Amélia Vieira VozesCorpo a Corpo Crescemos a espaços de coisas que nem lembramos, somos da cadeia um elo projetado à amplificação. Enquanto isso, as dores do crescimento quase ofuscam o prazer da expansão que deve ser acompanhado do sonho da vitória contra a morte insolente, presente em todos os caminhos- e esses seres tão frágeis diante tudo – de todas as adversidades, parecem sair vitoriosos quando dobram os seus cabos. Temos um corpo guiado por forças tais, que na emboscada de um outro, revolve toda a soberania sonhada só para transitar para ele, sua cúspide revelada. Porém, a virgindade renova-se como a Lua, e ser mulher, altera esta noção de fusão latente, pois que semeia em fundos vales uma intrepidez que não pode ser adaptada a nenhuma circunstância. Para um japonês, a melhor porcelana fabrica-se nas paragens onde as condições de vida são mais duras, já o coração é difícil de fazer arder em brasas acesas, e todo o hedonismo cai por terra se nos esforçarmos na reabilitação das fontes essenciais. Talvez nem seja necessário nenhum prazer entorpecedor e vinculado aos veios das comemorações mercantis, que o corpo do desejo é uma impermeável película que atrai o desespero para os confins de uma busca a que chamamos conquista. No corpo encontraremos as reservas de sombras e deslumbres que se aglomeram como ressonância do que somos. A terra então se abriu, «fendida pelo amor», onde dizem para aí que o seu centro parou. Que centro sabemos nós ser esse, vasto manto ebulitivo da sua natureza?! Vamos até onde podemos ir por explosão ou implosão, no entanto, somos mais orgânicos no acto explosivo, que a paixão dos corpos provoca choques magnéticos que se dissipam na atmosfera, onde só por ela é possível embater para que se alinhem como fabricantes de energia viva, já os do prazer, não saberão reproduzir o rastilho dessa força transfigurável, nem saberão reconhecer a viagem entre correntes contrárias que levam a um certo estado de clarividência. Delfos, esse umbigo, falava e muito embora pudesse assustar, aterrorizando, falava de poesia. Continuamos a levantar questões no corpo que nos acolhe, mesmo quando estamos certos que cumprimos uma maldição. Enterrados em lamas saem braços de mulheres com unhas pintadas – é a guerra – por instantes parece-nos que foram expelidas para a superfície da crosta exposta aos ventos, ao sol e às neves, mas não; foram empurradas para um fundo à superfície- corpo de terra- e ficamos magoados com a fina camada que separa os mortos dos vivos, que o abstrato encanto de mergulhar no Hades nos dava distância e gravidade. Ter visto os nossos corpos a partir dos recursos de transmissão tecnológica em transe mortuário foi um estrondo ainda imperceptível que nos levou à perspectiva da Terra oca. Os hiatos que criámos davam bem para atravessar desertos de tecido cerebral onde grandes ligações ficaram desfeitas. Por ora as nossas mais elaboradas estruturas belicistas recriam o cenário terráqueo de uma guerra das estrelas, mas não anda longe a luta corpo a corpo, que das estratégias não sobrará muito mais que terra desfeita, e nesse abraço mortífero quem sabe se não penetraremos de novo no núcleo parado, que mais que tempo anulado, é rasura para qualquer memória futura?! O que nos acossa agora? Canibalismo. Ainda hoje aterrou no aeroporto de Lisboa um homem com pedaços de carne do ser que subtraiu à vida.- Nós já chegámos aqui! E saber isso é como entrar nos abismos mas de olhos abertos. Quem não sente, é como quem não vê, e por isso, felizes os cegos que entrarão no reino dos céus. Essa brandura é tudo o que gostaria de resgatar antes dos altares do mundo serem extintos por força inferior que fora inscrita como alto desígnio. Entretecidas por personagens modernas e antigas irrompem sem fronteiras nem contornos – corpo de texto – a descida e a metamorfose dos nossos corpos dados à combustão de uma sagrada desdita, e dos Triunfos, a Rosa obscena da trituração. Este é um índice remissivo de um livro que nunca escreverei «Disseste o que queríamos que fosse dito», que as odes confessionais perderam o seu tempo na emaranhada insanidade dos disfarces.
Amélia Vieira VozesPassarola voadora Não é noite de João, mas há balão! Ora, tanto balão, sugere que vigiados andam os céus do mundo. Céu, essa grande abóboda que não é passível de ser tomada por tantos atiradores furtivos. Efectivamente, não creio em extraterrestres, até porque o que se detona aqui é bem terrestre e volátil, de tal forma que caem como maduros cá em baixo. Há navios a carregar os destroços brancos das insufladas “mensagens “que a matéria não entra nas investidas dos visitantes extra Terra, eles devem ser só energia com movimentos súbitos, e tão rarefeita, que o rasto não será passível de ser apontado. Esta história por incrível que parece deve tudo a um português, Bartolomeu de Gusmão, e quando em meados do século XVIII, quando a Revolução Francesa vinha ainda distante, preparava-se em território nacional aquilo que viria a ser para essa altura os balões de observação de uso militar, mais tarde a Guerra Civil Americana volta a usá-los, e assim continuou até à Guerra Franco-Prussiana. Havia balões por todo o lado! E veio a Primeira Guerra Mundial, expoente máximo do princípio do uso dos balões, como tal é fácil saber que estão associados a beligerâncias de ambos os lados das trincheiras, havendo a equacionar no momento presente que eles andam aí, e que a bela forma posta nos ares indica: GUERRA. Se não formos só enchedores de balões, podemos sem grande destreza dar-nos conta da sua presença nos suaves enredos europeístas todos organizados para descalabro mais bicudo. A Europa vê os balões passar como se estivesse em fase constante de Lua-Cheia! Os mais quiméricos tentam descortinar salvíficas visitações ou culpar o seu oponente estratégico de disseminação, e aqui entra até a suspeita que aquele que se vê cada vez mais encurralado comece a dar tiros para os pés dizendo que são os outros. Apanham aquilo tudo e não há nada que depois produzam de revelação encontrada!? Claro que é estranho. Seja como for, eles andam nos ares. Há mesmo uma expressão que diz “O balão está subindo!” grito de guerra iminente, daí que devamos circular de modo a permitir que as nossas memórias deles não se esqueçam. Efectivamente, o mundo hoje é mais tecnológico, bastante captativo pelo rigor mecanicista, mas lidamos com nós mesmos, que estamos ainda mergulhados nas práticas anteriores sem saber muito bem como lidar com outra consciência, e quando os tempos apertam, reconstruímos sinais conhecidos. Também é certo que foram realizados milhares de voos de observação por balonistas pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas estávamos em áreas circundantes bastante mais próximas. «A China fica ao lado», belo título de um romance de uma saudosa amiga, Maria Ondina Braga, que hoje me parece de máximo interesse estratégico – sim, fica ao lado – mas um lado suficientemente centralizador para começar a ser aquilo que pode ser visto como um estremecimento a Ocidente que não sabe descodificar nenhum sinal. O cerebralismo impactante das nossas sociedades crê saber ver tudo e o seu contrário, mas nada se processa por antítese, e o tal Mundo muito unido não é assim tão unificador como julgáramos que fosse. Por outro lado, há os tais movimentos irreversíveis, nada dura no mesmo lugar para sempre, e nas voltas e rotas que a vida dá, os ajustes do todo e de cada um, são condição permanente. Parece que longe estamos dos tenebrosos ataques terroristas de um Islão em rota de colisão com o real, mas não estamos, foram ontem, e geraram analistas como cogumelos envenenados. Quando nos olhamos mais seriamente, parecemos enlouquecidos. Não estamos ainda em Guerra, mas toda ela nos faz estremecer como antevisão de um grande passado sangrento e comum. Aos poucos deixamos uma certa percepção inexorável para um atoleiro de alta definição que já não é real. Voltando à nossa Passarola mãe de todas as infiltrações, ela partiu de uma bola de sabão elevada pelo ar quente da chama de uma vela, D. João V dá então permissão para tão insólita investigação, e Gusmão faz subir o seu balão, esse jesuíta, que acabará por fugir para Espanha sem beliscar a sua genial descoberta, apenas porque a Inquisição suspeitou que pudesse ser judeu. Passou o resto da vida, ao que consta, obcecado pelo Quinto Império e pela vinda do Messias. Eles talvez tivessem vindo, mas tão distantes da sua Nave de Ar, que o que nos resta são balões nos céus do mundo. Agora estamos no patamar «A volta ao mundo em 80 dias» a bordo de um balão, e se neste espaço de tempo não houver borrasca, é porque a órbita da Terra se alongou.
Amélia Vieira VozesA Bailarina A sua vida não saía agora de dentro das muralhas, o quarteirão era um país e a cidade fora há muito um local encantado onde se moveu por todos os seus recantos em passos de dança que pareciam não tocar o solo. Estava bem. Afinal era um belo sítio ainda não muito exposto ao êxodo dos seus moradores e com as formas intactas de um antigo feudo. A vida permanecia um dom que se dançava no estreito local, e mesmo assim caminhos do mundo se entrecruzavam nos seus passos, faltava um certo vapor, uma cantata, mas habituamo-nos ao som livre dos nossos passos quando se conhecem de cor os percursos. «Ela canta pobre ceifeira!» Só um homem podia ter escrito frase assim. Cantariam os navegadores? Não se sabe… mas alguma dança trémula alcançariam na monotonia que também atinge a aventura. Os passos titubeantes dos que visitam cidades tornam o rítmico processo, torpe, e ao nível do chão, causa de todo o desastre – rolam mecanismos insonoros, deslizamentos de velocidades várias – chegam carregamentos de malas, sacos, bagagens, e só não submergem porque a vontade impõe a resistência para as noites que hão de encontrar nas camas turísticas o conforto programado para populações exaustas. Que a labuta dos que se esforçam para a logística doméstica dos novos nómadas não é menos imperativa que a de estes navegáveis. Uma componente em que todos os recursos se concentram para tirar dividendos flutuantes das vagas de passageiros, fazendo ispersos como um chão de ossadas em velhos caminhos, uma impermanência que é lei e gere a cidade, que a deita e acorda num quase tristonho cenário de «Nau a Haver» onde a natureza dos seus habitantes se virou para outros soalhos, que os salões escureceram à passagem das massas. Dançar foi outrora uma função tão válida como hoje é andar, correr por aí contra o vento em festividade orgânica quase insolente, era uma proposta semanal, um estado de funcionalidade, que o corpo gosta da dança e lembra-se de como os seus passos ajudaram à árdua tarefa de se saber caminhar junto. Mas deixemos a dançarina entregue a seus cuidados! As pessoas que saem de pijama para o emaranhado das ruas deviam ter na chegada a casa um manto púrpura para se cobrirem e tentar olhar-se com alguma parcimónia, que isto de se ser tão casual, entorpeceu a natureza das funções e levou à subjugação através da moda desportiva. Andam os seres todos a treinar. Para quê? Não se sabe. Um treino é aprendizado para cumprimento de actividade que se deseja desempenhar contribuindo para o bem comum, ora, o bem comum, pode ser também um mal comum, que não se dá por isso, a menos que haja um evidente bom senso no meio desta estranha projeção. Se falarmos ainda nos ensandecidos hábitos alimentares que cortam as fontes do balanço para as bailias, vamos entendo o porquê do cansaço extremo e da má resolução dos problemas. A atmosfera não está para grandes carinhos, e sentimos que ela produz calafrios podendo estar a lançar madeixas de cabelos de uma cabeça decepada, que de forma lenta, tenaz e concreta, adoece a maleável natureza dos seres. – Não será então em mim louvada a conveniência da saúde ardente- que a saúde se saúda pela transformação constante desta luta até à inexorável falência orgânica. A Dançarina em nós nunca deixa de bradar, ela é mais lata que os movimentos estipulados, e agora amordaça-nos numa orquestração sem harmonia que julga os nossos passos apenas como capacidade muscular para se manter activa mas lhe retirou o tributo da função cósmica que é dançar: dançar em todas as direcções, com todas as formas, com todos os sentidos, um tributo ao Universo que não retém a conveniência de se ter um corpo apenas para se encarcerar, a Bailarina, tende a mostrar-nos a escassez de fluído que está em marcha nas nossas sociedades nazis reinventadas. « Anima Mundi» ou a alma do mundo, consistirá sempre a desencarcerar na “prima matéria” a natureza inconsciente. O Mundo gira na roda evolutiva, e com toda a nossa retenção de marcha, acena-nos para não destruirmos os tributos circulares da sua natureza ( a Dançarina é feminina) e ainda nos diz que o impulso criativo no seio de toda a vida não poderá jamais ser revelado. Podem os seres vestirem-se para uma mesma dança, despindo-se destas vestes tributáveis? Esperemos que sim. No ponto imóvel do mundo que gira. Nem carne nem sem carne; Nem de nem para; no ponto imóvel, lá está a dança, Mas nem parada nem em movimento. T.S. Elliot
Amélia Vieira VozesOitavos de final O número oito tem as suas benesses. Toda a gente ao redor dizia: «quem nasce a oito é rico»; hoje já ninguém sabe o que tal adjetivação possa significar. Oito é um número, e como todos sabem é também esse octógono que testemunha a lição fantástica das Capelas Imperfeitas. Abertas estavam para o céu acreditando-se mesmo que alguém, ou alguma coisa, desceria para revelar o que não sabemos. Imperfeitas?! Talvez não. Elas foram deixadas assim para uma qualquer esperada manifestação. Dito isto, há que os descobrir na arquitectura para sabermos quem vem ou virá que aterre em segurança, não vá por más escolhas ficar feito num oito ( significado contrastante com a boa estrela do número). Quem está feito num oito não volta a ser numericamente mais nada, a menos que descubra que esse recolher em S possa ser um retorno perfeito, que a Oriente cede passagem como número sagrado e se inicia na profética demanda, mas quatro, ninguém imagina a tristeza que transposta! A própria língua dá-lhe sonoridade de morte, ele dobra, transcendendo assim condição mortífera. Por outro lado, oito é bonito. Deveriam os signos alfabéticos e numéricos ser mais ou menos perfeitos? Sem dúvida. Foi essa definição gráfica que nos fez acercar do conteúdo verbal /numérico. Ao agrupá-los numa rede de signos, conceitos, abstracções, criámos estradas que a própria natureza desconhecia, alterando-a. Criados os signos, as condições estavam definidas para pensar grandes artefactos de um monumental esquema civilizacional. A China ama o oito, nós o cinco, e outros amarão o que muito bem lhes aprouver. Por tudo isto cada um caminha para os seus domínios onde se encontra uma geometria muita própria. Cada um avança em sua deidade numérica entregue ao fluxo dos anos, e tende a expandir ciclos florescentes nos seus numerários «Ir aos oitavos» é ser escolhido para o duelo final “após os sete dias da lei veio o oitavo da graça”: prepúcio cortado, oito almas embarcadas na arca de Noé salvas pelas águas numa já muito marcada senda da transcendência do número que “ao seguinte dia de sábado” existiria ainda como símbolo de ressurreição. Octávio, Outubral… Octávio Augusto, primeiro imperador de Roma, tinha a marca dos oitavos filhos nascidos das famílias romanas; por cá, a tradição dizia-nos apenas que entre sete filhas, a sétima era bruxa, e para escapar a isto, só um redondo numérico. Tudo expande para formas renovadas, ampliações fora do clã… tudo toca mais perto o longe que vem por força giratória ao ciclo da vida que se refaz. Não há linear conduta, andamos no invólucro giratório onde a morte se descontrai para entrar na ordem invencível. Esta vitória da curva sobre a recta diz muito da sua composição gráfica que tendencialmente constrói nas correntes da visualidade o sucesso sem fim à vista deste número. A recta final não é uma oitava, e mesmo assim, ambas se confundem em seu términus. Há que chegar à final! – E, afinal, quem pode escrever direito por linhas tortas? E quem distende a recta quando o tempo começa a ser escasso? Lebres e Tartarugas nas meias Finais. Entre o círculo e o quadrado ele pode ser ainda uma clave de sol que penetra geometrias opostas servindo de melodia para os contundentes ângulos do pragmatismo, alisando as arestas das fronteiras agrestes… Ele dança! É a dançarina em nós. Deitamo-lo e eis o infinito. A sua esfera totalizadora levantou-se, e como os antigos reis do Norte, abeira-se um extenso conflito para reparação das forças onde no centro da sua curvatura nada pare de girar. G8 foi abatido. E agora aguardemos as voltas que o mundo dá.
Amélia Vieira VozesAno do Gato Começa assim na primeira Lua-Nova do Ano um ciclo a Oriente, que é também um momento de grande festividade, um rito de passagem repleto de significado dando a Buda o que é de Buda, que notificou como nas fábulas os animais. O ciclo das doze Luas iria marcar cada Ano e inscrever na mandala as características de cada um, entrando este com as prerrogativas do nosso amado felino. No entanto, é também designado por Ano da Lebre ou do Coelho, existindo sem dúvida a conexão lunar que os associa, que seres míticos como o Dragão, estarão sem dúvida associados a Anos solares (mesmo que o horóscopo seja lunar) e o Cavalo, o Macaco, o Tigre, a virtudes mais “yang” num certo calor que marcará as suas regências. É altura de calmaria! – Um Ano de Água no contraponto deste Bestiário trará enfoque ao elemento assinalado, esperando-se por isso manifestações aquosas de monta como bons banhos, óptimas viagens de barco… e na pior das hipóteses, naufrágios, tsunamis, chuvas torrenciais… a chamada «água pela barba» que quem as tiver, melhor será que estejam de molho. No início de 2020 a China pareceu assustada com o singular Ano do Rato tendo razões para isso. As Festividades quase foram canceladas quando muitos estavam já a caminho quais Flautistas de Hamelin ao rebentar da temida pandemia. Era aquele Ano do Rato que só se produziria ( reproduziria ?) de sessenta em sessenta anos sob a égide do Metal, que neste caso competiu com o vil metal, e tão dado como nefasto que cumpriu à regra a sua missão. Por isso (que mais coisas se passam ainda do lado do Sol Nascente) nada de superstições acerca do Gato, que mesmo que seja negro, será antídoto para um mal que não passa e parece recrudescer. Que o faça em silêncio, como fazem todos os felinos, e não se grite daqui: obscurantismo… de retro satanás… digam já…! Não digam nada, que a China não é um Parlatório. E salve-se a qualidade social destes festejos cuja cor, alegria, fantasia e grande performance, corroboram o grande poder imaginativo, quase onírico, de um mundo que pouco lembramos agora de forma salutar. Há muito mais mundo para além da economia, da pandemia, da democracia, da tecnocracia e da autoridade política. Há os povos, os seus emblemas, os seus ritos, os seus cultos ( que os incultos não cumprem passagens nem estão alinhados com o movimento dos céus). O desdém tristonho do aglomerado europeu tentou pela prática do prático valor dos instintos, (bizarramente apelidado de científico para as nomenclaturas de culto pragmático) esquecer a demanda dos povos em suas naturezas transcendentes, e fez-se então nestas gentes, nestes povos, prestes a morrerem de estrangulamento inoperacional, uma jangada deitada às águas infernais, estrebuchando a maioria em manifestações insolentes perdendo o ritmo dos questionamentos. Esta via oral é uma reminiscência defeituosa das teorias, uma reverberação alargada de um ciclo civilizacional que não se soube cumprir. Nós vivemos todos muito bem sem ter Partido, Regime, mas falhas as regras civilizacionais nada subsistirá, que também este aspecto para um tempo próximo será de somenos: preparam-se as hostes para a aniquilação progressiva de uma Humanidade chegada a seu términus, suplantada por todas as formas de inteligência a seguir que nos hão de fazer inúteis. Se ao menos levássemos connosco uma certa saudade do remoto transcender… Nem isso! Morreremos como inqualificáveis herdeiros de coisa nenhuma. Entrados que somos então no Ano do Gato (Lebre e Coelho são herbívoros) e testada a infalibilidade dos sondadores dos céus, este pequeno carnívoro nos irá conduzir a um ciclo novo. Sim, ele é um carnívoro, e tenho uma pena muito grande que não se respeite por quimérica partidarização a sua natureza. Isso não nos deverá preocupar. É assim! Nós, a espécie dominante, devemos e podemos fazer escolhas, mas amar a vida não é condicionar os seres aos nossos dogmas: «Tu podes não comer carne, mas não te esqueças de a dar ao teu Tigre e ao teu Gato, caso contrário serão eles que te devorarão». Um felino não existe para ser bom ou mau, isso são juízos de valor, eles existem na Terra para nos indicar também que a beleza é terrível tal como o anjo de Rilke. A ambivalência de que são portadores não nos encaminha para uma conquista sem que haja muitos danos, mas que a beleza por fim enfim, e para sempre, esse grande elo divino que nossas prazenteiras essências temem ver de frente. A Beleza é Terrível?! Sim, é terrível. Para nós, que vamos em busca, a Beleza será tudo aquilo em que nos devemos tornar sem nenhum padecimento. Os heráldicos seres — Águia, Touro, Leão e Anjo — ornam a imagem do Mundo dos arquétipos a Ocidente onde uma dançarina orlada por forma oval olha os Tempos defendida por estes personagens seus guardiões… que o Mundo não é plano, nem as teorias personalistas e conspiratórias entram no seio destes mistérios, mas na realidade a Oriente, entramos no Ano do Gato que nos fará sinais vindos de ângulos impensáveis. Estou certa que será um imponente Ano! Deveria temê-lo orientalmente falando? Não. O amor, ao não ser real por constatações diversas, sobe ainda assim, ao existir, como um Gato à Árvore mais alta para que testemunhemos a diferença entre nomeá-lo e saber sê-lo. Bom Ano para todos.
Amélia Vieira VozesVozes A palavra, esse estado gasoso, é a mais refinada das percepções sensoriais, tanto assim é que a divina presença se manifesta por essa brisa, em que o Verbo só depois se faz carne no corpo, ideia onde a transfiguração acontece pelo sopro, é a Teofania, o captar da voz. Por isso, estar atento a uma certa constância deste estado faz aparecer no campo onírico o processo visual que tendemos a ajustar como primeira essência, e é aqui que entra a tão aclamada face de Deus, esse antropomorfismo que carrega estranhas feições «Ouvistes o som das palavras, mas não vistes forma alguma. Era apenas uma voz» (Deuteronómio 4:12) Sim! Essa corporeidade não é aclamada na orquestra dada pelo som das vozes, mas nem por isso ela se torna menos verídica neste abismo da Transcendência, de que a Revelação é ponte. Mas, e pronunciando nas fontes, e o mais fascinante dos abstractos sistemas entre plasticidade visual e som, é pela primeira que neste caso procuro dar testemunho. Nós chegaremos assombrosamente ao momento em que emanemos somente a consciência e mais que isso, a existência por fluxo, deixando para trás a complexa estrutura do peso das coisas e, de tal forma acontecendo, que separados do corpo originário também ninguém o poderá ver mais de frente sem risco de morte total. O nosso corpo humano nessa outra natureza fabricada será então o mesmo que no discurso com Moisés «Porquanto homem algum verá a minha face e viverá» como se, remotamente e já, esta experiência se tivera passado num ângulo não visto da nossa visualidade, que sendo procura, não obteve jamais certezas, mas o que fazemos na língua construindo as Vozes, dá-nos sobeja experiência dessa dimensão em nós disfarçada, com um rosto que o volume do tempo só apagará se nele não tiver inscrito toda a renúncia a este real. Não vivemos claro está, em todas as dimensões enaltecidas do nosso corpo sensível, que mesmo algumas épocas ou ciclos históricos são mais propícios ao desenvolvimento particular de um deles, vendo como a ideia da Voz se manifestou em corpo acolhido no Catolicismo, e como desenvolveu as técnicas visuais dando o melhor da pintura mundial, e somente o poeta se manteve cativo da experiência das Vozes como não reconhecendo mais nada para além dessa primeira essência. Procura ainda a ressonância da reverberação do efeito dado por essa natureza a cujo enigma não deseja fugir. Depois, a música, que ela iguala uma fórmula acrobática de dimensão maior, que nada que se projecte pode ser tão divino que a melhor das sinfonias. Mas também os orientais, na subtilíssima essência florestal, escusam a imagem humana em seu instinto plástico, não tanto por impossibilidade canónica, mas por elegância de alma. Este aspecto é de sobeja importância para o reflectir da noção do corpo como não veículo, dando-nos por isso a conhecer a Árvore – que a Árvore da Vida vem do Oriente. Entre filosofia e religião demarcamos com hastes a definição dos factos tangíveis. Para nós somam-se os Profetas, para eles os Mestres. Ninguém viu coisa alguma que fosse maior que a Voz transfigurada dessa essência comum, e a Teofania abrange ainda os aspectos da natureza que convém entender como linguagem. Patologicamente designamos então, a todos os que escutam ainda as ” Vozes” de esquizofrénicos, uma tendência que a Árvore do Conhecimento infligiu no robusto Norte – seu reino – e área de provação dos males, onde as nossas vozes contemplam estridentes todas as peripécias de um aglomerado animal que nos é servido nos pratos. Parecemos confortáveis nesta demanda e somos alvejados pelo preconceito comum da sustentabilidade, mas os nossos sonhos talvez nem reflictam já a voz da imagem de alguém que do outro lado, sempre e de modos vários, desejou falar. Quando não somos atendidos é apanágio a desaparição. O mais perto da consciência que estivemos actualmente foi a de um Grilo, que na nossa soberba nomenclatura foi designado por «Grilo Falante» e também ele nada conseguiu face às tormentas que esperavam o herói. Como nuvens, como pó, como essência primeira, a Voz se uniu aos anéis de Saturno. Poderemos saber da alma das gentes pelo som que emanam? Poderemos, sim. E também das coisas que faltam para concluir o ciclo das abominações. Longe estão os sermões de insuportáveis manejos frente ao Grito conjunto que nos espera para uma grande libertação. A uma só Voz.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasFinis Patriae Estamos por conseguinte em luto nacional, o que não deixa de ser assaz estranho numa República, mas dada a mundividência em que a morte da rainha se tornou, e nessa quimera feliz «dos amigos para sempre» como se o fogo da memória varresse aquelas partes menos boas, e se esquecesse mesmo da aceleração que a própria Inglaterra nos deu para a instauração da República, que nestas coisas (como em outras) sempre melhor escutar os poetas que os políticos, e na circunstância vivida, relembrá-los, que ele, Junqueiro, também exercera funções políticas, mas é no último verso deste livro que vamos encontrar a indignação de uma Pátria ferida, a voz de um panfletário, o génio de um poeta, tudo junto à escala da insolência pela grave ofensa sofrida. Precisamos lembrar! Sair das mordomias esclerosadas e garantir o deslumbre dos vindouros. Que o Ultimato vale bem um sabre envenenado pela mais fina matéria do verbo para que se saiba que não vamos esquecer. Guerra Junqueiro era uma espécie de rabi português, um perfil tão puro que nos perturba só de olhá-lo, tinha a intensidade e a sagacidade entrelaçadas na vasta barba, e ninguém contempla um ser assim sem um rebate de consciência por o não ter sabido replicar na visão colectiva, que nos seus olhos de lince se lhe notava ainda uma ternura que não sabemos explicar; tinha contornos de corvo e a silhueta negra indicava uma predestinação religiosa, que estas gentes são ainda aquelas que nos conseguem fulminar. Podiam fazer tranças em seus cabelos com estilos vários, que da sátira, ao saudosismo, ao panteísmo, ao verso alexandrino, eles condiziam articuladamente em suas majestosas cabeças. É desta aristocracia que a terra portuguesa é feita, muito mais que de súbditos nacionais a uma majestade que nunca fora a sua, é desta aliança com as boas práticas, feroz e intransigente, que nos devemos ocupar com carácter de urgência. Quando Pessoa enaltece a sua ama na canção de embalar, é também Junqueiro que nos vem à memória em seu «Regresso ao lar» uma longa jornada de retorno onde o amor mora, que ele não teme tornar… Toda uma vida que perdemos acontece mais tarde, quando ao reler lembramos a forma tão bonita como o fizeram, e sem saída, uns relampeiam, outros esquivam-se, ainda outros “deslizam sem ruído… no chão sumidos como faz um verme…” mostrando a travessia de todos nós. Não esquecer que foi já pela década de vinte que a República que ajudara a tomar forma, começa a contestá-lo, estávamos à beira dos tempos sombrios, e ontem como hoje, tudo se passa de igual maneira. «À Inglaterra» pasme-se então o leitor diante a virulência “que não é mal nenhum ser conhecido pela rebelião de um filho seu paterno…” Destas estirpes nenhuma diplomacia é feita, e o Estado nunca nos representa por inteiro. Que os estados de alma também não fazem poetas, mas onde a alma não se encontra em fina conexão com a justiça, essa nem sabe de que epíteto é feita. Nós somos agora todos mais ou menos panfletários, e não conseguimos sair deste registo que atiçamos como se estivéssemos em eternas campanhas, o risco de tudo isto é que perdemos a capacidade de louvar coisas outras. Há-de ainda chegar o tempo em que estes livros já esquecidos, serão ainda proibidos, nesta Assembleia das Nações que a troco de uma vida repleta de coisas, perdeu tudo no esquecimento mórbido face àqueles que nos deram tantos sonhos, que a morte da rainha é também o início dos tempos funestos, ela que nunca soube que tanta verve contra o seu reino tivesse sido tão emblemática, baluarte de um Império que será destroçado com um clamor como o mundo ainda não viu, repousa finalmente nestes dias de luto nacional. E neste Setembro em que o aniversário de Guerra Junqueiro se realizou, não sei explicar como iludir estes momentos. Quase duzentos anos! «Vencidos da vida»?! Tão diferente do “vencer na vida….” que é onde se encontram agora os derrotados de uma experiência triste. Eles, porém, são quem renasce perante o assombro da morte colectiva.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasPrestidigitação Conhecemos entre nós o de Mário Cesariny, chamado de «Manual de Prestidigitação» deste poeta e pintor, que as mãos trazidas da sua competência nunca deixaram a componente subversiva que estimulou este representante do nosso surrealismo, o que faz não poder ficar entre as mandíbulas dos escrutinadores, pois que se atravessa nele um longo ditirambo que é a sua anti-lírica nunca menor que a própria lírica. Aliás, o livro compõe-se de quatro partes, sendo a que dá origem ao título, a quarta e a última, talvez alinhando no pensamento de que os últimos são os primeiros, e que surpreendentemente diremos se tratar ainda da mais lírica. «É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia… é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano… é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora» e talvez seja aqui que transporte nas mãos a sua própria deidade. Mas o modelo da memória reflecte um outro prestidigitador, Jacobo Sureda, também ele poeta e pintor, autor de «El prestidigitador de los cinco sentidos», que constrói no Manifesto Ultraísta (movimento literário espanhol em oposição ao modernismo dominante do final do século XIX) um grande axioma das suas convicções: «Nosso credo é não ter credo. Não pretendemos rectificar a alma, nem mesmo a natureza. O que renovamos são os modos de expressão». É desta insubordinação de quem se opõe, reinventa e caminha, de que falamos, que ser contra tal movimento não significou estar mais atrás, ou somente atrasado face ao seu presente- não-! Jorge Luís Borges e Sureda assinam um destes manifestos em 1921, que Borges levará para a Argentina. São escritores que vivem muito da produção em revistas, panfletos, agrupamentos dinâmicos de pensamento… são gente que ao estarem juntas se prodigalizam. Aliás, Cesariny herdou ainda esta via, os debates em cafés, tertúlias e boémia, conjugaram-se nos seus alicerces muito férteis. E agora talvez seja tempo de perguntar o que têm em comum estas duas prestidigitações; diremos que bastante (se nos debruçarmos no Manifesto Futurista, também) mas é a novidade imposta em empreender novos balanços semânticos com total liberdade narrativa, pouco descritiva, que nos prende a tal métrica como se estivéssemos mais perto da telepatia, que o poema oferece uma abertura de espectro de tal forma improvável que ficamos limpos da razão bloqueadora que têm as sensíveis demonstrações anãs, exactamente por que se pensa e mede com a fita métrica dos impasses conhecidos. – Aqui não há nada disso! Talvez se pense que estejamos mais perto da reverberação que dê ao poeta sinónimo de louco, que ternamente as gentes dizem que têm deles um pouco. Não têm nada! E aqui nenhum louco entra pois que o infecundo distúrbio não chega para aguentar tais invitações, que nascem de um ainda estonteante poder criativo. Se há efectivamente um aspecto antipático no chamado “criativismo” é essa coisa insalubre do chamado plágio, e aí, a loucura ganha, pois que se assemelha quase sempre de forma arrepiante…! Que um doido, imita outro doido, e o que acontece? Nada. E a acontecer é sempre coisa má. Se tinham estes dois poetas pintores vasos comunicantes? Sem dúvida que é uma possibilidade válida. Mas mesmo assim, se Cesariny, homem raro, que teve como vida o ser poeta e pintor, e tudo o mais que a sua capacidade mantinha, conhecesse como à palma da sua mão Jacobo Sureda, isso só o engradecia. Como a Humanidade é cada vez maior, ela replica, e que bom seria ficar-se só por estes casos!« El religioso mar/ como una hostia azul/ Está en el paladar/ Del cielo y horizonte….» PRESTIDIGITACION e «Pomo-nos bem de pé, com braços muito abertos/ e olhos fitos na linha do horizonte/ depois chamamo-los docemente pelos nomes/ e os personagens aparecem» ARTE DE INVENTAR PERSONAGENS. In Manual de Prestidigitação. Pode um choque atravessar as nuvens num instante, diluindo a conveniência? Eles dizem-nos que sim, que neste afã se registaram tais sinais.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO sentimento dum ocidental Dedicado com amor a Guerra Junqueiro É sem dúvida alguma uma designação feliz este nomear visto por um ponto cardeal só concebível por um poeta que em tudo via captações sensitivas dos espaços, Cesário Verde – tribuna verde para um Ocidente que desde há muito encetou o êxodo para as cidades e que tem sido rasgado a fogo nos últimos tempos – que ainda pode ser apelido, verdi, na linha de uma ascendência italiana, dúvida que recai na zona que ao poema interessa. Um ocidental não será contudo mais sensível à flora que um oriental, antes pelo contrário, mas tende a contemplação mais difusa a ver por onde conduz o interesse das suas visualidades e centros nevrálgicos nessa projecção. Mas é com ele, o poeta, que hoje seria certamente um ecologista pioneiro ou um lutador pelas causas dos mais desfavorecidos, que esta ocidentalidade nos interessa. À extrema ocidentalidade, junta-se-lhe quase o deserto, esse espaço revigorante onde os oásis se dão, e onde tudo fica tão bonito que não precisamos de florestas defuntas de abandono, nascendo-lhe gentes talvez com verdes olhos, e nessa visualidade um Cesário em seu binómio cidade/campo, o qual nos foi deleitando na construção de um outro planeta sonhado. Este sonho partia no entanto de uma atenção prodigiosa do real, uma capacidade instintiva de religar as coisas como pertencentes a uma unidade mais vasta, uma certa diluição que lhe garantia a fluidez entre mundos, onde acompanhá-lo é deleite, e também um grande alerta. Como um ser tão débil consegue tal acutilância, é sem dúvida o seu deslumbre. Usa as sinestesias como bailarino em trampolim e somam-se-lhe recursos linguísticos tais que ficamos elucidados acerca das componentes de suas inquietações. Não segue um estilo caracterizado, notando-se retalhos parnasianos, impressionistas, românticos e realistas, onde vai escavando uma modernidade a acontecer, inspiradora e readaptada em Fernando Pessoa. Um cego pode ver as coisas escutando o Verde Cesário, que ele erradicou a cegueira como impedimento à compreensão; mas nós, videntes muito incapacitados, continuamos baixando a guarda ao bom entendimento, que ainda o terceiro conjunto deste poema é dedicado «Ao Gás», uma súmula de bem-dizer em verso raro que nos perturba, sim, mas nos orienta para olharmos a injustiça, a fria realidade das coisas vãs, e nos protege numa certa miséria a acontecer. Por quê? Por uma compaixão de si que a todos abrange, lúcida e leal. A estesia com a qual nos contempla vale bem uma outra Missa. Ele que não era freirático e desdenhava dos reis, que entravam a galope pelas cidades dentro, é no entanto o sentimento que nos transmite, o de um inacessível perdão, parecendo assim um para-raios que não chega até à locomotiva em marcha no momento que nos acolhe. Fora um paciente de Sousa Martins que julgou não lhe conhecer a identidade, mas o médico que se revelou uma alma curativa, sabia quem ele era, e a outro confirmou o quanto já estava irremediavelmente perdido! (perdido para a vida, mas não para nos lembrar que a vida de nada vale se não a soubermos olhar). O sentimento ocidental não transpõe agora visão alguma, atropelando várias sensações com conduta errática e olhar vitral, que nós não vamos longe e daqui ninguém parece saber sair: a luz decresce na ocidentalidade que, cansada, acende fogueiras, enfrenta o escuro, apaga o gás… que a Guerra por gaseamento acolhe a “repaga” na memória colectiva. Bom! Vejamos. Ainda a procissão gasosa vai no adro! Está quente e não tarda a arrefecer, que o extremado mundo não anda para subtis Estações intermédias, podendo deslizar para coisas bem piores, que os ferros com que matámos, nos matarão, tal qual como o belo Cesário aqui afirmou «Tudo cansa! Apagam-se nas frentes/ os candelabros, como estrelas, pouco a pouco; …tornam-se mausoléus as armações fulgentes…» Por acaso estes instantes são de seda e pranto e não nos tornaremos menos pessoas se, de trás para a frente, as gentes contemplarem a vida dos que não morreram devagar. Estamos sitiados. Só os poetas nos podem agora falar de forma ampla e futura, pois que nem sempre somos assim tão felizes na virtual memória do vivente tempo que passa. E disse ainda uma coisa linda um seu amigo: a bondade suma está no poeta, mais visível pelo menos do que em Deus. Estão ainda verdes estas belas pinceladas alfabéticas! Não as podem tragar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasFelix Salten A Europa arde como se uma grande inflamação a tivesse assistido para acelerar o colapso da sua derrocada previsível e ainda não dramaticamente olhada como a que está a acontecer: pois que seja das alterações climáticas, e também pelas vicissitudes do chão do mundo mais regado a sangue de que há memória neste agora ardente planeta, que neste momento lembramos os bosques frescos que o coração dos filhos do Continente belo armazenou de forma a manter intocável a sua lenda. Não há já que nos debruçarmos nos mitos distantes de uma Europa cavalgando o Touro – não – pois que estamos bem perto do tempo de uma abordagem de autor com tudo aquilo que deveria ter sido a sua mais nobre função enquanto ecossistema, sendo sem dúvida um testemunho ambientalista raiado de respeito por todas as minorias. Hitler, odiava-o! Ao autor de «Bambi» que fez agora setenta anos de marcha improdutiva para alargar a sua urgência para um mundo capaz (que nós ainda nos deleitámos nas “conversões” Disney desta história de amor e resgate) atravessado pouco depois por razões paranoicas da “pedagogia do real” que de tão falha «Bambi» foi dormir para a sua floresta de sonhos sem desejo de regressar. Nascera em Budapeste, mas era austríaco, um austro-húngaro tal como o seu poderoso inimigo, o caçador das florestas europeias que derramando ódio ao ciclo natural da Floresta incendiou a Europa inteira[ que todas as ignições aparecem como forma de desespero diante de um mundo em colapso, e é com extremo respeito que esta obra nos parece encaminhar agora para exultação comum]. É tão ecológica que não precisa de menção, sendo a sua edição entre nós, verde- «E- Primatur» – e tão estranhamente crística que o pequeno cervo parece uma ovelha. Os livros de Salten foram para as fogueiras já em 1936, que a indústria do papel tem como ciclo programático criar depois uns delinquentes que transtornados pelo efeito da celulose fazem piras com “eucaliptóides” onde em terras lusas se mitiga assim o efeito da fornalha inquisitorial de incentiva à piromania em que o vegetal compromisso está sempre além do caçador, ou seja, o nazismo arde em frente dos “nossos narizes” que esperam a grave oportunidade de se juntar a ele com vestes que não estejam associadamente chamuscadas. Sem transtorno, que isso é coisa de antanho, e já apetrechados de virtual capacidade para se susterem, vão treinando o fim definitivo de todos os equilíbrios com informação de alto grau para denunciar os nichos de liberdade que andam à solta, que é talvez o que restou do nosso « Bambi» travestido ainda de americano, mas teluricamente implorativo face àquelas coisas que jamais deveríamos ter esquecido. Este é um livro que foi escrito em Viena em 1923 e publicado originalmente em Berlim, os ventos de mudança no Império traçavam vias onde as reservas de ternura deveriam ser apagadas para dar começo ao Urso e ao Lobo, no fundo, antropomorfismos desleais de uma seita humana tão decrépita que os grandes predadores a ela se escusam, mas foi neste ambiente quase premonitório de um adeus aos trilhos da floresta sonhada que esta dádiva se deu. O grande caçador como nuvem de um fogo negro iria abater as mães da natureza e dar todas as ordens para abertura à Caça. Felix foge para a Suíça, afinal era judeu, mas a sua lenda vai sempre connosco acompanhada de encanto e denúncia perante a sensação de que pouco ou nada aprendemos dos dons da vida através da escrita daqueles que nos alertaram para o perigo que somos, mesmos nesta torrente sem sentido aparente, mas que parece refazer-se em nosso destino comum. Esta alegoria devia ser enaltecida e construída para memória social, que os nossos povos já não sabem nada do que andam a fazer. A Europa é demasiado bela para os europeus e, no fim, mesmo no términus da viagem : « a vossa mãe não tem tempo para se ocupar de vós… Não és capaz de ficar só?». – Não!
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasImpermanência É ela a grande dama do chá «Anicca», um conceito a que se juntam dois outros e que nos fala de mutação, essa constante do universo na melhor acepção budista que assenta na fluidez e no vínculo temporal que mantemos com as coisas e a consciência; ela pode ser até a porta giratória para as várias situações que ao serem interrompidas, se esgotam, morrendo, ou voltam mais tarde de outra maneira, não havendo o caminho linear que produza ditame último. Talvez tudo deixe de existir quando não fizer sentido, que o sentido do universo será essa forma de ” bailya d´amor” associado ao fluxo do tempo que passa. Este maravilhoso princípio aplica-se a tudo, e não será de mais lembrar « o banhar nas mesmas águas» que manteve para sempre jovens os filósofos gregos, onde mais tarde dogmas vários foram abrindo fissuras para essa capacidade de se conseguir estar vivo por sucessivos fenómenos que transpõem o fim de considerados limites: aqui a morte entra no conceito, não como términus, mas ainda como processo constante de dádiva permanente, e é bem por esta perspectiva que o fluxo das coisas deve ser constante, que o mesmo universo de movimento vasto deverá ser um só e único Poema num verso que aqui se integra condensado. UNI(VERSO). Os dramas agarram-nos como âncoras, e quando reparamos, sabemos que interrompemos o ciclo fluvial das marés e questionamos os pescadores sobre o canto de amor das baleias, que eles pensam ser sereias, sentindo-se atraídos para o mar profundo pela melodia cuja princípio fluído desconhecemos em nós. Esta imponderabilidade é mãe de lendas e narrativas, encanto que não devemos incapacitar pela sorte artificial dos bens terrenos agarrados a férreas estratégias de fixação. Que a terra dura, se refaz, e se transmuta tão insistentemente como qualquer outro elemento prendendo aos mastros os Ulisses, e embarcando-os em todas as «Naus a Haver», que em nós, nunca repousa a dúvida nem permanece o estanque sentido da certeza; não há certeza, ainda assim habitamos em tudo. De repente, a vida não quer que a nossa própria vida caminhe pela rota traçada, e traçamos mais caminhos cujo futuro desconhecemos – que o futuro se esconde enquanto o olhar de ontem permanece imóvel- e ao não controlarmos coisa nenhuma deixamos todo o espaço de uma fonte, vazia, para requerer a sua habitação, mudando-nos na via da composição como uma outra qualquer estrela. Nunca saberemos quem vamos encontrar, ou melhor, integrar, que o encontro, marca já o desencontro, mas na integração não existe mais a chacina da ruptura. A Desfiguração, esse gigante imanente a toda a nossa produção da ideia moderna, não entra aqui. Não se está alinhado aleatoriamente compondo um sucessivo historial de coisas na vertente do ego, não morando portanto nesta inqualificável unidade que se diria inefável a todo o sábio budista, que para tal leveza teve de ter toda a disciplina de uma vida, mas onde podemos recorrer a algumas semelhanças mesmo na mudança de rumo que vemos flutuar entre as duas injuções. – Mutável, não é mutante, diferente, pode acabar por ser igual, mas unido, é um algoritmo que transcende a base de dados até do espectro virtual. – É belíssima a capacidade oriental de saber contemplar o cálice vazio! Mas, vazio de quê? Esta pergunta separa-nos para sempre, que velozmente as nossas sociedades perdem também a sua dinâmica de “cálice cheio”. E cheio de quê? [Quem estava antes virá depois, quem estava longe estará presente, quem acreditou será traído, quem venceu será derrotado] por instantes tudo parecerá a antítese dos construtores de verdades, mas quem trilhou o caminho do meio estará ausente das consequências finais. No centro não há princípio nem fim, o Cabo das Tormentas engloba as escusas que fizemos a um tal encaminhamento, crendo-nos o centro de uma centralidade indevida manchada por exaustivas imprudências de contemplação. Entre «Encontrado» e «Encoberto» prolonga-se na vida o silêncio escuro da paz, que a luz faz desaparecer a escrita terrena que cega os seres que não sabem da leitura para além de seu limitado alfabeto. Que nesta impermanência, toda a luz sobeja. Ela que nos queimou os manuscritos não resguardados e nos fez soletrar a treva sem a disciplina para o nada da imponderável manifestação. Digo, esquecimento. «…. Quem consegue desligar-se do mundo E sentar-se comigo no meio das nuvens brancas? Han Shan
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasRomantizar o mundo – Neste asfalto em que tudo é a causa de um efeito imediato e onde a casualidade se interpreta como sendo ela mesma matriz de esperado movimento, todos os seres deviam estar unidos por vínculos perecíveis, sim, porém de longo afecto, até se atingir no grupo a quintessência de um movimento maior. «Le Monde doit être romantisé» – é Novalis quem o afirma de sua época nada remota e que ecoa agora como necessidade e urgência: se não o conseguirmos, perecemos. Abandonados ao medonho das configurações onde se ajuíza tudo de todas as maneiras, retemos o grau de aceitação para mostrar os caninos ungidos em despudoradas formas felizes onde se nota o predador triunfante e grosseiro de um mundo “trincado”. Este triunfalismo “sadio” tem de ser abatido! – Devemos então romantizar o mundo dando espaço aos mais constantes temas da nossa civilidade que vão muito para lá da sepultura das políticas locais, dos pareceres domésticos, e do transe obsessivo da fealdade do atrito como segmento de complexidade cheio de interesse sórdido mas nunca buscado pela inteligência pura. É claro que o desassossego de se ser algo para o qual não se tem aptidão pode provocar em sociedades assim embustes medonhos, onde alguns apelam a uma certa reserva de bom-senso para não partilhar do seu alarme. Por derivas misteriosas, encontram-se os seres manifestamente repulsivos, e em suas manifestações tributáveis são ainda a senda de todos os pareceres em tentativas de torturante afirmação; decrescemos em civilização perdendo o pulso sanguíneo de nossa lenda distante. – Há vidas acelerativas! Novalis viveu vinte e oito anos, a sua vida breve produziu longos tratados e a sua romantização sincopou o estatuto dos mais fiéis depositários do estilo. Não falamos de “efebos” politicamente tidos por alguns governantes como grandes beneficiários das ablações entediantes produzidas pela longevidade, falamos de um homem que num espaço curto de tempo não teve intenção de reproduzir vícios, e através de um sintoma autónomo cujo grau de competência desconhecemos, nos vem dar mensagens essenciais para os dias de hoje. Pode-se escrever em fragmento de uma forma concebível, mas apenas e só, aqueles que de tão inteiros se não querem imobilizar no labor da inércia narrativa, que o que existe de belo na fragmentação excede os ciclos de composição passiva das descrições, pois que este livro, se encontra alinhado na grande correspondência de um monumental alerta contra as derivas mórbidas dos especulativos exercícios das personagens esdrúxulas. – São cinco manuscritos escritos por Novalis a Freiberg, na primeira metade do ano de 1798, e não creio que exista ainda uma tradução portuguesa, mas nós faremos o melhor na esperança de conjugar o que está suspenso na esfera salvífica que é dar a conhecer em português transfigurado aquilo que na grande composição foi ainda, e também, o nosso Romantismo. Descrer de tantos dons por imposição de uma época é uma forma de assassinato colectivo, e nada existe mais fácil de reverter que a tendência suicida. É fácil, sim, porém, não ajustada a um princípio que a impeça. Já todos jogámos às originalidades, porém «Le monde doit être romantisé. C´est ainsi que l´ on retrouvera le sens originel.» Tal operação, diz ainda- é totalmente desconhecida- (já o era no seu tempo?) – [apesar disso dou ao trivial um sentido elevado, às coisas comuns um aspecto misterioso, e ao conhecido a dignidade do incomum, ao finito a aparência de infinito, e é então que tudo romantizo] – Paramos diante das lendas dos sonhos por resolver, que eles esperam de nós maiores proezas que não correspondam à ruptura do pensamento, fórmulas estilísticas de omissão, e outras coisas assim… – Estamos diante de uma beleza prestes a ser conceptualizada sem a afronta temível da razão obscura dos ideais gregários, estamos na Romantização que precede o mundo, onde um dia encontrar um Homem será felicidade tanta que ficaremos ardendo de memória universal e de contentamento constante. Pode ser para breve esse tempo em que iremos enquanto espécie sentir saudade imensa. Depois, virão «Os filhos do Homem» mas não serão Românticos, ou aqueles que considerámos romantizados para inaugurar aquilo que foi este nosso destino. Comum. Que incomuns serão sempre os humanos que farão obras como esta: “cada palavra é encantamento, e todo aquele que a chama pelo espírito o fará aparecer” que o nascimento do Amor requer a proeza de não sermos ninguém, apenas essa grande centelha que uma luz transmite pela eternidade fora.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasNão nomeado Sabemos, sim, que não podemos nomear o inominado até por uma exclusão de partes que não é mencionável, e mesmo assim, nós que fizemos da linguagem o agente criador de realidade, ficamos aquém do dizer que a palavra transmite, que em última instância a linguagem não se quer agente para demonstração lógica de factos, mas sim para uma inventividade que é necessária para ultrapassar o limite- todos os limites- que a sua própria corroboração nos ordenara. Entre a intenção do dizer, e o “trans- dizer” existe ruptura e novo diálogo. O domínio da sua transfiguração cabe aos poetas, aqueles da insondável formatação por vertentes não equacionáveis, recusando-se talvez aos do bem – dizer nas suas bases de mero exercício formal, que em última instância só têm linhas tortas. Sempre será preciso muito além para se prescindir de aspectos seguros e bem acabados, rompendo por dentro a expectativa de se ser compreendido. O poeta, por que o é, será sempre o ser de fronteira e do limite das coisas, e ao mencioná-lo enquanto elemento transgressor não o devemos servir a frio numa plataforma de quentes centralidades e inspiradas melodias. Nada disso lhe é subjacente, ou então ninguém saberá para o que vai, dado que depois de todas as conquistas e actividades laborais, cada ser, quer afinal, e no topo de seu desejo absurdo, ser um poeta. Ainda bem que tais desejos não implicam resoluções, e que nesta dobragem um tanto ou quanto falaciosa, vamos encontrar uma massa do grande SNI em nossos “artistas de fim de semana”. « Sentimentos todos nós temos» F.Pessoa.- Sim, e depois? Estranhamente não são os sentidos e os sentimentos que fazem poetas, mas como dizê-lo numa sociedade que se pensa livre e que “livremente” exercita a sua anedota de grupo de maneira tão libertinantemente natural? Creio que a grande resposta é enfim não dizer nada, mas sempre retirando qualquer vestígio de soberba e de cinismo. Kabir exemplifica este ser só no meio da jornada onde em vão se deseja colocar a natureza entre uma e outra influência, este poeta cuja primeira edição aparece na Europa na tradução inglesa de Tagore em 1915, foi um poeta de uma India Medieval nascido no século XV que muitos crêem ter sido uma síntese sincrética do Hinduísmo e do Islamismo. Mas não! Foi deles um crítico, indo até ao insuspeito Sufismo. De todas elas, por educação e herança cultural teria de ter total conhecimento, mas que transformou em outra visão e iniciação. Mais tarde reindivicaram todos a sua posse decididos a chamar para si o poeta que ousara não ser nenhum deles. E eis então que nos surge entre as mãos um maravilhoso título «O Nome daquele que não tem nome», Kabir, numa pequena e preciosa edição, e sabemos qualificar a dimensão de um poeta assim. Basta ter saído das estruturas que fabricam talvez essa ilusão do ente criador, para sem dúvida ter sofrido alguma opressão no tempo que lhe fora dado viver, e depois, talvez se tivesse inexoravelmente colocado nessa parte silenciosa do difícil poder criativo. Não o vamos porém encontrar circunscrito ao nada niilístico gratuito e solitário. Não! Esse não foi o caso – ele fizera parte de um grande movimento iniciático da Índia, no conceito de Absoluto, e por aí trilhou caminhos cujo alcance estão fora da rota canónica e das grades das vontades alheias, crê-se que no seu caixão foram encontrados manuscritos de negação a essas duas correntes teológicas bem como um “bouquet” com as suas flores preferidas, isto porque, uns queriam cremá-lo segundo os costumes hindus, e outros enterrá-lo de acordo com os costumes muçulmanos, mas nunca ninguém viu o seu corpo morto. Talvez que entre céu e terra e muitas certezas, muitas outras coisas existam que desconhecemos e que preparam o tempo de serem vistas. «O nome daquele que não tem nome» continuará a ser uma busca na definição de coisas outras ( não em forma de metáfora) e de um além não nomeado: os Hebreus sabiam lidar com esta componente por meio de uma exegese magistral dando sempre nomes vários, dezenas, mesmos, mas em nenhum se retiveram, procurando sempre, o que os tornou sem dúvida muito fortes ao nível da inteligência pura, os católicos também sabem por inerência que não se deve pronunciar o nome de Deus em vão, mas vã foi esta determinação na Família Católica. Há no entanto a ressalvar que na antiga Pérsia os povos oravam aos poetas, e talvez essa prática tenha passado para o Islão. Não havia separação entre estas coisas cuja simplicidade Kabir deu testemunho extraordinário, talvez por serem os mais próximos daquilo que não pode ser encontrado, ou seja, nomeado. Lendo livro após livro o mundo inteiro morreu e nunca ninguém aprendeu!
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasPães de Deus _ Insurgiu-se a caridade por via católica com aspectos que nos parecem iniciais e só por ela continuados como um solfejo de garantias eternas, mas esta interpretação que nos remeteu para o Humanismo actual não é ainda uma originalidade nascida no ventre de Maria. Já Buda nascera contemplando a caridade, enquanto uma certa apostasia monoteísta inventava os seus dogmas para a circunscrever a eventos só seus, que um tal dissidente judeu, pertencia ainda a um grupo ascético dos «Puros do deserto» e não fora jamais por si mesmo capaz de criar o seu próprio dogma. Neste xadrez das coisas feitas e pensadas, não facultaremos a vinculação aos dados de quem por inépcia e mau caminho, recriou uma narrativa que por séculos fez vítimas e Concílios de terror. _ A fome faz parte da condição humana, e também animal, sendo o grande impulso para a capacidade da manutenção das espécies, a fome feroz obrigou a legislar e a capacitar os seres a uma justa retribuição das fontes alimentícias, o que acabou por fazer proliferar a nossa espécie com redobrado sucesso, mas, não é uma componente caritativa, e muito menos dirigida aos menos ou mais necessitados; trata-se de função vital. Ser-nos-ia inconcebível enquanto alcateia maior condenar um outro à fome, essa – monstruosidade de grupo- e alguém ainda se robustecer de influência no cumprimento de tal matéria. É por interpretação irregular que nasce a subserviência e a triste condição daqueles que têm fome. Se por incapacidade mental os seres não se sabem nutrir, haverá sempre recurso médico para a disfuncionalidade, e garantias de que a situação se reverta com as leis certas do tempo social. Que Bancos Alimentares são Bancas Rotas de imodéstia, e por que não dizer, de redes mal posicionadas para a dignidade e transparência enquanto práticas maiores. – Não ao escuteiros meninos nos peditórios! Não às senhoras fedorentas nas actividades de nutrição no espaço social- . Sabemos que há fomes atávicas, e a memória dela como instinto maior gera a ganância produzida por esse indomável espectro que leva a armazenar ao que a outros faz falta. Mas, voltemos aos pães. _ Os pães que prodigalizam o produto da primeira transformação tal como o vinho, nascem longe no tempo, inserindo-se no sedentário caminho de Noé quando planta a vinha depois do Dilúvio, e vamos posteriormente encontrar no «Livro dos Reis» o efeito socializante da sua multiplicação e a dádiva benigna daqueles que repartem « REIS 42»:( mais tarde iremos ver a adaptação desta passagem em São Lucas « Primeira multiplicação dos pães») e constatamos que não há muita capacidade para interligar os diálogos que ficaram interrompidos no sectarismo de séculos junto aos povos cristianizados. A mesma história não requereu entre estes últimos a exegese merecida para cumprimento da compreensão, e foi nesta base semi-ignorada que levámos a outros povos batalhões de equívocos que bastaram. Esta multiplicação, no entanto, é mais que uma noção de quantidade (ambas chamam a atenção para tal facto) nas duas passagens elas mostram-nos a consciência do bem que é repartir e comer na boa repartição de grupo; não precisamos de muito, talvez do melhor que a vida dá e transforma em Ceia comensais satisfeitos. Como o alimento era abençoado ele percorria a divindade do ser que estaria nutrindo, tudo isto ainda à margem da conspiração prazerosa das inqualificáveis receitas culinárias dos nossos dias. _ Para dizer que não desvendaremos jamais a “Encíclica” imposta sem nos debruçarmos nos Hebreus que ditaram nas muitas transformações do texto bíblico as bases da composição que fez nascer um Cristo. Mas, também, toda esta trança entre língua hebraica, aramaica, grega e romana (latim) nos distanciou, quem sabe, do sentido profundo da mensagem.- Que uma Mensagem existe! O nosso poeta, aquele judeu da Covilhã, interpretou-a poética e conscientemente à sua maneira, e talvez lhe tenhamos perdido o rasto, de tão absortos que andamos na genialidade individual fruto do acaso e de outras patranhas. «O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo» de René Guénon dá-nos ainda ampla amostragem da derrota que foi a avidez, aqui, onde já nada havia a fazer para a transfiguração maravilhosa da « Multiplicação dos Pães».- Quatro planetas não bastavam para tanta fome! Aqui chegados, talvez ir de novo ao «Livro dos Reis» que um Cristo é afinal de contas tão alto que não há guindaste para o alcançar. Mas ele veio deste veio de vida que um Povo em marcha ditou nestes sinais.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSentido figurado Parece ser, sim, o que suporta a narrativa quando falamos de realidade, longo epílogo de conclusões que se fecham sem que a atenção tenha de ir ao princípio retomar fôlego, que sem tempo para a origem, recriaremos frágeis originalidades, não estando nada acontecendo que não tenha acabado já. Este escalar de rupturas sucessivas reúne fragmentos que pode condicionar a tenacidade, derrubar a ternura e romper com ligações nervosas fundamentais para a transparência do ser. «Vocês, melhor aprenderem a ver, em vez de apenas arregalar os olhos, e a agir, em vez somente falar;… O ventre que gerou a coisa imunda continua». Bertolt Brechet no arrebatador Epílogo! Esta pressa de rematar nas várias formas de abordagem é contrária às leis da vida, e pode fazer que tudo se precipite para a tal “coisa imunda” que compõem as dissertações finais. A figuração é como a desfiguração, formas que se contraem e distendem à medida da ressonância do tempo, que também existe a transfiguração, essa capacidade que se tem em ser-se tocado por forças tais, que redobra em outras maneiras, quase iluminadas, como Moisés descendo a Montanha todo repleto de luz pelo contacto com essa escrita ditada…aquelas coisas que os outros notam e alguns carregam… Em sentido figurado podemos falar de toques assustadores, mas carregados de esperança. A mente que pode ser de Fogo, é capaz de ir buscar a essência para nortear as aleatórias vidas que nem a alma quer, só para colocá-las no rumo da sua viagem. Parece-nos sempre que o fim nos inquieta, mas que há mesmo assim uma vontade arrebatadora de se chegar a uma conclusão, e como o mundo se encontra numa grande deriva, há essa necessidade de términus que pode bem apressar tal desafio [não andamos sobre brasas acesas] que essas atestam o pulsar de vida pela dor que infligem, mas muito mais numa órbita cansada por não entender o propósito do encantamento para o próprio suicídio. Talvez que o sentido fundamental já não esteja entre nós, e nem figuradamente o possamos reclamar nesta grande epopeia das lutas finais. Não há «Epístolas aos Vindouros» que o significado da não “vinda” diz muito acerca de tudo aquilo que também já não esperamos, o que deixa remota saudade daqueles que acreditavam num futuro para além da sua circunstância. Somos um documentário em andamento forjado pelo peso das contemplações de todos os abismos, acresce que nos entendemos sem esperança renovada, nem capacidade de fazer mudanças que não sejam fugas, e nesta diáspora os sentimentos embrutecem. Tolhidos por todos os lados pela complexa rede que o capitalismo impõe para nos absorver toda a atenção para substâncias mais vastas, irrompem ainda alguns como cegos no meio de ilusões ditas pensantes: são os mais desgraçados, apenas por que não recriam a liberdade de ser de outra maneira. Não há plasma que embrulhe um negociante de artefactos numa dimensão que se veja ao longe! Ao embrutecer neste sentido figurado que se prende à grande caricatura, esta frágil Humanidade já na orientação de outra qualquer coisa “imunda” requer atenção. Tanto garantismo volveu-a à estaca zero em face dos seus valores fundamentais, que nós somos humanos não por causa dos sentidos, mas por tudo aquilo que foi elaborado nitidamente, e de tal forma, que concebemos a noção do amor. Somos todos mais ou menos espectadores e directamente criámos o espaço certo para o discurso traumático que pode irromper dentro de momentos na orbe que nos une, pois tudo agora nos distancia se não for decretado, dado que deixámos de viver de maneira a saber impor as nossas leis de forma consciente, irrepetível e soberana. Somos o reduto das provas que os sonhos desejaram resgatar da insolvência a um sonho ainda maior que não se deu, e mesmo assim, achámo-nos dignos de valorosas atenções que tendíamos a não distribuir. Uma fumaça de egos em quadrigas incendiárias fizeram regredir tudo isto para o tempo de um relógio cósmico que dávamos por certo ter sido ultrapassado, mas todos os dias ele acelera um pouco mais, até a um tempo ulterior à frágil memória. Em sentido figurado, somos agora a coisa imunda.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA rosa de Sharom É Verão no Hemisfério Norte, essa Estação que dá flor, cheira a sol, e sobe luminosa em cada olhar, muito embora as flores estejam distantes dos nossos quotidianos de azáfamas várias e de uma certa tradição que é o de fazer dos locais espaços mais floridos – que uma certa noção de Jardim nunca nos abandonou – mas o certo é que não somos contemplados nesse desejo. A Terra parece não querer florir no seu estertor, domada pelas férreas necessidades humanas, e quando isto acontece prepara-nos para a desolação da sua parte mais agreste. Parece que só agora estamos a ter uma incontornável memória do que significa ser expulso. Mas, e antes de tudo isto, os desertos eram locais com a textura ambiental para o encanto delas, e por ser deserto e tudo se queimar entre as areias, esses espaços que floriam nos podem ainda mostrar o reduto de maravilha que nos prende ao significado mais profundo da nossa humanidade. Elas redimem afinal a memória da nossa própria condição. Estamos na Palestina nas montanhas de Efraim, e a Rosa de Sharom nasce como as profecias nesses locais onde se apascentavam os rebanhos e por onde se inscreveram as mais belas páginas de que há memória [ entre a mulher Sulamita e seu amado] EU SOU A ROSA DE SHAROM, UM LÍRIO DOS VALES. Há quem diga que não seja exactamente uma rosa, mas em hebraico é assim que se designa, o que ela tinha de rosa para em flor nos deixar tão plenos, são segredos dos desertos onde cada uma delas é abençoada como uma dádiva de amor. Se formos para a de Jericó, as comparações, embora distantes, fala-nos ainda de como a ressurreição é afinal uma realidade destes locais “desmorrer, morrer, renascer” RESSUSCITAR. Esta fonte floral que nos acolhe é a nossa melhor encíclica enquanto predestinados ao sentido transcendente da vida, e não há mais memorando, nem animal, nem mineral, que dela diste de forma tão perfeita perante o sentido da vida. Esta parte do mundo é o local mais profundo da Terra, e de Rosa passa a Lírio, regado pela corrente funda de seus vales. Há muito leite vindo das ovelhas, e mel que a flor inunda para realizá-lo, pepitas de ouro atravessando alvoradas. Dei-me conta de como é deleitoso consubstanciar em nós estes produtos transformados, e se a Rosa de Sharom é o vinho amante dos dias em flor, se a sua natureza nos faltar, seremos expulsos também do ventre da Baleia. Para sempre e ainda somos transformáveis, mas não suficientemente autónomos e singulares para esquecer tudo isto, que depois disto, um Homem das rosas de Sharom, veio dizer que era o «Lírio dos Vales» e que eles não trabalham nem tecem, só que não se encontrava já estranhamente no Paraíso, ele era o Paraíso ressuscitado em memória e posto a laborar num sistema já distante às fundas raízes da Rosa de Sharom. Mas. Não era passível de ser vencido. Que. « O meu Amado desceu ao seu Jardim, aos canteiros de especiarias, para colher os lírios». Neste instante mundial atravessamos aspectos desonrosos para continuar a falar das Rosas, é certo, mas um leve movimento trazer-nos-á a lembrança do roteiro das coisas essenciais; que o olfacto volte a ser reposto como memória e as formas se precipitem para falar connosco de modos vários sem a visualidade arbitrária de uma forma de cegueira que coloca os invisuais no topo de uma visão muito mais esclarecida. É inefável o quanto pode transmitir de imortalidade o odor da flor em nós, que ela é como um “lírio entre os espinhos”. Temos ainda o «Sermão da Montanha» mas é nestas bases que ele se dá, tentando à posteriori com evidente neutralidade de género anular a condição da primeira natureza – que a Rosa de Sharom é mulher amada- inteiramente térrea enquanto Rosa num destino que lhe subjaz.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO Sol desce Desce e sobe o glorioso Sol Nado que agora aqui se levanta até ao grande meio-dia, o zénite da sua hora solar que sobe nesta altivez de Solstício com suas festas-fogueiras, que a Estrela arde, e seu reflexo é por ela acender chamas. São assim os Santos da temporada, para quem a flama é o brilho que falta para que tudo fique da altura dos efeitos consagrados. Grande foi a enxurrada de labaredas que veio como uma goela do inferno por esta altura num pequeno país cujo elemento é todo mar, como se de uma revolução solar se tratasse para nos lembrar que não controlamos o Fogo. Ninguém salta fogueiras destas que ressuscitam em nós o efeito da tragédia que é uma dimensão bastante mal interpretada nestas paragens. Advento, poderemos assim chamar a tais realidades, talvez manifestação assombrosa daquilo que se foi fazendo ao tempo das Inquisições, ecos de imagens que muita liturgia impôs aos olhos incautos dos que não sabiam que se poderia criar realidade através da criação, e não só; efeitos de má gestão que se esqueceu da terra e a foi usando sem sentido, um território que se afundou no drama de ninguém saber como adequar cultivos, restaurar funções e abrir caminhos. Debruçado sobre si mesmo nas honras marítimas, veloz a mudar o rumo da embarcação para os interesses continentais, tudo esqueceu, tendo que ser desperto pela absoluta forma de um desastre. Este é também o locar levado pela « Barca dos Loucos» que por via europeia entrou na deriva de maus e implacáveis ventos, que eles acendem Fogueiras, e destroem os verdes pinhos que sustinham as areias, que o mar também pode triunfar pela terra adentro como uma língua de fogo contra a costa se tudo for de facto a medida que falta a uma reposição que perto anda desta fronteira, mesmo que a Lua fique sorumbática a ser observada de viés pelos telescópios de alta precisão nos seus eclipses audazes e suas cores de cereja, quem não a encontrar por dentro, e ao Sol, e às coisas no osso, e aos vestígios disto tudo numa superfície maior, nada entenderá, e rápido esquece o que aconteceu. Que nós já nem podemos avançar agora com a nossa presença na vida uns dos outros. – Não se pode estar com ninguém! Abalroámos os dons de saber estar por causa das superabundâncias de fluxo personalista. Creio mesmo que tendemos para o canibalismo de massas, que os taumaturgos ficaram esquecidos nas ordens das vestes naturais. Um Estado que se agarra ao mantra das tribos (núcleos e clãs) não está vocacionado para compreender o bem individual e os seus direitos quando essas arcaicas associações faltam. Mas é esta componente que não foi implantada enquanto capacidade maior que impede que um território seja considerada uma Nação. Laxismo severo, que o desdém toca enquanto processo moral para o nivelamento. Gravitar depois disto nestas cinzas pode retirar as competências de que a vida sempre se reveste para se reinventar, que a intriga é sujeito passivo onde até a plebe aparentemente ilustrada acaba por fixar as bases da sua própria ruína. Não há muita noção, a ver pela desproporcionalidade do lixo fabricado, de como separá-lo mesmo agora, e esse entulho do pequeno rectângulo galvanizado pelo muito que o desperdício traz, encherá de novo as piras por onde todos os Infernos gostam de passar. Gestos simples que o quotidiano agradece para não sucumbirmos às Fúrias. Que os nossos olhos dançaram nas páginas mais bonitas… e nos momentos aflitos elas nos saltam pelas fontes sagradas que fazem da dor presença bem-dita, e nesses instantes entendemos do essencial como se sentíssemos através das lágrimas o dom de continuar vivo, apenas e só, graças a elas. Não hás-de sofrer mais sede muito tempo, Meu coração queimado! Anda no ar uma promessa, …. – A grande frescura vem… Mantém-te forte, meu valente coração! Não perguntes: por quê? F. NIETZSCHE – in- O Sol desce…
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasQuevedo Camoniano Nasceu Francisco Quevedo em 1580 no Ano Da Graça da morte de Camões, ele que seria um dos maiores escritores do Barroco espanhol ocupando assim na literatura ibérica um lugar imenso de acordo com a complexidade do estilo a que preside, multifacetado, vamos encontrá-lo no entanto carregado de influência maneirista ou camoniana nos poemas que deixou, que muita da sua escrita se reparte por outros ramos estilísticos que sua vida exigiu no cumprimento das funções sociais. Intricadas funções a partir do lendário Duque de Olivares de que nos falará mais tarde Ramón- del Valle – Inclán, esse Duque truculento que simboliza a nobreza corrupta, pois que Quevedo sempre gravitara ao redor de certas influências reais. A guerra com Gôngora adensa ainda mais o seu estado de comprometimento que completa uma vida bastante acidentada. Para além das analogias dos desterros, viagens e prisões, é com imensa alegria que o sabemos um herdeiro de Camões, tendo à época testado o então desconhecido hipertexto que está marcado no registo dos seus poemas, se não vejamos: « É gelo abrasador, fogo gelado, é ferida que dói e não se sente…. ( Soneto Amoroso Definindo o Amor) : Quando me volto para trás a ver os anos que minha idade cobriu de neve fria; ( Salmo IX de « Heráclito Cristiano)» há no entanto que atender a uma maior complexidade léxica e sintática que nos levaria a todos os campos deste novo estilo, só que, na sua perfusão, Quevedo arranca com o mote e frases literais extraídas ainda da compenetração clássica do nosso poeta. Que dizer também do Adamastor camoniano, esse ser triste e cativo, rugindo entre penhascos e vítima amaldiçoada do Amor? Um emblema da compaixão pelo medo e a pena que temos dele, mas onde os bravos não recuam, também Quevedo o ressuscita no conhecimento que tirara dos Lusíadas: «Vês tu este gigante corpulento que solene e soberbo se inclina? ….mas quem seu modo rígido examina despreza tal figura e ornamento…» Tudo estava tão perto, as correntes tão unidas, que mitologia havia nestas matérias que se estreitavam até serem quase únicas, mas, ninguém mais era tão digno de influenciar em cântico de perfeição que este poeta que o destino fez nascer em terras lusas. Quevedo era outro homem, tendo tido poemas que poderemos remetê-los para o escárnio, o maldizer, escatológico, portanto, o que em Camões não vamos encontrar, mas também esse pulsar da fonte ” bárbara” não deverá para a nossa identidade ser surpresa. Temos do melhor que há nessa matéria. Se nos poemas Heráclito cristiano assistimos ao arrependimento deste poeta por erros passados, em Camões tudo se torna mais lírico, precioso e livre. Uma situação que não resulta de uma emboscada do tempo, mas numa lucidez muito gentil e magoada por todas as fontes do processo de evolução que seu ser ardente queimou sem ver. O problema da visão deve-lhe ter dado capacidades improváveis que outros não têm e composto uma versão mais completa. É o trabalho de uma vida averiguar todos estes dons, fontes, desdobramentos e influências, que se pode estar sempre trabalhando em busca de correlacionar o que de bom a Humanidade faz. Ela, a que se repete, não é no entanto a que expomos aqui, que neste local as coisas não são de modo grácil a produzir satisfações, nem os poetas desta dimensão têm de entreter os espaços vazios do já quase insustentável desdobramento de cada um. Um corpo de obra tão vasto não será nunca circunscrito, mas, muito do muito bom que aqui se encontra tem a marca do que de melhor nos aconteceu.- Este Quevedo português!
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDiscípulos em Saís Não fora esta cidade egípcia e nem nos lembraríamos que para a anunciar necessitamos desesperadamente do trema, mas a escrita e seus significados ficaram enterrados na areias do deserto, e entre nós, na espuma dos dias. Ela é tão longínqua que só Novalis a poderia ter ido buscar numa eloquente inspiração, talvez Atlante, pois foi lá que um sacerdote escrevera sua história. Novalis não é menos grandioso que as lendas, só que muito mais recente em sua curta vida. O expoente mais puro do Romantismo conseguiu surpreender a nossa noção de tempo e dialogar com todos eles a partir de uma cultura de excesso de lembrança. Esta é a obra que nos leva neste preciso instante à defesa do planeta, devendo ser um marco nestas matérias de juízo natural (não naturalista) para reorganizar o ser no centro da sua função, que passar por tudo isto em florilégio de cânticos de salvação sem outras componentes, é abrigarmo-nos à sombra de intenções. A Humanidade não quer saber da natureza, mas sim do fluxo das coisas que julga pertencerem-lhe por deleite e facilidade de acção. Contudo, a natureza é um laboratório que só se abre quando em nós sente um discípulo pronto, que em todo o caso ela sempre se esconde, mas mostrando quase tudo o que a nossa versão idílica não vê. Levantar o véu de Ísis é tarefa problemática em Saís, ela encontrava-se coberta e quem atentasse na sua desocultação ficaria com uma nudez que não entenderia, mas quem a procurasse entraria fundo no seu seio: o primeiro capítulo em título de prólogo esclarece isto mesmo, em tonalidades envoltas com propósitos de busca e solidez amorosa. – Ele achava-se menos hábil que os outros, mas julgava que a Natureza o amava, por isso, e sob o véu de uma confiança luminosa nos foi por ela buscar saberes. Estamos na presença de um avatar que resulta transfigurado na sua dupla essência como ente que não perdeu o fio de prumo da consciência natural. A síntese do seu tesouro é tão raiada de futuro que o estar aqui na “persona” se poderá considerar de ora em diante uma inutilidade na concretização do ser. Narramos até onde nos for possível a mensagem do obreiro, pois que este sentido extraordinariamente dinâmico se encontra transfigurado em culturas várias e correntes vibrantes de influências, interpretações e aturadas reflexões, e de Schiller a Hoderlin, passando por ele «fabricou-se um último exemplo de ciência poética antes de Hegel decapitar um problema tão aristocrático com a guilhotina da Lógica». Neste memorável discurso recuperamos o xamã, mas também as bases da legislação da República, a antevisão sonhada por todos os espíritos que a vanguarda instruiu para melhorar os dons dos habitantes da Cidade. Uma não mestria do Mestre em pirâmide, mas de assuntos que norteiam a delicadeza paradoxal da Natureza. – Que ela não é benevolente! Quem a pode tocar com estes dons saberá dirigir-se à vida com a ternura exacta e a inteligência mais firme para dissipar as agruras indistintas da vil consciência que aterra na fronteira do seu próprio suplício. Nem tendencialmente estamos unidos como nos encontramos aqui, pois que os dons nos filtraram em defensores de causas, mas as causas têm efeitos, e os efeitos que servem este propósito estão algures entre estas páginas e muitas outras, todas de poetas, antes do esquecimento à função que lhes preside; dialogar com os mistérios, exceder as capacidades, e ser da natureza um filho muito pródigo. Que «O inesgotável tesouro das suas fantasias não tolera que um só dos seus amigos se afaste de mãos vazias. Tudo sabe embelezar, animar, confirmar; e se parece, em certos pormenores, que apenas reina um mecanismo sem consciência nem sentido, o olhar que penetra até ao fundo das coisas descobre, na coincidência e na sequência dos acidentes singulares, uma encantadora simpatia pelo coração humano». Pode ser esta a função científica do poema inundando de compreensão o Universo inteiro. A ciência responde, mas deixa por definir esta parte da Natureza que a transcende.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasFiliação Nós contemporizamos, esquecendo todos os danos. Somos Humanos! Mas o que existe de tão agreste na raiz das coisas, que temos de sabotar tudo o que somos? Uma cicatriz de amplo espectro vigilante. Por vezes, nem Deus se abeira da nossa súplica – nós, que o construímos – Com a certeza de que não nos faltaria, deparamo-nos com sua solidão aflita. Agora o tempo está sem céu, e a nossa grande jornada em nós arrefeceu. Talvez tenha morrido no anátema traçado, talvez tenhamos vivido sem a força desse outro lado. Que nada diminui esta vasta caminhada de seres da fome, tão frágeis, tão tenazes, que acolhidos Fomos, no planeta pela Morte. Não podemos ainda sair daqui! Vivos e mortos somos a jornada. Reerguemos as eras, e elas são iguais a tudo o que já era. Congelámos as promessas. Nem sempre o silêncio é sinal de sabedoria. Mas de perplexidade, desse não saber como num certo Jardim outrora se fazia. «Mulher, eis o teu Filho»! Nós, filiados assim, não sentimos que a progenitura nos pertença. E muito menos queremos ser dela esta continuada incerteza. Que nós não temos filhos, mas brasas lançadas aos destinos que se recuperam e se perdem Nos acasos dos sentidos. Não temos nada, e inventámos o amor para existir na gleba de um verso de ouro que nos Engendra Filhos do Homem, caminho do meio, nós de Humano, nem temos já os seios. Somos aquelas fontes onde nascem só venenos, que na intranquila ilusão compensamos Como eventos. Já não sou Jó! – Nunca fui Jó. Testes a mais fazem-nos em pó. Dias em que se morra e pereça e que a mãe ao próprio filho não conheça… Não os quero mais escutar nem o mundo já os dar. Que esta nossa labuta fere engenhos, mas não temos que ceder. Sou mais Raquel, e não Lia, essa fábrica carnívora. E neste manjar de sombras, lembro-me de um homem que veio apenas para nos ressuscitar. Confesso esse grande amor pela casa de David. O nosso ser precisava dela! De um ser que cingisse a consciência de nosso limitado ser para o encher de esperança. E quanto mais se caminha, mais ele ressuscita, que não é o mesmo que prendê-lo a outra vinda. Nós requeremos estes dons maiores, pois que de todos são. Acordá-los, eis toda a nossa futura condição. A doença que progride é vão caminho, e dela não estamos ausentes como estamos do destino. Deus nada quer, a obra não lhe nasce, e o Homem não a sonha… crê que a pensa Mas nosso pensamento é vil e não produz nascença. Porém, desejamos ser inscritos no Livro da Vida, esse, que um homem feito deus nos veio dizer Ser a saída. Mas aqui nos encontramos, mortos, a tributar os danos das blasfémias conseguidas. Perdoai-nos! Somos cúmplices e inocentes, e espera-nos outro ser saído do súbito instante que se evolou Pela alma erguida. Tu és o nosso guindaste celeste, morrido com pés ausentes de terra, a maravilha que flutua Grave e séria. Jacob precisou de escadas, lutar, e ficar coxo. Tu, estavas exangue, mas pleno de ternura, sem mais nada. Sem chão, que a Terra arde. E gela. A Terra que é tão triste…! Mas muito mais existe para além dela.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTransluzir Nós que requeremos todas as formas de diálogo num mundo povoado por tantas línguas, devemos ser capazes de conceber o género transfigurado, mas preciso, daquilo que entendemos por língua materna. Também se deve ter, é claro, a capacidade de directamente estar em sintonia com duas ou três, sem que seja preciso adequá-las ao modelo raiz, as crianças fazem-no quando são educadas por mais de uma língua com a naturalidade tocante que se é capaz. Mas, uma coisa é a via oral, outra a escrita, sendo a primeira mais fácil no acesso a registos vários capazes de se manterem intactos no cérebro sem recorrer a atalhos, o que fez do mundo um local bastante barulhento, repleto de vozes que nem por isso chegam ao céu. Chegarão quanto muito ao céu da boca, que é o limite do paraíso fonético da nossa muito barulhenta condição. Quando traduzimos, a perspectiva muda, que no grafismo não poderemos recorrer a modalidades inconsequentes na medida que transformamos caracteres em ideias, alinhando então em outra melodia. Estamos a «Transluzir» que o original vela, e nós seguimos-lhes a fonte ao conseguir desvendar sem que a dinâmica seja violentada. O tradutor vai transcriar, que não é transgredir, e somente a sua análise do texto lhe permite pôr em prática o mais imponderável da sua própria língua. Tentemos agora não nos desviarmos desse beco sem saída das produções em série, compêndios de narrativas, estratos de factualidades, para assim entender a máquina da escrita contemporânea que de tão descritiva extingue a noção autêntica da palavra com essa reverberação do sinal dos tempos: a quantidade. Façamos esse exercício apenas, e tão somente, para saber se vale a pena tão reverberante estado linguístico na grande massa insolvente dos considerados leitores. A experiência tem demonstrado que não. Textos vários a translineação engloba, mas notamos-lhes sempre a secura do papel encravando na ausência do hífen, que não se traduz, mas conduz a regra semântica da modalidade escrita: a nossa visão está mandatada para não se queixar, e também faltando-lhe exercício, ela acaba por não poder ver a conduta estranha da linguagem escrita que recorre a arbitrariedades fantásticas para assim diluir a sua própria responsabilidade. Também não recorrer ao hipertexto quando a tradução não se aguenta pela escassez de paciência, que tal característica é sempre formal, e forma no tradutor a espera do seu desenvolvimento, e envolvimento, com a matéria a desbravar; talvez que tudo isto se aplique muito mais ao texto poético, pois que aí, não há mais que mergulhar numa plenitude que se recupera quantas vezes de maneira indistinta, mas que ganha o corpo métrico de uma valente conquista. – Falamos do tal estilo “conciso” e “luminoso” próximo da iluminação. A intromissão inventiva deverá contribuir para que se exerça na perfeição os limites da própria língua, não vilipendiando jamais o autor da tradução. São coisas diferentes, que o decalcar do texto não sinaliza que haja nele um outro autor. Mas há um recriado e autoral caminho para conseguir que a língua que o atravessa seja sustentada com todas as fórmulas da sensibilidade que a sustém. Deve transluminar-se! São etapas da vida do ofício da escrita. Em qualquer momento terá de ser feito, e caminhar por tal experiência é um momento alto, ensina a não estar dependente da linguagem escrutinada, tangível, quotidiana, essa que deve servir como mecanismo, suporte, e desejoso entendimento, mas que na sua intrepidez não consegue em parte tal domínio. Não esperamos que transluza, que seja coloquial, mas tão somente que forneça as bases mecânicas da sua natureza; pois eis-nos então em buscas outras que o Verbo encerra, sem as quais teremos de fazer esquecer como se evolui no exercício dele, para dele dar conta enquanto prodigalidade maior. O acaso coloca as palavras nos lugares onde as palavras querem estar, e elas dizem o que delas ouvimos, segundo o lugar onde estão em relação à luz. O texto que fica em cima da mesa é, portando sinestésico: ouve-se conforme a luz. Livro de Releituras
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasEterno retorno Erguemos a nossa fronte com o suor dos trabalhos. Que sempre escorrega farto dos nossos dias operários. Em cada sujeição esperamos derrotar o que nos subtrai à vida a serva condição. Que ela se atira a nós como fera em cio, e não perecer é nosso inteiro destino. Se gritássemos? – Nem mesmo assim louvariam nossas vozes. Dos males, só cantos para gentios. Que nossa salvação é ainda o resultado de um pranto que se adentra. Quando na labuta o corpo dele se deleita. Suor marejado… estamos sós, as estrelas brilham, e no fogo fechado afagamos as feridas. Tudo é pranto, brilho e suor, delírio vasto…. Estamos em terreno ósseo, longe, ossificados… Subir este Gólgota divino onde os braços que se estendem se volvem mesmo assim em garras e espinhos. Suamos! Estamos a andar, e quem és tu que não me vês em sangue e brasa Sem que me tragas água? Quem me tornei no topo, longe da gleba, curvada ao peso da mágoa? Alguém que te sonhou! E tão longe se encontrava. Que nós suamos ao subir a escarpa, e das frontes alagadas deixamos na terra rios. Toma-nos então para teu esquecimento que brandimos neste transe Sem nunca te ter ao lado. Que assim calado, esqueças também a dor que nos deste como hábito. Que tamanho anátema feriu a pressa das nossas asas, que voam do pavor da morte, ressuscitadas. Na carne transportamos todas as ossadas -que o minério também arde- ao sol quente da Terra. E se misturarmos as lágrimas – apenas eu ainda te amava- enquanto luz e caminho. Na tua criação deixaste-nos órfãos, que o amante transforma no amado, a dor da exclusão. E quem nos quer? Quem, depois de suados, crucificados, brandindo por teu amor na última expiação? Ninguém. E com nossos braços abertos, plangentes, suados, não encontraremos mais dor. Compunção. Mas chegados em entrega memorável, que os espinhos são agora um campo de trigo. E neste abandono, o cálice de um eterno vinho. Que tão grande amor, tão fresco e de seda, dessa sede nova composta em ti, É ainda abraçar-te, e não mais ter medo desta antiga ordem, deste primeiro martírio, desta epifania. Salva-nos, que somos divinos. Que os castigos são dos tempos idos, percursos também de liberdade que nos deste a conhecer. Só para tornarmos a Ti. Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser… Tortuoso é o caminho da eternidade. Nietzsche
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO dicionário de Flaubert Ideias feitas à parte, nós vivemos contudo mergulhados nelas. É um impulso orgânico o não perturbar os dias com estratos demarcados onde a crítica demore tempo, que o mais rápido é sempre a frenética indignação ou a quimera robusta das ideias tangíveis (critérios abastecidos por derivas de exacerbadas teorias justiceiras) quantas vezes dadas enquanto acto pusilânime face aquilo que não se encaixa no automatismo do politicamente correcto. Toda a Guerra nos transmite pesar, não devendo pesá-las no entanto como jogos florais. As épocas têm contudo os seus “clichés” sendo alguns intemporais na abrangência de como é, ou deve ser, a demarcação do registo ilustrado do pensamento de cada um. Essas coisas de nós – civilização, que todos humanos somos – e bem mais perto uns dos outros do que humanamente pensamos, destrói-nos pelo seguidismo seja lá do que for numa qualquer época. «DICTIONNAIRE DES IDÉS REÇUS» é o título do Dicionário das Ideias Feitas que um Flaubert sempre acometido de desprezo febril por todo o “bem-pensante” nos transmite em forma de farsa: ele retira-se dos juízos de valor e de questões de apreciação, mas vamos encontrá-lo na delícia das ditirâmbicas frases que passaram de boca em boca e acabaram como provável anexo do romance «Bouvard et Pécuchet». Flaubert tinha um desprezo genuíno por coisas que todos considerarão da máxima importância, talvez seja um homem demasiado antigo para o pensarmos razoável, ou mesmo atencioso, moderado, que isto há seres que não se subtraem ao regimento dos seus próprios efeitos, mesmo que barricados. Ele não gostava de gostar daquilo que fazia brilhar “a coisa” triste dos indecentes. A indecência é uma espécie de credulidade que se projecta sem noção alguma do seu próprio ridículo, que podendo ser travestido, nada terá a ver com a inesperada transsexualidade de uma «Madame de Bovary». Nesta ronda, o melhor será rodar na enorme paródia, chavões, frases feitas, e acometimentos do seu Dicionário. Os dicionários continuam a ser grandes mestres, e fica aqui plasmado o interesse por tão belos exemplares, que ao invés de se tornarem matéria morta devem ser reabilitados. Por ordem alfabética vamos ao encontro de todas as designações possíveis, levamos doses de desmerecimento e de incompetência face à veloz capacidade de saber usar a palavra para todos os lados da métrica, estamos suspensos agora na letra L « Leite – Dissolve as ostras. Atrai as cobras….» [e se as cobras tivessem ossos e sofressem de osteoporose?] – P- Púrpura – «palavra mais nobre do que encarnado» – Encarnado?- Eh, Vermelho! – Encarnado é para quem encarna. « – D – Dinheiro- » os ministros chamam-lhe vencimentos, os notários emolumentos, os médicos honorários, os empregados ordenado, os operários salário, os criados soldada. – Quase dá gosto uma desgarrada que desentorpeça a triste dicção da língua cada vez mais produzida e falha na sua gene criativa. «Aprendemos a querer-te por tua divina presença!» – Mas quem te fala está, no entanto, preso à circunstância factual, aos insondáveis discursos sem nexo e ao fragmentado conteúdo das necessidades, e quando nos “dicionamos” por aqui, a linguagem que anda por aí fica então ao nível do estrondo da caricatura desses impressionáveis de laboratório que se rebolam de averiguações para dizerem, NADA: «Letra N» Como é bela a natureza! Frase a proferir sempre que uma pessoa passa pelos campos. Estamos em Maio, e Flaubert gostava de Novembro – Contos – não se esquecendo de reproduzir muitas ideias deste dicionário em grandes golfadas de narrativa intrépida, não raro ensimesmada, e de total horror por tudo o que de medíocre na vida se instala. Devia ser aqui a anexação de tal depoimento e não teríamos razões para tributar a nossa curiosidade em procuras que nos levem o tempo para nada depois extrair. Mas ele ainda há coisas que nem nos dicionários aparecem: Flaubert morreu a 8 de Maio de 1880, venho de saber. Que coisa é esta? É um contacto improvável a acrescentar para que lhe diga: Afinal « Madame de Bovary, c´est moi».
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSpleen Estamos em marcha para um tempo que julgáramos findo. Amanhã o seio da Europa será testado na vanguarda das Nações e, de súbito, só Baudelaire parece saber como se morre sem causar danos imorredouros, mas na têmpera também de uma noção insuportável – a da vida que chegando a certos estados, parece-nos o massacre de um demónio que não cessa a sua subordinação e, sobretudo, não refaz a novidade. Bela a ciência que nos prolongou tempo de vida, mas a vida que se prolonga não é tão boa como o avanço que nos fez continuar. Quer queiramos quer não, a nostalgia avança, mas sem uma reverberação apaixonante, de limite, por causa dessa incapacidade de nos separarmos da abominável natureza. Sim! A natureza é abominável e desde que firmámos o tecido civilizacional que tentamos escapar-lhe. Sem solução à vista juntámo-nos a ela e retrocedemos hoje ao nível do embuste predador que grita em volta do seu último uivo confiante [Deus não existe, mas precisamos desesperadamente dele] que para algo existir é preciso necessidade tamanha… que teorias não servem para nada, e ao nada ainda pertencemos sem uma funda necessidade. Há seres que nos aparecem, duas, três vezes, ao dia, para que falemos deles em súbita orquestração, e Baudelaire é agora mais que um fantasma, é sonoridade manifesta no vazio dos dias iguais, que quer dizer como nasce a tristeza do nosso tempo vivente. São criaturas imensas estes poetas! Repletos de tormentos tais, que o tempo circunscreveu as suas vidas a pequenos nichos de humanidade, não fazendo perder, contudo, uma lucidez futura de abordagem esplêndida, constante e sonhada. Vamos encontrá-los devastados, por vezes agrestes, imensos e belos nas suas súplicas e desdéns, mas sempre numa outra humanidade tão difícil de igualar! Nasce com marcas, mas marca a diferença, diferenciado tal, que todo o crepúsculo se sublima para o recuperar da dor primeira «Maudite soit la nuit aux plaisirs éphémères où mon ventre a conçu mon expiation!», diz a mãe: mas a mãe nunca saberá nada de seu filho resoluto em triturá-la no abismo da servidão. Este é o poeta. Um ser aparentemente tenebroso se não encontrar nada na hora da morte para o salvar. Uma crispação vinda de longe que deita semente a todos no mundo. Nenhum pai, nenhuma mãe, concílio, estrutura, ou validez, seguirão os seus passos de inimigo indómito desta multiplicação desenfreada, onde só ele parece conseguir desesperadamente sobrepor-se. Não o fará por vaidade, mas por aritmética a um mais vasto e amoroso ciclo civilizacional, não deseja a tribo, o dolo, o sacrifício, mas plangente se entrega ao bárbaro martírio de existir no meio daqueles que não são seus pares. O decadentismo tende a ser ainda mais sombrio que o romantismo, mas Baudelaire deu-nos a beber esse vinho agreste da desistência amarga, sem o qual nos desviamos de uma entrega para um nível de consciência imprescindível. Os seus poemas em prosa não tinham a direcção do escalar das rimas sonantes, sonoras, mas transmitiram o xamã adormecido do poeta em transe de embriaguez e voluptuosa exactidão. Quem no embuste do conforto recria a sua demanda, não sabe nada do que aqui se passa, nem da voraz consciência da danação. Inventamos agora poetas circunscritos à viciação, ao relapso da figura que não transgride, e parece-nos suficiente esta marca intelectualizada sem nuance e cerimónia em face dos confins dramáticos de uma imensa abstração. Não se esqueceu dos gatos, esses guardiões do destino dos amantes que não desejam ser importunados por festejos vãos. Em todo o caso, “Spleen” é sempre o arco das suas pálpebras entreabertas numa contemplação tenaz, hipnótica, macia, triste, e quantas vezes, gélida. Não queremos mais sorrir. A beleza exige distância. E sob tutela invisível de um Anjo, esse filho de nenhures, sabe ainda que não está só no confronto com o seu próprio destino «Bonjour Tristesse».