapas esqueceram. Quanto a Coleridge, morreu subitamente aos sessenta e um anos.

20 Abr 2021

Mudam-se os tempos

Passamos de moda como esta casa, este casaco, nada resiste à mudança do tempo.
E estas mortes todas em nosso pensamento!?
São páginas de livros e não malha de ferro, e quando o vento sopra vão voando
Da mesma fonte que a malha do guerreiro se contraiu no fogo estranho
Rebuscamos a casa e está tudo mudado- do ciclo de outrora nem um marco-
E assim os dias se fazem outros
Com todos aqueles votados ao abandono
Verticais como as colinas, os que se elevam partem cedo. São deles as mudanças e todas as vitórias
Por eles se alcançam
Desenlaçar, mudar de rumo… sede, sempre do mundo
Não ter o dever de amar, que amor não há no vale profundo.
No entanto, saber vingar o mal, e depois mais lúcido, não mais importar
O destino inútil do sepulcro.
Trajar o manto viajante, que em cada jornada o tempo muda
Deixando as vozes castigadas no desaire de falar ao submundo
Não há chão que a raiz não rebente, e onde há explosão
Chove ternura, que o tempo frio de gastar o solo, secou, e as áridas paragens são de lume.
Deixar os sentidos em paz, tomar outras dianteiras
Não vestir o amor para se ter somente o reflexo de quem o nomeia
Vamos embarcar! Rosários de contas não há, o destino mudou,
Na telepatia das fontes
É um país novo a Terra inteira. Passámos de moda a projectar o novo.
Gastámos as línguas – litúrgicas boas-vindas – nos velhos andrajos das modas
Há gente que passou o tempo de se conservar em nós como ideia, terno efeito, consciência, são os equívocos da grande teia.
Não há comoção que interprete tanto desaire breve na languidez de uma era extinta de promessas.
Que a liberdade é sentir de maneira vária em tons regrados, e mesmo assim não ter receio de ser vermelha e ter os lábios molhados.
Nenhum arco-íris se desfez na sua imprecisão, e as grandes coisas são ainda aquelas que nos fabricam o pão.
Passamos todos de moda, passados de mão em mão, e o tempo gera memórias, mas não há certeza que dite que são a nossa história
Ronda insolente o destino, que ficar na vida em espelho vestido para um tempo fechado é acto tributário, e ninguém se veste da época do seu instante banal, se a si se consentir ser divino e animal.
Nesta abertura do acaso somos das modas, vencidos, que moda rege e renega as contingências dos mitos.
Do amor que não há fizemos coagulações, somos derivados de enfartes, fartos das mesmas pulsões.
É um chão macio este que muda- muda a seiva, muda o sítio – e não há lugar para as vestes dos fantasmas indistintos. Que as vontades mudam, desnudam, o que a moda tapara.
São as conclusões douradas! Ciclos abstratos, e a nossa longa cauda de símios disfarçados.
«E se o mundo é composto de mudança» toda a água se disfarça quando nos banhamos, numa luz, que em nós algures nos dança. A água gela nas veias. E não há quase minério, tão só a moda de andar de pé no cimo das ideias
Bípedes a motor, consagrámos a corrida, mas ninguém nos diz da moda dos quatro membros por terra, quando forjarem a nossa saída
Depois da queda do mais recente Adão, não voltaremos a colher às árvores, mas a subir a elas, nós que a moda desfez e refez em modos vários, iremos como os animais utilizar as manobras de ir ao topo dos ciclos vegetais. Talvez como os felinos
E mudam-se os tempos nas feras vontades, e muda-se o estar aqui e não estar mais, e o que esquecêramos nos trará um recomeço quando muitos de nós forem arrebatados pelas vogais da Aurora.
«Do mal ficam as mágoas…» mas não na lembrança, que recordar os males é não ter esperança, e movidos e sem defeito atravessaremos as trevas só para lhes dizer adeus.
Também não houve bem, nem há saudade, a missão governou o governado, e se amor bastar, é certo o lenho da nossa sua imensidade

( Camões no coração até morrer)
Máquina do Mundo.
Eis-te revisitada.
Mudando.
Mudada.

29 Mar 2021

Gatos e Cronistas

É sem dúvida um distintivo a que não podemos fugir este dom da representatividade felina nas mais altas instâncias da língua, e não há dúvida nenhuma que a nossa obra mais arranhada se intitula «Os Gatos» de um igualmente “assanhadíssimo” Fialho de Almeida. Ora a razão para tal título encontra-se nos fascículos editados entre 1889 e 1894, crónicas jornalísticas, que não pode ser mais fidedigna perante o seu anunciado. Obra fragmentada como veio a ser interpretada, parece-nos que o autor devido a um mau estar crónico lhe escapara a serenidade de espírito para a rotina, o conciso e continuado, mas aquilo que aos olhos de uns foi uma falha, analisando melhor, creio ter sido a sua força. Bastante além do criticismo mordaz ele encontra-se num delírio fascinante de intolerância social e ambiental com operativo desassombro e espírito sagaz.

E entremos pelos «Gatos»! Um verdadeiro saco de gatos nos espera nestas epístolas aos vindouros que parecem não desmerecerem os cento e vinte anos que as separa de hoje: conservar as feridas em chaga e atirá-las com a força do arremesso, assim se queria que fosse a composição estrita destas crónicas. Vem-nos à ideia o mais próximo da saga, Vasco Pulido Valente, mas em maior estado de desolação, o que para o autor aqui presente nem sempre acontecia, consumido por estranhos ardores de repelências várias, há um colorido que não escapa ao olho de lince que devemos adoptar para lhe captarmos tanto desaforo e assombro. Fialho, era paradoxalmente um esteta, franzino mais bonito homem, com certo olhar alucinado, não carregando tanto na lunática emanação do nosso querido e contemporâneo outro cronista, o seu ser, possuía ainda viva compaixão pelos desfavorecidos e por todas aquelas almas votadas ao abandono, por vezes exacerba-se tanto que nos inquieta com as ideias do porquê da fealdade pátria, falando, portanto, aquilo que muitos pensam mas não ousam dizer, quanto mais escrever. E é dele, nesta disposição, que nós gostamos.

É bastante claro que um homem assim, movido por um estado de enervamento sistémico não teria capacidade metódica para reunir os papéis ou novelar as lãs para os seus gatos que por ordem natural das coisas os amaria porventura mais se fossem famélicos, vira-latas, pondo-se aí perfeitamente ao lado do não menos brilhante e intragável Ezra Pound, que levava os bolsos cheios de comida para os alimentar nas noites frias. Nem o Escárnio e Maldizer todo orientado para as investidas criticistas mais intensas atinge esta soberba individualidade nascida de si como uma consciência de alarme e praguejar continuado. Nada do nativo canalha se lhe atravessa nas odes, nem recorre ao escatológico martírio da verve grosseira, é dele que emana o enxofre, e nem por isso deixa de ser um distintivo muito belo.

Atravessava o impacto dos Vencidos da Vida em rota de colisão para o Decadentismo, e interpreta com zelo o que é um homem com falta de paciência, e com desajustes constantes diante de tudo, não vendo nas mais altas patentes do génio pátrio mais que as inusitadas análises que fazia, que contrariavam qualquer ajuste com a paz no reconhecimento dos seus pares. Estou em crer que todos o abandonaram, excepto o António Sardinha, que desejando fazer-lhe um louvor lhe saiu também uma sibilina interpretação. Mau grado tudo isto, estamos em presença de raridade humana com grande empenho social e lisura que nos espanta e seduz.

Em 1880 tinha já fundado uma revista «A Crónica» e o nosso cronista vai então dizer de si o porquê das afiadas garras porque intitula «Os Gatos»; desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato- isto é, o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia- porque não escolheremos nós o travesti do último? Aquele que nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro. Razão porque nos acharás aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca». E nem Ramalho Ortigão levantou a sua farpa para tais gáudios na corrosiva acção, parecendo apenas concertada de trás, refinando na tendência, e exultando no desânimo.

Arrumados que andam no fundo das estantes estes autores, hoje existem os “trococriticos” de uma moleza que dá vontade de ouvir tangos, e ainda arranjaram formas opressivas de demolição sentada pondo-se ao nível das trituradoras de frutas. A urgência deste “encavalgamento estilístico” está-lhes presa aos cachaços no vitupério das suas urdiduras. E dizia ainda o inesquecível Jorge Brun do Canto: ” nariz de gato e rabo de mulher querem-se frios” única maneira de saber que estavam ambos de boa saúde. – Agora com seus cachorros fiéis e muitos “boys” os primeiros puxados por trelas para desconfinar, quem pode imaginar um critico apanhando as sobras do seu amigo pelo chão nas ruas desertas?! Ninguém. Que para Fialho “Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato… artista até ao requinte… sarcasta até à tortura….”.

Foram homens reunidos à volta da Imprensa e com ela forjaram os seus ideais numa época de viragem e grande vontade de mudança, exercendo este labor com afinco e prodigalidade, Fialho, não gostava ainda de Fradique Mendes, e entre jornais as suas questões eram o melhor testemunho da riqueza vibrante das ideias, fazendo da língua um legado tamanho que não há mais que ser lembrado.

26 Mar 2021