Do Silêncio

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez-se silêncio nestes tempos, um silêncio sem vitória, todo repleto de ruído surdo, de zombeteiras acústicas de formatos diversificados com caudais sonoros interditos ao canto. Um novo silêncio nasceu sem que saibamos defini-lo, é uma caixa de vácuo vazio onde não esperamos encontrar serenidade, e voltando para a sinfonia das teclas que escreventes informam coisas de viva voz, não há muito mais que zumbidos balbuciantes de fora para dentro em cada um de nós.

Assim como as sílabas se juntam, há sempre mais vogais, interjeições, diálogos, contactos, roncos, mordaça. «O grande ouvido» gera muita dor, por isso os músicos se ausentam com formas tão velozes, o arfar da melodia vem-lhes de dentro e clamam por ser escutados no muito vigor da maravilha, e se não forem músicos sempre podem produzir sons, que enganam a arte de saber escutar o que de dentro não vem ao nosso encontro. O inverso de um verso não é por isso mesmo o anti-verso, versa outra característica dissonante da rima, mas remando em várias fontes de conjugação consentida.

Estamos surdos em muitos pavios do nosso formato, da língua ao trato! Somos uma fórmula falante equipada de sinalética, semió(p)ticos, semi-audíveis, simiescos. Todos os sentidos se juntam para formar um aglomerado cujo encanto é destruído na junção dos elementos que o geram: o resultado é atoarda quando eles não se unem para a causa transparente.

Comovo-me com as inúmeras fissuras do grotesco. São alpendres da nossa mais funda inocência, são os nossos mais atávicos sentires todos juntos sem desejarem ser unidos na outra saga, a dos fluídos mais bonitos. Nós gostamos deles, mas temos medo de assim permanecer para sempre.

O silêncio é uma sentinela de lonjura, não tem receptor; nós procuramos a fonte, mas não nos vem buscar, nós caminhamos para esse país como se ouvíssemos ainda o acorde de algo inominável. Não tem voz, não tem vez, chega quando vem, e não se crê que alguma vez lá estivéramos. O silêncio procura-se quando a frágil estrutura das funções nos deixa a sós no labirinto.

Maio não silencia, a vida mora nos alpendres do nascimento em sons vários, a vida grita, chilreia, implica; é um manto de audíveis sinais desencontrados, e nós, baixamos o cansaço perante a maravilha, estamos aquietados de tapetes de flores, e em nada disto o silêncio vê alegria . É graça tanta que nos surge em coma, em dança, em orgia, nós buscamos a onda grave que na bolha de água apenas tenha o «O» esse som das estrelas e como não somos Ave, a nossa vida dentro do sonho, congela.

O frio tem um som, o gelo um cheiro, a vida chama por nós e vamos na maré cheia. O vento tem também música, uiva, consome, articula, redemoinha, e circunda os corpos pesados de silêncio. Escutamos por fora a ameaça ao repouso e respondemos por dentro com arquejante abandono.

Estamos primevos e fartos: descarnados! Contemplamos o plátano, as raízes densas e sentimos beijos nas passagens – nós, aqueles que só queriam silêncio – estamos sitiados. Com tanto som, ruído e movimento, há um tempo de abundante desejo que sendo mais que repouso não deve conter a marcha deste solfejo.

Mineral, a pedra é quem nos pode suportar na graça de não estarmos na Terra. Um mar de pedras arquejantes e limpo, sem os cílios por onde as lágrimas passam, a autêntica antecâmara de um vazio lunar, coberto de sem som, um postigo iluminado de ausência, uma tumular descarga sem flacidez, só, hirta como o vácuo do Universo à nossa beira. Coberto de magistral silêncio.

Não estamos sós, estamos isolados, mas sós não estamos no isolamento predestinado. Estamos assim como quem não gere mais que a condição, e dela não saímos aos gritos nem nos é dado uivar de desespero nas estepes; parece tudo povoado, e em algum lugar nos escutarão os mais avisados de uma qualquer predação.

Saímos como os gatos com a bosta coberta, enterrada – não haverá perseguidor que fareje a zona viva – pois que um gato não deixa de si mais que o enigma de estar vivo e, tão perto do silêncio, que entendemos que é um deus percorrendo o estrondo dos caminhos. Haverá nas suas pupilas lancinantes tanto sossego como diante dos feitiços… já não estamos na órbita, e somos paralisados perante qualquer grito!

Quando tudo urge, tudo tem um mote, quem o perde morre perdido, quem não escuta não o sabe, nem tem da rotina nenhum sentido, faz coisas que de tão feitas se desfazem e continua intacto na sua jaula de cantares. É um símio sem alma, uma longa cauda, atrás, o coxis, se atrofiou para a tapar.

Não silenciamos o silêncio, que de perfeito não espera exercer mais que uma visitação a que não damos respostas na supra abundância da tão nossa soberba atenção: a quê? a quem? Desvendamos paragens mas elas são de ninguém. Tocamos. Tocamos alguém. Fazemos dele música e tocamos mal, tocamos carregando e não escutamos o que dele vem.

– Sem nada para tocar – que tocar envolve ser tocado, dar a música que somos em composição, as trevas do ruído são avaras, dissonância total! Silêncio, tudo o que se espera um dia alcançar.

Silêncio e nada mais.

 

 

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