Holderlin

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] partir de uma curvatura subtil da língua devíamos ter um trema ali por cima do “o” mas não existe mais na nossa gramática, nem a ninguém lembra agora voltar a colocá-lo, um pouco como os chapéus que tirados não mais voltam por norma às cabeças. —  O trema distingue o “i” ou o “u” de sons com os quais não formam ditongo. Creio que está em vigor ainda no Brasil e em Portugal, só em palavras estrangeiras, mas não se pode colocar dado que esses sinais de acentuação já não vêm nos teclados, e assim um nome fica menos acentuado o que para o caso não constitui nada de grave. Isto para dizer, talvez, que a regra se faz a partir da visualidade dos grafismos e ao encetarmos cortes há nomes e coisas que não cabem na moldura arquitectónica dessa mesma visualidade inibindo assim a nossa natural concentração.

Este é um poeta que dada a tamanha beleza nem cabe muito bem em lado nenhum, é como um apátrida, uma ideia, uma idealização, reunindo em si todos os atributos lendários desta designação, e também todos os infortúnios – que a fortuna tira quanto dá – é certo. Só hoje, onde nada se exige para além da caricatura de uma bem sucedida intervenção as nossas susceptibilidades, são tidas como derrotas e a mais desonrosa da loucura coroada de voluntarismos vários, nada que diga respeito a tal pessoa, que pessoa era de configuração diametralmente oposta.

Holderlin nasce em 1770 e embala-se no abraço do Romantismo alemão e inglês, sobretudo a Schiller, mas, como disse Paulo Quintela, é o inopinado do seu aparecimento que fará o inenquadrável nas categorias críticas existentes aparecendo assim como ora clássico ora romântico, havendo mesmo quem se aventure na expressão «classicismo romântico», o que sem dúvida deixa expressa a complexidade deste problema. Ele furta-se a uma inclusão unívoca, forçando-nos a aperfeiçoar outros campos de visão. Incompreendido durante mais de um século, difícil seria para todos aquelas estranhas alturas onde todos mais tarde reconheceriam a suprema beleza da sua escrita. Superou Goethe no seu helenismo e é talvez um expoente máximo da raiz ocidental de carácter helénico, indo para além de um poeta alemão num épico discurso do seu povo. Pelo meio, uma vida que fora em si um pouco atribulada desde o seus estudos de Teologia que não o fizeram pastor, até ir a França a pé na época fervilhante da Revolução, à paixão pela mulher de cujos filhos foi tutor, Sussete Gontard – Diotima – o seu único amor, à sua hipersensibilidade, com uma incapacidade amarga para a vida; por solicitude dos amigos que o foram encontrar em estado « nojento» encaminhando-o para Hegel para restabelecer-se e onde terá então um lugar na biblioteca de Hamburgo e traduz «Sófocles».

Depois de um período de bom entusiasmo, dá-se um colapso e docemente entra naquilo que todos apelidaram do tempo da loucura: não tinha relações com ninguém, vivia para as suas leituras e escritos. Era ainda um homem jovem, trinta e nove anos, e assim se deixou ficar até à idade dos setenta e três quando morreu. Lembra-se de Schiller mas não sabe já quem é Goethe e fica indiferente mesmo em relação a tudo que se publica a seu respeito. Trata os estranhos de forma sumptuosa: Vossa Alteza, Vossa Santidade, Vossa Majestade… amava a mãe que, não vendo cura para aquilo, resolveu entregá-lo aos cuidados de um mestre marceneiro. Dizem que era bonito e que outrora tinham fixado na imagem a sua figura de Apolo e que possuía um invulgar virtuosismo musical. Nunca se dissociou da sua origem teológica e por isso tinha da poesia uma concepção sacral: o poeta sacerdote, o poeta profeta, e fazia da sua arte um mero exercício, também ele, divino:

Santa criatura! Tantas vezes em ti perturbei a dourada paz dos deuses, e das mais secretas, das mais fundas dores da vida muitas de mim aprendeste/ Oh esquece e perdoa! Como aquelas nuvens passam ante a Lua pacífica, eu passarei, e tu repousas depois e brilhas de novo na tua beleza, ó luz suave!

Outrora, como hoje, Holderlin tinha-se tornado para a sociedade um corpo estranho, um invólucro irreconhecível. Ao tempo, a sua doença seria um assunto íntimo e discreto; hoje, talvez passível de averiguação normativa, mas estas naturezas não estão doentes, creio, vibram a outros níveis, estão em outros planos, porventura mais inclinados mas não necessariamente disfuncionais e desestabilizadores. Visto pelos olhos da norma parece triste e penoso, mas não serão os normativos tristes e penosos na sua ampla visão do todo?! Aliás, os poemas da loucura são inescrutáveis, guardando por isso toda a beleza de um vórtice de gigantesca maravilha. Nós sabemos que são mapas e intuímos que dão para mundos tais que somos nós quem está incapacitado por não podermos a eles ter acesso: Tudo está parado, só o amor gira!

E por atalhos secretos que as minhas pálpebras se assombram de tanto ser assim, descubro por acaso aquilo que só pode ser ainda a sua voz transportada na imensa alma do poeta que era e escrita neste dia 19 de Abril do ano de 1812.

De uma carta do Marceneiro Zimmer à mãe de Holderlin.

[…] Mandei vir o Senhor Professor Gmelin para ver como médico o seu querido Filho, e ele disse que nada ainda se podia dizer ao certo sobre o seu verdadeiro estado mas que lhe parecia que era afrouxamento da natureza, e infelizmente minha boa Senhora vejo-me na triste necessidade de lhe dizer que também creio que é assim.

A sua bela esperança de tornar a ver o seu querido Filho feliz neste mundo teria assim infelizmente de desaparecer, mas venha o que vier ele será certamente feliz na outra vida.

O seu espírito poético mostra-se ainda activo, assim Ele viu na minha casa o desenho de um templo. Ele disse-me para fazer um assim de madeira, eu respondi-lhe que eu tinha de trabalhar para ganhar o pão, que não tinha a felicidade de viver assim no Repouso Filosófico como Ele, e Ele respondeu-me logo, Ai eu não passo de um pobre homem, e naquele mesmo minuto escreveu-me o seguinte verso a lápis sobre a tábua

As linhas desta vida são diferentes

Como são diferentes os caminhos e as fronteiras dos montes.

O que aqui somos, pode acabá-lo além um Deus.

Com harmonias, prémios eterna paz.

E foi assim.

« WAS BLEIBET ABER, STIFTEN DIE DICHTER»

«MAS O QUE FICA OS POETAS O FUNDAM».

19 de Abril de 2017

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