Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDo amigo e do amado [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando a Terra era maior e os homens mais pequenos por uma proporcionalidade de escalas o amor também perfilhava do mistério insondável da demanda do saber, vivendo-se na ilusão expansionista de uma Boa-Nova e tecendo-se histórias que levadas de um local para outro começavam a denotar um carácter de lenda, na distante Idade Média fundara-se o estatuto do romeiro e do eremita que tanto oravam a santos como a poetas na linhagem da herança do Império do Al-Andaluz. Do amor nos chega ainda aqui os mais belos ecos e formas de louvor- amor cortês, amor amigo, amor paixão, amor sacral- que traziam para o terreiro dos dias a mais fina interpretação das coisas do Verbo. Sem dúvida que falamos de outra Humanidade, de outras agentes, de outras demandas e estruturas, onde o casamento ainda era instituição insipiente e a família um laço alargado de Unanimidade. Morria-se muito mais….morria-se ao nascer, morria-se ao amar, morria-se pela terra…. e esta constante presença parecia limar o tecido do amor de forma redentora, e por isso também os reis eram amantes, compiladores de Cantigas, bastardos e legítimos, um laço de uma mesma árvore que brotava sem severas separações… o tempo posterior foi cerrando este respirar até ao estertor do amor tabu que é onde estamos mais ou menos agora, mas o amor existe tal como as visitações e tem leis que tendemos a esquecer e merecimentos que não vemos, muito ao estilo de Yourcenar quando afirma ” não ser amado é tornarmo-nos invisíveis” . Sabemos das leis da opacidade, mas desconhecemos as outras, numa vaga de sucessivos impulsos procuramos na nossa já quase invisibilidade um ponto de retorno à oração, ao desvendar de nós pelo outro, mas que outro que não há, e nos torna mais em nada? Sabemos lá no fundo que os amantes são a grande proposta de redenção, uma espécie de elemento predestinado sem noção de mudança ou separação, que são férteis, indivisos, poderosos, não expostos aos abrigos das traições sendo quase sempre uma natureza outra fora do ciclo das coisas transformáveis. A sua legenda era, seria, aquilo em que não deveríamos falhar, e foi por ela, afinal, que o erro se instalou. Ramom Lull foi um prodigioso homem do seu tempo (século XIII) aquele que fora apelidado como o criador da língua catalã, foi simultaneamente um teólogo, um poeta, um cientista, um místico e um homem da retórica, pois que tempo era que nada estava separado e da sua vasta obra talvez o «Livro do amigo e do amado» nos devolva quase intacto o tempo em que viveu; fala-nos ele de um eremita que depois do Sol posto ficava em oração até ao primeiro sono, que se levantava pela meia-noite abrindo a cela a fim de contemplar as estrelas e com oblatas se alimentava da sua ideia de Deus, é um tipo de vida da qual nada sabemos nem os verdadeiros estados de espírito de quem toma por cada verso do « Livro das Contemplações» a chave do enleio dos dias, pois que esta obra de Lull é uma osmose entre a receptividade e a fé, esse elemento de amor que reflecte o princípio criador. O interlocutor melhorado é esse amado ser, ressonância talvez do seu alter ego que lhe fala da totalidade, da maravilha, é o outro, aquele ” a quem serve o vencedor” e mais tarde é Juan de La Cruz que o vem reabilitar na sua incomparável poesia de inviolável amor na «Noite escura» e« Cântico espiritual» uma exegese, um ritmo, um anunciado…. São assuntos extensos e porventura intensos para uma abordagem só, mas neles se reflecte toda uma noção poetizante do «pactum» da alma com a sua natureza, natureza essa que se perdeu na imensa selva do poeta das árvores sem raízes e dos sentidos sem disciplina, não sendo de prever mais que a morte desta arte que mais que exercício de escrita continha a noção de Humanidade, de ciclo criador, e nós, que distantes ficámos, estamos talvez como nunca no mais misterioso de todos os Invernos poéticos, porém, sem a sua existência teríamos perecido e nem aqui teríamos chegado. Não devem no entanto abeirarem-se as gentes destes oficiantes com suas “botas cardadas” e ilusões vãs, pois não sabendo de quem se trata, pode a vida acordá-los de formas várias e nem sempre as melhores, vezes sem conta numa incontável falta de tacto de que dão provas: mau e bom, perdem aqui aquela moral tão cara ao código primitivo das suas fontes, e só o amor, que não sabem, parece por fim misteriosamente intrigar neste mensageiro. Sem esta rara estranheza- pensam elas- que o mundo se equilibrava em si mesmo- mas não- pois que há leis que podem fazer compensar as falhas e as tormentas, e como taumaturgos cada um é uma fonte de equilíbrio que impede que os elementos destruam ainda mais a “casa” dos Homens. -Adoeceu o amigo e pensava o amado: de méritos o alimentava e com amor lhe saciava a sede, em paciência o abrigava de humildade e vestia com a verdade que curava.- ….e esta dialéctica do outro em permanência só uma delicada presença pode saciar. – Libertou amado o amor e permitiu que as gentes tomassem dele a sua vontade; e só encontrou amor aquele que o pôs no seu coração. E por isso chorou o amigo e teve tristeza da desonra que o amor recebia aqui em baixo por causa de falsos amantes.- Toda a construção enaltece aqui a linguagem dos amantes numa quase unanimidade e concordância. Foi desenvolvido o hábito quase litúrgico da inspiração nestes tempos idos, e por isso, também o Cavaleiro honrava a sua Dama, a Dama defendia o Cavaleiro, e de todas as fontes a que abençoa mais é sem dúvida aquela que nos inspira. Por isso a ordem era Amar. Aqui me lembro das velhas obras esquecidas como «Os Cavaleiros do Amor» de Sampaio Bruno que perto estão deste mito amoroso, e, quando descidos dos nossos cavalos, vemos a blasfémia do amor reduzido a insidiosa interpretação apetece morrer de amor por algo de irrevelado e do tamanho deste livro. -Desejava o amigo solidão e foi viver completamente só para que tivesse a companhia do seu amado com o qual está só entre as gentes- Os amantes estão sós no mundo.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCarta ao pai [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]proximamo-nos do Natal que tal como o seu nome indica é uma festa dedicada à Natividade, ao grande projecto que é ser nascido sempre por um mistério mais vasto do que a fecundação ou anunciação. Nascer será sempre o mais belo mistério que temos para festejar, só que esta Festa está repleta de “Cartas ao Pai”, Pai Natal, esse grande senhor velho, emblematicamente, um Saturno feliz que distribui presentes pelos filhos de todos e nos deixa a pensar no patriarcado benévolo e generoso e que é quase como Deus na sua ubiquidade. Depois quem nasce também é menino e da Natividade fica um suporte maternal receptivo e bom, mas sem grande expressão na simbologia final. Nem sempre as Cartas ao Pai são tão beneméritas e de expectante satisfação. Não, nem os pais são aqueles seres enormes e escarlates que nos protegem nos nossos desassombros perante a dádiva. Existem diálogos e cartas temíveis nesta saga dos pais monoteístas de índole patriarcal e, muito a propósito, a célebre « Carta ao Pai» de Franz Kafka e o diálogo de Jesus no Monte das Oliveiras e o passeio de Abraão com o filho Isaac — ele que expulsará também o seu filho Ismael para o deserto… São encontros verdadeiramente marcantes para a vida dos filhos. Esta é a Carta que pode ser a súmula de muitas outras na relação intempestiva e sombria que estes homens tiveram, numa tribo de progenitores, onde esta relação imediata pareceu sempre ameaçada. Kafka transmite toda a profunda mágoa e tristeza num desabafo, diria intimista e na primeira pessoa, e tenta sem dúvida curar a sua ferida de progenitura. …. se eu pretendia fugir de ti, devia fugir também da família, incluindo a Mãe, podia-se sempre encontrar protecção junto dela….. Tu mostraste-te sempre afectuoso e afável com ela, mas quanto a isso, também a poupaste muito pouco, tal como a nós… Um sacrifício que se denuncia por tormento e mágoa de um pai que imperava no topo de um medo profundo, inconsciente, cultural… Uma saga que não deixa ao varão mais do que a sua lei e temor pelo elo da progenitura e assim exerce o seu domínio. Esta «Carta ao Pai» não é uma Carta ao Pai Natal! Porque o pai é seminal ,não busca mais que a continuação da sua espécie por meio de uma realidade que não chega para manter vivo um homem e se Isaac tem a protecção do Anjo, já em Jesus, o Pai derradeiramente se silenciou no estertor da imploração do Filho. Por isso, nós fomos cobrindo de flores e de luzes a chegada de um menino e pondo homens vestidos de vermelho para alegrar esta festa. Ela não devia dar continuidade a uma imperiosa manifestação patriarcal. Mas Kafka, como judeu, também não tinha Natal, esta não era a sua Festa, mas o reflexo dela mantem-se na continuidade da mesma saga, porque da mesma essência se trata aqui. Creio mesmo que este seria um belo presente de Natal na rota da desocultação desta herança – este livro – mas como o tempo é de festa, talvez a família, mesmo cristã, não ficasse com a consciência tranquila de que ela é de facto uma boa instituição. … Afirmas que facilito as coisas para mim fazendo recair sobre ti a culpa da nossa relação, mas apesar dos teus esforços exteriores, não as tornas mais difíceis para ti, mas bem mais suportáveis. Mas enquanto eu te acuso, tão abertamente como o penso tu queres livrar-me a mim também de toda a culpa… E esta culpa, na qual se inscreve a filiação, tem no entanto o mérito de em si possuir um vínculo inquebrantável, como se sem ela a própria noção de vida nestes abismos patriarcais fosse inexistente. Existe ainda uma prática transcendental e bela que é a dos judeus ralharem literalmente com Deus, expondo-lhes as suas mágoas, mas numa tal e tão tocante manifestação, que uma razão linear e fora daqui não entenderia. Mais tarde, este pai tem a autoridade exacta de um castrador, quando impede Kafka de casar com a mulher que ele ama, o que por uma lealdade entre homens acaba por ser obedecida, e diz: eu queria nunca mais estar “no caminho da tua felicidade” e em segundo não quero ouvir uma tal censura da boca do meu filho. E a minha autorização para o teu casamento não impediu as tuas censuras, pois tu provas que, de qualquer forma, sou o responsável pelo teu não casamento. Se não me engano muito, ainda me parasitas com esta Carta enquanto tal”. Prova-se assim a vontade de ser Um no Pai, de ser Um no Filho, e esta alternância que desmente o mito do individual faz do patriarcado uma história ultra-secreta ou de um amor louco ou de uma vertente consubstancial à vida. Por fim, o Filho entrega-se e espelha-se no Pai que o diz soltar para que cresça, porque olhar para trás, só mesmo uma mulher para ficar transformada numa estátua de sal. A mulher de Lot é uma estátua à desobediência, toda ela petrifica, segundo as leis que aqui estão inscritas. Talvez que Filho e Pai não tenham costas e se debrucem numa forma multifásica para continuarem assim tão indivisos. As Mães têm “costas largas” e acontece sagrarem a vida pela Festa da Natividade, não olhando muito também para trás quando as leis lhes levam os filhos e não sabendo exactamente o porquê do seu imenso amor não os proteger. Seja o que for a Carta, aqui vai um pedido ao Pai Natal: abençoar as mães e deixá-las no repouso maravilhoso dos seus dias e que os filhos as reconheçam sem precisarem de escrever Cartas. Kafka ainda considerou durante algum tempo ir à Palestina, a eterna terra do Pai, mas adoece morrendo pouco depois. O grande insecto podia ser, nestas paragens da mente da «Carta», uma estranha Louva-a-Deus, elemento mórbido para um elo assim, que fugiu sempre em frente, num secreto horror, também ele, de poder ser também a própria mulher de Lot, e se viu defronte à imagem do seu mais angustiante medo, que bem pode estar inscrito nalgum gene masculino que representa a saga fascinante do patriarcado. Sabemos que engolir “sapos” pode significar consubstanciar um príncipe, mas que consubstancial, só mesmo ao Pai. Querido pai Perguntaste-me recentemente por que motivo eu afirmava ter medo de ti … começa assim então a longa Carta.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasUm Canto de mim mesmo Oh Captain, my captain, Exult O shores, and ring O bells! But I with mournful tread, Walk the deck my Captain lies, Fallen cold and dead. Walt Whitman [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s noites que antecedem o Solstício de Inverno são longas e frias, muito escuras quando a Lua-Nova incide ainda mais na grande muralha do tempo que, desde os cultos de Mitra, forjaram o pavor primitivo dos Homens, que nas fundas grutas pensavam na chegada de uma noite eterna e nas Altamiras oravam ao Sol para que não os abandonasse naquela noite profunda. Tão em silêncio e reclusão estavam, que no meio deste labirinto já nem viam o grande Minotauro, mas foram descobrindo, como a primeira das revelações, que quando chegados ao ponto vernal, ela, a estrela que pediam que voltasse, aos poucos ressurgia no escuro dos dias, timidamente e gloriosa – o Sol – o invictus Sol! Mais tarde as Saturnais Romanas, o Purim judaico, o Natal católico (faltando o Islão que se anunciou como um crescente lunar) as Civilizações foram as do Sol, e as culturas dos Homens lhe renderam homenagem. E foi nestas noites trazidas e enlaçadas nas veias que, numa plataforma singular, me recordo dos Poetas Mortos, de todos aqueles que trazem o facho de luz da esperança e da incandescência para a Humanidade, que contacto com o corpo do poema no éter puro: recordo-me de – My Captain – “meu capitão jaz morto e frio” na madrugada exacta da morte daquele que para uns é ígneo de ferocidade, para outros a luz que faltava, para muitos um resquício do «Crepúsculo dos Deuses» e para outros um rico, muito rico, disfarçado Comandante: seja quem for, ele vive no tecido do Poema e não fazer muitos juízos de valor quando encontramos o que faltava saber nas formas não reveladas. Tenhamos apenas o humilde reflexo de as ter sabido interpretar, sem resquício de idolatria, mas relembrando o quão terríveis podem ser, muito embora solares e generosos, aqueles que os destino inventa para representar os mitos – os deuses não nos querem de joelhos, e se inábeis lhes erguemos um altar, ficam parados e tomam a decisão de se calar. «Um Canto a mim mesmo», redundantemente sinónimo do cantor, pode ser agora «Um Canto a Galiza», um « Canto do Cisne», um Cantar de Juan de La cruz na «La noche escura del alma», tudo o que um profético Ulisses desembarcado na sua ilha tendo como amante a sua Calipso como um sonho a conquistar. Não lhe vamos oferecer flores, a longa fila de outros mortos sugá-las-iam de dor, esses seres vegetais para coroar as fadas, mas as oferendas aos mortos e dos mortos são coisas tão irreveladas, que nos interpelam como os segredos. Concomitantemente ao aniversário de William Blake, ele traz-me Urizen, aquele deus da afirmação auto-suficiente que se afasta do mundo indiviso da eternidade para ver consumado o perpétuo isolamento do seu mundo e fixados lhes foram os caracteres antropomórficos pela via metalúrgica e um novo mundo começa. Como um raio suado de coincidências alerta-se para o estado gasoso da matéria do poema, que se une em factos nas passagens de plano, e desta matéria dos mitos se faz o dedutivo momento de que somos visitados pelo organismo intacto que sobrou da vasta matéria onírica… Uma Lua-Nova na constelação do Centauro talvez encete longe a sua força e nos deixe naquele espaço que a visão já não alcança e só pelos olhos do assombro podemos visitá-la. Como nota acrescente-se que Blake se situa exactamente na transição da cultura inglesa para o século XIX, entrando em conflito com a civilização igualitária do liberalismo moderno e que Whitman no ano em que nasce Pessoa é atacado de paralisia e publica «November Boughs», os seus últimos sessenta e dois poemas, ajudado por um amigo que angariara fundos para a sua publicação. Novembro das noites altas como catedrais, sim, que hoje mesmo neste trinta de Novembro nos levaram Pessoa e Wilde, e na noite sem estrelas, avança a maravilha do contacto como nos refrões vindos da gruta mágica, emblemas tão vivos que quase se faz luz em todo o interior e a premonição é um estado de alerta e de comunicação tão férteis que devem estar unidas ao imenso grau de empatia dos estratos humanos. E, em jeito de Barcarola, que as barcas são dos Argos e das ilhas, vamos construindo a viagem e sabendo que ela é a vida que no términus se despede, e se anuncia assim: Ó Capitão! Meu Capitão, terminou a terrível viagem. O navio resistiu a todas as tormentas o prémio que buscávamos está ganho. O porto está próximo, ouço os sinos, toda a gente está exultante. Caminho agora no convés onde está o meu Capitão. Tombado, frio e morto. A viagem de Ulisses terminou. As Ilhas são locais de amor e de alguma sede de reclusão. Sabemos de como a insularidade nos toca, e, de quando em vez, temos vontade de ir para uma só nossa, onde possamos prosseguir o sonho da Utopia. Os continentes não produzem sonhos, nem neles achamos a vasta memória de toda a fonte poética que, podendo ser deleitosa, será em si a terrível face do universo que não quisemos indiviso. Afinal, o pacto foi também que todos os gases nobres não se misturassem, tal como todos os elementos também nobres que tendem a estabilizar. Sem esta fixidez seríamos náufragos baloiçando nos mares ao sabor das coisas indistintas, e, os Velos de Ouro estão guardados para os que, com a persistência das missões quase olímpicas, o resgatem e encontrem. Nós, no torvelinho de tempos móveis como areias muito movediças não sabemos captar a fantástica função do mito nem dele tirarmos a devida lição da beleza escondida. Daqueles que para o pior e o melhor forjaram os metais de Vulcano não desejando mais que a sua altivez face à banalidade do ouro dos bárbaros, nós, já não sabemos ver para além da moral dos tempos nem ter o espaço para os encantamentos, por isso os Argonautas morreram, e as barcas são essas coisas informes boiando nos mares para velhos ricos que procuram a sua ilha. Ela não está em lado nenhum, nós somos um hiper-Continente, uma cadeia de mercados onde nos abastecemos para lidar com o mundo como se ele fosse linear e igualitariamente programado. E, porque a noite é longa e os tempos um plasma indistinto, oiço dizer aqui em meu ouvido a frase de Whitman: – se à primeira não me encontrares, não desanimes, se não estiver num lugar, procura-me noutro, algures estarei à tua espera -. É bom saber desta verdade.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasNão entres docilmente nessa noite escura [vc_row][vc_column][vc_column_text] «Do not go gentle into that good night» [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] este foi o ano em que sem nos apercebermos, os sons foram lembrados para celebrar os poetas. Dylan Thomas, o quase ainda romântico escritor inglês, nascido no início do século passado, anda distante do movimento surrealista, mas próximo do círculo iniciado nos finais do século XIX por Freud e também do legado das expressões míticas que tanto se fizeram sentir em Yeats como em T.S. Eliot. Estava aberto assim o dilema entre o eu poético e a vertente da natureza social e todo este riquíssimo desocultar da psique, conjuntamente com a raiz da herança céltica deu uma poesia absolutamente intransponível na sua dimensão de vínculo cultural. Chegados aqui, todos sabemos então que o Prémio Nobel da Literatura que não tendo, é claro, a importância capital tão discutida, pois que também é certo que o tempo em que vivemos é todo ele o da relatividade quase absoluta, tanta, que a poesia passou a ser feita por agentes que ou não devem entender do que se trata ou tudo tem efectivamente uma outra interpretação. Bob Dylan, nascido Robert Allen Zimmerman, deve o seu nome a Dylan Thomas. Aqui foi efectivamente o Prémio em Poesia que se fez sentir na vontade de ser e na qualidade de se ter tornado quem foi, o que denota a justa forma de saber homenagear. Há um conflito de posição face ao estereótipo do criativo, como aquele que se faz a si próprio numa auto-suficiência ilusória: no fundo, acaba por ser uma atitude mais política que poética norteando os dados para um conjunto de influências que ajudem a sua causa numa espécie de campanha que norteará o “eleito”. O que se passou com este Prémio foi singular e emblemático pela justa forma de saber ver que o mensageiro que soube tão bem interpretar a mensagem é a título abrangente o depositário do Poema. Dylan Thomas morreu jovem, tinha trinta e nove anos, tendo publicado o seu primeiro livro aos vinte «Eighteen-Poems». Teve trabalhos, sim, mas aos trinta e dois anos tornara-se poeta a tempo inteiro pois que não há poetas a tempo parcial, nem a vida de um criativo é uma felicidade ingénua à boa maneira do antigo S.N.I. dos «pintores de fim de semana»: talvez até, que para escrever somente isto: “clama, clama, contra o apagar da luz que finda, que a velhice arde e brada ao término do dia“, se precise muito mais que pendor e, mesmo que se morra novo, se tenha experienciado por lucidez a pavorosa passagem do tempo. Não por acaso o tema da morte é tão significativo nesta poesia e acaba por ser o motor de uma tradição poética europeia que Bob Dylan, que humildemente não se considera poeta, soube trazer nessa herança, e não mais que ouvi-lo para saber da contingência entre os movimentos vitais de criação e de destruição. O homem quando nasce, como expressamente nos diz, « é suficientemente idoso para morrer». Neste poeta há sem dúvida referências bíblicas, tal como em Eliot na «Quarta-feira de Cinzas», e também em toda a estrutura dos poemas vamos desvendando o conhecimento simbólico, que, tal como em Dylan, o torna muito mais simbolista que metafórico. Estamos no campo em que descemos do ego cardíaco e nos adentramos no mistério comum que nos inunda de respeito. Saídos da esfera da perturbação vamos entrando nos assombros e nos próprios abismos de olhos abertos, essa lucidez tão cara a um poeta: E a morte perderá o seu domínio. Nus, os homens irão confundir-se. Com o homem no vento e na lua do poente; Quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos. Hão-de nos braços e pés brilhar as estrelas. Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido; Mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir. Mesmo que os amantes se percam , continuará o amor. E a morte perderá o seu domínio. Mesmo que os amantes se percam… sim, o amor continuará e os amantes reencontrar-se-ão, talvez, num tempo descarnado das suas pobres vísceras, mesmo que tudo se perca. Perder é depor as armas e estar mais desperto da essência e no sopro longo do Verbo lá está o amor: ” no fim, ainda que os lábios aceitem as trevas, porque se esgotou o raio das suas palavras, eles não entram docemente nessa noite serena”. E se mais andarmos vamos até ao rei Artur e Guinevere – a das longas tranças – a Ilha das Maças: “e o tempo deixava-me acenar e subir, dourado, na grande luz dos meus olhos: era, venerado por todos, o príncipe das cidades das maças”. Pois que já nem temia os dias brancos como cordeiros que lhe viessem erguer o tempo, nem a vida do lado de fora de um reinado mítico acrescentaria mais luz que a doce lã das ovelhas; sim, temos aqui a sacralidade do poeta orando na versicular legenda da escrita e talvez seja esta noção tão íntima que transmite a maravilhosa manifestação de que estamos diante do inesperado que traz em si todo o silêncio antes de reflectirmos o que devemos dizer quando aceitamos as dádivas. Há aspectos que se isolam ao alcançarem a plenitude, e nós, a quem tanto foi tirado em troca de nada, convém que nos devolvam todas estas noções e um mundo onde elas possam de novo caber, ampliando o sentido do que está retido nestas vozes. Por isso: – NÃO ENTRES DOCILMENTE NESSA NOITE SERENA que te querem dar, como um Prémio, de que não foste obreiro nem construtor. A vida que nos dão foi-nos imposta, requer-se a vida conquistada, para quando menos esperarmos podermos saber o significado de todas as palavras.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasEsta é a voz da Europa [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o momento em que vivemos é importante a voz de Ezra Pound, esse chamado poeta maldito, designação que não passa de uma interpretação interpelada, interpelante, sempre pouco assertiva, dado que não são eles – ele, neste caso – a causa provável das maldições. Essas vêm de aparelhos com encantos que os povos sustentam e apoiam como formas de felicidade. Um anunciador de factos, mesmo extemporâneos, não pode constituir ameaça, a menos que seja um alucinado fabricante de teorias da conspiração. Neste caso temos um homem que trabalha em simultâneos tempos diversos e os articula com a velocidade visionária de uma mais vasta chamada de consciência. A sua voz ecoa nestes dias de americanas vitórias. Ezra Pound é o autor de «Cantares», um tratado de poesia absoluto, e o seu léxico não é aqui um exercício metafórico, abstracto: ele usa o chicote da linguagem directa numa forte aceleração cerebral como se de partículas se tratasse, com uma forte vitalidade da essência. Ele liga o Oriente e o Ocidente na forma trabalhada da matéria do poema; ele amplia a linguagem e diz que a poesia difere da prosa pelas cores concretas da sua dicção. O poder inovador é imenso, a sua importância, uma lembrança das melhores, sempre em oposição à ambiguidade de índole surrealista. Mas voltemos ao nosso instante, ao momento histórico onde, como nunca, ecoa a estranha voz de Pound. As Conversações Radiofónicas foram feitas em Itália, onde falava acerca dos falhanços da economia norte-americana no tempo de Roosevelt, ligando-o de certa forma a regimes que o tornariam impopular, pois que nada lhe fora indiferente. Tentou voltar ao seu país em 1941 mas tal desejo foi-lhe negado, achando que a guerra instalada era devida à Finança e ao que ele chamaria de Usurocracia, lembrando aqui o seu poema Usura, e nesta análise ele não estava só tendo mesmo a seu lado o Nobel Sir Frederico Joddy, numa altura em que tal prémio não era politizado. Eram vozes que deviam ter sido escutadas com uma maior acutilância e consideração, sem a marca, sem os evangelhos políticos transformados em nova religião, e quando as tropas norte-americanas chegaram a Itália tiveram como preocupação imediata a sua captura e, pior, muito pior, que os seus já volumosos inimigos europeus foram sem dúvida os seus compatriotas: vai para uma cela para ser condenado à morte, é submetido a torturas e finalmente metido numa jaula com barra de ferro deixada na floresta. Acusado em Tribunal, os juízes declaram-no, contudo, louco, e ordenam a sua reclusão num hospital psiquiátrico. A sua voz não era aquilo que hoje apelidamos de politicamente correcta, sabemos que aquele que se atravessa nos dogmas dos tempos é banido pelas suas épocas e sabemos também como é fácil criar anátemas perante algo que nem entendemos bem. As pessoas, ontem como hoje, são exactamente as mesmas e nem os seus pares – sobretudo os seus pares – não estão lá para acalentar quem os pode de certa forma destronar. Mas Pound resiste, um homem destes não se abate, volta a Itália e aqui chegado declara que saíra de um manicómio de cento e oitenta milhões de habitantes. Hoje são mais, e mais loucos também, mas esqueceram-se nas suas encíclicas neoliberais daqueles que alertaram para o efeito de repetição e a transitoriedade das verdades absolutas. E andamos mais ou menos por aqui nesta impressionante tirada de Pound: “Americanos, nunca fizestes nada para vos curardes, maldição! Nada! Infestado o mundo, fez com que o nome da Inglaterra fosse maldito desde Pretória a Singapura até Calcutá. O seu centro é agora o outro lado do Atlântico por isso não vos devemos nenhuma gratidão se agora vos puserdes a devorar as energias vitais – Nem seria pecado se vos afundásseis afogados por um sistema que destroçou toda a cultura clássica… “Aqui Ezra Pound, que fala de Roma. O significado de Churchill e do bolchevismo encontra-se nas valas de Smolensko. E talvez tenhamos que ouvir certas vozes, mesmo à revelia dos tempos ou sem a sua concordância. Esperam-nos talvez súbitas revelações que sabemos ter escutado como um grito de advertência onde o eco se desvaneceu; nós, que tanto ouvimos e vemos, estamos em parte toldados para olhar um futuro comum e, no instante em que tudo for a selva da lei da sobrevivência e do mais forte, aí sentiremos a marca de todas as coisas anunciadas e elas repetem-se, como um longínquo coro grego que os nossos sentidos recordam. “Alguma coisa aconteceu na Velha Europa, aconteceu alguma coisa na Europa e não sabeis o que foi. Não sabeis o que se passou, qualquer passo em direcção ao preço justo, ao controlo do mercado, é um acto de homenagem a Mussolini e a Hitler.” Em tempos como este os escritores deviam era descer do pedestal e falar sem papas na língua. E lembra Céline: “L´homme n´est pas venu sur la terre pour devenir de la merde!» Toda esta desdita é o mais fidedigno exemplo da crueldade desta época de desconcerto, toda a saga do pensamento que se escuta rouco e em brasa não é passível de nos fazer entender os «Cantares» e, porque de surdos se trata, no receptor ouvimos agora surdamente os roncos de alguns tambores de guerra que ficam sempre presentes nos disfarçados ouvidos dos bárbaros. De que a Europa é feita! De que a América é feita! Até a um coro ensurdecedor que transformou o mundo num duro lamento. DAQUI A VOZ DA EUROPA. ESCUTO EZRA POUND.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasFuror e mistério Saber que o mal vem sempre de mais longe do que pensamos e que nem sempre morre na emboscada que lhe lançámos. René Char [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]sta é a obra que todo o poeta gostava de poder reunir sem lhe arderem os dedos e secarem os olhos à medida que vai percorrendo o ciclo do tempo criativo com a gravidade dos que precisam de unir as pontas destes véus por vezes tão soltos, tão sós, tão perdidos, entre as multidões de opacidade vária em que o mundo se tornou, podendo fazer de um poeta, também, um ser em desintegração. Só que, ele tem esse fio de prumo no acento de todas as fórmulas por onde desliza, e em mistério e pensamento, reúne o que esse divino imanente que o habita o manda interpretar. Ao contrário da lixeira poemática dos dias em que se tornaram as referências, com actos isolados e “papéis bordados a tinta” sem nenhuma intimidade com a estrutura poética de uma vida, aqui, isso nunca era passível de ter acontecido. Char, abandonou os pragmatismos da vida comum para interpretar um destino e fê-lo na singular e alquímica experiência de um iniciado. Coisas que se não forem exactamente assim, jamais serão o que quer que seja que valha a pena contemplar. O poeta René Char não era outra coisa a não ser um poeta. Não era um fazedor poemático isolado, e isso, só por si, é de um maravilhamento sem limites, nós, os que nos damos, não suportamos a acumulação de funções, nós, os que amamos , amamos sempre, e mais, a mesma coisa, aquela com que nos casámos nos dias felizes dos juramentos eternos. Nenhuma leviandade, nenhum cansaço, nenhuma infidelidade entram no imenso espírito de um poeta, não pode viver com a fealdade de uma traição nem com uma permanente falta de atenção para consigo num esquecimento sem memória, pois que ele constrói e une todas as memórias e por vezes, a falta de rigor e o desconhecimento dos outros face à sua, sempre, e naturalmente, gentil pessoa, abrasa-o, pois que não sabe como encaminhar os outros e não entende a distância que o mantém tão isolado. Sim, a Humanidade não é polida, nem sensível à sua existência neste mundo, muitas vezes mandam-no fazer coisas que ele só de ouvir se envergonha, pois não sabem, que o seu pacto é uma fera consciência que não sabe transmitir numa linguagem imediata. No entanto, há que viver, até para continuar fazendo a obra, viver é muito abstracto, e, se não houver uma causa, um amor, uma demanda… para que serve uma vida? Para que serve o prazer isolado dos dias sem um fio condutor de alguma eternidade? Neste momento histórico vivemos uma interface programática de incentivo à criatividade, só que, as pessoas andam na mansidão terrível dos regimes como se cumprissem pactos com eles, e, na profunda superfície de vidro vazio « Furor e Mistério» não está, por que para estar, seria preciso uma natureza religiosa, uma espécie de êxtase perante o abismo daquilo que é o vazio e o desconhecido , era preciso, entretanto, que a palavra fosse uma lava de matéria ardente para ser desocultada: nada disto nos dita nestes dias dos frémitos do esvaziamento pelas explicações indevidas, como se tudo fosse explicadamente acessível e em tudo tivéssemos que orientar o pequeno mundo que vai sendo o global instante de um reconhecimento vário. Se há uma« Homenagem e Fome» em verso livre numa destas páginas, ela transmite o mundo de Elliot junto daqueles ossos que se tornariam vida….- “Hão-de viver estes ossos?”- Aqui é uma Mulher e não a Senhora de Elliot, toda semente para feras ansiosas, numa hora esteva de ossadas…. daquele homem que para melhor a adorar recuava indefinidamente….com esta sorte sabia então que a terra não iria morrer e a fome era só o tormento de uma espera.. ..- Perguntar-me-ão, do poético da composição, pois que nada existe de mais poético que a carga de uma insuportável vontade que não se rende ao espaço da diversão narrativa que retira a força da tenção. Dar às pessoas uma dose articulada de resultados é adormecê-las, e ao manter a máxima inquietude, a linguagem, é o puro exercício poético. O amor que em tempo de consubstancialidade assume o integrar o outro é mais que possessividade, é a legenda de uma absorção radical que se deseja, e « Allégeance» é um fenómeno sonoro de longos mistérios a cumprir: Dans les rues de la ville il y a mon amour, peut importe oú il va dans le temp divisé. Il n´est plus mon amour chacun peut lui parler. il ne se souvient plus qui au juste l´aima et l´éclaire de loin pour qu´il ne tombe pas. Nós que atravessamos tão sós os nossos instantes, que trabalhamos para as auroras como se as conhecêssemos, que ficamos nos limbos das terras alheias, que não tendo chão, também perdemos o gosto de andar, não estamos nos locais que outros deviam ocupar. Ou estamos? E se sim, por que não os ocupam? E se estamos por que não fazemos pontes? Toda esta mágoa…este tecer, e ler a beleza que aqui está, nos faz…não sei, prisioneiros, e depois não mais estaremos juntos sorrindo com o gosto dos dias nos nossos rostos…. Char, nesta bela recolha diz que o poeta vive na maldição, isto é, assume perigos perpétuos e renovados do mesmo modo que recusa, com os olhos abertos, aquilo que outros aceitam com os olhos fechados: o proveito de o ser. Passando por todos os graus solitários de uma memória colectiva, da qual as regras do jogo o excluem. Neste imenso brilhantismo incandescente faz a obra cujo resultado é mais do que podemos suportar, e, no tempo das leves brisas estas Fúrias tão gentis revolvem a nossa natureza que deve estar disforme de tanta voz dissonante e matéria volátil, nós que agarrados às Barcas aguentamos os lemos, não nos atiramos à água por medo da fúria magnética. No fundo as sereias cantam…mas, quem as encanta são ainda os poetas que presos aos mastros continuam a misteriosa Viagem. E agora que as correntes se foram nos silêncios dos cânticos, nos vazios dos mares, talvez não se entenda por que se morre nas travessias das guerras que preparámos só por não sabermos compor. Sempre que deixamos os Ofícios dos Mistérios os mares tornam-se grandes sepulturas, e os nossos olhos, secam, para não ler o mapa de um mundo que se liquefaz e se desfaz. « Viver com semelhantes homens» tenho tanta fome… durmo sob a canícula das provas. Viajei até à exaustão, a fronte sob o enxugadouro nodoso. Já não é a vontade elíptica da escrupulosa solidão… mostrai os vossos desígnios e essa vasta abdicação do remorso! Tanta gente! São nossos irmãos.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDe Profundis [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] arte como epístola deixou há muito de fazer sentido dado que todas as formas de comunicação directa nos distanciaram deste exercício quase lendário que em muitos recantos de nós nos deixam vivas saudades. Aquela espera, aquele interesse nas linhas que dizendo nos indicavam e escavavam coisas tão ilegíveis como proféticas, tão enaltecedoras quanto expectantes… Foi assim, nesta busca de signos esculpidos pelos dedos quantas vezes nervosos, que demos ao amor uma carga imensa e nos fomos fazendo seres da escrita no que ela tem de mais narrativo, sentido, oculto e registador. Estávamos tecendo a renda interna das nossas emoções e tentando dar-lhes o suporte perfeito de um conteúdo: muita gente debruçada em folhas de papel foi educando os sentidos e deles unindo todas as letras que reverberaram em uniões sentidas e mantidas pela vida fora, pois que nelas inscreveram vontades e tudo o que se escreve a outro adensa o registo do que a ela nos une. Foram lendárias as cartas, desde Abelardo e Eloísa, a Rilke e Salomé, a Soror Mariana, a Pessoa e Ofélia, em outro registo de Laranjeiro a Unamuno, elas foram tecendo o melhor da identidade literária não podendo por isso serem passíveis de esquecimento ou ficarem num reduto silenciado da matéria da escrita. E é exatamente nesta linha que a longa carta de Oscar Wilde a Lorde Douglas insere neste texto a matéria do discurso. Wilde, que até esta monumental carta tinha sido o arauto do «esteticismo» na defesa da arte pela arte, na medida em que é a vida que imita a arte e nunca a arte que imita a vida, banindo todo o comprometimento moral e social, dado que a inteira liberdade nada tem que justificar, alcança aqui a transcendência do grande desconhecido de si mesmo: dir-se-ia que é o seu legado de redenção este momento em que em golfadas de deslumbrante e dádiva vai expor a sua natureza religiosa abrangente e mística no enaltecer poético de um cristianismo que lhe desconhecíamos. E é aqui, que ele eleva Cristo à figura do grande poeta do mundo, da beleza de ser sem roupagens. Ele que na sua qualidade de antigo “dandy” chorou lágrimas amargas até à consciência que aqui nos presenteia. Vem esta célebre carta a um tempo de queda e dor e também de tudo aquilo que o despiu de si, que se inicia como todos sabem com uma acção judicial onde vai procurar defender-se da difamação contra o pai do seu amante, Alfredo Douglas, Marquês de Queensberry. Enceta a sua defesa, mas perde, é condenado a uma pena de prisão e Paris vai encontrá-lo na miséria absoluta. Mas neste estertor, neste desmantelamento de si, ele vai então fazer a obra que nos fascina. Ele vai recordar-se então de muitas passagens bíblicas, vai interligar os factos, enumerá-los, compreendê-los, quase incarná-los na sua desdita que enuncia numa estranha paz para quem passa por tão desconhecido tormento. Ao longo desta leitura vamos nós mesmo pondo em causa tanta coisa… despindo-nos de outras e, não raro, marejarmo-nos de lágrimas, pois não é a sua dor que nos interessa mas a capacidade que tem ao superá-la pelo entendimento da perda. Não o reconhecemos, quase, naquela outrora e genial soberba, naquela garbosa e distinta imagem de si mesmo. Ficamos por instantes atónitos, quase que molestados por tanto desassombro e, com ímpeto difícil de entender, começamos a pensar que este inimigo que o levou ao fundo foi afinal um anjo salvador: entender isto é um acto de pura iluminação, saímos limpos desta carta como de um banho no Jordão. Não há aqui, nem ódio, nem punição, aos carrascos, ao destino, aos fados maus: apenas é gigantesco o narrar daquilo que foi amor e nos faz pensar na estranha maravilha de quem ama, daqueles que são por natureza amantes. Wilde não esconde que é frágil, que está só, que fora abandonado, mas é aqui que paradoxalmente ele fica maior, tão grande, que tudo mingua. Ele fala das feridas como se se psicanalisasse para melhor entender o mistério do mundo, ele diz: – eu fiz, eu dei-te, eu estava… – mas não se lhe nota tristeza, creio que nunca esteve tão lúcido e tão admirado face ao resultado do mundo. “Os deuses tinham-me dado quase tudo. Tinha génio, um nome reconhecido, uma posição social elevada, brilho, coragem intelectual: tinha feito da arte uma filosofia e da filosofia uma arte … despertei a imaginação do meu século… resumi todos os sistemas numa frase, e toda a existência num epigrama… diverti-me a ser um flâneur, um vaidoso, um homem da moda… “Estou na prisão há quase dois anos. Agora encontro, escondido no fundo da minha natureza qualquer coisa que me diz que nada, em todo o mundo é sem sentido, e o sofrimento menos que qualquer outra coisa e essa qualquer coisa escondida no fundo da minha natureza é a Humildade.” Todas estas linhas são litúrgicas e, sendo a verdadeira «Carta aos Coríntios», não deixa de ser também dirigida a cada um de nós, que julgamos e estigmatizamos, que procuramos a culpa e os culpados, que nas formas mais naturais de ser só somos enquanto emitirmos opinião e dela fizermos alarde. É uma carta aos Douglas escondidos em cada um de nós, tentando comer a presa gigante e derrubá-la por leviandade; a nós, cujos dons desconhecidos nos fazem enveredar pela protecção alheia, por isso tem duas leituras intensamente vividas em ambos os sentidos. Ele diz que embora Cristo não tenha dito aos homens «Vivei pelos outros», afirmou que não havia diferença entre as vidas dos outros e a nossa e que por isso mesmo deu ao homem uma personalidade titânica. Não sei se Douglas alguma vez a leu, talvez isso seja o mais irrelevante, pois não seria este Wilde aquele que lhe interessava , mas caso a tivesse lido, como foi a sua vida a partir de então?! Não se nos ocorre dizer muito, de algo que diz tudo, porque dizer de algo assim, é quase nada, é uma demostração de rotina linguística que pode até fazer o efeito contrário e, também, ainda não há exegetas literários em matéria de texto público… mas, detemo-nos a tentar, talvez ousadamente, neste algo em que a tentação foi para sempre banida. “Estava preso e era pobre, restava-me uma coisa bela: o meu filho! Subitamente, ele foi-me tirado pela lei, cai de joelhos, inclinei a cabeça e chorei. Encontrei a alma intacta como a de uma criança e entendi o que Cristo, enfim, dissera.” Uma carta para a Eternidade. Uma carta que não se diz. Não será com as cartas aos «Coronéis» que manteremos vivas as epístolas, nem sabotando o receptor que lhe iniberemos o gosto por outras leituras. Aqui, não há patentes, e fica patente, que o que se disser, não regista o que ela tão brilhantemente nos anunciou.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSer a vida inteira Vinho! A jorros! Que ele palpite nas minhas veias! Que ele fervilhe na minha cabeça! Taças… Depressa! Eu já envelheci… Omar Khayyam [dropcap style≠’circle’]– S[/dropcap]im, agora que o Outono chegou, que as tardes são mais maduras e a luz se vai coando de uma quietude quente onde as formas ganham um relevo suave e a nudez fica mais vestida – apetece sempre esse vinho da lenda que foi Omar Khayyam. Na sua Pérsia natal ele representa a herança da cultura grega numa sociedade muçulmana, onde nasce em 1048 para levar uma vida de sábio, de estudioso e rigoroso observador. Para tanto lhe valera uma pensão vitalícia que lhe permitira uma imensa criatividade e deleite intelectual. Um pouco isolado das tradições religiosas e filosóficas da época, Sufistas e Islamitas, não menos redutor se torna o epíteto de poeta do vinho dada a sua perspetiva universalista. Há um panteísmo filosófico, resultado hedonista da sua herança helénica, acerca do maravilhamento do instante e da hora que passa elevado a arte de viver, talvez um pan-helénico em terreno nada conflituoso para a sua energia poética. Vejamos que mesmo assim o Sufismo também introduz muitas notas sonantes na sua poesia no que diz respeito ao amor e a uma busca da pobreza que facilite o não andar agarrado às sombras ilusórias da vida. Aqui aproxima-se deste estado de coisas e leva até ao seu diálogo a influência pois, como bem sabemos, beber vinho não é prática islâmica. Um deus báquico nascido na bela Pérsia que vai escrever as suas” rubaiyat”, que são uma renovação da poesia persa e que têm como princípio estilístico uma separação das formas tradicionais. Obviamente que tais deslocamentos estilísticos se tornaram não muito ortodoxos face à religião oficial, o que não as fez menos populares. “Ruba’i “significa pequena composição e usamo-la no plural, aproximando-se sem dúvida às influencias orientalistas do Haiku, mais epigramática, talvez, mas fazendo jus a uma grande síntese de linguagem. Usamo-la como a base de uma máxima estética ou de um efeito, de uma moral contida em forma de sabedoria. É efectivamente a antítese da nossa forma de dizer tão repleta de argumentos que enumera até ao absurdo, dando por isso voz aos alicerces que gostam nos interstícios de ficar na sombra como um mecanismo que utilizamos para chegar a uma mais condensada conclusão. Talvez tivessem o dom da economia e, sabendo do gosto destes povos por gatos, mais não quisessem em termos falantes do que assemelharem-se-lhes no enigma e na solidez essencial. Já os poetas árabes do Al-Andaluz ilustram uma contenção que nos inebria, uma mesura linguística que nos deixa surpreendidos. Andam distantes ainda deste registo, mas ambas as fontes parecem conhecerem-se. Dir-se-ia que nem é o intimismo da modalidade que os acalenta, o lado confessional dos estados de espírito ou a razão de um desejo, mas toda uma subtil arquitectura de saberes e sentires, onde no meio vamos encontrar uma maravilhosa noção de Civilização. Todos parecem cantar, para além de si, uma música cujo significado semântico- acústico diz tudo acerca do valor maior do poema. Vamos encontrar, por vias quantas vezes dolorosas pela mudança de registo, estas influências nas « Cantigas de Amigo», uma esteira de vinhos paralelos nos trazem com nitidez à lembrança toda a geometria das fórmulas, talvez por que agora o vinho nos evola na sua deidade de motor de uma estirpe onde estas coisas aconteceram. Talvez por isso a nossa vida inteira nestas margens do mundo tenha um registo geográfico muito perto do Jardim que os tempos na sua transgressão não conseguem sonegar. O vinho é um produto alquímico feito de solo e sol, desse casamento, e transplantá-lo não será fazê-lo melhor nem dará a mesma cepa destas tão ilustres taças. Tudo se pode fazer, é certo, até melhor que o original, mas quem faz a “coisa” imperfeita e bela só mesmo alguns, nestas, como noutras coisas, não se procura a perfeição, mas sim a plenitude, que ser-se, é, tudo aquilo que se opõe a toda a prática de um perfeccionismo desenraizado. Se o mundo se transformasse numa vinha, seríamos então todos descendentes de Noé. O sistema de castas, hoje mesmo só serve para os vinhos, sendo também lendárias as formas que as designam e as vastas descrições de que são feitas. Nós, cujo produto reverte para a estatística do mundo, já não somos uma casta, mas uma espécie aparentemente transformável. A alteração da percepção é também uma via de sublimação espiritual e o exercício da sua prática remete-nos para outros estados de consciência moldados pela natureza das opções estilísticas. Somos herdeiros mas não reféns daquilo que encontrámos já feito e dito como definição, nós vamos em busca, formamos e acrescentamos ao tecido do realizado mais realidade. Não interessa a arma secreta nem a dúvida sempre metódica, que duvidar não é fazer, nem o secretismo maior anda escondido, nós precisamos do nosso tempo de vida para deixar a vida mais longa sem nós. Estamos com certeza ainda aqui nos augúrios do tempo, sem a demonologia e as portas fechadas dos fantasmas do ego dadas por alucinogénios – aquela árvore que nos disseram para não tocar. Aqui ainda a vinha é sagrada e como tal o espectro não se produz, nem as brasas da loucura nos engolem com a fantasmagórica sombra de nós. Estamos num outro registo no qual, quem sabe, a psique tão cara aos homens do nossos dias estava como que adormecida nas portas do cérebro e da alma: o mal era outro e tinha também contornos menos maus, suponho, que o tal mal procurado na escada funda que vai para os nossos abismos. Por isso, aos primeiros alvores do Outono voltamo-nos para a Primavera da Civilização onde temos condensadas todas as lendas, os frutos maduros e a beberagem sadia e, enquanto esta taça nos for dada como um desígnio a manter, jamais esqueceremos de lembrar aos vindouros a casta maravilhosa de que foram feitos os Povos. Por isso: Dissimulo a minha tristeza, porque as aves feridas se escondem para morrer. Vinho! Escuta os meus gracejos! Vinho, rosas, cantos de alaúde e a tua indiferença à minha tristeza, ó bem-amada!
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasBoca do inferno «Afastai-vos de mim que aguardo sem boca; aos vossos pés nasci, porém vós me perdestes; bem demais com o meu fogo demarquei o meu reino…. » René Char – posta- scriptum. (Furor e Mistério) [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]guardar o tempo certo, estar mansamente escutando as gentes, ver nelas toda a gente -quaisquer pessoas – que estas são um coro, uma ladainha grega de choro, sem a trágica profecia. Deixá-las debruçarem-se na soberba, na imensa e difusa consubstancialização da sua espuma, das suas névoas, dos seus saberes, dos seus deteres, que, nada se propagará para além desse instante de dolo, gigante bolo, argamassa das horas. Há muita vacuidade nestes tempos! Metade do que se anda a fazer é inútil e uma grande parte não serve para nos alegrarmos tampouco. Estamos assim, sempre expectantes que algo mais novo do que o novíssimo instante nos preceda e de tal forma estamos confiantes que o mundo tem como factor principal o surpreender-nos, que não nos interrogamos da farsa da “imaginação” decalcada em contínuas representações sem o menor interesse. A vida como representação e “performance” tende a ser uma tendência que não entende o rigor e a quem se destina. Nas coisas simples há que ser simples, nas coisas ordeiras há que ser recto, nas coisas básicas há que ser prático, mas a avaria da complexidade permanente é talvez o mais notório elemento de uma máquina louca onde todos por uma razão qualquer se atropelam para escrever, dizer, pensar a melhor coisa. Uma forma de viver que cansa, só de a pensar – que a forma de nos darmos é uma competição atenta – aturada, programada. Ora, tudo isto retira liberdade de expressão, espontaneidade , profundidade a toda a constelação da inventividade pura. Já sabemos por vezes como os livros esgotam e quem os faz tão prolíficos nas vendas, as coisas que se fazem para resultar na fonte das estatística! Eles andam aí, esses “escritores” que nos perguntamos o que falhou para aqueles semblantes não negarem uma coisa que é da ordem da blasfémia comportamental. Mas não só destes obreiros estamos povoados: há os recintos dos obreiros, que ora estão em Centros Comerciais, ora em Bancos como as Caixas, ora ali, ora acolá…. E, nestes antros de sub-desenvolta vida cultural nos vamos amarfanhando até ao ponto da renúncia. Tudo se faz por inscrições e por altas paragonas que dizem «Esgotado» para reverterem à sociedade o bem que esta lhes fez, transferem para as pobres consciências, delas, espaços que não lembram ao Diabo. Ao Diabo do dito interesse do saber. Uma escolta de propósitos propagandísticos e mesmo publicitários, se reúne nas bordas dos eventos. Não são estes os Festivais Medievais em que toda a gente se mascara de Afonso Sanches, Urracas ou Joaquinas, estando para saber o manifesto interesse de tanta figuração em volta de um Mosteiro, Templo, ou outras coisas: tudo o que não passe por uma ardilosa representação parece aos olhos fatigados e públicos, de descoroçoado interesse, pois que a abstracção não foi desenvolvida para uma arquitectura de pensamento que relegue para a imanação somente: é preciso qualquer fenómeno visual; e entre doces, bordados, cornetas e assobios, tudo é Cultura, ou seja, a vastidão é tanta que a Cultura já nem se sabe às páginas tantas onde anda e em que sentido transporta os seus grandes afãs. Vivemos alquebrantados de cultura de culto duvidoso: quanto aos terreiros, quem nos dera serem de Santo, aquele sincronismo deveras cultural entre a tradição europeia, africana e índia, mas nada disso! Somos de um tempo em que falavam os mestres, entravam as gentes, sentavam-se todos, nem que fosse ao colo, nem que fosse na pedra, nem que fosse na mesa, não se deixava ninguém de fora, havia o manifesto contacto de que os lugares são coisas irrisórias face ao que íamos escutar e, porque todos tinhamos os mesmos ouvidos, o amor de todos pela audição, trabalhava em grupo que se auto-regulava para obter o mesmo fim. Depois, as bocas abrem-se mas nós já estamos tão bem, que deixámos de ser a sala cheia e o calor de todos, para darmos encantados as boas vindas aos discursos. Era assim, entre deslumbre e vida simples, entre estar e partilhar, entre tecer e beber, que a Cultura, esse elo feito de interesses conjuntos, de muito labor e sintonia, nos convocava para as fontes. Pessoa muito aborrecido estava e sabe-se o quanto era apreciador de literatura criminal e faz aquela bela armação com Crowley fazendo-o desaparecer lá para a Boca do Inferno. Ambos se divertiram imenso, aliás, ambos eram grandes poetas, esse dom embate no outro e produz coisas inovadoras mesmo que sejam estranhas. Sabe-se que andavam mesmo embeiçados pela Dama Escarlate, a companheira de Crowley, tendo mesmo erotizado Pessoa a um grau que nunca até então lhe tinha sido visto. Fizeram coisas criativas e giras, como se diz em linguagem chã, sem precisarem de grandes recintos e inscrições para escutar qualquer palestrante que duvido os pudesse manter quietos nas cadeiras. Tudo isto se passou há um século, num tempo atrasado, como se diz e melhor se pensa, tão atrasado, que neste adiantamento onde nos situamos nem sabemos se existiu. Poder-lhe-íamos chamar a tão inesperado instante uma «Divina Comédia» mas dado que a laicidade obriga e a comédia é farsa, temos então uma órbita alargada de divertimento cosmopolita através de uma população informe que escuta o «Homem que aguarda sem boca» o que «O dos ouvidos sem tímpanos há-de escutar» “Porém, vós me perdeste”, diz o Homem sem boca de Char “e a vossos pés nasci.” O Homem sem Boca não foi mais avistado entre as gentes do seu país. Saiu, fechou o postigo do tempo e ninguém mais o ouviu. Nós tinhamos todo o interesse em gritar: “Afastai-vos de Nós que aguardamos sem Boca”. Somos um buraco rochoso por onde os magos desertam nas águas. “ (…) sem companhia, mudos e sozinhos, íamos, um atrás do outro e outro no topo, como frades menores pelos caminhos (…)” Dante, Divina Comédia, Canto XXIII
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTerra Queimada [dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]ostamos dos destinos que se desprendem das coisas que herdaram, dos que numa só existência sobem as montanhas com seus cascos, por vezes ensanguentados, e sobem-nas, não para ficarem mais altos, mas por que na montanha não há ninguém. Ninguém para nos afastar da lembrança, nada para nos entreter, coisa alguma que nos dite as horas para além do Sol invencível repetindo-se em disco e pondo-se radioso. Olhar o nosso rosto é quase ver um deus, e se falarmos às pedras elas seguramente nos responderão, e se falarmos às ervas elas cantam, e se chegarmos de longe toda a paisagem nos saudará. É um plano cósmico de taumaturgos tempos onde tudo comunica. Na ânsia de fugir à turba, Moisés foi para o Sinai, Jesus para o deserto, Buda para debaixo de uma árvore, Francisco foi falar com os lobos, e todos a pretexto se foram para longe com acasos que acabaram por ser leis, pois tudo valia a pena desde que descansassem junto das cobras, das nuvens e dos dentes afiados. Estar disponível para prosseguir surge-nos como um desafio assombroso, pois caso não o saibamos trilhar o próprio destino se esfarrapa no asfalto dos dias. Nem sempre entramos num templo dourado como nos nossos sonhos, que contra todas as probabilidades, alguns e algures, souberam e soubéramos conquistar, Moisés nunca entrou na Terra Prometida, apenas dela a visão dourada….. entrar nas coisas é uma conquista do real, pois há quem entre pelo real adentro sem nunca ter tido um sonho, uma vontade, uma ânsia de um depois, há quem se sente nos Banquetes do Mundo como um jumento entre catedrais, que não ultrapassará o estádio do verme que se deleita. Esgrimamos todos os dias a vida, o nosso sabre está gasto, os nossos reflexos agem num desassossego de vozes que não conseguimos filtrar…a vertigem impele-nos para baixo, porque os abismos são fundos e atrativos na passagem, e nessa marcha há vagas de condenados a quem ilusoriamente damos as mãos numa velocidade tão medonha que parecemos parados, os nossos sentidos mais finos desaparecem, vamos como que atraídos por força magnética, se nos tocarem arrancam-nos pedaços, se nos largarem de mão, não reparamos na mão que se segue, que nunca é aquela que faz reverter a marcha. O estrado deste estertor é um enigma, pois que ninguém de lá volta para dizer como foi, nada contraria a gravidade e não se faz subir de novo a maçã à árvore. Séquitos de filoxeras esverdeadas são postas nas trincheiras coladas como lapas aos pedregulhos de uma nação dinástica, de um país de sátiros, uma lei da descendência ao serviço da causa pública, uma ralé arcaica e branda, plena de insidiosos propósitos que ofendem toda a estrutura. Os comedores de pedras, os grandes ogres do fantástico que se emolam numa impune frialdade . …. Quando resolvemos fugir, nem uma fonte encontramos como retábulo, ordenham-se em pastos os rebanhos que os lobos já não comem- nem os bebedores de leite têm sede-: aquela paisagem das «Falésias de Mármore» de Ernest Junger em que as serpentes emplumadas vinham pela noite beber leite, elas tiravam-no a alguém, mas perante o fascínio de tal visão quem era o homem para matar aquela cena quase divina? Que espécie de divindade somos nós para retirarmos o manjar das víboras? A Terra não fora pensada para a proliferação em massa do Homem, não fôramos eleitos para tal finalidade e fomos construindo um casulo à base de todas as distâncias. Estar com o Homem é estar desprotegido «Ah, o Homem, o Homem, o Homem é o que precisa ser vencido.» Do alto de uma ideia transformada não desçamos nunca mais, o que vai ruir está programado, e tudo ruirá. Saber passar o estreito sem nos questionarmos do sentido pois que são raros os resgatados, e como sempre, lhes acontece algo como nos raptos: não fora assim com Elias no seu carro de fogo? Depois de uma longa depressão ele partira de forma abrupta, sem paragem, para nunca mais não ser visto. O fogo alastra, a harmonia desfez-se , servir doravante com taças frias, levantar voo e deixar os restos para os chacais e as hienas, cobrir de negro as mesas, e que venham comer as últimas iguarias, não olhar para trás, que as necrópoles são chagas a céu aberto. – Um esplendor luminoso irrompeu pela claridade azulada do jardim, eram as víboras lanceoladas que, fulgurando como relâmpagos, saíam das suas fendas. Deslizavam por sobre os canteiros como correias reluzentes de um chicote, e o ímpeto com que progrediam provocava um torvelinho de pétalas – «Sobre as falésias de mármore». Estamos na tranquila Estação e deste Verão restam cinzas ainda em brasa… restos de fuligem, muito ignição na frente quente desta mudança climatérica, vivemos a sede, a fúria, a imensidão. Dilatados e expandidos, a nossa alma ficou a um canto como os vestidos antigos, e, nestes instantes apetece vesti-la de Baile e festejar o seu regresso, cansados de ardor e nudez, à boa maneira das víboras bebedoras de leite que pelos caminhos foram largando a pele. Ernest Junger foi um veterano de guerra. Tendo sido aliciado vezes sem conta para o lado nazi, não só resistiu, como também se recusou a entrar para a Academia alemã de poesia dominada por eles. Não foi fácil tais opções para um homem que teria certamente sido mais bafejado perante uma sociedade que o apreciava, após o atentado a Hitler e a prisão do filho Ernest por oposição aquele, Junger deixa o exército. O estudioso de insectos, que via o mundo a partir de orientações microcelulares, inspira-nos pela coragem, aventura e brilhantismo ao lidar com títulos e temáticas. Se uns são «Falésias de Mármore», outras são «Abelhas de vidro», e sempre que nos diz que “o melhor concede-nos os deuses gratuitamente.” Vem alertar-nos agora para as múltiplas etapas do Incêndio e outra vez seria bom percorrermos-lhes as rotas, não esquecer o seu trilho e não estarmos tão atentos à ginástica, que com ferimentos de guerra, exílios, injustiças e duras batalhas, o corajoso Junger chegou aos cem anos. E porque a «Terra Queimada» se reergue e a vida retoma o ciclo, lembremos o terror de Junger acerca do Nacional-Socialismo em marcha: «Era sobretudo o espírito plebeu do movimento que lhe repugnava. O instinto aristocrático de Junger era de uma finura delicadíssima». Esta intuição está plasmada em «Falésias de Mármore».
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasUm fonema para ti [dropcap style=’circle’]”[/dropcap]A língua que transporto é um veredicto e não sei falar.» O aparelho fonador fica assim como longa estrada que nos permitiu uma evolução complexa e que fez do cérebro um lugar maior, uma “máquina” poderosa. Esta evolução transversal deu-nos o advento de algo talvez não previsto nos ciclos da evolução e foi no seu aperfeiçoamento constante que outras associações se formaram, como os rios, galgando os seus deltas, correndo para os mares, formando a paisagem. Esta enorme massa associativa define a busca de um sopro que foi dado como emanação, registo primordial, e continha no seu núcleo todo o conhecimento do Universo. Foi para nós uma aturada desconstrução a sua análise, legada pelo «Verbo», aquele que no princípio foi e ainda não sabemos exactamente como e como foi. É por isto mesmo que a linguagem continua a ser o mais misterioso dos processos e quem a usa acrescenta ao homem, homem novo, formas novas, coisas outras, na medida em que se Deus é o Verbo, ele se faz em nós e nós fazemo-lo a ele numa leitura só possível com a descoberta que é o casamento entre as partes. Afinal, tudo se une para o encontro, todas as coisas se projectam para formar outras e das outras nascem coisas inimagináveis e ao nascerem acontecem, dado que é fazendo que se vai criando, que se vê, andando que se encontra. Os signos visuais que nos são dados pelo alfabeto são composições abstractas que materializamos em formatos e sons para designarmos as coisas, coisas essas, porventura inomináveis, mas que precisamos para a Ordem cósmica da nossa já tão complexa natureza, que não fez mais do que laboriosamente criar até os seus obstáculos para se permitir viver. A ilusão de «Nós» forjou uma espécie só possível com um desconcertante labor, que é o ter-se separado da origem, esquecendo os pressupostos. Não por acaso, Babel existe nos nossos códigos, a espécie em movimento separada por uma técnica de puro desaire. Foi preciso registar tamanho e laborioso movimento, dar dele conhecimento, conhecimento esse que requer a prática constante do aperfeiçoar decalcado em vezes tais que, da primeira à última interpretação, se regista apenas o mote; e a história continua como se de uma “fábrica” louca estivéssemos munidos sem saber para onde vai e em que circunstância pará-la. A tensão permanente de uma vogal que encha toda a cavidade bocal, de um som que se altere nos músculos falantes, faz-nos sentinelas e fontes de transformação incapazes de ser domadas por um cânone que amenize tanta Pandora registadora de uma consciência que, aos poucos, nos foi dominando. Explicar só não serve, é preciso entender. Entender talvez que cada sopro destes pode ser de facto uma potência direccionada para um ilimitado poder e se deve ter dele um secreto medo, dado que a leveza primeva permanecerá como o último segredo por revelar: e aqui reside outro ardente mistério: quem fala melhor? O que deixa ao vento o sopro, ou quem direccionado e firme o leva pela consciência? Em ambos os casos, falta no tempo presente uma disciplina formativa que é a Retórica. Parece até demasiado pomposo, mas não é, na medida em que há efectivamente um lugar mágico na voz e ela pode ser inibidora do entendimento se por agudos e graves nos for fornecido um ruído doente, febril ou cabisbaixo. Se monocordicamente nos anunciarmos “matando” o receptor e ficando assim a alma tão morta quanto a crença continuada da leiga formação dos falantes de que ela nem existe, o barulho das coisas, o tormento das vozes, as “hormonas” discursivas, o falatório, o diz que pensa, o fale agora, o não dito, o interdito… o amontoado, o vociferado, as conjugações, os acordos, os desacordos, criam um campo de guerra onde a palavra não é o vínculo que define a sua essência em nós. Não por acaso o canto e o poema, as formas de comunicar respeitante ao tratamento da linguagem, formavam disciplinas que se requeriam como princípio moral. Elas ordenavam a consciência num semblante harmonioso de e para o quê toda a manifestação serviria: começou até como fonte de sobrevivência, acalmando as feras. É muito ilusória a propagação da comunicação que mantemos e creio que, ao continuarmos assim, não muito longe haverá uma forma telepática cujo aparelho ainda não desenvolvido pode começar a fazer anatomias diferentes. Ele terá o seu vocabulário e a sua métrica, e o som induzi-lo-á a outra compreensão do entendimento. Mas, magoado que foi todo o aparelho fonador e sujeito a repressões audíveis, tudo se tornou neste domínio e no momento da nossa evolução, pesado demais e destituído dos princípios fundamentais, que é já com algum desgosto que nos abeiramos dos componentes falantes. Se a poesia se tornou matéria vã e é tantas vezes constituída por aqueles que dela não lhe conhecem a gravidade, é por causa de um desmoronar de noções em série, que vê numa liberdade sem transcendência a forma de anunciar, que existe sem a noção de que a existência não escuta os autoproclamados viventes. Na medida em que existir não supõe dizer-se o que se quer, mas dizer o que nos “dão” para dizer, nós continuamos a ser nada, perante as coisas que de bom grado passam para se revelarem. Assim como o estar mais receptivo que defensivo, mais disponível que interdito, mais confiante que céptico, menos musculado e mais dinâmico, ser a única saída possível. Uma transparência de página volante, as páginas estão soltas em tudo que fazemos e só lemos o que a consciência pode alcançar…. Talvez saibamos todos muito pouco, pois o saber é ainda casar, empatia, ternura pelas fontes. Há coisas bem agrestes que devemos saber, dado que a técnica é o martelo de Thor com que iremos forjar os metais. Se estivermos atentos aos barulhos feitos pelos jovens, entendemos que está gasto o dom da linguagem, o que não quer dizer que não tenham desenvolvido outro e que essa anatomia herdada se reajuste como o fim do conflito perante a mecânica do som. “O Verbo que te leva e me leva a todas as coisas. Levo-o eu também e o recolho em mim.” “Os jornais são já livros feitos em comum. «O escrever em comum» é um sintoma interessante, que faz prever um grande aperfeiçoamento na arte da escrita. Talvez um dia se escreva, se pense, se aja em massa. Comunas inteiras, países, empreenderão uma obra.” (Novalis)
Amélia Vieira h | Artes, Letras e Ideias“Fogos” de Marguerite Yourcenar [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste é o Verão de todos os calores, de todas as ignições, o Estio abrasador, a chama mais alta que a temperatura ambiente e a combustão de todas as nossas células que tentaram a catarse de um grande encontro no limite das nossas forças. Gosto do Verão! Do extremo calor, da luz que cega, de não ter roupas, de não ter fome, de beber, de cheirar o quente que vem do fundo de um deserto… mas foi este Verão revelador do quanto tudo na Terra se radicaliza de modo a testar capacidades para se habitar ainda nela. O país ardeu, o país pequeno e esguio com mar por fronteira tem metade da sua área ardida. Nem se devia dizer isto desta maneira dado que nos envergonha a simples noção de o constatarmos. Os meios e os socorros, a planificação e as políticas de ordenamento do território falharam em todas as frentes e, caso não fosse a heroicidade sem tréguas dos bombeiros, creio que tínhamos ardido todos. Foi um “rasgão” no tecido social tão fragilizado por realidades tão danosas e que pôs a descoberto a ineficácia dos sistemas e a inutilidade dos governos. Continuar com esta gente pode-se tornar fatal para cada cidadão, estas políticas binárias, estes imensos desastres financeiros, esta deriva, este aleatório sentido das coisas, que já não é passível de ser mantido, mesmo que nos esqueçamos que muitas das vítimas foram adeptas indefesas da sua própria derrocada. Nas cidades viveu-se o tampão do fumo, a imensa carapaça do ar que trazia o obscuro propósito de nos sufocar – não – não foi preciso terrorismo nenhum: este foi o terrorismo interno que tivemos de enfrentar. A matéria da combustão é sempre alquímica. O Fogo é um elemento que concentra uma imensa variedade de significados paradoxais e nunca nos deixa indiferentes, nem adormecer face à sua acção física ou emocional. Ele galvaniza tudo, ele amplia, destrói, funde e ajuda os processos a um sucessivo grau de purificação. Daí que a paixão, sendo de elemento fogoso, seja tão importante para curar ou reacender as zonas mortas em nós. Esse processo, creio ser da ordem da saúde pura, do curar as “sarnas” pesadas das doces tendências dos pequenos afectos. E também pode muito bem testemunhar o lado arrasador das cinzas e a temperatura a que ficamos depois de um incêndio. Iremos precisar das Lágrimas, da divina maciez do Dom das Lágrimas e como Fénix renascer daquele impacto tão forte para as nossas naturezas corporais e emocionais. É certo que vamos ardendo, vamo-nos gastando num fogo, ora lento, ora acelerado, mas tudo em nós tende um dia a romper o fio que o liga ao acto animado e, mesmo assim, a morte não existe, porque tudo entra de novo no combusto da tormenta dos materiais. Talvez a alma, que é uma subtileza dada ao corpo, um fio límpido de luz, fogo transmutado, se evole e se vá sem uma só mácula deste local onde encerrada andou norteando as brasas; inspiramo-la ao nascer, expiramo-la na morte. * «Fogos» é um livro de prosa lírica e novela inspirado no grande rescaldo de uma paixão de Marguerite Yourcenar. Ela vai revisitar as grandes lendas amorosas do passado e o seu profundo e culto sentido do dever de esclarecer levam-na a Aquiles, Fedra, Antígona, Fédon, Safo, Madalena, para nos mostrar da intemporalidade de tal estado e da beleza que pode provocar em quem por maus Fados se foi dela sentido um elemento digno e insuperável perante todas as outras matérias. Começa com « Fedra ou o Desespero» e diz assim: “Fedra tudo consuma. Abandona a mãe ao touro, a irmã à solidão: tais formas de amor não lhe interessam. Abandona o seu país do mesmo modo que renunciamos aos sonhos; renega a família, tal como vendemos os objectos usados. Naquele meio em que a inocência é um crime.” Mais para a frente, em «Pátroclo ou o Destino», os amores de Pentesileia e Aquiles são de uma densidade poética que nos arrasa: dois chefes guerreiros possuídos por um ódio inaugural apaixonam-se em pleno campo de batalha, mas são guerreiros, ninguém pode desistir do mérito de encaminhar os seus exércitos para a vitória e, entreligando tempos, a rainha tomba, e Aquiles soluça segurando a cabeça daquela que era digna de ser um amigo. Pois era o único ser do mundo que se assemelhava a Pátroclo: “Aquiles defendia as pedras e o cimento que serviam para construir os túmulos. Quando o incêndio desceu das florestas de Ida e veio até ao porto lamber o ventre dos navios, Aquiles tomou, contra os troncos, os mastros e as velas, o partido do fogo que não teme abraçar os mortos no leito mortal das fogueiras” “Queimada pelo excesso de fogos… Animal fatigado, um chicote em chamas golpeia-me os rins. Reencontrei o verdadeiro sentido das metáforas dos poetas. Desperto todas as noites no incêndio do meu próprio sangue.” Toda a fuligem de « Fogos» nos leva longe e nos bascula na ofensa grave dos dias tépidos, todo ele nos traz confessionalmente o tratado de um esforço olímpico da alma e do corpo que carregam belezas tais que só desfazendo-se delas podem continuar a marcha. Quando pensamos na brochura das psicanálises sem verve e consciência, sabemos também por que o talento acabou. O génio da transfiguração! Pois como bem diz Yourcenar “deixar de ser amado é ficar invisível.” “Fazer versos, digo, acender Fogueiras”, Natália Correia. Talvez haja um lado pirótico nas demonstrações poéticas a que não sejam alheias as noções de calor extremo quando os textos se fazem, e ao fazê-los nos abrasem tanto que se nada fizermos para parar, neles ficamos plasmados como grandes mortalhas incandescentes. Já Deus se insurgia como um Fogo Abrasador! Em «Antígona ou a escolha» começa com a noção de Nietzsche da hora sem sombra: “que diz o meio-dia profundo? O ódio paira sobre Tebas como um sol terrível.” Foi desta matéria que os dias de Estio foram feitos tentando olhar também os gatos, quais répteis carnívoros prostrados ao sol abrasador, uma centelha de raios florescentes nas pupilas imóveis… o gozo hermético que este animal nocturno adopta como se um deus egípcio fosse nele Rá e a divindade o próprio disco solar dos seus olhos intactos. Desce o Verão mansamente e em « Maria Madalena ou a Salvação» começamos a entrar nas frescas feridas que a paixão deixou depois dos estigmas em carne viva. Este pequeno conto apazigua assim a tensão passional atravessada pela genial Yourcenar aos trinta e dois anos. E o tempo serena enfim, tão cansado quanto renovado de uma qualquer coisa que a mente e os sentidos não saberão jamais explicar. Como é o tempo das coisas vividas, e das coisas fruídas, e de como ele, todo, em trança e laço, é uma equação tamanha que ficamos agora a contemplar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO campo de favas [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz-se que Pitágoras acreditava que a alma dos mortos recolhia ao “olho” das favas e nunca passava por cima de um campo onde crescessem, mesmo que fugisse de um inimigo. Ainda hoje há muita gente que não gosta delas por uma questão enigmática que nunca sabe explicar, pois que são óptimas, alimentícias, dadas aos cavalos para os fortalecer, mas Pitágoras saberia certamente do segredo que não deixava tragá-las, tendo mesmo domesticado um boi para que não pastasse nos seus terrenos fazendo-o assim escapar do matadouro e confiando-o ao templo de Hera. O senhor do célebre teorema era um homem incomum: diz-se que tinha uma notável beleza e vestia sempre de branca lã, alimentando-se de pão, de mel e frutos secos; é mestre de uma congregação de vida austera e aristocrática e era eloquente como poucos. Ademais do dom da vidência, a lenda atribui-lhe uma ascendência sobre os animais, amansando mesmo uma ursa terrível que aterrorizava as populações . Este mestre é o ancestral de um Francisco de Assis, um senhor das noves esferas celestes que rivaliza com os «Cânticos das Criaturas» na beleza de um Universo animado e que consegue graças a elevados dons de percepção escutar-lhe a música. A Itália é aqui o lugar onde as duas ordens florescem: os pitagóricos eram conhecidos pela sua imagem de pobres e marginais e o não usarem sapatos bem como uma longa cabeleira, vegetarianos; apenas lhes era impedido comerem peixes de cauda negra, uma semelhança com os Cátaros, que vieram de Itália e povoaram o sul de França. Pitágoras, diz-se, era um amigo muito querido, ele estabelece que entre os amigos tudo é comum: “um amigo é outro eu”, ficando lendária esta sua aliança com o próximo, e, se Francisco era o mestre, ele nem por isso deixou de ser um entre todos aqueles que lhe eram discípulos. São níveis de uma grande totalidade, com ensinamentos universalistas e com gente que partilha escrupulosamente os segredos. Pensemos nestas coisas hoje, e como, e onde, se pode encontrar amigos assim de forma inequívoca, de tamanha união na composição do todo e que saibam calar o que não deve ser revelado? Pensemos, sim, mas os tempos têm os seus códigos e também a forma de dizer o não dito, de realizarem teoremas com a geometria do interesse de cada membro: pois que querem os membros de todos as sociedades mais fechadas? Destas nossas contemporâneas: poder! Não um poder de indagar estrelas, saber do Cântico do Universo, da chave dos mistérios, das leituras dos poemas; querem poder económico, querem projecção mediática, essa forma magnética pouco desenvolvida que dá a todos uma vaga semelhança a um Teatros de Fantoches; ali não há a frugal essência de uma imanente condição, mas um excesso de usura só comparado a um acto predador. Quando os conclaves maçónicos convidam pessoas, hoje, a inquirição é feita à boa maneira dos antigos trabalhadores das Polícias Secretas, com a tónica no capital e com aquela figura que vem sondar o novo e possível membro, que da mesma forma que aparece sem revelar fontes, desaparece, desconfiando nós da técnica e da organização de quem faz os “testes”. Por outro lado, um pequeno país de grandes delatores não será o local mais propício a uma organização amorosa de carácter iniciático e mesmo de novas buscas de um saber de fundo, pois mesmo que não o faça, até pelo seu modo transversal, há aquela ideia sociológica de que tudo é passível de ser entrevistado, ou seja, transmitido. O que restou do mundo forte dos afectos inteligentes parece não ocupar grande espaço na nossa consciência que reclama por dados financeiros estáveis e vida individual como a maior conquista alguma vez realizada na organização Humana, de resto, tudo é paralelo. É certo que não há abelhas para fazerem mel… assim… legumes e frutos estão em prateleiras, nós, em gavetas, os outros, competindo dentro do seu quadrado de hipóteses( não da hipotenusas) para fazerem a obra maior de todos os tempos, à revelia dos próprios tempos, se para tanto forem capazes. Entre um campo de favas verde e intocável vai a distância de muitas labaredas e já nem me lembro de tais campos… há coisas que morreram nas nossas fontes de reconhecimento. Nós pisamos a Terra inteira porque ela nos pertence e tanto faz serem favas como abrolhos, certamente que jamais suspeitaríamos que a alma é ígnea e quando vai para corpos vegetais continua fogo e somos nós apenas que nada reparamos. O facto de em nada destas coisas repararmos não quer dizer que não existam, e elas- provavelmente ainda existem- pelo simples facto de não termos, ou termos mesmo deixado de reparar nelas. Há uma cosmogonia muito Pitagórica que diz: “Todas as coisas são três, e o que constitui o valor de cada ser particular é a tríade formada pela inteligência, a força e o acaso.” Neste patamar onde começamos por campos férteis, intocáveis, sabemos o quanto o pensamento pitagórico funcionou com base em analogias com subtis correspondências que tanto inspiraram os poetas do mundo, e, posto que tudo é número e o número é ponto, estamos diante a científica experiência que engendra o espaço geométrico e físico. Que tem isto a ver com um campo de favas? Tudo. Afinal é lá que reside o mais emblemático do tecido imortal chamado alma e que de natureza ígnea se refresca na vegetal forma que parece um embrião fecundado. São estas interdições que fazem do mundo um local digno de observação a toda a hora, e, nem interessa tanto mestre de hoje em chãos pisados de Ordens e Graus que soletram a vacuidade da herança a que já não poderão responder, dado que ainda, e pitagoricamente, a alma estava na cabeça, depois, passou para o coração e agora está tão em baixa que pensamos que a matéria animada é apenas puro dejecto e volúpia. Por outro lado há quem desvende os segredos sacrificando a vida, e aquele que protege os mistérios da alma para ganhar um novo nascimento. “Matematizando” ao invés de “materializando” seria a expressão certa para quem em forte desejo de não pisar nem campos de favas, nem sarças ardentes, retivesse da existência a sua parte imperecível e lega-se uma pequena pedra para a construção e reconstrução deste enorme “puzzle” cujo “Arquitecto do Mundo” se filia à beira de uma habitação onde as janelas não abrem para a natureza incerta que é causa sempre de morte ao não saber juntar o começo e o fim. Não magicar nem arquitectar: vamos consagrar: este é o nosso campo de favas.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTodo o Atlântico [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Atlântico é como uma estrada de Atlas: ele corta continentes e nele sempre o mesmo verde-mar, o mesmo drama, a mesma costa agreste. Ele paira-nos como aqueles ventos que se cruzam em grito, nos sussurra e nos fala e toda a paisagem contínua como selva atlântica até às densas brumas. É em muitas costas de um profundo silêncio e grandeza agrestes. Sem a tranquila noção de um útero como o Mar Mediterrânico, o Atlântico abre para o mundo como uma boca indivisa e um lúgubre tormento de marear, voltado a norte. Temos medo, ele arranca-nos o sono com o ruído da sua proximidade de uma grandeza que cilindra a paz dos seres. Penso que ninguém é feliz junto a ele. As mulheres sofrem muitas vezes da função hirsuta que lhes chega do denso iodo e as transformam em Medusas desfiguradas e de dura cerviz. Os homens secam as carnes num sal que destempera toda a pele, que têm como um lenho, e estas povoações, peninsulares, albergam fantasmas e não são susceptíveis de maciez. Para sul ele torna-se mais macio, mais doce, menos vulcânico, talvez, e sem dúvida por isso lhe estão associados os mais alegres efeitos e quase a rumar para África fiquem para trás as densas manifestações do seu corpo de gesso, da sua imensa transfiguração como Ventre da Baleia. Por isso gostamos de rumar para o sul de todos os sóis, para lhe fugirmos onde ele está mais sombrio. Bafejado pelas correntes do Golfo, ele torna-se um Mar, mas um mar onde já os Cânticos se podem ouvir sem a urdidura da gemida força da sua massa poderosa. O calor produz um reconfortante silêncio das funduras e talvez os vulcões sejam mesmo inaudíveis e por isso nos fascinem com tanta coisa que se vê em cintilação sem nos dizer dele mais nada. Entre a lava e o levante das ondas atlânticas este efeito talvez não nos atemorize tanto. Por vezes levam-nos os sonhos até ao mar cobalto, fundo azul-redondos fundos até aos encantos onde os deuses moram, vagueamos pela secura da costa com aquelas árvores que quase lhes mergulham dentro, toda a beleza da fronteira entre terra e céu e água nos parece uma dança, esse líquido que tem dentro as sereias que enlouquecem Ulisses, expulsam Orpheu, e à sua entrada tange a lira, pois é ainda o sonho líquido que dele ficou. — Mas o Atlântico é um soberbo corredor de monstros marinhos, tão imenso como a Via Láctea e jazendo de pujança fria a nossos pés. Talvez que a natureza de cada um de nós já não tenha um mapa anexo nos destinos a percorrer na viagem terrena mas, em todo o caso, não era este o implante que gostava de ter tido. Ainda agora, toda esta costa me ofende e perturba como um choro de harpias por detrás do verde azul — há todos os mortos e toda a força de um volume que há-de, em tempo impreciso, galgar a descarnada costa e suas audazes valentias de chamar a tais margens, terra; são chãos colossais e arenosos, mas não são ainda terra. Hoje, 24 de Agosto, há uma prática lusíada que equivale a um Jordão, mas as crianças não gostam das águas do oceano daqui e mergulhadas em ondas em números ímpares, depois de rondarem a vila de Bartolomeu do Mar, são atiradas ao denso e fundo escuro deste instante. Diz-se que lhes faz bem: lhes tira gaguez, cegueira, epilepsias, talvez sim, porque antes sacrificam uma galinha negra que também será atirada ao mar. Todo o terror quando superado vence o mal que lhe estava subjacente. Penso que não haja memória de um Jordão assim, nem das águas de Lesbos estarem tão revoltas que as belas não fizessem delas os seus espelhos. Narciso precisou de uma suavidade translúcida e parada para contemplar tão forte emoção: ser aquele por quem os elementos se apaixonavam. Os elementos por vezes reúnem-se para uma grande declaração de amor, assim como os sentidos todos concordarem na corrida para um encaixe perfeito entre partes. Chama-se a isso talvez Amor, mas é certamente um sistema de simpatias que de tão harmónicas formam o Encontro. Nestas paragens oceânicas tudo se perde… Entre o pinhal de Leiria e a costa oeste há uma desassossegada vibração que nos domina, aquele mar deveria ter entrado sem impedimento, nós devíamos não ter sustentado a costa e com ela ter deitado ao mar os últimos habitantes de uma orla tão primitiva quanto os dinossauros. Mas há reis, que sendo poetas, são mais que reis: são missões no altar dos tempos e talvez soubesse dos bens merecidos destas vertentes e daquele de que viria a restar como matéria prima e que lhe falou mais alto que todos os apelos de erosão. Passar rente a tudo isto não é fácil, olhar o Atlântico altivo e fero faz-nos uma angústia de morte e nem sempre estamos destituídos de memórias antigas, que nos levam ao colo pela infância onde tanto horror nos parecia paradoxalmente… belo. É a saudade que ficou de frutos silvestres como camarinhas, de tudo o que é ácido e amargo, para sarar as feridas onde o sal penetrou tão fundo que deixamos de chorar e percorremos estes locais como a mulher de Ló- Alfeizerão, o pão é dele — Estranhos topónimos, nomes, tipografias… Sodoma ainda é longe de Nazaré e nada mais seca e disseca que o peixe aberto e assado ao sol das ondas. Quando por artes de navegação aqueles povos semitas se deram conta destas costas agrestes, eles, que vinham segundo Homero do Mar Vermelho e do Golfo Pérsico, tendo depois florescido no belo Mediterrâneo, não andaram mais e na Finisterra de todos os ocasos marítimos assim se foram tornando sombras. Os rios ficam entre sonhos e entre rotas-Jordão, Litani, Tigre, Eufrates… os nossos ficam entre sombras, Tejo, Douro, Mondego… Litani! Foi nas suas margens que a escrita das antigas litanias floresceram e em Biblos se fundou a fina pasta para comer o Livro: Ezequiel 1- come este Livro…! 2- Então abri a boca, e ele me deu o rolo para comer. «Engole o Atlântico» e vi um Ser surgido das estrelas que engoliu de um trago o mar tamanho e dele também levou as nuvens que são nesta costa fria e dura, as eternas neblinas matinais. Este Oceano não gosta de suicidas, mesmo sendo assim, devolve-os às margens, e deixa-os sem a dignidade de uma sepultura no seu ventre, as mulheres de cabeça para baixo e os homens invariavelmente de cabeça para cima. Só naqueles barcos que não eram feito de madeiras do Líbano mas de juncos e carvalhos, se deleitava com os náufragos que ele mesmo fazia descer às suas funduras. Tem miragens dignas dos maiores poetas em visões cegas de antanho quando, ao largo nas noites perto do Solstício do Verão, levantavam blocos de Ilhas, e ao longe pareciam douradas… Pessoa nem delas se esquecera num ramo insular e lhes deixou de prestar o belo culto: “não sei se é sonho se realidade se uma mistura de sonho e vida aquela terra de suavidade que da orla esquerda do sul se olvida… É a que ansiamos. Não é com Ilhas de fim do mundo nem com palmares de sonho ou não que a alma cura seu mal profundo e o bem nos entra no coração… É em nós que é tudo! Aí, aí, meu ser é jovem e o amor sorri”. Ao largo atlântico de uma Ilha que esperamos ver um dia.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCaixa Geral de Depósitos [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem se aproxima do Campo Pequeno vê assomar no planalto contíguo um Templo, uma verdadeira obra faraónica, babilónica, com jardins desertos suspensos e vértices triangulares, uma opulência também de Templo Salomónico; perguntamos como, a que deus, a quem tão fantástica obra se erigiu e suborna toda a visão periférica se erguendo à altura de forte? A que Olimpo se destina, e qual a divindade que lhe preside, e nesta extemporânea interrogação, a transcendência se cala para sussurrar: ao dinheiro! Mas o dinheiro é ele uma divindade? Não. O dinheiro é poder, é substância, é jogo, é fome, é abuso, é implosão, é a grandiloquência sem a rectificativa análise de um ponto que a transcenda e lhe dê a tal particularidade de culto. Houve sempre divindades telúricas, teutónicas, que tinham como esfera de governação e domínio os lados mais densos da matéria. No Hades preside ainda um deus e Baco seria uma derivada da divindade do gozo na sua regência Dionisíaca onde se celebravam até as mais arrojadas manifestações e os cultos Luciferinos nas suas entradas de terreiros herméticos. Mas até o Paganismo foi discreto face aos seus cultos, e se dirigia para os outros que representavam a graduação da unidade boa a quem apelavam naqueles casos em que a vida não tem mais respostas, eram eles, nos seus claros Olimpos que atravessavam as mentes inquietas e as aglomeravam para a estranha façanha do Bem. Olhemos este caso CGD. Quem anima a vertente poderosa daquela fachada, daqueles longos metros de saturação em pedra, a que prestamos culto, quem nos absolverá num local daqueles? Para onde darão os subterrâneos do monstro? Câmaras funerárias? Bunkers? Cidades subterrâneas? Aquedutos que vão dar ao mar? Aquelas coisas parecem-me pretextos para outras bem mais pensadas: ora vejamos, um local assim está sem dúvida apetrechado para salvar alguém em caso de ruptura com o lado de fora, pois que são fortes, de Fortaleza, bem dizendo, e quanto à divindade que a anima, pois não há nenhuma, o dinheiro é o grande poder que uniformizou as massas que anteriormente ainda lutavam de forma fraseada nos locais de Vulcano. Dentro dele não está nenhuma anima, pois que por ele, e com ele, o que estava animado se foi. Erigido algo tão desprovido de captação litúrgica, fora planeada uma arquitectura muito, muito grande, para a escala do local e para se poder dizer: agora sou eu o deus para toda a eternidade! Tal como Urizien, que fazendo de tampão, isola o tempo. Por fora há receitas para muitos espectáculos e salas espectaculares, os artistas, os pensadores dobram a espinha para poder passar, não pelo buraco de uma agulha, que isso é mais para camelos, mas pela receita do tempo que a eles lhes dá receitas para acabarem de vez. Nós espreitamos para aquilo das laterais e parece de facto um princípio de sarcófago. Não há nada, pássaros, erva; há uma água que vem de um lugar e que repuxa para o nada, umas portas que nem Salomão, para guardar a Arca, poderia suspeitar que pudessem um dia vir a existir, mas a Arca tinha dois arlequins e a estranha energia que vinha de lá podia de certo fulminar os crentes impreparados. Mas era Deus que lá estava, ou assim se interpreta a chave da grande iniciação do passar das portas; aquilo ali, é de aterrorizar! O que guardará o Ventre da Baleia nos seus recônditos alçapões? Deus – eu senti – nunca lá pôs os pés, dado que aquilo nem sabe que tal entidade existe, mas pode haver um demiurgo que se entranhe naquela plataforma estarrecedora. Nunca lá entrei, tenho medo que fechem as portas e fiquemos num limbo pela eternidade fora… que o código não responda às abotoaduras e desçam ferros que nos impossibilitem dar mais um passo. Mas as pessoas são incrédulas e vão a estes locais como os tais bois olhando para palácios. Nós sabemos da linda madeira do Líbano, do ébano, dos materiais que foram para a construção do Templo e, como Templo divino, ali não entrava serrote, faca e parafuso. A rainha do Sabá, ficando curiosa, quis saber porque uma construção assim era tão silenciosa, e procurou conhecer o arquitecto Hiram. Ora Salomão diz-se que não gostou porque sentiu ciúmes do velho construtor. Ele era um Sábio e este um Construtor, uma espécie de Arquitecto do Mundo; havia então alguém tão poderoso quanto ele e começa aqui a primeira rebelião de trabalhadores que Salomão instiga contra o Mestre: sabotaram algumas leis do trabalho e a obra mais personalizada deste criador, na inauguração, explode. Nem aqui houve aquela harmonia que se pretende inalterável para louvar Deus, pois que um homem só, mesmo sábio, precisa dos que criam e dirigem as obras por onde a glorificação dos locais algures passará. O domínio profano também tem criado os seus “altares” e o que guardam aí é bem mais enigmático que um culto destes, pois que ele era a casa interior que devia dirigir a personalidade cá fora, é como um receptáculo que visa reforçar o ego para que este não se estilhace no meio das multidões. Creio que não terá também aquela Pedra Angular nem nenhuma geomancia do terreno, e como isso são condições para grandes monumentos, a que serve e como serve uma coisa destas? Talvez nos alerte para a robustez sem sentido, a grandeza sem mérito, a opulência sem amor, a distribuição mal parada, a esfera da usura que tememos até nos sonhos mais sombrios — mas aquela realidade está lá e espelha o tempo de todas as barbáries feitas com o abuso e o desmedido mau gosto que pode muito bem começar a ser interpretado como agente poluidor. — Das mentes, da alma, da vista, das frágeis sensações que de tão enlouquecidas até devem pensar que é para guardar dinheiro. Aquilo é feito para divinizar o dinheiro, mostra-lo como o deus da igualdade que não há, e servir até causas e interesses que os cidadãos desconhecem. Parece que tem problemas, a Caixa, por isso eu sempre irei preferir as Arcas, que como se sabe, neste país também não têm fundo, a ver pelas surpresas desagradáveis de coisas ditas que de lá dizem vir e nunca lá estiveram, aquelas frases traiçoeiras que um Pessoa certamente nunca escreveu. Porque não lêem nem sabem o que os verdadeiros construtores andam a fazer, nem tão pouco, e ainda bem, onde arrumaram as Arcas. A mesma leitura se pode fazer diante das coisas que nos parecem demais, e estão ali a servir qualquer outra dimensão. Nem que seja a do crime, do desmérito, e da presunção desmedida que leva a vangloriar o grande como medida de salvação.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasHeterónima e outras demonstrações [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]heterónima Pessoana não nasce apenas da multiplicidade do carácter ou de uma forma de fugir a uma Lisboa enfadonha no início do século vinte que, por acaso, até nem o era, dado o clima efervescente da Primeira República onde todas as viragens sociais e culturais se davam à velocidade do vapor. Essa tese cai por terra de tão inexacta que é. Em nós, não cabem, não -todos os sonhos do mundo – muito menos temos a elasticidade mimética de ser conforme a circunstância. Há, sem dúvida, componentes que fazem um homem mais vibrátil na multiplicação de si mesmo. Mas o que a uns parece do efeito da quimera e do desdobramento da personalidade, pode neste caso ter outras origens bem mais profundas. Pessoa é originário da Covilhã e de um ramo bastante circunscrito. Sabendo-se da sua descendência familiar que partia de cristãos-novos referenciados, ora existe ainda um ramo remoto que vem das duas filhas de António José da Silva, judeu relapso: uma fugida para os Países Baixos de onde não mais regressaria e outra que vivera escondida dentro de casa para o resto da sua vida. É desta que o ramo é descendente. Para se viver, para se ter subsistido, foram precisas muito mais que análises vãs e, para se ter desembocado em Pessoa, foi preciso também muito mais que uma imaginação torrencial, inspiração, génio e “jeito”. Foi ainda preciso ter nas veias aquela plasticidade de saber que mudar de nome, ter vários nomes, até formas de expressão, fazia parte de uma camuflagem em prol da resistência e do salvar a vida. Aqui chegados, e caso os inimigos sejam só fantasmas, a memória nem por isso se torna um elo morto. E foi nesta imensa componente toldada de segredos que ele se deslinda, acrescentando à necessidade a arte de transformar o medo, a arte pura. Aliás, grandes obras nascem destes caminhos que, depois de aparentemente solucionados, libertam para outra área elevando os mesmos argumentos. Pessoa, de que todos falam, ninguém ainda escutou no devido silêncio de um temor antigo. Conhecem a parte que lêem como uma adaptação de cada um de nós em sua voz, como algo que vem de fora para dentro, mas não sabem os caminhos de fronteira que fazem os homens serem assim e não de outra maneira: mesmo os estudos Pessoanos são vazios de observação neste domínio, que se me apresenta, vital, para que tenhamos então todas as associações probabilísticas. Este judeu, era, como todos, de natureza velada, tanto que nem anatomicamente se mantinha o mesmo, havendo o lado fugidio de quem sempre em fuga não faz mais que reproduzir a herança, pondo-a a trabalhar e a ser – no mínimo que faz. Este míope, que ora dilatava, ora ficava esguio como uma enguia, que trazia as calças por cima dos calcanhares ( todos os judeus fazem isto, mesmo que não notem. Jacob, quando da luta com o Anjo, fere-se no calcanhar, era coxo, portanto; e essa fronteira que dá para o chão fez de cada um homens de calças curtas) que era conversador, também, errante na cidade, trilhava os passos de algo que lhe estava prometido. Notemos a infalibilidade de um destino quando se tem herança assim: que faziam eles? Eram astrólogos, magos, iniciados. O Catolicismo, mesmo de fachada, nada lhes dizia, e a sua forma de trabalhar foi sempre pelo registo do elemento alquímico. Não era certamente um anunciador de futuros para senhoras de sociedade e tagarela da prosápia dos jogos de cartas. Não, trata-se de um respeitável intérprete de rigor e íntima contemplação, que fez interagir no seu enunciado e deu forma a cada personagem que “inventou”: ou eram mesmos reais? Elementos de uma cultura de graus vários… também os profetas eram pastores! O medo é real, perante ele podemos expor o melhor de nós. A poesia de Pessoa não é um jogo de palavras que se amontoam com sentimentos em cima. É uma inteligência fina da alma, um refinamento singular numa laboriosa maneira de cumprir o génio por detrás da palavra escrita. Não há Pombas do Espírito Santo, nem Pentecostes nestes processos, nada cai na nossa cabeça… e na língua, por milagre infantil, tudo é um longo processo de elaboração, um caminho trilhado na linha da continuidade. Todo o seu drama era passar da casa oito para a casa nove… astralmente… um drama de passagem do deserto para a Terra Prometida. Para entender o que Pessoa fez é preciso muito, muitíssimo, mais.Ffoi necessário algo que até aqui ainda não foi lembrado: contextualizar todos estes dados e não andar atrás da quimera do ente isolado que tanto gozo dá aos que gostam de estar sozinhos. Mas a sós ou não, ele seria sempre a pessoa que Pessoa era. Todo este dispositivo tremendamente óbvio, de tão desconhecido, dá-me por vezes uma intimidade muito boa com esta consciência, como se lá do fundo ainda me segredasse coisas que só direi depois. Como sabem, ele ainda está a escrever, idem as enigmáticas e as misteriosos frases que por aí aparecem… eu não jurarei que não… Afinal, trata-se de alguém que está disfarçado e, mesmo que não estivesse, foi assim que ao longo de séculos se apetrechara para sobreviver. Se as pessoas fossem mais atentas, saberiam porque são raros os poetas: eles são os últimos de uma longa cadeia que reuniu toda uma herança, e tal como ele bem viu: “sentimentos todos nós temos” para depois: “sentir, sinta quem lê “. Ele tinha a denúncia toda em si, mas, o mais óbvio, sabemos que os povos não são capazes de ver, encaminhando para teses amorfas, análises pesadas, formas pedantes, análises irracionais, algo que está a nível chão da nossa percepção. Também com esta postura foi firmando o seu ar triste e grave, dando-se conta da fragilidade da memória dos Povos, estando em trânsito como um corpo estranho numa nave de loucos. E com esse olhar se foi. E, ainda hoje, a louca leviandade do mundo acrescenta teses às suas formulações a partir deste ente que tanto desconhecem. Teriam certamente uma vida mais monótona pois que, a existir, um poeta está a dinamizar o mundo em vários ângulos que a própria vida na sua robustez não conseguiria jamais fazê-lo.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasBrexit e o livro de Enoch «… Então o Senhor disse: o meu espírito não permanecerá indefinidamente no homem, pois o homem é carne e os seus dias não ultrapassarão os cento e vinte anos» Génesis [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]aquele tempo havia gigantes na Terra. Efectivamente separar é uma dor que ainda hoje impõe na carne que somos uma cicatriz: o umbigo, a cicatriz de uma separação. Só que hoje estamos indubitavelmente no ventre da Baleia, esse grande estômago global que não nos vomita, ou ainda não nos vomitou, na linha rigorosa da separação, e se ergue diante do nosso olhar como uma alucinação de imagem no deserto. No Livro de Enoch havia uma raça extraordinária que se reproduzia connosco, dado que eramos belos. Os cruzamentos são sempre bem-vindos, o factor probabilístico gera novas formas e não morremos de tédio a olhar uns para os outros. Para tanto, inventou Deus o Amor e fez dos corpos altares, bafejando-os de delícias, mas onde se encontra o Brexit no meio de tudo isto? Não mais que na sua qualidade de órgão de um corpo que já não é inseminável, órgão esse que parece sobreviver sem ele, podendo ser transplantado para outros , e mesmo assim, temos sempre a sábia expressão de que “órgão muito falado é órgão doente.” Dado que órgão não é tripa, esse entulho a reboque do corpo, temos um órgão vagabundo na sua errância de supremacia. Nós, a bela raça dos homens, temos coisas demais para tão destilado mundo, comprimento de intestino para alimentação etérea, uma economia do esforço em franco desgaste que quanto mais acelera doidamente mais combustão produz… teses sobre a vacuidade, pessoas presas por pensamentos, actos, omissões… tudo em barda, dado que somos fractais de um barroco alargado. Abeiramo-nos agora da vitória das amputações e o que se passa vai ser de congelar cadáveres pelo lado hirto da manifestação. As deusas quando são velhas assemelham-se à Duquesa de Alba, dançando flamenco à beira do caixão. Porém, a Rainha, inamovível e com menos títulos reais, começa a fazer justiça à expressão: «Un jour viendra où il n’y aura plus que cinq monarques au monde: les rois de pique, de trèfle, de carreau, de coeur… et la reine d´Angleterre». Já não estamos na batalha de Waterloo quando Napoleão a cavalo disparou a galope o integracionismo europeu, mas o que aconteceu é praticamente a mesma coisa. Um corpo assim, como vai surgindo, podem-lhe ser amputados membros, tanto nas partes altas como nas baixas (já sem os aleivosos gaulesas das decapitações internas). O Livro de Enoch foi todo ele amputado, tanto por judeus, como por cristãos, pois que há áreas que transvasam o código e nenhum exegeta, rabino ou doutor da igreja, ali sabe meter a mão. É mesmo proibido em alguns círculos litúrgicos, mas com cuidado lá foram aplicando passagens… e duas bastante reveladoras, no princípio e no fim, como seja no «Génesis» e no «Apocalipse», algumas adaptações de textos gregos que dada a pouca fartura de entendimento foram como metidos à “dentada”. (…) depois, a voz que tinha ouvido antes falou de novo: « Vai, toma o livro…aproximei-me para me o entregar e o Anjo disse; toma e come-o. Tomei o livro das mãos do Anjo e comi-o» Apocalipse O tempo em que vivemos tem este fantástico, este surrealismo, esta impudência, creio que por mais análise, desconstrutivismo e adaptação, o que tem esta leitura pode estar gravado no Brexit. Mas já o Putin tinha fechado o Sarkozy e embebedando-o a propósito de não sei de quê, ele, coitado, veio de lá muito contente a dizer: “bom, querem falar com o Presidente? Vas-y!” Como, de que forma, e a quem falar destas realidades e porquê? (súbita inspiração em Vitorino Nemésio). Há qualquer coisa que me diz que este livro deve estar num Castelo da Escócia, naquele local que os fantasmas nunca abandonaram, não tendo por isso deixado de existir, só porque deixámos de acreditar neles. Do Oriente vêm gritos de reconquista do velho Al-Andaluz “e toda a minha cabeça estremece ” (Herberto Hélder). Deitai senhores, vós, os dados, que dados ficam, dados são, deitai as cartas também de marear, que a saída é sempre por aquele ângulo imponderável no qual ninguém pensou e com a simplicidade de um Ricardo Sanches que destrona o linguajar dos estrategas; não tardará a saber-se o que seja, pois que bem ao jeito do ditado chinês: quando o discípulo está preparado o mestre aparece. Cada vez tenho menos ideias e mais inspiração, não sabendo o que faça até o fazer, não há nada para programar, o banco de dados ficou cravejado de coisas tais que é o dia que mostra o caminhar… Se assim não nos deixarmos guiar nada acontece, é o dia que nos mostra o assombro, num desfiladeiro assim, todos eles vão ser preciosos e autênticos, numa urgência de sermos saciados pelo que há de subjacente a tanta ideia errada e tanta voz de um coro enlouquecido. Leva-me contigo dia claro, e que não pense, a razão entrou na recta final da sua negritude e, quer queiramos quer não, só há livros interessantes para ler se forem de Enoch e passagens de plano tipo Brexit. Enquanto as águas não se levantarem e a Terra não mudar o eixo é connosco, neste ventre Balear que nos vamos ter de entender de forma suave, para não ir tudo abruptamente, que o mundo ainda não é um atoleiro de uma lixeira a céu aberto como os vales de enxofre. A um tempo de adesão, resistir também é louvável, dizer não ou estar mais pobre, a riqueza nem sempre vem de uma única fonte, onde se perde a afeição perde-se também a lembrança, e há um inquietante esquecimento que só verdades duras acabam por lembrar. Não cabem nos Tratados as gentes e, quando eles expirarem por inoperância, nós ainda seremos capazes de os reinventar. Num estertor de dias incertos vive-se ainda por que há espelhos que nos devolvem o nosso rosto como um seio belo que continua alto e pode ser visível por todos. Há sempre uma ideia mais complexa debaixo de um plano e o que parece enfraquecer pode ser a táctica para um novo arranque. Mas ninguém vê tão tolhido anda, ninguém reparou tão curvado está. Os novos céus e a nova Terra, tinham emergido, quando o primeiro céu e a primeira terra desapareceram e o mar já não existia. O mar azul da bandeira… Apenas mar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasVernais [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m mil novecentos e noventa e quatro publiquei um livro com este título «Vernais» ponto vernal, os eixos, também os há, venais, e não são pontos, mas poças, lodo e caos. Mas acontece que nos pontos vernais também nos desintegramos quais agentes teletransportados em energia nova, cujo resultado físico nos molda os dias, os sonos e a mente. Chegados aqui, nem dos sonhos nos lembramos, pois que se dorme estranhamente e não fomos habituados a contemplar o fresco sabor das sombras, a sombra é tão imprescindível como as mais luminosas auroras. Disse Heidegger: “A sombra profunda salva a palavra poética da demasiado grande claridade. A frescura e a sombra respondem ao Sagrado. Essa sobriedade não renega o espírito. A sobriedade é o acto fundamental, sempre pronto, da abertura ao Sagrado”. Mas ao atravessarmos o chão do vernal instante, elas quase se desfazem, e se a noite as traz não nos cobre de sossego, a noite é ainda um dia que se apagou ligeiramente, e de tão curta, nela se extinguem os sonhos. O ciclo vernal das fogueiras no Hemisfério Norte e a combustão vivida neste instante faz-nos muito perto da combustão do Sol, pois de Solstícios se tratam, e se o de Dezembro nos religa ao velho culto de Mitra ainda na Caverna, agachados para a noite eterna, que subitamente não só desaparece, como volta a crescer, este é bem mais desabrido, magnânimo e até voraz. Fogueiras no Verão, labaredas no calor… e a Europa está ainda repleta de altares para todos eles num rito de cromossoma memória como as enguias. São as rotas peregrinas desaguando nos antigos cultos primitivos onde, de forma velada ou explícita, muitos vão ainda prestar graças a essa força ígnea que terá a sua finitude, mas que atesta o enigma da felicidade de se estar vivo. Nós que ardemos, que somos combustão e fome, desejo e vontade, raiva e paixão, estamos muito atentos a esta “poeira” de Civilização dominante, e tal como a estrela, somos também áridos, quentes, ferventes, secamos, ficamos cinza, implodimos. Dante sabia que o seu Inferno era o círculo mais baixo da graduação da matéria e que ao nono ciclo mudaria para a transmutação da manifestação da luz onde o esperava o seu Amor e a que chamou evidentemente de Paraíso. Apolo, em si, já é tão belo que a luz que representa e a sua varonil silhueta fazem do homem a parte eleita para os antigos gregos. Elas, as deusas, eram sempre cobertas com cabelos e mantos, a nudez solar sempre como símbolo do desassombro. Chamava-se Febo e os homens, os solares representantes do disco, iniciavam seus próprios efebos. Deviam ter sido lindas as festas em sua homenagem e o que restava de Lua era tapado nos gineceus das Ilhas. Depois, vieram as cinzas… e a imagem de Saturno parece imperar, Saturno o frio, o comedor dos filhos, o ancião de barba branca em contraste com o eternamente jovem deus sol. É um sol velho este Saturno, nascido das coisas do tempo e com ele as religiões abrâamicas ganham novo fôlego, se o velho pai se prepara para matar o filho, ele também marca o fim do rito do sacrifício infantil, mas eles já não são deuses, nem jovens, nem belos e atingem o seu cume na morte do Filho pelo Pai calado que insolitamente o fará ressuscitar. É um patriarcado de parricidas e filícidas, uma saga de homens que se eliminam, um masculino saturnino envelhecido pela combustão de um astro e, voltando a Dante, nele vamos encontrar a contemplação serena de um pai mais amoroso que lhe assegura o livre arbítrio no seu Canto XXVII do Purgatório: «A ajudar-te, deixa-te andar pelos campos por entre as flores e a verdura pois que não ouvirás mais os meus conselhos, conselhos de pai sábio ao seu menino. A tua vontade é livre inteira e pura; constituo-te senhor do teu destino.» Ele agora há-de chegar ao rosto feliz da amada sem o rosto triste de Madalena e as formas de uma relação nunca esclarecida. Este “cordeiro” está também unido a um outro ponto vernal o Equinócio da Primavera e com as primícias do Outono vêm as festas do perdão, mas estas, tem um trago mais a sangue, esse elemento tão unido às estrelas e que não arde, e escorre, como os cultos do sacrifício, o vinho, a morte… Nos Solstícios, o sangue estanca, as labaredas avançam, as luzes somam-se em luz, e parece até secarem os pântanos. Os pontos Vernais com que se destilam os mais finos licores do Universo, sabem-nos bem. Como este é um ponto onde a noção de uma força masculina está exaltada, a própria história de João Baptista, recai nesta data, afirma, é claro, um mito pagão de fartura e de colheitas, mas também a personalidade indómita do patriarcado face ao feminino que na busca de uma rigidez de princípios renuncia por puritanismo às tentativas de sedução de uma jovem mulher bela. A sua vingança é terrível, pois que ao rejeitar a vida que esta lhe oferece a dele foi ceifada. Este símbolo masculino que recai no ponto vernal parece não ser por isso muito solar, o Sol é “Invictus.” Festejava-se um aniversário nesta célebre dança. E todos os pontos se juntam numa roda vernal com todas as promessas de uma vida eterna que não irá acontecer, a não ser, assim, no pico do astro que brilha enquanto ele mesmo não entrar na rota do seu desaparecimento. O Sol está mais velho! Ele também amadurece. Os seus cultos, menos expressivos, é certo, mas a memória é um zénite difícil de vencer por que ela é feita de todas estas partículas, e sabe bem ver o mundo girar, mesmo que saibamos que desaparecemos muito antes da data prometida que ele tem com todo o Universo. Acabamos cada vez mais por combustão, por inceneração, a arder no braseiro da fornalha, que o corpo é um vasto manto de líquidas lembranças que no fim convém esquecer.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasW. B. Yeats versus Fernando Pessoa [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]ia 13 de Junho assinala o nascimento de dois poetas que marcaram o seu tempo e a modernidade da sua época: Yeats e Pessoa. O primeiro nasceu em 1865, o segundo em 1888; vinte e três anos de diferença na segunda metade de um século absolutamente prodigioso em gentes; um, irlandês protestante, outro, português com grande influência inglesa. Evidentemente que estamos na presença de dois co-aniversariantes lendários e com muitíssimas afinidades, não tanto na obra mas na maneira como a perspectivaram. Yeats era um protestante de minoria, dado que era irlandês; Pessoa um judeu de origem beirã, outra minoria, ambos grandes esotéricos, fazendo parte, Yeats, da « Dublin Hermetic Society» e da rosacruciana «Hermetic Order Of Golden Dawn». Nestes temas se debruçou também até à saciedade Pessoa. Ambos politicamente conservadores tendo deixado testemunho nos ensaios de pensamento social. Este conservadorismo tem muito pouco de político, entenda-se, e nada de retrógrado no sentido documental. Têm da poesia uma concepção clara e leve, tanto, que o branco abunda em Yeats, a matéria de asa e de ave, e Pessoa, uma profunda harmonia transparente num descarnamento tão belo, que só quem está povoado de espírito pode assim manifestar-se. São por vezes um pouco magos quando apresentam os seus brancos fantasmas – pois que todos eles são brancos – e quase sempre essa figura demiúrgica do sábio nos avassala em várias destas leituras, tendo ficado a dever o segundo à influência anglo-saxónica nestas lides que o ligam ao outro. No nosso imaginário existe sempre um povo vestido de branco com transposições de Magos Merlin, Genevièves e cavaleiros… E foi Afonso III quem nos legou em parte a matéria da Bretanha, até pela unificação do seu reinado. Com ela vieram os nevoeiros e também o leito do rio imaginário até Sebastião, embora muitos afirmem que é de origem messiânica, certo é que a luz se coou enquanto matéria onírica. Pessoa irá fazer dele um anátema – Portugal, hoje és nevoeiro. É a Hora ; Yeats, remete-nos para as “Aves Brancas voando sobre a espuma do mar”. Mais inefável que a imagem dos poetas não há, lembrar contudo que a Terra já fora algures um fino invólucro de gases e que essa memória pode ainda estar inscrita, também, em raros deles.” Encoberto” talvez, por uma matéria gasosa cuja finitude é igual a outra qualquer matéria. Se para muitos o hermetismo Pessoano é quase severamente desconhecido, mesmo literalmente, certo é que o de Yeats não o é menos, e para tanto vamos a outra faceta que uniu também os dois homens: a escrita automática. Foi nela que eles permaneceram algum tempo como revelação conotados ao escritor desconhecido de si mesmos. Yeats desenvolve um sistema de símbolos geométricos apontando o que as “vozes” lhe ditavam e Pessoa descobre-a naquele 8 de Março depois de chegar a casa onde de um folego escreve então trinta e tal poemas. Os símbolos de Yeats dão lugar aos símbolos zodiacais de Pessoa e de tal ordem o paralelismo é grande que aqui, e sobretudo aqui, eles separam-se do resto das coisas vãs. Perscrutando, sabemos das suas ausências no meio de todos, pois que tinham estabelecido linguagens apuradíssimas com elementos onde alguma solidão impera. O mundo, e muito bem, não está para grandes desvios ou mesmo perda de tempo com o incognoscível. Daí ser tudo muito interessante, mas se há mais poetas para que complicar o que é simples? Não. Não há nada mais poetas, estes são-no, excepcionalmente, e por outro lado nada é simples, dado que nada das outras gentes assim catalogadas têm ou terão alguma coisa a ver com isto. Nesse lixo transversal que envergonhará certamente no além os seus nomes, o adjectivar quer dizer ainda alguma coisa. A treze, sim, e sem Pastorinhos, que muito me admiro do silêncio de Pessoa perante tal fenómeno… talvez o ultrapassasse, um poeta é já uma aparição, um fenómeno no cimo da árvore da vida rodeado de meninos, dado que o melhor do mundo são as crianças, não será? Mas, e pensando no impacto social, não me espantaria se ainda pudesse aparecer qualquer coisa neste sentido, Pessoa, como sabem, está sempre a acontecer, a escrever, a dizer, o facto de ter morrido nada interessa, os poetas não morrem e mais outras verdades simples e muita frase errada tentado passar-se por ele. Em «Uma Visão», Yeats cria uma chave interpretativa na forma de um sistema de símbolos e diagramas para a sua poesia, combinando também sistemas astrológicos, mas sobretudo ocultistas, sim, são tabelas inteiras com as fases da Lua, e com passagens iniciáticas por fases numéricas. Pessoa escreve versos na base do conhecimento da sua carta astral, sobretudo a posição de Saturno, e quando nos aparece a expressão súbita do “astro baço” ou os três anéis nós sabemos que pensa em Gomes Leal, nascido neste dia e à mesma hora e que Saturno está presente como uma lâmina e que ele não sai de um certo saturnismo. Para tanto é preciso ir conhecê-los aos fundos abismos e estar com eles como se fôramos irmãos. Nada sei do Saturno de Yeats, mas parece-me bem mais feliz, ele, que viajou, casou, andou, proclamou, mas sempre com a alma branca de um fantasma celta, tão nórdico, como sefardita era a sombra de Pessoa, e nesta via mágica, neste deambular de sonhos, dado que vivemos por ele, há um dia que os une na encruzilhada de um desígnio. Pensei neles com carinho, como se faz com as sombras, indelevelmente e sem enunciar, não fosse trocar alguma pergunta que só um pudesse dar, afinal o dia é aziago.. E se o é, há azares muito bons, e males que felizmente perduram. A nona sinfonia não é mais que uma fase da Lua, a virgindade renova-se com ela. E de sinfonia a novena, vai o olhar dos poetas caminhando. «Já chegou a tua hora, já sopram os teus ventos, Longínqua, tão secreta e inviolada Rosa?».
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasFeira do Livro Vejamos se nesta feira que Mercúrio aqui traz acharei a vender paz que me livre da canseira em que a fortuna me traz Auto da Feira, Gil Vicente [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]om esta personagem alegórica do deus Mercúrio, tem lugar a Feira do Livro entre Maio e Junho, os meses consagrados a Mercúrio, e a transacção da palavra como comércio. As Feiras são para mim locais desabridos, muito abertos, populosos, arrivistas, cheios de entulho, pois que é certo que uma Feira, mesmo de hortaliças, é um microcosmos difícil de nos adentrarmos. Reconheço sem dúvida o lúdico, a quantidade, a variedade, o colorido mas, neste caso, prefiro então as pequenas Feiras com o pó das Estações que assentam nas dobradiças das tendas como as velhas carroças de ciganos abandonadas, continuando num canto com interessantes nichos abertos à voragem das aquisições. Mas vamos para a Feira! Olhando ao redor não se sabe por onde entrar e o melhor é sempre o propósito fixo para não deambularmos diante de infindas florestas de nada, de livros infantis, de direito, das Testemunhas de Jeová, daqueles pobres escritores parados, sentados… o microfone, os discursos que se vão ouvindo de alguém que está lançando qualquer coisa, a fealdade alarmante das gentes que, coitadas, vão assim, à vontade, e se lhes nota o estado das suas carnes como um castigo a transportar. Mais além, sim, um cheiro bom – são farturas – que o nome encanta só pela abastança, que nestes locais não há, dado que, como bem sabem, os pobres têm grandes dificuldades quase em comer, quanto mais para grandes sacadas de livros a bons preços, que por acaso até nem estão tanto assim. Enfim, é um equívoco na subida e uma desilusão na descida, de modo que a Feira seja apenas louvável como tradição e quase nunca como agente cultural. Assina-se muito, assina-se para sempre, assinamos cheques, livros, registos, assinamos tudo inteligivelmente como fazendo parte da cultura dos assinantes. Depois de assinados, em pequeninas “bichas” que o tempo não está para “bicha” grande (revelando que esta tendência deve ser influência anglo-saxónica pela compostura) as pessoas escorregam suavemente para uma quase inexistente troca de palavras. Fala-se pouco, vê-se muito, cambaleia-se… Claro, é uma Feira, cada um faz como acha melhor e o melhor ainda não foi pensado, que é simples, tão simples que já nem se pensa nisso: a leitura é um exercício com regras como outra coisa qualquer, ou seja, um grande leitor é um metódico, tal qual como um sacerdote tem horas, há que ter método, postura física e um mundo que ele próprio define como propiciador de elemento ritualizante, dado que o livro é um elemento com aura e não raro tem até o poder de nos submeter à sua tirania tal como os ritmos da fé. Pois bem, chegados aqui, toda este alienado e alienante propósito de leitura como elemento transportável, que ora serve para adormecer, levar para a praia, ler pelos cantos, torna a leitura quase um mau costume. Sabemos nós, os leitores por vocação, que só começamos a “ler” na releitura, que nessa actividade está o segredo do magistério da palavra, porque nada pode ser lido com carácter de urgência a menos que se trate de escrita informativa, jurídica, técnica; mas a literatura, mais propriamente aquela a que se dá tal epíteto, não é um receituário: está unida à inventividade que acrescenta mais espaço à capacidade onírica e mental, dado que é para isso que a palavra também serve, como um caminhar da transformação do Homem e da sua ampliação, na capacidade, evidentemente, de acrescentar esse novo, essa inquietação, esse despertar : o leitor deve sentir-se incomodado. O leitor não pode deixar-se andar pela deambulação inconsciente do seu bem-estar, pois que o excesso de passividade torna a mente imprópria para estruturar uma leitura ou mesmo ter dela qualquer sentido crítico, a absorção das coisas fáceis é imprópria para a complexidade humana e, mais do que nunca, o leitor de agora devia ser iniciado e conduzido. Não influenciado, devia ser informado do mau uso e da má postura que está a dar à leitura. Neste tempo de todas as epifanias das leituras não compreendemos que leitor é este. Há gente a morrer de trauma fonético… Nunca o delírio atingiu tanto o espectro auditivo e das sombras vêm vozes que nos mandam escrever sem noção da “bomba atómica” que pode ser um verbo mal rolado… Mas, dado que a inércia crassa entre os enfadonhos tratados, teses, invencionices sem mérito, pesporrências várias, e muito linguarejar, ainda há substrato para um cruzeiro a vapor. Há verbos que nem sussurrados já são possíveis ou mesmo escutados… como um – Amo-te – por exemplo. No entanto, é preciso escrever muito sobre o amor. O ventrículo de todas as vozes e de todos os sons e de todas as letras, visto nestas Feiras, parece ter produzido mais insanidade que saber e em locais inesperados, é certo, subitamente o revelado, o livro , a letra exacta, pode ser encontrado. * A personagem alegórica do início do texto é o Diabo de Gil Vicente, que parecendo esgotado do seu artifício, apela à paz , a tréguas, para o libertar do cansaço de uma busca indistinta, tão desorientada, a que o próprio chama Fortuna. Má Fortuna! E também a «Biblioteca» de Umberto Eco um opúsculo muito bom sobre o objecto-livro, o elemento que se tira, que se desloca, que se vende, que se anseia, que se dá, que se partilha, as inúmeras formas de nos posicionarmos sobre ele apelando aos seu interesse gratuito. Este é também mais ou menos um Auto e não creio que interesse muito numa qualquer Feira. O que é certo é que a azáfama do interesse móvel, e a carga das editoras, deve predispor muito pouco tempo para algo parecido com a escrita que desejamos ler. Há aquela feita nos lagares dos “Óleos” para Autos- de- Fé, que não são de Elias Canetti ,mas de escolas que despejaram a lengalenga que apetece, com certeza, sim, fazer fogueiras. Digo, acender Chamas.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasFeliz Aniversário [dropcap style=’circle’]V[/dropcap]olta e meia a Nação faz anos, ora por que lhe são atribuídas burlas Papais, ora porque foi ali que fora fecundada, ora pois porque gritou em galaico-português uma qualquer: EUREKA. Há ainda o esotérico que remete o nascimento para posições mais drásticas, só para alinhar com os astros de forma a ficarem de feição e nesta intempestiva tendência para o nascimento múltiplo se anda enredado nos dados históricos disponíveis, pois que há dados históricos indisponíveis, tal qual como o entendimento do chamado texto litúrgico, onde se deseja saber o quando e onde e quem, dado que entre o factual e a parábola há subtis distâncias que a mente materialista não processa e datas que nem são mencionadas em repositório de dias. Ora a Nação parece ter nascido em muitas datas, não se sabendo qual é a mais nascitura. Se fosse no mesmo ano teríamos o chamado parto fraseado, só que por vezes nem os anos coincidem, e com tanta data, legislação, código penal e nascimentos, deveria um Estado ter um desenvolvimento psíquico e social conforme a quantidade destes elementos civilizacionais, mas não! Entre um autóctone da Idade da Pedra e um Cibernético, vai um segundo no acelerador de partículas e, enquanto Deus assim quiser, haverá um hastear de bandeira, dado que estas coisas acontecem concomitantemente à perda de chão, de autonomia e de identidade, não se sabendo a razão para festejar um, por parcelas várias, ao tempo do moribundo. Há coisas que viramos e reviramos e não sabemos mais para o que servem: é este o caso, quando de alto-abaixo se olha para um país, e das faltas de consideração a que se está sujeito por diversas tentativas da vontade. Educadores do Povo, urgem! O Povo é malcriado e não raro ofende os seus poetas e ao fazê-lo, de seguida, claro está, merece a ruína. Mas para se vingarem dos poetas arranjaram uma manobra delatória: publicarem e dizerem que também o são. E vai disto, aquela verve toda emplastrada de nada e com a inventividade a zeros, para não esbarrar, é assim que a vingança se faz! Todos somos poetas. Todos sabemos escrever. Todos fazemos anos só que não é no mesmo dia. Não há como ocultar o riso sardónico entre estas opulências genuínas, nem como muito bem viu quem não estava cego, fazer disto um grande ensaio, eu só queria silenciar o tempo e entrar pelo sonho adentro dormindo entre beirais de aniversariantes. «Desiste e sê rei de ti mesmo»sim, por mim, e sabendo já o sucesso dos livros culinários, vou editar «A alimentação do poeta», gastronomia para os que não devem comer ou que comem tanto que parecem outra coisa. A rábula de Afonso Lopes Vieira entrará de soslaio para testemunhar a delícia e a elegância da falta de alimentos: batendo-lhe à porta, vinham então para jantar, pois ele, num arremesso de grande envolvência diz isto: só tenho massa de estrelas! Em vez de dizer com tom prático – então, vão aí comprar uns frangos! Pois não, não, nem só de pão vive o Homem, o homem e a mulher, que é género que habita no mesmo invólucro sem recipientes para os Bloquistas. Nós sabemos o quanto a fome nasce da concupiscência e de uma certa avidez descontrolável, do ente e do doente capitalista, pois que ao distribuir-se a vontade pelo todo nada mais fica em nós como ideia fixa esperando que o nível de entulho alimentar se transforme um dia em tubos tão gentis como os de oxigénio, com todas as vitaminas e composições para que ninguém mais passe por ela. Nós sabemos como corre o tempo e sabemos de tal ordem identificá-lo que as datas de nascimento se entrelaçam como a corda manuelina numa janela ou jangada que dá sempre para o mar. Só que nem sempre se nasce de uma só vez, com mais tempo e sempre nascemos tanto, que da morte já não nos lembramos, mesmo que tudo tenha fenecido, tal como Portugal, irá um dia alguém dizer que nascemos em tal e tal data, nunca as mesmas, alternando assim o mote e o modo de uma natureza vária onde permanece uma enigmática vitória. É com estas alucinações que se constrói imortalidade, senão quando mais vontade de estar vivo, pois que ninguém se lembra quando é feliz, os laços que o fizeram desabrochar até aí. A felicidade gera um esquecimento tal, que tudo o mais não existiu. Num certo espectro visual e documentário passam enfileiradas datas de cuja autenticidade duvidamos pela noção única do nascer mas, se se quer estar vivo, temos de partir necessariamente de algum número do calendário romano. Neste caso, que não sendo ainda Nação à época da sua invasão, passou a contar nos registos da nacionalidade, bem como Cristo que se impôs à Roma Imperial e fundou na terra inimiga mais um marco civilizacional. Por cá, eramos girinos sem forma que só começaram a sair das águas com o ribombar das trombetas que traziam Apocalipses, Direito Penal e outras civilidades. Depois de termos passado a batráquios tínhamos de nos tornar mamíferos e fundar a partir das fundições de outrem ou de alguém, um nascimento rigoroso que é difícil acertar. Nestas cosmopolitas e maravilhosas demonstrações se anda entretido a procurar o embrião e também o cordão umbilical cortado para absorver o sopro de elemento novo. É quando se dá a primeira respiração fora do útero que se nasce e absorvemos aquele registo que será doravante a anima, a alma, aquilo que anima, e num último instante expiramos a depô-la. É certo que um longo período de decrepitude pode gerar alienação de fronteiras, não se sabendo já da própria morte, mas, por ganância, nem a alma entregámos, ficando ela num Limbo inqualificável que apela ao nascimento. Mas os bons dos romanos também disseram: os deuses, esses, enlouquecem antes os que desejam perder. Pois bem, são magnânimos! Matar a frio é para cruéis e sanguinários, mas pode haver alguém que não enlouqueça e veja o mundo passar como um filme a várias dimensões e até exclame como Pessoa: sou lúcido, merda, sou lúcido; pois era, e depois? A data dele era 8 de Março e esta sim, festejo-a sempre, porque foi um poeta que a decretou. Quanto às” burlas” e bulas Papais está para ser inventada outra data mais a preceito. Vinte e cinco de Outubro também tem a envolvência do homem adâmico , diz-se que foi nesse dia que fomos expulsos do Paraíso e por aí fora até ontem. Espaço e tempo são matérias cientificas de monta que só Einstein conseguiu desvendar, e… levantam-se véus e não os vestidos das belas deidades. Por isso quero desejar a todos felizes aniversários em qualquer calendário litúrgico e soberanas independências, não vá a Terra mudar o eixo dos seus vastos equilíbrios e andarmos para trás à velocidade do som. Quando chegarmos à pedra façamos como os palestinianos, e se houver pedras, construamos muros, e também apedrejamentos vários por causa do adultério. E posto isto, só as pedras e as baratas, creio, sobreviverão ao caos que se adivinha, e por isso não é de bom tom comer insetos. Alguém tem de cá ficar! Que não testemunhe jamais a realidade de um tempo de pólvora, e secas as fontes, nos retiremos daqui como o último dos Mistérios.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasLusifenix [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]abemos muito bem como a História é por vezes uma narrativa transversal aos acontecimentos mais vastos e aos conhecimentos mais rigorosos. Ela entra no nosso imaginário como uma narrativa heróica, dado que é narrada sucessivamente pelos vencedores numa transcrição proporcional a um estado, diríamos, que infantil, de quem a ouve e apreende enfaticamente. A forma pedagógica, que ao longo de décadas foi imposta, configura-se em muitas vertentes, também, um embuste ou impostura. Penso mesmo que a nível da índole nacional tivesse existido um desânimo durante gerações ao serem confrontadas sistematicamente com heroicidades e grandezas que o quotidiano e a contemporaneidade não dão. Este extravasar épico pode anular a combatividade do momento, desmotivar as gentes, causar-lhes complexos de menoridade e daí o ontem, o antigamente, o de fora, o do lado. Tudo menos nós, que em histórias sabemos uns dos outros e da triste figura de alguns. E vamos aos longínquos bancos de escola buscar a origem do Mundo: a romanização. Para trás, quem aqui vivia eram povos pré-históricos, indómitos, incapazes de lidar com tão extraordinária civilização que, como bem sabem, os Impérios fazem o favor de educarem. Dito isto, o que ficava da franja explicativa das populações autóctones era pouca ou nenhuma. Sabemos vagamente dessa gente, que ao contrário do que se disse ou diz, foi gente que lutou contra a invasão do corpo estranho com as armas e os arremessos que tinha enquanto povos locais e sabe-se como o etnocentrismo dos historiadores greco-romanos se recusou a reconhecer a língua destes povos. E entra o celta a propósito de tudo e de nada, hordas da Europa central, mas que nada têm de facto a ver com o que se passa abaixo dos Pirenéus e que não passa de uma variante local de pangermanismo com subjacente carga antissemita. E aqui entra o legado fenício, a lembrar que os lusitanos integravam o império púnico contra Roma. Este povo que teve o monopólio das viagens mediterrânicas durante séculos e que fizeram mil anos antes das Descobertas a circum-navegação de África, que atracaram na costa portuguesa, sobretudo na costa Oeste, e aqui deixaram todas as marcas, heranças, língua , usos costumes e misticidade. É deste lado navegável e navegador, deste lado semita até Cartago, que somos herdeiros sem interrupção, com as alianças contra o invasor, que fizemos acordos, e foi sempre com aqueles que traem que se perdeu autonomia, como fizerem com os assassinos de Viriato, a quem, imaginem, no imaginário distante o remetemos para um caçador-recolector atirando pedregulhos às hostes inimigas, tão civilizadas! Para acentuar o nevoeiro adensa-se o estranho sentimento de passagem, em que povos vários passaram por aqui, povos passantes, para que haja nele um Messias unificador. E não deixa de ser curioso que na época imperial romana a língua na Andaluzia era ainda a fenícia e toda a costa Oeste portuguesa e zonas do Alentejo guardem firmes, quais emblemas de resistência este passado longínquo. Nazaré alberga um povo que é semita e toda a costa parece o legado cananita onde não faltam os escondidos irmãos hebreus. De celtas, nem vê-los, mas tudo vai lá ter como “bolha” romântica tão ao gosto do fim do século XIX. Se os atributos dos olhos azuis e do cabelo louro fosse tão reducionista, entraríamos nas tribos de ciganos com olhos de esmeralda e de muitos sírios e povos até do Norte de África, a celtibizálos. A celticidade é uma menorização do europeísmo transversal; por outro lado, não há de facto nenhum legado escrito desse povo, ao contrário dos Hispanos e dos Fenícios, de onde partiu a invenção da escrita alfabética, bem como o suporte de escrita que precedeu o pergaminho começado a ser usado em Biblos. Fenecemos a nossa Fenícia ancestral no mar enredemoinhado da História de tal ordem alterada, dada sem noção antropológica quase nenhuma, que pensamos estar a ler narrativas de Alexandre Herculano. Penso que a noção de estratégia é muito importante para os homens que são guerreiros, só que o facto de ocuparem anteriormente as terras não fazia deles exterminadores dos que lá estavam, e temos de saber que os que fugiam para os baldios tinham espaço suficiente para as fugas. Acontece que sempre nos foi dada a História da perspectiva do senhor, da supremacia do invasor, e o costumeiro hábito de com ele alinhar ao ponto de se achar que os Frades franceses de Cister ajudaram as populações rurais a plantar legumes. Nada mais errado, pois que era gente que não trabalhava braçalmente. Só a partir do Calvinismo é que o trabalho deixa de ser uma exclusão e um anátema divino, e todos passam a ter o dever e o direito de o concretizar. Deixar que o estrangeiro se instale e retenha o dom daquilo que em nós faz cultura é uma doença da própria nacionalidade, obedecendo um pouco aos mitos fundadores do senhor e do pai. O desconhecimento total das fontes bíblicas da segunda invasão romana pelo Catolicismo fez ainda mais estragos. Era um fenómeno estranho, ainda hoje é arrepiante a incapacidade de compreensão desta realidade. Estivemos sempre próximos dos povos semitas, é certo, e nós entrelaçamos heranças. A cultura hebraica era íntima, dado que a primeira terra de “leite e mel” tinha sido a Fenícia conquistada por eles. Por isso nos nossos sonhos profundos dormita a história de Sem e o porquê de se ser servo. Muitos atribuem esta parte do mundo aos herdeiros de Noé mas, chegados ao estudo exegético do texto bíblico, este legado produziu duras trevas de desconhecimento amargo. Mais uma vez e em face das situações nos amargou a boca para a denúncia, e também os cleros que, ao contrário do que se afirma, eram de um obscurantismo ofensivo, sem grande cultura e conhecimento dos factos. Muito trabalho há para fazer na busca daquilo que nos instrui, não academicamente, mas celularmente. Falámos uma língua que mandaram calar, fazemos acordos ortográficos para quem não fala connosco, obedecemos a dogmas de mercado vindas de fora. Nós fazemos de tudo, excessivamente, para ficarmos sempre mais pobres.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasEncontro em Samarra [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onhecemos sem dúvida a velha fábula que é portadora deste título, bem como o aforismo de Balzac: ” A morte é certa. Esqueçamo-la.” A fábula é simples: um criado que tem um encontro com a morte num mercado e vendo-a fazer um gesto, aterrado, foge no cavalo de seu amo para Samarra, ao que o amo pergunta porque tinha feito ao seu criado um gesto ameaçador, ao que ela responde: “Não foi de ameaça, foi de surpresa por ele ainda estar em Bagdad, visto que temos um encontro esta noite em Samarra”. Ficamos a saber da rigorosa precisão desse encontro e de que não vale a pena fugir-lhe dado que parece estar inscrito mesmo quando não suspeitamos de nada. É um local com portas já que existe a ideia de passar o mural, uma condição seguida de triunfo; «O Triunfo da Morte», Petrarca. Pessoalmente gosto de a designar de «Grande Implosão» por oposição directa à explosão da Vida, que é de uma extrema plasticidade, suprema faculdade de arranque, pioneira em todas as associações de preenchimento automático numa ânsia de nada deixar vazio. Pensamos, sim, pensamos na morte, na morte mistério, na morte sem mistério, em desligar, no assombro… na causa… e no tecido desconhecido da grande implosão, dado que não temos uma só lembrança de nós mortos. Mas estamos talhados para ela como um íman gigante e bem-dizemos a existência de tal encontro, pois que faríamos no preenchimento de uma expansão sem fim?! Deixando de existir não entramos mais nessa condição e a diluição, seguida da transformação dos elementos, é um retorno à memória sagrada da Terra. Conseguimos ver para dentro quando o tempo de crescer parou, quando e depois de nada em nós mais expandir… esse caminho que começa estranhamente quieto e prossegue uma doce viagem de reconhecimento do todo e nos obriga a colher os melhores frutos… a não deixar fugir a “coisa exacta” e a permanecer tranquilos. Somos agora a melhor ficção científica de nós mesmos, um teletransporte em movimento saídos daqui para lugares descarnados, ser em outro lugar transfigurado, ter este lastro horizontal do outro em comprimento, uma mescla heteronímica daqueles vários que depois de mortos nos sucedem… do lado de lá do Vitral… aparecendo em outro lugar, se não em forma, na ideia transfigurada do que já anunciáramos ser… um registo que nem nos ocorrera, pois que na voragem de todas as combustões nós fomos permanecendo não se sabe onde e em que modos vários. Sentimos agora por nós um carinho nunca dantes experienciado, um olhar apaziguador, indulgente, pois que sabemos que ardemos – ardemos, sim – em tanta batalha, tanta paixão, tanto limite, tanta vontade, e nesse desgaste riscámos o vento e reconhecemos todas as cicatrizes. O limite da voragem até ao grande encontro! Resistimos a tudo, fomos duros a testar. Agora que o grande retorno nos resgata olhamos de fora para dentro este motor sadio que a fúria ainda não desfez e nos monitoriza, este corpo em transformação… há uma grave luz intensa que está correndo. O corpo! Ele sabe de tudo, pois é ele que nos informa dos factos muito antes da consciência, ele é tão fantástico que mesmo abandonado a favor da mente é ele afinal, que em nós nunca nos mente. Mediúnico, informa-nos, resistente, ele sofre, desamado, ele entristece; esquartejamos algumas partes, utilizamos outras( outros em excesso) temos altares de “vísceras” mas ele só sossega se aquela “mão” tiver a força do amor. O amor cura, o amor é um tratamento celular do mais fino processo. Já andámos tanto, este caminho é tão longo, devíamos quando comemos carne, fazer uma oração, uma bênção de saber consubstanciar. Não reparar nisso torna-nos obscuros, medonhos de morte comida. A nossa psique não se dá conta tão irrigada anda em diques de absurdo, a nossa razão também não, pois que está assente na soberba, e as coisas que não experienciámos podem vir nesta fase como a mão de Deus, ajudando a ver o que não está desvendado. São processos simples, tão simples que arrepiam, reparamos nos ilustres desconhecidos que ora somos, perdoamo-nos tal qual já conseguimos perdoar a quem nos tem ofendido, e com todas estas benesses ainda somos visitados de conhecimento puro. Faz-se tarde para repetir e cedo para desistir, pois que no tempo curto dos maduros vinhos estamos vivendo para além das órbitas dos nossos olhos, que já cegaram, imponderados, magoados, fronteiriços… nós, que vamos para Casa, um lar que ainda não lembramos . Também aqui, e por que o corpo é outra fonte e a voz que tem nos faz cantar, lembro o belo poema de Kávafis: Lembra, corpo, não só o quanto foste amado, Não só os leitos onde repousaste. Mas também os desejos que brilharam Por ti em outros olhos, claramente. E que tornaram a voz trémula. Agora que isso se perdeu no passado É quase como a tais desejos te entregaras -e como brilhavam. Lembra, nos olhos que te olhavam. E como por ti na voz tremiam, lembra, corpo. O corpo encerra um sopro, sim, uma pura matéria alvíssima e animada, e quando implode os seus farrapos não se esquecem dele, pois que são parte em outros processos, e a Terra é um vale de fundas memórias quando outra coisa formos na matéria do tempo. Nas sociedades primitivas todos os anos o velho rei era simbolicamente morto para assegurar a fertilidade das novas colheitas, daí a frase: O rei está morto, viva o rei. Compete pois ao homem celebrar as folhas que caem antes do desvanecimento transitório.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTodas as cartas [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stamos num tempo muito real e de tal ordem pragmático que tudo se torna concreto a partir das bases de cada comunicante. Um tempo de grande fervilhar de signos, sinaléticas, sinais, imagens, roteiros, rotas… Somos um elo de ligação construtiva em vários pontos cardeais e nem por isso nos unem focos de interesse ou mesmo uma íntima correspondência entre os pares. Interagimos, é certo, mas não ao modo da outrora relação epistolar por vezes intermitente mas plena de conteúdo humano e capacidade de diálogo afectivo: Pascoaes, Sousa Cardoso, João de Barros, Patrício, mais toda aquela Geração de Setenta, os do grupo do Orpheu, desenvolveram esta linguagem, um culto que fez da amizade entre os pares uma prática sistemática de um fervilhar de ideias e quase um roteiro de viagem junto das jangadas, quantas vezes difíceis dos seus dias. Era esta uma intensa troca de informação orientada, um registo fértil de ditirambos e vozes que nos legaram na sua preciosa herança, e quase ficamos desarmados e incautos pela forma civilizadora deste tratamento, pelos interesses comuns e a forma elegante de os nomear , interesses vastos, que conservam uma linha de progresso muito forte, um certo estar na barricada do destino comum. Esta modernidade é também o princípio de uma fraternidade que não foi posta em causa, não estimuladas pelas incursões da vida pública, que é talvez um eufemismo, dado que eram gentes sem o afã das exposições pessoais das suas próprias, que uma exposição demasiado pública nunca permite conservar. Vistas à distância do nosso virtualismo damo-nos conta que não há desleixo, abreviaturas, códigos encriptados, estavam ali como anunciantes e anunciadores dos seus laços e das suas capacidades. Este país perdeu a estrutura do laço, dos laços, da roupagem dos Vice-reis das Índias, dos entrelaçados Manuelinos, dos laços de amor que os nós transmitem «Nós e os Laços», querido Alçada Baptista. Perdeu o arrendilhado do estar, este sentimento que o formou e esculpiu… no fundo é a graça de se dar, entrosar, comunicar a outro fio a capacidade de transmitir a força. Há uma delicadeza que não obedece a formulações intimistas parecendo todos dignos uns dos outros, atentos e em seus postes, quais escudeiros de uma velha guarda, talvez se chame a isto um grande asseio de alma que nos faz tão bem! Maria Lamas- Eugénio Monteiro Ferreira. «As Cartas» que fizeram os resistentes e este magnífico excerto: “Muitos temporais têm passado por mim. Alguns tremendos. E deixaram ruínas. Mas tenho conseguido – posso dizê-lo – sem receio de exagerar, renascer da minha própria angústia mais desejosa ainda de dar, dar tudo quanto em mim caiba para a renovação do mundo”. Ninguém se expressa assim na comunicação com outro numa tão alta nudez e sentimento de se ultrapassar por meio do fenómeno da dádiva, não há muito por onde nos transmutarmos nem sequer anunciar a outrem essa imensa necessidade: é tudo real, muito real, as nossas impressões digitam a necessidade momentânea que um tempo imprime por exigência de uma continua necessidade, temos necessidade de tudo todos os dias, de ganhar o dia não como um «carpem diem» mas como ultrapassagem, as nossas cartas são agora um jogo da própria capacidade para viver o desânimo que a agitada turbulência entre nações impõe. O interlocutor perdeu-se das suas vozes, somos as naturezas compulsivas de um escriba louco, escrevinhando a nossa situação, pois ela catarticamente se faz como os despojos em terreiros sem rosto, quase sem nos darmos conta que a escrita é uma comunicação grave e pejada de sentido entre os seres falantes. Quando a Língua já são todas e todos falamos a mesma língua, há o ribombar de um coro inaudível e uma perda gradual dos próprios signos visuais: “Onde se perde a simpatia perde-se também a lembrança” (Novalis). Que ninguém se esqueça do «Banquete», aquele diálogo que todos gostaríamos de ter falado como se procurássemos o fluxo divino de cada palavra… Talvez que «A Máquina do Mundo Revisitada», na qual Camões colocou grande ênfase, seja essa linguagem que se adensa para além da necessidade pragmática e que escreve no Homem o que tão rapidamente tende agora para o esquecimento. Teremos talvez um Corpo que se abre a um verbo ardente, a uma palavra mágica… teremos talvez um tempo para repensar os nomes que nomeiam estados outros e porque os nomeamos assim. Sermos entendidos “pour la beauté du geste”, interrompendo de quando em vez de utilizar a linguagem como uma corrente macerada de conceitos automáticos, porque tempo há-de vir em que os seres que ainda somos passam a telepáticos e todo o discurso se encerra e estes sinais deixados serão olhados como um antigo tabuleiro de infinitas probabilidades. O acto da leitura, a noção do escriba, desocultaram ao longo da Civilização o espírito do Amor, sem ele não há causas e nada que apeteça lembrar, sabendo nós que o Verbo encerra aquela “carne” que a carne não dá, a razão não quer, mas o Homem precisa. Numa longa «Carta a um jovem poeta» escreveu Rilke uma dissertação de bem sentir, nas Cartas de Heloísa e Abelardo se fez a parte que as relações impedem, de Juan de La Cruz e de Teresa D´Ávila se falou de Deus com uma pujança erótica que nos ultrapassa . Todos se encontraram no dizer destas missivas e nem Soror Mariana desistiu do seu amor em viagem calando-se entre claustros, melhorando em todos nós o que de secreto e puro, bom, bem-dito, e sussurrantemente a língua transmite a todos aqueles que se querem bem.