Reflexões lexicais

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] língua, elemento altamente contorcionista do aparelho fonador, gerada e não criada, consubstancial ao som, por ela todas as coisas foram feitas, e por elas feitas, e por elas começadas, de novo há-de aparecer no cimo das Nações para julgar os vivos e os mortos. 

O Acordo Ortográfico a um primeiro instante pouco atencioso, bloqueia: bloqueia quem de outras fonéticas, e sons e signos, foi gerando a matéria das suas fundações, mas não deve bloquear quem não tem termo de comparação, pois tudo o que se fixa como regra é indiscutivelmente fácil de apreender. Mas nós que somos de muitas camadas de evolução fonadora ficamos pouco à vontade, pois que de nós ninguém se compadece. Nós, que somos ainda da geração do Crepúsculo dos Deuses – filhos deles – portanto, filhos de Deus, vamos assistindo à vinda do Filho do Homem e estas coisas requerem ajustes, tais como a modificação da primeira origem que passa por aperfeiçoar ou mesmo reduzir a complexa estrutura de um sistema que nem sempre serve bem a causa a que se propõe. É também por causa da palavra, de Babel ,que tudo se tornou subitamente mais isolado.

Talvez que a primeira sensação de bloqueio venha justamente da severidade espartana da queda de caracteres, como se ruíssem impérios a partir da pedras angulares, caracteres minguados, desajustados, falta de caracteres, que diminuem o carácter de uma língua. A língua é noção de fertilidade fazendo alma no ser e ela será sempre materna ou não será: ela fica por isso muito bela na sua progressão germinal, na ortografia nunca sentimos ser de mais os signos léxicos – os hífens, as cedilhas, os apóstrofes, as reticências, as vogais, as consoantes mudas, o desalinho, a orquestração, a composição, a arte visual do seu grafismo. Tirar caracteres é amputá-la, facilitando até a confusão entre sinónimos, é reprimi-la. Ora a Língua não pode jamais ser reprimida, quanto muito acrescentada. Esta sistematização de amputação sistemática parece até uma queda da linguagem num local qualquer, uma maneira insidiosa de a instrumentalizar, parece que se perdeu a sensibilidade geradora de realidade manifesta que só ela transporta. É por isso que parece também desprovido de sentido o muito que se diz, o muito que aflitivamente todos querem dizer antes que acabe o tempo de não mais se poder fazê-lo. Estamos todos à beira de uma catástrofe alfabética com lesões cerebrais de tal ordem gigantescas que não sabemos prever as suas consequências. Fomos construindo matéria a partir dela – Ovo Cósmico – na medida em que acrescentamos pela linguagem toda a forma de ajustar a nossa própria dimensão… Talvez, sim, a Língua seja barroca, fractal, gasosa, líquida, fogo, terra… a Língua não é um implante: caem-nos os dentes, outros nascem, a língua ninguém a perdeu nem achou.

Bem capaz pode ainda ser que o aparelho fonador tenha os chamados” dias contados” em sílabas, números, e marés, e que míngue tanto que recue o dom da fala. Mas enquanto o ar nos der à entrada da vida o primeiro som, hei-de dela lembrar o Grito! Ela associa-se ao primeiro fenómeno vivido, escutamos a mãe – a mãe grito – choramos – abrimos o ar – gritamos por fim. Nascemos foneticamente preparados para a linguagem e é no primeiro som nascente que fixamos o fonema e dele partimos para a fala: procuramos o som, a voz da mãe, e não a sua forma, escutamos latidos, gemidos e risos, sabemos da vocação de criar laços tão gigantes como frases. Mas será que a nova humanidade se lembra deste registo? Não, o nascer asséptico implantou um clone adiado, a cesariana matou a forma do “nascido para falar”. Há grito? Há som? Há gemido? Não há. E curiosamente oiçamos eles falando (novos seres): o que entendem da articulação verbal das suas linguagens? Muito pouco, se estivermos atentos não há paralelo com o tempo da Linguagem, que, como é sabido – eles falam – mas por Acordos, que não acordam como nós tantos lados importantes do dom da dita linguagem, que poderá ser agora à nova luz da silhueta mundial até um desajuste.

Dito assim, apenas desejei acrescentar a esta discussão um ponto mais na ordem das coisas pensadas e, observando como os mudos, o mundo, sei que algo grave para nós, últimos herdeiros de uma vontade feita pela palavra, está objectivamente a acontecer. Não sabemos nada de como se vão adaptar as funções. Imaginemos um mundo telepático, preciso, mais filtrado de leveza. Pode ser que sim, que seja este o caminho, mas a nós faltam as peças desta futura construção, não somos consensuais e não temos de facto nenhuma razão para sê-lo. Deixem-nos a herança de um sonho que passou, pois que não será possível derrubá-lo. Estamos demasiado velhos para orientações e suficientemente sábios para reflectirmos as coisas, a nossa vida vai ser demonstrar que não passámos nem de moda, nem de tom, e que, se guardamos intactos todos os verbos, é por que onde tudo muda, é preciso algo que não mude e esses são os construtores da memória. Ninguém se vai lembrar dos que fazem a subtração alfabética e que reduzem a implante o que todos conquistámos gritando, dizendo até a voz nos doer.

Não estando na sintaxe dos modos e dos tempos, acresce informar que a inventividade não se rasura com bisturis orientados nem com tesouras que permanecem afiadas como em tempos de censura, e na língua, como no amor, retirar é uma falta grave: pese embora o ganho dos línguístas em assuntos da matéria, esses bens ficam para os números que precisam ter a beleza abstracta da sua função: dinheiro será por fim uma mera sigla em que até o número desaparecerá e a palavra que produz, será apenas uma ordem.

E, findo o acto, o pano cobre o palco e nestas coisas estranhas acontece pensar da saudade se delas nos esquecermos – das palavras – de como nos fizeram companhia quando todos levaram os seus tristes acordes para outro lado, de como por elas quase fomos mortos. E depois, por elas, ressuscitámos: pensamos na intrigante doença do esquecimento e no banho de ninguém a ser sujeito, e de como continuar, se tal mal nos der a paz de esquecer.

31 Mar 2017

Lou Andreas-Salomé

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sei se a Rússia será convertível ou não ao culto mariânico, nem um tal aspecto parece de facto de grande importância, a grande Mãe Rússia poderá assim interessar a um devoto cidadão, sem dúvida, mas não a um outro qualquer do mundo que a olha nos seus flancos como uma imensa terra onde cabe tanta de vida, como de morte, até continentes, mas ela tem para além destes mitos, pessoas incríveis e uma delas é Lou Andreas-Salomé. Sempre nos debruçámos fascinados perante esta segunda fase do século dezanove porque ele nos transmite uma polidez e uma vanguarda que permanecem como fundo ideológico dentro dos nossos sonhos: tinham algo de inédito, brilhante, civilizador e único. Hoje olhamo-los e sabemos que nunca conseguimos fazer melhor: as nossas relações pessoais são mais árduas, os nossos preconceitos mais intrigantes, as nossas vidas bem mais ásperas. Eles, porém, eram extremamente modernos e não sabemos o porquê de tudo isto acontecer desta maneira.

Claro, há o contexto social, histórico, cultural, sem dúvida, pois se desejarmos encontrar respostas elas não se esgotarão, mas estou mais inclinada a repousar a deriva desta visão no fascínio natural que me provocam do que analisar com as articuladas fórmulas de pensamento asséptico: eles eram excepcionais. Lou nasceu numa família de irmãos, todos homens. Adorada pelo pai, a vida encarregou-se de a levar até eles como uma criatura aglutinadora e inspirada, talvez esta confiança se deva à sua própria infância de eleita entre os homens, Talvez a sua natureza fosse capaz de exercer esse fascínio e, tanto assim foi, que nunca essa realidade a deixou: Lou foi a mulher mais moderna e mais progressista do seu tempo e nem por isso deixou de ser uma feminina mulher no seu imenso intelecto. Casou cedo, o marido é sempre referenciado nos seus escritos com carinho e uma grande cumplicidade, e que marido é este e que força emana esta mulher para numa organização de homens os manter de forma tão natural e com uma tal harmonia de grupo? Creio que havia uma noção profunda da sua autonomia intelectual e de que sem ela, eles seriam apenas homens comuns, maridos burgueses, amigos tediosos, e outras formas que os homens suspeitam, carregar como fardos, a inteligência deles foi afinal ter entendido uma tão surpreendente verdade, e, por isso, ninguém, nenhum deles, se lembrou – tenho a certeza – lhes passou mesmo pela cabeça, conduzi-la ou pressioná-la. Aliás, eles precisavam dela como o melhor dos interlocutores, sabiam que cresceriam como seres na enorme esfera de contacto com que tanto os rodeou e, tendo ultrapassado as pequenas intrigas de género que tanto paralisam os grupos, o marido era um ser ao serviço de uma causa e, se não participava nas grandes questões, proporcionava que elas existissem. Assim, podem nascer ideias e gente e avanços e vida e saber. Assim, os seres têm funções que não regateiam por ilusões sem mérito e é este o nível civilizacional que os faz tão especiais.

Lou manteve sempre bem firmes os pilares de um núcleo abrangente onde foram forjadas algumas bases do pensamento moderno, como Freud, por exemplo, como Nietzsche que por razões pessoais se afastou do grupo (o que menos conseguiu lidar com o embate Lou) e a sua noção de unidade fê-la manter-se firme mesmo quando, por razões não previstas mas assumidas, se apaixonou por Rilke e foi bonito! Rilke era o mais jovem, o poeta, o mais frágil também, o que mais precisou dela até como uma mãe e ninguém se opôs à vivência profunda desta paixão que despertou respeito: quando dois grandes seres se apaixonam não há areias movediças, as pessoas ao contrário do que se julga, percebem isso e são raras as que desprestigiam a unidade dos amantes. Foi, de facto, um tempo profundo e criativo em que Rilke cresceu como grande poeta e que nos deixaram aquelas maravilhosas cartas que são testemunhos literários de preciosa dádiva. Lou, no entanto, impediu sempre que Freud psicanalisasse Rilke, alegando que poderia ferir as fontes da criatividade, pois que um poeta da dimensão de Rilke trabalhava com áreas que não deviam estar expostas à psicanálise. Não há nada melhor que estarmos unidos àqueles cujas linguagens entendemos e cujos desígnios são também os nossos. O destino abre-se para que passem de forma tão única, que creio ser entendível por todas as partes; e também sabemos do terrível, daquilo que o destino não quer e por levianas questões ele separa. Aquilo que nós, tristes e cansados, desgraçadamente insistimos ainda em querer, creio ser esta a mais terrível das misérias, o não nos apercebermos que a vida nos ajuda levando alguns.

Sim, mas, onde está o nosso núcleo que abre assim? Onde estão agora os meus Rilkes, os meus Paul Rée, os meus Nietzsche? Em lado nenhum e, no entanto, temos de prosseguir e não sou Salomé e não sou russa e não sou este tempo e não estou aqui e não vejo estes pares. Hoje, em que todos falam de género como de uma raça tirolesa, nós gostávamos de ser outra vez estas gentes tão únicas, tão unidas, tão fecundas, tão brilhantes.

Mas é claro, do que mais fica, Rainer nos quer reter, ele que fora para a Rússia, também, em cuja fonte Lou banhou o seu ser neófito de anjo e de poeta:

Tira-me a luz dos olhos: continuarei a ver-te/ Tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te/ E embora sem pés caminharei para ti/ E já sem boca poderei ainda convocar-te/. Arranca-me os braços: continuarei tocando-te/ Com o meu coração como uma mão/ Arranca-me o coração: ficará o cérebro/ E se o cérebro me incendiares também por fim/ Hei-de então levar-te no meu sangue.

Parece tudo demasiado bonito para não nos inundar uma estranha noção de lenda quando Lou a propósito da sua morte escreve a carta que ele não lera.

Tu, o homem incomparavelmente cheio de infância e cujos passos não podem errar porque continua a orientá-los o fundamento primeiro. Fazia-se de novo, então, presente o Rainer com o qual se podia estar de mão dada, como num refúgio inexprimível , e o que se transformava, entretanto, em poesia voltava a construir à sua volta esse mesmo refúgio, como um esplendor interminável.

Temos tantas saudades deste futuro, de tudo isto….

23 Mar 2017

A Barca da Morte

[dropcap style≠’circle’]D.[/dropcap] H. Lawrence tem um belo poema muito ao estilo de uma velha barcarola, com o título deste enunciado. Ele, que foi o escritor dos «Amores no Feno» e de toda uma atmosfera que o coroou de erótica neblina, ele – e talvez por isso – fosse um desbravador indómito, poético, um arauto que se debruçou de forma muito bela sobre a morte, essa porta da iniciação que não está desligada da sexualidade e cujo movimento retorna ao ponto fixo de uma mesma força — lembro que lhe tocava em profundidade o orgasmo dos condenados à morte por enforcamento.

Estes homens não tinham como hoje as respostas organizadas para todos os efeitos como se fossem a parte robótica de si mesmos. Eles estavam animados de uma película cuja deidade desconhecemos, nós, os transmissores de todos os fenómenos em que nunca acreditamos. Decerto que Lawrence, até devido à sua saúde frágil ao longo da vida, se interrogou acerca da morte e essa imensa indagação deu origem a belas reflexões como naquele pequeno conto, «O homem que morreu», é encantador e quase crístico pela forma como se levanta um defunto e se vai lembrando em seu redor (Jerusalém) dos cheiros e dos elementos. Isto tudo a partir de um estranho cantar de um Galo que à mesma hora em que é libertado acciona nele a ressurreição…. No seu belo poema «Canção da morte» formas tautológicas que tão emblematicamente o mantiveram como um mestre do suspense sedutor, mas foi nesta Barca que o seu dom se demorou um pouco mais, talvez até mais, que nas formas de uma mulher.

Esta viagem parte do Outono, eufemisticamente, pois que é nele que embarcamos de forma compenetrada e silenciosa rumo a ela, e ele afirma que:

é tempo de ir/ do adeus ao próprio eu/ de encontrar uma saída do eu caído/e, no ar, a morte, como um cheiro de cinzas!/ E no corpo ferido, a alma assustada/(…)

Sim, toda esta inquietude e formação de um outro ser que renasce na viagem para depor o eu vencido é bonita de celebrar como um rito muito puro de passagem, e inquire-nos de forma bastante frontal:

Já construíste a tua barca da morte, a tua?/ Constrói a tua barca da morte, vais precisar dela.

Todos vamos precisar de construir tal Barca e mesmo que os preconceitos do nosso tempo não assumam esta causa como uma condição articulada de profunda humanidade, ela deve ser trabalhada como a Arca da Aliança, com madeiras belas e ramos de acácia. Não devemos estar impreparados diante do desconhecido, dos desconhecidos, tudo o que é transpor um portal tem de ser “vivido” com um rito que quebre as formas saturadas. Daí, cada um, quando a vida começar a fechar o postigo das possibilidades, se deva abeirar daquele mar de dentro e, sem vontades pessoais, abrir espaço abstractamente para deixar passar a Barca. Morremos sempre por uma causa mas quase sempre nascemos por um mistério.

Nós que já atravessámos tantos mares, que temos marcas de vida em permanência, que temos todas as cicatrizes como trunfos de uma guerra muita vezes inglória, que nem sempre escolhemos, pois que somos escolhidos na abrangência das decisões, que navegamos quando não é preciso e vivemos quando não faz falta, que de tanto estarmos vivos temos uma engrenagem parada em movimento permanente, podemos ter a gravidade dos iniciados quando desta Barca se tratar.

É sempre bom para a alma contemplar outras entradas sem a visão das coisas ao redor e suas certezas, é bom sairmos deste local onde a nossa vida deixou de ter o interesse pretendido:

morrendo, estamos morrendo/ agora só nos resta aceitar a morte/ e construir a barca/ agora, lança à água a pequena barca/ agora, que o corpo morre e a vida parte, lança a alma frágil/ na frágil barca da coragem, na arca da fé.

Talvez que a morte seja um Dilúvio e sejamos nós a construir a Arca, a Barca, para atravessar aquela grande provação de águas que galgam toda a firme certeza que tivéramos de haver terra… talvez que tenhamos essa ideia profunda de voltar a navegar num oceano sem fim e só nesse fim a Pomba, a Luz, a Fonte sejam na nossa travessia tudo o que desejámos saber, contemplar. Se mudados atravessarmos tudo isto e renascermos, não seremos apenas o desejo pessoal de uma condição que ficou, pois que muitos nos tomaram para sermos e, na senda de ser abarcámos a Barca, como a insígnia mais pessoal do enviado que somos, que fomos, dos seres únicos em que cada um se tornou.

É muito bonita a analogia com a passagem bíblica… – e Noé construiu uma Arca – constrói a tua Barca – a pomba voltou ainda com um ramo de oliveira para lembrar, talvez, a ressurreição… mas era cedo e Noé não desceu, mais tarde largou de novo a ave e ela não mais voltou. O pássaro da alma que vai tentar a vida uma outra vez dizendo que ela continua, indicando outro ciclo, esta é uma bela noção de imortalidade que, estando plasmada em nomes, símbolos e incompreensíveis formas, nós conhecemos como taumaturgos de um processo imenso…

Temos medo, sim, do dilúvio, que a Barca se afunde pelo peso sombrio das nossas memórias deixadas, temos medo de atravessar esse imenso nevoeiro e não sabemos se a sombra da alma fará mais escura a travessia… se a bloqueia em porto incerto… mas os que estão livres das questões e não zelam pelo nada como parte descartável para uma vida que contaminou estes mares, entram nela como nas longas catedrais, plenos de respeito pela travessia. Saiba a nossa guardar intacto o assombro de merecer este Poema, tão cheio de vida, como esta morte que se anuncia às portas da Primavera. Lawrence, quase fecundou o momento – este momento – onde vamos descendo no grande e belíssimo instante da jornada.

Desce o dilúvio, e o corpo como uma concha polida
Emerge extraordinário e belo.
E a pequena barca torna a casa, deslizando, trémula,
E a frágil alma desembarca, volta a casa.
Cheia de paz.
O coração renovado embala-se na paz,
Mesmo na do próprio esquecimento.
Constrói a tua barca da morte, a tua!
Vais precisar dela.
espera-te a viagem do esquecimento.

20 Mar 2017

Do superior interesse das crianças

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foram passados séculos desde o tempo em que uma criança pelo facto de o ser lhe era negado o querer. De forma mais branda ou rigorosa, a voz delas era uma expressão paralela onde se rasurava de vez a vontade própria, caso tivessem a ousadia de se insurgirem. Elas faziam parte de uma estrutura onde não devia entrar as suas vontades e tanto quanto possível haver mundos separados, onde, felizmente, e por sensatez ambiental, os adultos também não participavam. Passaram-se poucas décadas e toda esta aparente e, quiçá, condenáveis práticas foram revertidas no seu oposto com comportamentos obsessivamente antagónicos de modo a aparecer um memorando da criança-deus, que emerge carregada de quereres, elaborada para centro, estimulada para o todo, opinativas entre coisas, onde para que tudo corresse bem e não se criassem traumas convinha responder de forma obsessionalmente afirmativa também. Tornámo-nos sem querer “entreteiners” da pequenada a quem devíamos amestrar com parcimónia e muitas cautelas.

Veio muito recentemente a público o superior interesse das instituições que, pasme-se, deve ser um núcleo infantil mais abrangente dado que por cabeça o Estado paga bem a quem os realojar num Jardim Escola esperando aí a tão benemérita adopção que porá fim aos seus pesares e alegria institucional, dado que jamais se saberá da dor das mães nestes tão programáticos interesses.

Uma mãe pobre é metade de nada! A lei pune a pobreza como anátema tal como se deu no caso da lepra romana e esquece-se que os fios que ligam a progenitura são bem mais vastos que este exercício da regência do “bem estar”. É que uma criança que nasça nestes pouco interessantes ambientes pode estar ligado a ela, mas nada continua a ser-lhe perguntado por causa dos seus superiores interesses. Amputada ao seu ambiente que, mau ou bom, é onde está a sua mãe, ela parte, depois fica lá aos cuidados pedagógicos e interessados dos tratadores que as mantêm anos a fio até à clivagem final da adopção.

O amor nada tem a ver com os interesses e um lar completamente destruturado terá a sua maneira de o expressar que não devemos censurar ou mesmo esquecer no meio, também ele agreste, desta azáfama bem-dita. Chegou-se ao desregramento inquisitorial de se poder ouvir uma criança a chorar na casa ao lado e chamar-se o “Santo Ofício” sem que se pergunte primeiro se alguém precisa de um conselho ou de uma ajuda. É aqui, nestes superiores contextos, que aparecem os paragonais casais das personalidades públicas com as suas crianças.

As crianças dos casais economicamente fortes estão ilesas de tão brutais e desonrosos tratamentos, mas os seus poderosos pais nem sempre as tratam melhor no contexto humano a que presidem, dado que as crianças sabem ler, andam na escola, observam como ninguém, e, quantas vezes, elas mesmas são o elemento de arremesso entre estes factos, o que as torna sem dúvida extremamente vulneráveis. Mas partindo do princípio que o dinheiro é o interesse em si mesmo, o estar que todos procuram, estas crianças estão então amplamente “defendidas” e aqui entramos na zona negra deste proteccionismo, a usura e a total insensibilidade perante os mais frágeis. Os filhos dos pobres, outrora, também eram retirados bem cedo para servirem as pessoas, para mão de obra, ninguém poria a questão em moldes afectivos, como hoje continua a não ser feito por razões ardilosamente mais polidas mas que servem interesses, mercado e grandes áreas de inférteis anónimos que, por vazio e descrença das suas vidas que nada têm de misantropo, se apoderam das vidas que lhes possam fazer sentir ainda as suas.

É porventura ainda cedo para se fazer uma abordagem da revolta dos “defendidos” mas creio que a ver pela revolta dos escravos não passarão muitos anos para deixarem ensanguentadas muitas áreas de benfeitorias ou, num processo psicótico mais que provável, termos uma percentagem de gentes que raiam o perigoso, dado que mesmo mau, o amor quando é, torna sempre melhores os seres. As boas intenções e as boas práticas podem não ser suficientes face a coisas maiores: teremos nós mais adiante a capacidade de nos metermos em causa? É cedo para sabermos, porém, creio que graves transtornos nos esperam. Rompida a fina película por onde as coisas importantes se inscrevem somos com o tempo personalidades ameaçadoras: lembro aqui Heiner Muller o dramaturgo e poeta alemão que escreveu assim no seu livro «O Anjo do Desespero»:

…. depois do desaparecimento das mães o trauma do segundo nascimento e o que vi era mais do que podia suportar ….

Este autor é quase um arauto terrível, mas nós precisamos da lucidez dos poetas e, talvez, da sua estranha prefiguração para desvendarem o fim provável dos mesmos terrores mostrando assim outros graus da nossa humanidade. O Homem não foi feito para se ajustar aos modelos económicos, mas os modelos económicos, esses, terão de se ajustar a cada pessoa, enquanto não fizermos isto de forma concertada deixando intacto o que une um ser ao outro, produzimos miséria e lixo que no ponto máximo da sua insuportabilidade desaparecerá da ordem das coisas.

Tudo desaparecerá, é certo, na voragem do tempo, mas o amor manter-se-á como vínculo imperecível, e é desta matéria que serão possíveis os seres futuros que saberão de nós por este vínculo nos seus sonhos distantes e poderão algures em qualquer recanto do Universo sorrir-nos ainda.

Orfeu o bardo era um homem que não sabia esperar. Depois de perder a mulher,

porque a possui cedo demais a seguir ao parto ou porque olhou quando não

devia ao tirá-la do mundo dos mortos depois de a libertar da morte pelo canto,

fazendo-a regressar ao pó antes de ela novamente se fazer carne.

Orfeu inventou a pederastia , que evita o parto e está mais perto da morte que o

amor pelas mulheres. (Heine Muller)

2 Mar 2017

A tarde serena

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]rosseguimos calmamente num brando tempo que só tem anos e muitas ausências como companhia e, se a nossa vida iguala a vida de um outro ser vivente, é porém a nossa história que a assina como elemento único e triunfal, sem a noção de que vivemos por algo que valha a pena: as tardes, mesmo serenas, podem ser indizíveis abismos. Já não conseguimos aquela «Invenção do Dia Claro» nem aquela mãe que Almada não conhecera nos passa agora a sua mão pela cabeça onde em jeito de feliz instante fica tudo tão verdade! As mães dos homens têm uma realidade feliz quando passam a mão pelas cabeças dos seus filhos, cabeças que estremecem com a dor de épocas tão severas e a exigência de um mundo tão letal em cada um de seus pensamentos.

Mas há quem nem tardes serenas no burburinho dos dias possa ter e dela tem consciência enquanto manifestação de serenidade. Há quem viva numa multitude de anseios tão continuados como se fora uma máquina operante no seio de toda a turbulência de forças que se anulam. Há seres muito desgraçados e que quase não entendem toda a vasta inutilidade de uma ordem social que os tende a projectar assim para o esquecimento inequívoco de si mesmos. Talvez que aqui não haja confronto ou projecção: o ser vive enfim a ordem do seu grupo como condição elementar e a vida é um roteiro de ínfimas possibilidades de autonomia e distinção. Vive-se num programa que acontece por dever e também um básico instinto de sobrevivência onde estão ainda inscritos os genes da fome.

Os tempos da serenidade não serão aqueles cuja função seja abastecermo-nos mas, tão-somente, os de estar desperto sem casualidade alguma, sem esta autofagia que nos devora se a outros não comermos. Quem serena num período entre o nascer e o morrer, ainda aqui? Somos predadores e isso deixa-nos exaustos para retirar das tardes o bem-estar em outra forma que sabemos algures vir a ser capazes – sabendo pela mesma forma – de que não somos capazes ainda com esta forma. Se fazemos exercícios, auscultamos o que de nós é apenas um projecto sem a noção concreta dessa longínqua mudança. Em todo o caso, caminhar no tempo vai-nos desabituando-nos do movimento contínuo, porque o organismo se prepara remotamente para morrer: quando chegados, já deixámos o movimento num local tão longínquo que, por o termos esquecido, falecemos.

Os antigos anacoretas do deserto não tomavam qualquer alimento antes do pôr-do-sol. Havia a ideia de que a combustão em pleno dia faria dos seus seres pessoas tristes e com súbitas angústias. As tardes deviam por isso ser amenas e de desejos carregadas para atravessarem a noite. Nela, não havendo matéria combusta em face dos solares raios, tudo lhes faria bem quando se afundassem nas areias do deserto. Estes homens viviam em condições absolutamente excepcionais e tendo em crer que o facto de não cansarem os órgãos e estando sem fontes energéticas alimentares durante o dia os tivesse predisposto a uma alegria e bem-estar que só os que interrompem o ciclo vital dão provas. As sociedades da abundância são altamente cancerígenas e a probabilidade de um contágio massivo implica cada vez mais a não permanência. Olhar o cancro gigante que tal como as economias se multiplicam por segundo em células e contaminam tudo, é sem dúvida um duro golpe na esfera da serenidade. Mais patético parece ser os que se passeiam com a doença por entre frases e amostras de partes “tratadas” é de facto um espectáculo tão degradante quanto para cada um que o contempla.

Poder-se-ia pensar que as inúmeras populações reformadas usufruíssem de um espaço onírico, mergulhado já nas contemplações e na recusa ao imenso trabalho do movimento, mas não: elas movimentam-se para testarem a si e aos outros a evidência da sua destreza, mas os seus movimentos são tristes e ninguém consegue extrair daqui uma manifesta noção de bem-estar, correm tristemente, e ao vê-los, com seus fatos de ginásio, adensa-se-me uma angústia que não poderiam entretanto compreender. Depressa passamos para uma caricatura ambígua de criança e, sem nos lembrarmos da dignidade intrínseca daquilo que significou viver, os seres se entregam a uma orquestração que não é o local que o tempo talha para nós.

A felicidade em torno de uma ideia aglutinadora resulta em bons encontros e intensificam laços entre aqueles que amiúde se contemplam numa intensa noção de partilha que pode bem ir desde um portão de jardim onde se arrozeira o muro que um amigo apara ou a uma leitura matinal como uma perdida oração de grupo. As formas de estar junto definem sempre o melhor do bem-estar. Chegados às tardes que serenam, ninguém, cujo merecimento conquistado seja um valor, deve arrastar a náusea do dever com horas marcadas para as actividades do dia.

Dizia o velho anacoreta do deserto: “Nada é mais temível do que os movimentos desordenados que perturbam os corações.” Sem dúvida, e o exemplo está nos anciãos que o deserto amansa com suas finas areias e intempestivos ventos. Os arrebatamentos mergulham-nos no desregramento e não raro há uma certa bestialidade no escancarado sorriso das estranhas vitórias, que produzem sorrisos de morder, com placas de ouro fino onde se distende uma certa perversão… Somos tenazes quando sofremos, é certo, é uma compunção e isso arrasta-se mais que as coisas boas, é que a gravidade do mal nutre nas nossas consciências um efeito de expansão, quase nos esquecemos de situações fantásticas soterrados que estamos com tais pesares. Entre tão incipiente destino corre a maravilha, por nós, que carregados de outros não serenamos e, com tanta escolha, acontece-nos confirmar que não temos par.

Talvez mesmo que uma das conquistas mais bonitas seja não ter opinião, preferências ou fazer julgamentos. A liberdade exige de nós a distância daqueles que a vão sempre buscar mais além. Por aqui, morre-se intranquilo. «Porém o aguardar, supondo que é essencial, fundamenta-se no facto de nós pertencermos àquilo porque aguardamos».

21 Fev 2017

A candelária

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xistem no calendário católico aspectos extraordinários com elementos de impregnada redundância simbólica e nesta medição do tempo estamos assentes no Calendário Juliano e mergulhados no Gregoriano, calendários solares que entretanto colidem com esferas de festividades. Só que tem havido muitos ajustes dado que os mais remotos eram lunares e adaptar toda estas fórmulas foi um trabalho de centenas de anos, mesmo de milénios. Fevereiro dá-nos um momento muito rico em como na adaptação dos sinais e das fontes originais os efeitos se transmutam e, sendo outros, são os mesmos. Quase subliminares à prática dos povos, eles, no entanto, têm uma vida imensa que a memória não permite esquecer.

Dia dois de Fevereiro festeja-se o dia da Candelária entre os católicos, claro está, candelária como o próprio nome indica vem de candeia, candeia e luz, mas ela é sobretudo a «Festa da Purificação da Virgem», estranha designação para a qualidade da sua condição mas, se aferirmos os dons da cronologia também lunar no efeito destas derivas, acontece que esta era uma festa ou um acontecimento praticado pelas mulheres hebreias quando eram passados quarenta dias do nascimento de um menino: iam ao Templo, apresentavam o menino e banhavam-se. A mãe estava assim purificada do período do pós-parto, o que na mesma linha vai dar ao Natal, daí ela ser em Fevereiro. Pratica-se de olhos fechados uma condição da mulher hebraica e, claro, não falta a eterna quarentena, que porá fim ao seu menstruo de parturiente.

Creio bem que a leitura de tais factos possa ser irrelevante pela sua dimensão extemporânea, mas carregamos sinónimos que pensamos ser antónimos e grandes verdades que não passam de meras formas de adaptação de um grande sincretismo. Nós, os obreiros de tantas certezas, não seríamos tão ricos sem a junção de todos para preparar a nossa causa. Daí os tempos estarem neste momento tão ameaçadores, temos visto que a rigidez é como o não conhecimento, assente todo ele na sua defesa sem saber que a defesa de todos é ainda a melhor forma de estarmos individualmente defendidos.

Purificar é também libertar o ser para uma nova etapa da sua vida. Neste caso do vínculo incubatório, o estado hibernante, que vem da escuridão dos dias de Inverno, é libertar o agente do pousio para a sua nova etapa agora que os dias parecem tender para uma nova esperança, crescendo e tornando a mobilidade uma presença. Mas foram as leis patriarcais que promulgaram isto? Não creio! Apenas registaram na sua «Tábua das Leis» uma evidência natural e há sem dúvida muitos abusos nesta matéria entre a observância e a imposição, aqui, apenas se legisla, o que – e estamos ainda em terreno litúrgico – aquilo que Deus concebeu como acto de sobrevivência.

Estamos, não muito recentemente, é certo, a ponto de forjar uma natureza outra que não teve o mesmo cuidado pela estrutura feminina enquanto propagação de vínculos e que pensamos estar certa pela força da convicção, que libertando-a do seu superior anátema pudessemos neutralizar todas estas fundas temáticas. O patriarcado de que aqui se fala era um agente legislador mas, de forma subtil, sabemos que não era ele quem dava as “ordens”: era um ordenamento, menos que um desejo de ordenar, e toda a estrutura passa a severa com a ideia de uma Virgem geradora, começando a primeira grande distorção que põe a mulher como serva, o que dá como resultado o sacrifício do Filho.

Talvez que o Carnaval, a festa da carne, se junte a todo este imenso roteiro de situações do fantástico e que a imundície já seja tanta que os puros precisem também eles de se purificarem, sem que se tenha muito bem presente o grau de conspurcação para ataviar tal condição, redundantemente a vamos vestir do seu desnecessário manto. É possível que a loucura more nos rebordos do paradoxo e, entre santos e loucos, estejamos no terreiro de um conflito programado com incidência para interpretações várias.

Há mesmo uma fonte meteorológica, à boa maneira dos Almanaques, que diz isto: «quando a Candelária rir o Inverno está para vir», se chover acabou-se o Inverno! Rir, esse desassossego, neste caso feito de sacrifícios e desdobramentos vários que foi um esgar patético a que se reservaram nos confins de uma loucura imposta…

Agora chove e, bem pelo fio das crenças, eu creio e espero, acabados os tormentos. Mas eles virão, tal como os anjos anunciadores de gestações improváveis, agora que os grandes tempos mudaram, quem sabe se para pior, a meteorologia é mais um adorno do final que nos espreita e assim, não muito convictos, cada um à sua maneira transforma em festa a “coisa” inteira: que será o vasto mundo calendoscopado em tantas ramificações de género, dado que se for menina o poisio antigo do Templo decretava cinquenta e dois dias, em algébrica lunar de setes. Isto, claro, são histórias do tempo crepuscular, em que o Homem era feito à imagem e semelhança de Deus, pois que vindo aí o Filho do Homem, essa máquina competente que fará melhor e maior a nossa escala, nos arrebatará já impróprios para a travessia dos tempos vindouros.

Mas nós somos românticos, embora recalquemos com botas bem cardadas a condição quase ilegítima. Nós queremos continuar, puros, impuros, poucos, muitos, fechados, abertos, sentimos que todas as direcções se justificam para nos dar a ênfase de sabermos mais uns tempos prosseguir. Reaprendemos velhos adágios, interligamos as colunas, fingimos que não estamos mal, sorrimos para as caveiras enluaradas uns dos outros e quase nos sentimos imortais.

Há meninos que nascem para isto, para nos lembrar que todos os meninos algures fizeram o mesmo percurso nos braços de suas mães, no tempo em que os homens não tendo licença de parto, partiam para a sua simples natureza. Por pior que nos pareça, não conseguimos melhor.

14 Fev 2017

O Endovélico

Oiseau de fer qui dit le vent.
Oiseau qui chante au jour levant.
Oiseau bel oiseau querelleur.
Oiseau plus fort que nos malheurs.
 Louis Aragon

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a primeira Lua-Nova de Janeiro começa para os chineses o Ano do Galo, donos de um bonito bestiário que define o seu calendário, diz a lenda que foi Buda que os convocou e lhes deu as características, havendo mesmo uma passagem graciosa na vasta hierarquia: escutando tal convocação, o Rato que se encontrava distante e último do bando, passa rapidamente todos os outros e se prostra aos pés de Buda. Este, achando graça, lhe dá então o primeiro lugar pelo dom da audácia e do encanto.

Neste universo oriental não andamos distantes da frase bíblica, quando afirma «os últimos são os primeiros». Ano nosso de 2017, pois que outros se encontram em tempos vários, derivados a partir de alguém ou de alguma coisa, já que o tempo é um desmedido instrumento com que a nossa imponderabilidade se debate e nem Galos, nem Cristos, nem Egipto, nem Esferas, nem Ciclos, se nos impunham, caso fossemos imortais. É a efemeridade da vida de cada coisa e de cada um que dita os ritos de passagem. Sabemos que são os mais “parados” quem melhor maneja o tempo e Buda é aqui um princípio cósmico fabuloso e o nirvana um para lá de um instante muito físico do acto relativo do viver.

O ser animal que aqui se trata é mundial, concreto, jactante, e para nós, a Ocidente onde a luz vem morrer, encontrou na Europa uma paragem onde estacionou o seu maior mito e devoção; eles são gauleses – País de Gales – Galiza, toda a mancha céltica em busca de uma pena e na crista do seu canto «Por-tu-galo Por-ti-galo» Graal … Galá-lo…. ! Eis-nos em romagem na zona funda do tempo Lusitano a um culto da Idade do Ferro, pagão, ctónico, relacionado com o submundo, com cabeça de Galo e corpo de homem, o Endovélico.

Na região do Alentejo, mais exactamente no Alandroal, no Santuário da Rocha da Mina, onde o seu culto se mantém, passa um ribeiro chamado Lucefécit o topónimo sugere Lúcifer mas é mais provavelmente de origem árabe, oucif, negro, mas adaptado a “Lux”, luz em latim, tendo passado para uma conotação negativa a partir da era cristã, pois que estes são altares em plenas entranhas dos mais importantes cultos pagãos. E tanto assim foi que passou a zona proscrita e as Cantigas de Santa Maria referem-no como «um rio que per y corre de que seu nome não digo». Galo Negro.

É à beira deste estranho rio que na primeira Lua-Cheia do Solstício do Verão alguns grupos se reúnem, soltam um galo de penas coloridas junto à pedra do altar sacrificial pedindo que em sonhos lhe seja restituída a imagem do deus e muitos afirmam tê-lo visto dormindo. Ainda na Rocha da Mina e escutando a sua mensagem e, talvez, até William Blake o tenha sentido quando na sua arte, a fonte mágica, nos lega em gravura tantas cabeças de galos em corpos humanos. Ele pode augurar também (e mudamos de registo) maus momentos: «hoje mesmo antes do galo cantar renunciar-me-ás três vezes». As coisas que se tecem num mesmo ser que passa o tempo em tantos sinais! A terra dos nevoeiros vive no fundo ofuscada pela altaneira e solar figura, que sendo germinativa, não deixa de elucidar acerca da necessidade de fecunda prole, mas onde ela se encontra e em que lugar, neste entardecer poente da Terra?

As águas de um ribeiro não são as atlânticas, mas mesmo estas estão imbuídas das suas fontes e, claro, se os romanos tudo romanizaram e humanizaram na forma, mesmo assim os seus legados da figura Endovélica não deixam de atribuir as particularidades deste representativo macho das auroras. Vemo-lo ainda no topo das casas orientando os pontos cardeais… vemo-lo junto ao Tejo que pequeno fica com a sua escultura ao culto… vemo-los ao peito, mais junto do que nós ao coração dos que amamos, ouvimo-los cantar quando no Verão, mais a sul, queremos dormir, mas, exactamente, ninguém os vê. Percorri todo o povoado para lhes dizer que estava cansada desse canto e nada me foi dado certificar da sua existência. Seriam Endovélicos?

Vem o Galo de Fogo! Ora isto requer ainda mais talentos, pois que fica pleonasticamente o elemento de si mesmo e nas sonoras forças que ainda nos puxam para terreiros onde a cristandade não passou ou passou de forma a tirar o canto à ave, nós sempre nos vamos reflectir nas águas fundas de um poço com a deidade que em nós ainda mora e fazê-la levantar voo para a luz. São caminhos sagrados, estes, que lá estão, e não sei se por serem oraculares não venham também os eflúvios que fazem desses vapores o lado alucinogénico das palavras proferidas. Ali não há incêndios. No entanto, o país evapora-se aos poucos num manto preguiçoso de fogos que lavram como línguas as devastadas terras lusitanas, onde por força da desdita morreram os nossos sonhos, calcinado e bonito, arrancaram-lhe a alma e ficou assim, como as estátuas dos gentios.

Estamos sempre a desejar em muitas frentes, como nos fogos: Bom Ano, Bom Natal, Bom Aniversário, Boas Férias, Boa Viagem, e se uns se ateiam um pouco mais, há aqueles que não lembram ao Endovélico… não lembram nem a Lúcifer, o verdadeiro deus que faltava. Bom Ano a vós que a Oriente me escutais nesta miragem.

7 Fev 2017

Todo este deserto

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]screvemos devagar, os dias são lentos, as estradas fugidias, as ausências gigantes. Estamos a ver passar a carruagem de um morto, o passeio fúnebre da vã glória de se ser mortal e, com todos os sinais num ar já farto daqueles que do chão desistem e tão de Inverno feitos, seguimos silenciosos o cortejo. Um encanto nostálgico fica destes dias em que engalanámos a morte de passeio e as vestes eram escuras como de abrigos estivéssemos envolvidos. Sem choro nem bonança, abraçamos o tempo do fim, que de finita estrutura nos mantemos atrás dos outros como uma esquálida água que perpassa.

Os dias embriagados de um já quase luar de Janeiro, o das noites altas e esguias como catedrais, anunciam, sim, lá longe, a Primavera que sempre virá, os gatos em cio, as longas noites frias de quem tem nos sonhos a vida que não lhe é dada já viver no momento breve e, com toda a elegância de estirpes moribundas, seguimos o esquife. Frios como sombras, tristes sem saber porquê, pois que se tudo é demora na morte sempre certa, que silêncio é este que nos deixa tão sós? A morte aqui não é de assombro de suspeita ou de aflição: é um dote a mais na marca de um homem e quem nela tiver assento passeia-se entre avenidas e ruas espalhando o sossego da sua condição. Ele, que de alma nua e corpo inerte avança, não sabe da morada nem do estado das coisas que acontecem. Os cavalos são altos e belos e escoltam a sua natureza toda por entre a abnegação dos rostos ao redor.

Para se ser feliz há que ser-se jovem e contar os dias para entrar de férias e ter aquele amor nos países a visitar e as noites com fundos sonos que insistem em entrar pelos dias dentro. Assim, somos felizes, temos o tempo da espera que se prevê sempre rápida, pois os jovens não gostam de esperar e este quase lá marca a tónica de uma vibrante expectativa e por isso todos ficam de lado na sua marcha lenta para não lhes inibirem os passos.

Se um país fosse a enterrar ele seria como todos os senhores: um velho ser passeando-se entre as nossas vistas cansadas, um elemento cuja urna seria um sinal da Aliança, a Arca, tão móvel quanto vazia, pois que o seu mistério continua para além das paredes cerradas e do cumprimento de Deus. Seria uma tribo a transportá-la no deserto onde nela se fundou e criou a imagem do Santo dos Santos e nós, na retaguarda, sentiríamos a presença do eterno sem que nos fosse recordada a brevidade da vida, sem vontade andaríamos quilómetros para testemunhar o desejo de que dentro dos elementos fechados vai a união, que nunca sem a sua viseira conseguiríamos manter os cavalos que são os arlequins e guardiões bem amestrados, o que está dentro não se vê, passeia-se na mobilidade de uma essência sagrada cuja natureza deixámos de saber interpretar.

Toda a nossa visão é um lastro bonito e triste sem entendimento prévio, pois que a guarda das coisas a algo ou a alguém nos emociona como um recanto privado e, sempre privados de argumentos, escutamos o que dizem saber os que mais pensam entender sem que tal explicação seja mais eloquente que a nossa inabilidade para trocar palavras diante da verdade bela e fria de um imenso adeus.

Entramos na corrente ociosa do sentimento das coisas e, de tão filtradas as águas, há um canto finíssimo de uma vaga maresia… deve ser o Tejo espraiando-se entre as gentes… ou deve vir mais frio e não sabe da dureza de o implantar. Está tudo assombrosamente envelhecido, parece que estamos aqui vai para milhares de anos, mas o calendário afirma que não, que a rotatividade ainda é muita e que estendidos como a morte na linha horizontal temos que desenrolar muitos anos. E tudo é subitamente horizontal, as linhas dos Jerónimos – as belas linhas – o rio, o tráfego… todos prestamos preito àquela morte em pedra que não nos espreita porque de uma vaga eternidade se mantém e esta curva suave para a recta adormecida é um pouco a arquitetura do nosso Fado que só levanta quando a dor acorda, gemendo então na vertical como um alto uivo. Os lobos estão nas suas florestas e elas são escassas, ao levantarem a boca para uivar à Lua cantam estranhas melodias que nos dizem inspirar até sonhos de belos machos Alfas espalhando o seu domínio: e quem no reduto mais estreito das suas fantasias não procurou o seu poder para se sentir protegido e amado como convém quando estamos frágeis?

Na lassidão da morte ninguém entra. Todos somos o cortejo, o estilete com que esculpimos a marcha, fazemos as últimas homenagens e vemos passar o significado das vidas que foram anunciadas, que pode muito bem deleitar as nossas já sem nenhuma anunciação. Ninguém se nos anuncia num devir breve e todos deslizamos para o nada, o tanque vazio das nossas lágrimas diz-nos que passamos o estertor do medo dela. Tudo está em paz, mas a paz não é redentora, a paz não mora na esperança da vida, ela silencia a sua força e contrai “dívidas” à felicidade do melhor de nós em turbilhão. Mas nós gostamos da paz, com ela parece-nos a linha mais comprida… os dias mais lentos… o amor menos agreste – a paixão… retirai-a: é fonte de aflições, de desamparos e ardores – o vício pode entrar desde que seja só vício e se, paradoxalmente, ninguém se agarrar a ele, da violência doméstica retenhamos apenas que não é amor – não, não é amor – é outra coisa que os lobos nos ajudariam a pensar.

E com todo o deserto aberto para o povo, passa então entre manás a turba que fugida anda de Faraós agrestes e que de tanto já não poder andar se revolveram nas areias até nelas quase terem ficado por todas as gerações… Ao longe, a Terra Prometida, mas Moisés morreu ao vê-la… partiu Tábuas, gritou do cimo da montanha… Um homem não é de ferro e pode destruir o que lhe custou silêncios e padecimentos por caprichos muito humanos e tem esse imenso direito. Do outro lado quem estaria à sua espera? Quem nos espera para sermos coroados? Na agnóstica República cumpriu-se o ritual da passagem e só não ouviu a voz de um além quem estava desprevenido.

Quem sabe se era de novo o nevoeiro! Quem nos diz que chegou Sebastião montado em inúmeros cavalos brancos que de crina em dias sem vento andava movendo o seu estandarte de imperturbável construtor de Desejados? Todos, algures, fôramos desejados e ninguém mais nos deseja… os nossos desejos são cordas lassas. Ficamos a ver como entrelaçamos as fachadas manuelinas para fazermos delas um nó tão apertado que parecemos não caber. E soltam-se os cabelos, o fio de Ariadne, a vontade de ser Penélope numa ilha muito ao largo… e que venha sim, que apareça Ulisses.

E a noite chegou com o sarcófago nos Prazeres. Prazeres de vida eterna.

O postigo está fechado. Janus, o senhor das duas caras, repousa enfim.

Janeiro é um mês lindo.

24 Jan 2017

O tempo dos assassinos

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Outubro de 1955, no centenário de Rimbaud, Henry Miller dá a conhecer a sua obra mais tocante acerca do até aí seu desconhecido Arthur Rimbaud, « O Tempo dos Assassinos». Ele afirma tratar-se de uma tentativa falhada de não poder tido traduzir «Une Saison en Enfer». Rimbaud foi um prodígio de linguagem, de produção de signos linguísticos, de inventividade, de construção, apanágio sem dúvida da sua radical dimensão poética. Estes atributos vieram a ser para todos os poetas do século XX uma referência, um mistério, também uma fonte de inspiração que não se esgota, ele é quase uma voz telepática… um arauto… uma sinfonia perfeita na composição do verbo.

Mas este Rimbaud, corolário de uma peça que faltava na destreza da estrutura poética, foi sempre a meus olhos o eterno fugitivo, parecendo ter-se soltado de um raio cintilante que tombara sem que fosse muito consequente ou pródigo na sua defesa. Aconteceu-lhe aquilo, talvez fulminantemente, e hoje, é ainda nas suas brasas que vamos analisar o mistério de se ser Rimbaud. Olho-o insolente, carente, agarrado a Verlaine para o torturar com a sua audácia, inseguro, ciumento, implorativo, provocando à escravidão aquele que amava e lhe fugia num labirinto de emoções desencontradas; e Verlaine, não menos saciado da sua própria fúria, salvaguardava para si a sua mais preciosa metade. Vejo-os ensinando, compilando, traduzindo, rindo, comentando, bebendo, saindo e, por fim, dilacerados de caos e talvez de fome, gritando. Vejo-o a fugir da morte como de um parente querido, a atirar-se a ela como um amante em fúria… A sua obra tinha terminado. Há tiros certeiros. Continuou, mas já nas “saisons” dos seus infernos.

Rimbaud partiu e nessa fuga estava encerrada o ciclo do tempo criador, do amigo/inimigo que nenhum lugar do mundo voltaria a devolver, o seu par, e sem ele não há projectos: há fugas e para fugir continua uma estranha noção de caminho. Ninguém vai ser feliz em lado algum se o laço da revelação foi quebrado, nem creio que essas noções o inquietassem. Uma coisa é uma relação, outra é esta “coisa” que está muito para fora desse âmbito — o encontro — e sem o nosso par do destino não há futuros premeditados, ele far-se-á andando na fuga.

Verlaine chorou esta ausência, ele que o desejou matar, foi aquele (e só ele o poderia fazer) que mais tarde, quando finalmente a morte veio, lhe reúne a obra, compila e publica. Ficara cá para acabar o que juntos não lhes foi possível concluir e no seu eterno cachecol vermelho suado, sugado, sujo, ele terá certamente entornado mais vinho, mais lágrimas, até ficar sevado de emocionante maravilha. Na sua redenção final, ele, que tinha o pódio do poeta da época, vai servir a quem o vencera, aquele que encarnou a linguagem fazendo quase tudo o que se pode fazer com ela.

“Quando deixam os anjos de se parecer consigo próprios?”, pergunta Henry Miller pois que nunca tinha assistido a um espírito mais recalcitrante. Miller, que reflecte aqui o seu “plexus” de um sentido refinadíssimo da compreensão das componentes poéticas, pegando ao colo este ser que queima e aguentando-o numa magistral análise que nos faz esquecer o estereótipo que dele guardam alguns, faz-nos reflectir. Nós ficamos doentes. Parece que encolhemos ao lado deles… que nos roubaram o fígado, a alma, os dotes, que a ave devorou as entranhas do nosso génio criador, parece que as coisas que fazemos se volatizam, ridicularizam… Nada a obstar à liberdade de tais seres que deitaram fora tudo aquilo de que os outros andam atrás, rastejando.

E esta fuga vai encontrar Rimbaud não num oásis de predestinados, mas na maior das devastações, e diz Miller: «não se pode imaginar o lugar: não há uma árvore, nem sequer ressequida, não há um tufo de erva. Era a cratera de um antigo vulcão extinto onde um dos lados impediam o ar de entrar. Quer ser independente… como é que um homem de génio consegue enfiar-se num buraco onde vai assar, encarquilhar? Tem de novo medo de ser rejeitado e que o considerem inútil no mundo.»

Não por acaso eles se encontram aqui: são duas personalidades escatológicas, cada uma à sua maneira. Mas há nele, sempre, uma recusa sombria na maturação, definindo-o como o agente do gesto supremo duma juventude triunfante. E assegura que lhe foi dado o privilégio de ver com o olho direito e com o esquerdo, metaforicamente, os olhos da alma. Ele permanecerá sempre marginal e mais desejoso de calcar o mundo de que o conquistar. Creio mesmo que a sua permanência na fonte da criatividade é uma antecipação magnética, telepática, da noção de uma linguagem futura… pois é Miller que acrescentado o diz: o futuro sempre pertenceu e há-de pertencer sempre…. ao poeta: e é tão surpreendente a forma como o reflecte que afirma: «em minha opinião, não existe qualquer discrepância entre a visão que ele tinha do mundo e da vida dos grandes inovadores religiosos. Nós que exortamos coisas sem nexo, perdemos o grande fio condutor daquelas que restam como códigos imperecíveis. »

Creio que o título desta obra encerra toda a substância de uma deriva do mundo pela morte, morte essa, consubstanciada na vida de um poeta para quem os agentes sociais são meros assassinos. Assassinos sem mérito, dado que não há noção aparente dessa condição, assassino potencial seria mais Verlaine, pois eles partilhavam da fonte da criação e só esses têm essa inteira legitimidade, assim, uns assassinos obscuros, dementes, impróprios até para tais limites, a intransponível marca da besta que no Homem dorme como uma molécula parada.

E também estou certa que ele mesmo, Miller, fez a sua prova de fogo a sua catarse na escrita desta natureza, pois todo o amor requer simpatia. E acrescenta o fundo empático e complementar: “Rimbaud restaurou a literatura convertendo-a em vida; eu esforcei-me por restaurar a vida restaurando-a em literatura.” Eles não pertenciam a sítio nenhum e há mãos que quando se apertam dão laços tais que não usamos contemplar a curva de cada uma. Paralelismos sem dúvida “assassinos” mais ainda e transfigura-se sempre o “amador na coisa amada”. E há ainda aquela mãe. E há os Natais. E o que há mais? Mais nada nesta fronteira onde sem dúvida será preciso fugir nem que seja para a cratera de um antigo vulcão já morto.

“Começamos finalmente a compreender até que ponto é pouco moderna esta nossa alardeada era de ‘modernidade’. Quanto aos espíritos verdadeiramente modernos, fizemos o melhor que podíamos para os exterminar. E, de facto, os seus desejos mais profundos parecem-nos hoje românticos: é que falavam a linguagem da alma. Hoje falamos uma língua morta, e cada um de nós a sua. Acabou a comunicação; só nos falta entregar o cadáver.”

A chave que fecha todos os Assassinos do outro lado onde moram. Aqui começa o dia.

 

A quatre heures du matin, l´été,

Le sommeil d´amour dure encore.

Sous les bosquets l´aube évapore

L´odeur du soir fêté.

 

Mais là-bas dans l´immense chantier vers le soleil des Hespérides,

En bras de chemise, les charpentiers.

Déjà s´agitent.

 

Ah! pour ses Ouvriers charmants

Sujets d´un roi de Babylonne,

Dont l´âme est en couronne.

 

O Reine des Bergers!

Porte aux travailleurs l´eau-de-vie.

Pour que leurs forces soient en paix.

En attendant le bain dans la mer, à midi.

16 Jan 2017

Camões e o céu

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] início do século vinte foi verdadeiramente inovador e de uma dimensão moderna sem precedentes, começando pelo Futurismo de Marinetti , o Simbolismo, o Cubismo e todas as formas que ousaram avançar e transformar os signos linguísticos e as estruturas criativas em elementos de plena mudança social. De tal forma que a noção de original se baseou na origem, ao que ela pode servir de reminiscência do esquecido, e com as liberdades sociais que teciam o progresso foi dado ao criativo, ao artista, ao poeta, meios ímpares na transformação da génese colectiva. Olhamo-los à distância de um século e parece que não nos foi dada esta modernidade, esta qualidade, este saber e saber fazer, que uniam partes por vezes tão dissonantes.

Em Pessoa, sabia-se da sua forma hermética para interpretar horóscopos, mas não era só ele: havia por toda a Europa a transmigração das ciências ocultas e Crowley, o mal amado dos poetas, não deixa por isso de ter sido um soberbo escritor e junto a ele a flama sem fim dos espelhos e das bocas mágicas: muitos de carácter sexual que exacerbavam com beleza rara o mito de Pã e as germinativas capacidades da falocracia como estado ébrio da criação. Por isso não devemos deixar de ouvir este Hino, neste tempo em que se fala de paganismo como de idolatria a esferas de prazeres menores. Por esta altura vivia entre os nossos poetas do Orpheu, um homem, também da sua época e não menos inquietante, aquilo a que chamaríamos hoje de reaccionário, o que não deixa que fique como os naturais de hoje, sem interesse, e coisas também elas apaixonantes para contar: falamos de Mário Saa, conhecido pelo seu anti-semitismo primário e suas visões sobre a conspiração judaica. E é numa espécie de pequeno opúsculo que um escritor português mais recente descreve a visita de seu pai a Pessoa, combinada por ele como um momento simbólico de caça invisível à tal “espécie”. Chegados ao encontro, viu Mario Saa em duas, a mesma pessoa, o mesmo chapéu e, insultosamente, o mesmo nariz, empurrando-os humilhantemente um para o outro e culpando tal gene covilhanense. Como todos os “caças-fantasmas”, ele queria provocar em alguns amigos a tímida consciência das suas raízes, da qual ele não gostava, mas também não se separava. Vejamos que estes homens ainda não tinham o surro pequeno- burguês que invadiu a sociedade portuguesa da ditadura; eram homens brilhantes, com posições contrárias, sim, mas que dada a pequenez da organização social estavam condenados a unirem-se.

Mário Saa tem, entre muitas obras emblemáticas, uma, muito ao gosto de Pessoa, «Memórias Astrológicas de Camões», obra essa que lhe terá servido de inspiração para o poema de Saturno e os três anéis – fome, miséria e desolação. É, de facto, uma viagem secreta pelas entranhas do poeta, mais mitológica que lógica, mais simbólica que hiperbólica, mais refinada que exagerada, mais fatalista que elitista, e que nos dá a certeza de que entre mandala e céu conhecia em muito o seu destino. Aliás, esta recorrência a Saturno é muito poética e filosófica, e vejamos: «Sob o signo de Saturno», de Walter Benjamim; «Poemas Saturninos», de Verlaine; a máscara de Dante; «A Viúva», de Gomes Leal, de que Pessoa tanto gostava, pensando mesmo ser dele uma centelha. Nascidos no mesmo dia e com todas as esferas iguais e concertadas, este aspecto de uma radicalidade poética esbate o efeito da Primavera da Poesia, dos serões de meia província, da deidade branda do poetizar, da noção intimista das coisas vulgares. Aqui é de poetas que falamos e não de bucólicas criaturas em vários formatos da sua demência existencial. Saturno, como os anátemas, está gravado a ferros, que o fogo não entra neste frio.

Camões, de quem tão pouco se diz saber, nasceu a 23 de Janeiro de 1524, a um sábado, dia consagrado a Saturno num eclipse do Sol e o resultado parece mais assombroso quando o registo o dá pelas oito e meia da noite com Balança ascendendo. Saturno e Vénus estavam como o refere , em debilidade acidental; seria por isso Aquário com ascendente Balança, o que reforça o carácter estético da sua lírica. Camões quando escreve o célebre poema «O dia em que nasci» tinha uma vasta consciência disto e não nos esqueçamos também de que se baseia no próprio «Livro de Job» e dá-lhe a tónica final numa interpretação deveras fulgurante.

A terrível realidade inscrita nas suas lúcidas formas de saber não produzem facilidade nem estados de consciência brandos, são seres derradeiros que se manifestam no limite … sim – o dia em que nasci, morra e pereça, não o queira jamais o mundo dar… dê o mundo sinais de se acabar… a mãe ao próprio filho não conheça…– aqui está a completa consciência da sua Fortuna, mas Saturno, a quem os matemáticos da época chamavam Infortuna Maior, é o guardião do poeta «chamo dura e cruel a dura Estrela».

Para a definição do ano de Camões estão exaltadas as conjunções de Júpiter e Saturno, conjunção esta que preside aos períodos históricos: Islão, Reforma, Revolução Francesa. A Reforma foi a da época de Camões. Ocorreu no começo desse ano no signo de Peixes tendo determinado os infaustos prognósticos do Segundo Dilúvio Universal que irritados estavam com o Tempo e o Mundo.

Para quem do Amor – não viu se não breves enganos – há que dizer da supra maravilha de uma exigência interior que o faz escolher a Dama Sol, uma tal Violante. Foi esta ao que parece a sua Beatriz a quem chamou «A roxa flor de Abril» e foi sobre a sua sepultura, quando regressado a Lisboa, que escreveu o soneto «Debaixo desta pedra sepultada» gentileza da luz, que a noite escura tornava em claro dia…

É o maléfico Saturno que, antes mesmo da partida para Macau, num namoro de oito anos, lhe ofereceu a ofensa suprema do seu casamento com outro, por não reunir dotes para tal missão. Aquelas pessoas importantes que ninguém sabe quem sejam dado que aquele que não interessava era sem dúvida de importância extrema. Sentir isto é como a pedra forjada pelo elemento duro do astro baço e nem sequer estamos na presença de um homem comum, conquistador, que se limita a multiplicar a náusea da sua triste condição. Falamos de um Homem.

É nestes interstícios sonegados ao saber normativo que estão os elementos mais importantes para a compreensão daqueles que todos gostariam ter sido, mas que não teriam suportado tal destino, pois que é deste ferro, forjado a desterros e abandonos, a equívocos e ranger de dentes, a dias de eclipses, a astros muito baços, que faz nascer o mais belo dos “metais”: a alma humana e o seu génio.

Por isso, bem-digo tal dia, mesmo coberto das trevas de que o poeta se vestiu para que não morressem fulminadas as gentes perante a luz imensa deste ainda desconhecido.

Este tempo era ainda o da velha teoria de Joaquim de Fiore, o do ciclo milenário, e este era o ano que por toda a Europa corriam as notícias dos sinais apocalípticos anunciados para esse mesmo dia, era o tempo em que se falava dos monstros: mais tarde saberia dizer com precisão – Não torne mais ao mundo, e se tornar, Eclipse nesse «Passo» o Sol padeça, Nasçam-lhe «monstros»!

Este seria um monstro teratológico se é que chegou a ser alguma vez criança prodígio, pois que também havia os celestes como grandes sinais dos Céus.

12 Jan 2017

Do amigo e do amado

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando a Terra era maior e os homens mais pequenos por uma proporcionalidade de escalas o amor também perfilhava do mistério insondável da demanda do saber, vivendo-se na ilusão expansionista de uma Boa-Nova e tecendo-se histórias que levadas de um local para outro começavam a denotar um carácter de lenda, na distante Idade Média fundara-se o estatuto do romeiro e do eremita que tanto oravam a santos como a poetas  na linhagem da herança do Império do Al-Andaluz. Do amor nos chega ainda aqui os mais belos ecos e formas de louvor- amor cortês, amor amigo, amor paixão, amor sacral- que traziam para o terreiro dos dias a mais fina interpretação das coisas do Verbo.  Sem dúvida que falamos de outra Humanidade, de outras agentes, de outras demandas e estruturas, onde o casamento ainda era instituição insipiente e a família um laço alargado de Unanimidade. Morria-se muito mais….morria-se ao nascer, morria-se ao amar, morria-se pela terra…. e esta constante presença parecia limar o tecido do amor de forma redentora, e por isso também os reis eram amantes, compiladores de Cantigas, bastardos e legítimos, um laço de uma mesma árvore que brotava sem severas separações… o tempo posterior foi cerrando este respirar até ao estertor  do amor tabu que é onde estamos mais ou menos agora, mas o amor existe tal como as visitações e tem leis que tendemos a esquecer e merecimentos que não vemos,  muito ao estilo de Yourcenar quando afirma  ” não ser amado é tornarmo-nos invisíveis” .

Sabemos das leis da opacidade, mas desconhecemos as outras, numa vaga de sucessivos impulsos procuramos na nossa já quase invisibilidade um ponto de retorno à oração, ao desvendar de nós pelo outro, mas que outro que não há, e nos torna mais em nada? Sabemos lá no fundo que os amantes são a grande proposta de redenção, uma espécie de elemento predestinado sem noção de mudança ou separação, que são férteis, indivisos, poderosos, não expostos aos abrigos das traições sendo quase sempre uma natureza outra fora do ciclo das coisas transformáveis. A sua legenda era, seria, aquilo em que não deveríamos falhar, e foi por ela, afinal, que o erro se instalou.

Ramom Lull foi um prodigioso homem do seu tempo  (século XIII) aquele que fora apelidado como o criador da língua catalã, foi simultaneamente um teólogo, um poeta, um cientista, um místico e um homem da retórica, pois que tempo era que nada estava separado e da sua vasta obra talvez o «Livro do amigo e do amado»  nos devolva quase intacto o tempo em que viveu; fala-nos ele de um eremita que depois do Sol posto ficava em oração até ao primeiro sono, que se levantava pela meia-noite abrindo a cela a fim de contemplar  as estrelas e com oblatas se alimentava da sua ideia de Deus, é um tipo de vida da qual nada sabemos nem  os verdadeiros estados de espírito de quem toma por cada verso do « Livro das Contemplações» a chave do enleio dos dias, pois que esta obra de Lull é uma osmose entre a receptividade e a fé, esse elemento de amor que reflecte o princípio criador. O interlocutor melhorado é esse amado ser, ressonância talvez do seu alter ego que lhe fala da totalidade, da maravilha, é o outro, aquele ” a quem serve o vencedor” e mais tarde é Juan de La Cruz que o vem reabilitar na sua incomparável poesia de inviolável amor na «Noite escura» e« Cântico espiritual»  uma exegese, um ritmo, um anunciado….

São assuntos extensos e porventura intensos para uma abordagem só, mas neles se reflecte toda uma noção poetizante  do «pactum» da alma com a sua natureza, natureza essa que se perdeu na imensa selva do poeta das árvores sem raízes e dos sentidos sem disciplina, não sendo de prever mais que a morte desta arte que mais que exercício de escrita continha a noção de Humanidade, de ciclo criador, e nós, que distantes ficámos, estamos talvez como nunca no mais misterioso de todos os Invernos poéticos, porém, sem a sua existência teríamos perecido e nem aqui teríamos chegado.

Não devem no entanto abeirarem-se as gentes destes oficiantes com suas “botas cardadas” e ilusões vãs, pois não sabendo de quem se trata, pode a vida acordá-los de formas várias e nem sempre as melhores, vezes sem conta numa incontável falta de tacto de que dão provas: mau e bom, perdem aqui aquela moral tão cara ao código primitivo das suas fontes, e só o amor, que não sabem,  parece por fim misteriosamente intrigar neste mensageiro. Sem esta rara estranheza- pensam elas- que o mundo se equilibrava em si mesmo- mas não- pois que há leis que podem fazer compensar as falhas e as tormentas, e como taumaturgos cada um é uma fonte de equilíbrio que  impede que os elementos destruam ainda mais a “casa” dos Homens.

-Adoeceu o amigo e pensava o amado: de méritos o alimentava e com amor lhe saciava a sede, em paciência o abrigava de humildade e vestia com a verdade que curava.-

….e esta dialéctica do outro em permanência só uma delicada presença pode saciar.

         – Libertou amado o amor e permitiu que as gentes tomassem dele a sua vontade; e só encontrou amor aquele que o pôs no seu coração. E por isso chorou o amigo e teve tristeza da desonra que o amor recebia aqui em baixo por causa de falsos amantes.-

Toda a construção enaltece aqui a linguagem dos amantes numa quase unanimidade e concordância. Foi desenvolvido o hábito quase litúrgico da inspiração nestes tempos idos, e por isso, também o Cavaleiro honrava a sua Dama, a Dama defendia o Cavaleiro, e de todas as fontes a que abençoa mais é sem dúvida aquela que nos inspira. Por isso a ordem era Amar.

Aqui me lembro das velhas obras esquecidas como «Os Cavaleiros do Amor» de Sampaio Bruno que perto estão deste mito amoroso, e, quando descidos dos nossos cavalos, vemos a blasfémia do amor reduzido a insidiosa interpretação apetece morrer de amor por algo de irrevelado e do tamanho deste livro.

       -Desejava o amigo solidão e foi viver completamente só para que tivesse a companhia do seu amado com o qual está só entre as gentes-

  Os amantes estão sós no mundo.

29 Dez 2016

Carta ao pai

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]proximamo-nos do Natal que tal como o seu nome indica é uma festa dedicada à Natividade, ao grande projecto que é ser nascido sempre por um mistério mais vasto do que a fecundação ou anunciação. Nascer será sempre o mais belo mistério que temos para festejar, só que esta Festa está repleta de “Cartas ao Pai”, Pai Natal, esse grande senhor velho, emblematicamente, um Saturno feliz que distribui presentes pelos filhos de todos e nos deixa a pensar no patriarcado benévolo e generoso e que é quase como Deus na sua ubiquidade. Depois quem nasce também é menino e da Natividade fica um suporte maternal receptivo e bom, mas sem grande expressão na simbologia final.

Nem sempre as Cartas ao Pai são tão beneméritas e de expectante satisfação. Não, nem os pais são aqueles seres enormes e escarlates que nos protegem nos nossos desassombros perante a dádiva. Existem diálogos e cartas temíveis nesta saga dos pais monoteístas de índole patriarcal e, muito a propósito, a célebre « Carta ao Pai» de Franz Kafka e o diálogo de Jesus no Monte das Oliveiras e o passeio de Abraão com o filho Isaac — ele que expulsará também o seu filho Ismael para o deserto… São encontros verdadeiramente marcantes para a vida dos filhos. Esta é a Carta que pode ser a súmula de muitas outras na relação intempestiva e sombria que estes homens tiveram, numa tribo de progenitores, onde esta relação imediata pareceu sempre ameaçada. Kafka transmite toda a profunda mágoa e tristeza num desabafo, diria intimista e na primeira pessoa, e tenta sem dúvida curar a sua ferida de progenitura.

…. se eu pretendia fugir de ti, devia fugir também da família, incluindo a Mãe, podia-se sempre encontrar protecção junto dela….. Tu mostraste-te sempre afectuoso e afável com ela, mas quanto a isso, também a poupaste muito pouco, tal como a nós…

Um sacrifício que se denuncia por tormento e mágoa de um pai que imperava no topo de um medo profundo, inconsciente, cultural… Uma saga que não deixa ao varão mais do que a sua lei e temor pelo elo da progenitura e assim exerce o seu domínio. Esta «Carta ao Pai» não é uma Carta ao Pai Natal! Porque o pai é seminal ,não busca mais que a continuação da sua espécie por meio de uma realidade que não chega para manter vivo um homem e se Isaac tem a protecção do Anjo, já em Jesus, o Pai derradeiramente se silenciou no estertor da imploração do Filho. Por isso, nós fomos cobrindo de flores e de luzes a chegada de um menino e pondo homens vestidos de vermelho para alegrar esta festa. Ela não devia dar continuidade a uma imperiosa manifestação patriarcal. Mas Kafka, como judeu, também não tinha Natal, esta não era a sua Festa, mas o reflexo dela mantem-se na continuidade da mesma saga, porque da mesma essência se trata aqui. Creio mesmo que este seria um belo presente de Natal na rota da desocultação desta herança – este livro – mas como o tempo é de festa, talvez a família, mesmo cristã, não ficasse com a consciência tranquila de que ela é de facto uma boa instituição.

… Afirmas que facilito as coisas para mim fazendo recair sobre ti a culpa da nossa relação, mas apesar dos teus esforços exteriores, não as tornas mais difíceis para ti, mas bem mais suportáveis. Mas enquanto eu te acuso, tão abertamente como o penso tu queres livrar-me a mim também de toda a culpa…

E esta culpa, na qual se inscreve a filiação, tem no entanto o mérito de em si possuir um vínculo inquebrantável, como se sem ela a própria noção de vida nestes abismos patriarcais fosse inexistente. Existe ainda uma prática transcendental e bela que é a dos judeus ralharem literalmente com Deus, expondo-lhes as suas mágoas, mas numa tal e tão tocante manifestação, que uma razão linear e fora daqui não entenderia. Mais tarde, este pai tem a autoridade exacta de um castrador, quando impede Kafka de casar com a mulher que ele ama, o que por uma lealdade entre homens acaba por ser obedecida, e diz:

eu queria nunca mais estar “no caminho da tua felicidade” e em segundo não quero ouvir uma tal censura da boca do meu filho. E a minha autorização para o teu casamento não impediu as tuas censuras, pois tu provas que, de qualquer forma, sou o responsável pelo teu não casamento. Se não me engano muito, ainda me parasitas com esta Carta enquanto tal”.

Prova-se assim a vontade de ser Um no Pai, de ser Um no Filho, e esta alternância que desmente o mito do individual faz do patriarcado uma história ultra-secreta ou de um amor louco ou de uma vertente consubstancial à vida. Por fim, o Filho entrega-se e espelha-se no Pai que o diz soltar para que cresça, porque olhar para trás, só mesmo uma mulher para ficar transformada numa estátua de sal. A mulher de Lot é uma estátua à desobediência, toda ela petrifica, segundo as leis que aqui estão inscritas. Talvez que Filho e Pai não tenham costas e se debrucem numa forma multifásica para continuarem assim tão indivisos. As Mães têm “costas largas” e acontece sagrarem a vida pela Festa da Natividade, não olhando muito também para trás quando as leis lhes levam os filhos e não sabendo exactamente o porquê do seu imenso amor não os proteger.

Seja o que for a Carta, aqui vai um pedido ao Pai Natal: abençoar as mães e deixá-las no repouso maravilhoso dos seus dias e que os filhos as reconheçam sem precisarem de escrever Cartas. Kafka ainda considerou durante algum tempo ir à Palestina, a eterna terra do Pai, mas adoece morrendo pouco depois.

O grande insecto podia ser, nestas paragens da mente da «Carta», uma estranha Louva-a-Deus, elemento mórbido para um elo assim, que fugiu sempre em frente, num secreto horror, também ele, de poder ser também a própria mulher de Lot, e se viu defronte à imagem do seu mais angustiante medo, que bem pode estar inscrito nalgum gene masculino que representa a saga fascinante do patriarcado. Sabemos que engolir “sapos” pode significar consubstanciar um príncipe, mas que consubstancial, só mesmo ao Pai.

Querido pai

Perguntaste-me recentemente por que motivo eu afirmava ter medo de ti

… começa assim então a longa Carta.

19 Dez 2016

Um Canto de mim mesmo

Oh Captain, my captain,
Exult O shores, and ring O bells!
But I with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.

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Walt Whitman

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s noites que antecedem o Solstício de Inverno são longas e frias, muito escuras quando a Lua-Nova incide ainda mais na grande muralha do tempo que, desde os cultos de Mitra, forjaram o pavor primitivo dos Homens, que nas fundas grutas pensavam na chegada de uma noite eterna e nas Altamiras oravam ao Sol para que não os abandonasse naquela noite profunda. Tão em silêncio e reclusão estavam, que no meio deste labirinto já nem viam o grande Minotauro, mas foram descobrindo, como a primeira das revelações, que quando chegados ao ponto vernal, ela, a estrela que pediam que voltasse, aos poucos ressurgia no escuro dos dias, timidamente e gloriosa – o Sol – o invictus Sol!

Mais tarde as Saturnais Romanas, o Purim judaico, o Natal católico (faltando o Islão que se anunciou como um crescente lunar) as Civilizações foram as do Sol, e as culturas dos Homens lhe renderam homenagem.

E foi nestas noites trazidas e enlaçadas nas veias que, numa plataforma singular, me recordo dos Poetas Mortos, de todos aqueles que trazem o facho de luz da esperança e da incandescência para a Humanidade, que contacto com o corpo do poema no éter puro: recordo-me de – My Captain – “meu capitão jaz morto e frio” na madrugada exacta da morte daquele que para uns é ígneo de ferocidade, para outros a luz que faltava, para muitos um resquício do «Crepúsculo dos Deuses» e para outros um rico, muito rico, disfarçado Comandante: seja quem for, ele vive no tecido do Poema e não fazer muitos juízos de valor quando encontramos o que faltava saber nas formas não reveladas. Tenhamos apenas o humilde reflexo de as ter sabido interpretar, sem resquício de idolatria, mas relembrando o quão terríveis podem ser, muito embora solares e generosos, aqueles que os destino inventa para representar os mitos – os deuses não nos querem de joelhos, e se inábeis lhes erguemos um altar, ficam parados e tomam a decisão de se calar.

«Um Canto a mim mesmo», redundantemente sinónimo do cantor, pode ser agora «Um Canto a Galiza», um « Canto do Cisne», um Cantar de Juan de La cruz na «La noche escura del alma», tudo o que um profético Ulisses desembarcado na sua ilha tendo como amante a sua Calipso como um sonho a conquistar. Não lhe vamos oferecer flores, a longa fila de outros mortos sugá-las-iam de dor, esses seres vegetais para coroar as fadas, mas as oferendas aos mortos e dos mortos são coisas tão irreveladas, que nos interpelam como os segredos. Concomitantemente ao aniversário de William Blake, ele traz-me Urizen, aquele deus da afirmação auto-suficiente que se afasta do mundo indiviso da eternidade para ver consumado o perpétuo isolamento do seu mundo e fixados lhes foram os caracteres antropomórficos pela via metalúrgica e um novo mundo começa. Como um raio suado de coincidências alerta-se para o estado gasoso da matéria do poema, que se une em factos nas passagens de plano, e desta matéria dos mitos se faz o dedutivo momento de que somos visitados pelo organismo intacto que sobrou da vasta matéria onírica…

Uma Lua-Nova na constelação do Centauro talvez encete longe a sua força e nos deixe naquele espaço que a visão já não alcança e só pelos olhos do assombro podemos visitá-la. Como nota acrescente-se que Blake se situa exactamente na transição da cultura inglesa para o século XIX, entrando em conflito com a civilização igualitária do liberalismo moderno e que Whitman no ano em que nasce Pessoa é atacado de paralisia e publica «November Boughs», os seus últimos sessenta e dois poemas, ajudado por um amigo que angariara fundos para a sua publicação. Novembro das noites altas como catedrais, sim, que hoje mesmo neste trinta de Novembro nos levaram Pessoa e Wilde, e na noite sem estrelas, avança a maravilha do contacto como nos refrões vindos da gruta mágica, emblemas tão vivos que quase se faz luz em todo o interior e a premonição é um estado de alerta e de comunicação tão férteis que devem estar unidas ao imenso grau de empatia dos estratos humanos.

E, em jeito de Barcarola, que as barcas são dos Argos e das ilhas, vamos construindo a viagem e sabendo que ela é a vida que no términus se despede, e se anuncia assim:

Ó Capitão! Meu Capitão, terminou a terrível viagem.
O navio resistiu a todas as tormentas o prémio que buscávamos está ganho.
O porto está próximo, ouço os sinos, toda a gente está exultante.
Caminho agora no convés onde está o meu Capitão.
Tombado, frio e morto.

A viagem de Ulisses terminou. As Ilhas são locais de amor e de alguma sede de reclusão. Sabemos de como a insularidade nos toca, e, de quando em vez, temos vontade de ir para uma só nossa, onde possamos prosseguir o sonho da Utopia. Os continentes não produzem sonhos, nem neles achamos a vasta memória de toda a fonte poética que, podendo ser deleitosa, será em si a terrível face do universo que não quisemos indiviso. Afinal, o pacto foi também que todos os gases nobres não se misturassem, tal como todos os elementos também nobres que tendem a estabilizar. Sem esta fixidez seríamos náufragos baloiçando nos mares ao sabor das coisas indistintas, e, os Velos de Ouro estão guardados para os que, com a persistência das missões quase olímpicas, o resgatem e encontrem.

Nós, no torvelinho de tempos móveis como areias muito movediças não sabemos captar a fantástica função do mito nem dele tirarmos a devida lição da beleza escondida. Daqueles que para o pior e o melhor forjaram os metais de Vulcano não desejando mais que a sua altivez face à banalidade do ouro dos bárbaros, nós, já não sabemos ver para além da moral dos tempos nem ter o espaço para os encantamentos, por isso os Argonautas morreram, e as barcas são essas coisas informes boiando nos mares para velhos ricos que procuram a sua ilha. Ela não está em lado nenhum, nós somos um hiper-Continente, uma cadeia de mercados onde nos abastecemos para lidar com o mundo como se ele fosse linear e igualitariamente programado.

E, porque a noite é longa e os tempos um plasma indistinto, oiço dizer aqui em meu ouvido a frase de Whitman: – se à primeira não me encontrares, não desanimes, se não estiver num lugar, procura-me noutro, algures estarei à tua espera -.

É bom saber desta verdade.

12 Dez 2016

Não entres docilmente nessa noite escura

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«Do not go gentle into that good night»

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] este foi o ano em que sem nos apercebermos, os sons foram lembrados para celebrar os poetas. Dylan Thomas, o quase ainda romântico escritor inglês, nascido no início do século passado, anda distante do movimento surrealista, mas próximo do círculo iniciado nos finais do século XIX por Freud e também do legado das expressões míticas que tanto se fizeram sentir em Yeats como em T.S. Eliot. Estava aberto assim o dilema entre o eu poético e a vertente da natureza social e todo este riquíssimo desocultar da psique, conjuntamente com a raiz da herança céltica deu uma poesia absolutamente intransponível na sua dimensão de vínculo cultural. Chegados aqui, todos sabemos então que o Prémio Nobel da Literatura que não tendo, é claro, a importância capital tão discutida, pois que também é certo que o tempo em que vivemos é todo ele o da relatividade quase absoluta, tanta, que a poesia passou a ser feita por agentes que ou não devem entender do que se trata ou tudo tem efectivamente uma outra interpretação.

Bob Dylan, nascido Robert Allen Zimmerman, deve o seu nome a Dylan Thomas. Aqui foi efectivamente o Prémio em Poesia que se fez sentir na vontade de ser e na qualidade de se ter tornado quem foi, o que denota a justa forma de saber homenagear. Há um conflito de posição face ao estereótipo do criativo, como aquele que se faz a si próprio numa auto-suficiência ilusória: no fundo, acaba por ser uma atitude mais política que poética norteando os dados para um conjunto de influências que ajudem a sua causa numa espécie de campanha que norteará o “eleito”. O que se passou com este Prémio foi singular e emblemático pela justa forma de saber ver que o mensageiro que soube tão bem interpretar a mensagem é a título abrangente o depositário do Poema.

Dylan Thomas morreu jovem, tinha trinta e nove anos, tendo publicado o seu primeiro livro aos vinte «Eighteen-Poems». Teve trabalhos, sim, mas aos trinta e dois anos tornara-se poeta a tempo inteiro pois que não há poetas a tempo parcial, nem a vida de um criativo é uma felicidade ingénua à boa maneira do antigo S.N.I. dos «pintores de fim de semana»: talvez até, que para escrever somente isto: “clama, clama, contra o apagar da luz que finda, que a velhice arde e brada ao término do dia“, se precise muito mais que pendor e, mesmo que se morra novo, se tenha experienciado por lucidez a pavorosa passagem do tempo. Não por acaso o tema da morte é tão significativo nesta poesia e acaba por ser o motor de uma tradição poética europeia que Bob Dylan, que humildemente não se considera poeta, soube trazer nessa herança, e não mais que ouvi-lo para saber da contingência entre os movimentos vitais de criação e de destruição. O homem quando nasce, como expressamente nos diz, « é suficientemente idoso para morrer».

Neste poeta há sem dúvida referências bíblicas, tal como em Eliot na «Quarta-feira de Cinzas», e também em toda a estrutura dos poemas vamos desvendando o conhecimento simbólico, que, tal como em Dylan, o torna muito mais simbolista que metafórico. Estamos no campo em que descemos do ego cardíaco e nos adentramos no mistério comum que nos inunda de respeito. Saídos da esfera da perturbação vamos entrando nos assombros e nos próprios abismos de olhos abertos, essa lucidez tão cara a um poeta:

E a morte perderá o seu domínio.
Nus, os homens irão confundir-se.
Com o homem no vento e na lua do poente;
Quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos.
Hão-de nos braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
Mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir.
Mesmo que os amantes se percam , continuará o amor.
E a morte perderá o seu domínio.

Mesmo que os amantes se percam… sim, o amor continuará e os amantes reencontrar-se-ão, talvez, num tempo descarnado das suas pobres vísceras, mesmo que tudo se perca. Perder é depor as armas e estar mais desperto da essência e no sopro longo do Verbo lá está o amor: ” no fim, ainda que os lábios aceitem as trevas, porque se esgotou o raio das suas palavras, eles não entram docemente nessa noite serena”.

E se mais andarmos vamos até ao rei Artur e Guinevere – a das longas tranças – a Ilha das Maças: “e o tempo deixava-me acenar e subir, dourado, na grande luz dos meus olhos: era, venerado por todos, o príncipe das cidades das maças”.

Pois que já nem temia os dias brancos como cordeiros que lhe viessem erguer o tempo, nem a vida do lado de fora de um reinado mítico acrescentaria mais luz que a doce lã das ovelhas; sim, temos aqui a sacralidade do poeta orando na versicular legenda da escrita e talvez seja esta noção tão íntima que transmite a maravilhosa manifestação de que estamos diante do inesperado que traz em si todo o silêncio antes de reflectirmos o que devemos dizer quando aceitamos as dádivas.

Há aspectos que se isolam ao alcançarem a plenitude, e nós, a quem tanto foi tirado em troca de nada, convém que nos devolvam todas estas noções e um mundo onde elas possam de novo caber, ampliando o sentido do que está retido nestas vozes. Por isso:

– NÃO ENTRES DOCILMENTE NESSA NOITE SERENA

que te querem dar, como um Prémio, de que não foste obreiro nem construtor. A vida que nos dão foi-nos imposta, requer-se a vida conquistada, para quando menos esperarmos podermos saber o significado de todas as palavras.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

28 Nov 2016

Esta é a voz da Europa

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o momento em que vivemos é importante a voz de Ezra Pound, esse chamado poeta maldito, designação que não passa de uma interpretação interpelada, interpelante, sempre pouco assertiva, dado que não são eles – ele, neste caso – a causa provável das maldições. Essas vêm de aparelhos com encantos que os povos sustentam e apoiam como formas de felicidade. Um anunciador de factos, mesmo extemporâneos, não pode constituir ameaça, a menos que seja um alucinado fabricante de teorias da conspiração. Neste caso temos um homem que trabalha em simultâneos tempos diversos e os articula com a velocidade visionária de uma mais vasta chamada de consciência. A sua voz ecoa nestes dias de americanas vitórias.

Ezra Pound é o autor de «Cantares», um tratado de poesia absoluto, e o seu léxico não é aqui um exercício metafórico, abstracto: ele usa o chicote da linguagem directa numa forte aceleração cerebral como se de partículas se tratasse, com uma forte vitalidade da essência. Ele liga o Oriente e o Ocidente na forma trabalhada da matéria do poema; ele amplia a linguagem e diz que a poesia difere da prosa pelas cores concretas da sua dicção. O poder inovador é imenso, a sua importância, uma lembrança das melhores, sempre em oposição à ambiguidade de índole surrealista.

Mas voltemos ao nosso instante, ao momento histórico onde, como nunca, ecoa a estranha voz de Pound. As Conversações Radiofónicas foram feitas em Itália, onde falava acerca dos falhanços da economia norte-americana no tempo de Roosevelt, ligando-o de certa forma a regimes que o tornariam impopular, pois que nada lhe fora indiferente. Tentou voltar ao seu país em 1941 mas tal desejo foi-lhe negado, achando que a guerra instalada era devida à Finança e ao que ele chamaria de Usurocracia, lembrando aqui o seu poema Usura, e nesta análise ele não estava só tendo mesmo a seu lado o Nobel Sir Frederico Joddy, numa altura em que tal prémio não era politizado.

Eram vozes que deviam ter sido escutadas com uma maior acutilância e consideração, sem a marca, sem os evangelhos políticos transformados em nova religião, e quando as tropas norte-americanas chegaram a Itália tiveram como preocupação imediata a sua captura e, pior, muito pior, que os seus já volumosos inimigos europeus foram sem dúvida os seus compatriotas: vai para uma cela para ser condenado à morte, é submetido a torturas e finalmente metido numa jaula com barra de ferro deixada na floresta. Acusado em Tribunal, os juízes declaram-no, contudo, louco, e ordenam a sua reclusão num hospital psiquiátrico.

A sua voz não era aquilo que hoje apelidamos de politicamente correcta, sabemos que aquele que se atravessa nos dogmas dos tempos é banido pelas suas épocas e sabemos também como é fácil criar anátemas perante algo que nem entendemos bem. As pessoas, ontem como hoje, são exactamente as mesmas e nem os seus pares – sobretudo os seus pares – não estão lá para acalentar quem os pode de certa forma destronar. Mas Pound resiste, um homem destes não se abate, volta a Itália e aqui chegado declara que saíra de um manicómio de cento e oitenta milhões de habitantes. Hoje são mais, e mais loucos também, mas esqueceram-se nas suas encíclicas neoliberais daqueles que alertaram para o efeito de repetição e a transitoriedade das verdades absolutas.

E andamos mais ou menos por aqui nesta impressionante tirada de Pound:

“Americanos, nunca fizestes nada para vos curardes, maldição! Nada! Infestado o mundo, fez com que o nome da Inglaterra fosse maldito desde Pretória a Singapura até Calcutá. O seu centro é agora o outro lado do Atlântico por isso não vos devemos nenhuma gratidão se agora vos puserdes a devorar as energias vitais – Nem seria pecado se vos afundásseis afogados por um sistema que destroçou toda a cultura clássica…

“Aqui Ezra Pound, que fala de Roma. O significado de Churchill e do bolchevismo encontra-se nas valas de Smolensko.

E talvez tenhamos que ouvir certas vozes, mesmo à revelia dos tempos ou sem a sua concordância. Esperam-nos talvez súbitas revelações que sabemos ter escutado como um grito de advertência onde o eco se desvaneceu; nós, que tanto ouvimos e vemos, estamos em parte toldados para olhar um futuro comum e, no instante em que tudo for a selva da lei da sobrevivência e do mais forte, aí sentiremos a marca de todas as coisas anunciadas e elas repetem-se, como um longínquo coro grego que os nossos sentidos recordam.

“Alguma coisa aconteceu na Velha Europa, aconteceu alguma coisa na Europa e não sabeis o que foi. Não sabeis o que se passou, qualquer passo em direcção ao preço justo, ao controlo do mercado, é um acto de homenagem a Mussolini e a Hitler.”

Em tempos como este os escritores deviam era descer do pedestal e falar sem papas na língua. E lembra Céline: “L´homme n´est pas venu sur la terre pour devenir de la merde!»

Toda esta desdita é o mais fidedigno exemplo da crueldade desta época de desconcerto, toda a saga do pensamento que se escuta rouco e em brasa não é passível de nos fazer entender os «Cantares» e, porque de surdos se trata, no receptor ouvimos agora surdamente os roncos de alguns tambores de guerra que ficam sempre presentes nos disfarçados ouvidos dos bárbaros. De que a Europa é feita! De que a América é feita! Até a um coro ensurdecedor que transformou o mundo num duro lamento.

 

DAQUI A VOZ DA EUROPA.

ESCUTO EZRA POUND.

 

 

22 Nov 2016

Furor e mistério

Saber que o mal vem sempre de mais longe do que pensamos e que nem sempre morre na emboscada que lhe lançámos.
René Char

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]sta é a obra que todo o poeta gostava de poder reunir sem lhe arderem os dedos e secarem os olhos à medida que vai percorrendo o ciclo do tempo criativo com a gravidade dos que precisam de unir as pontas destes véus por vezes tão soltos, tão sós, tão perdidos, entre as multidões de opacidade vária em que o mundo se tornou, podendo fazer de um poeta, também, um ser em desintegração. Só que, ele tem esse fio de prumo no acento de todas as fórmulas por onde desliza, e em mistério e pensamento, reúne o que esse divino imanente que o habita o manda interpretar. Ao contrário da lixeira poemática dos dias em que se tornaram as referências, com actos isolados e “papéis bordados a tinta” sem nenhuma intimidade com a estrutura poética de uma vida, aqui, isso nunca era passível de ter acontecido. Char, abandonou os pragmatismos da vida comum  para interpretar um destino e fê-lo na singular e alquímica experiência de  um iniciado. Coisas que se não forem exactamente assim, jamais serão o que quer que seja que  valha a pena contemplar.  O poeta René Char não era outra coisa a não ser um  poeta. Não era um fazedor poemático isolado, e isso, só por si, é de um maravilhamento sem limites, nós, os que nos damos, não suportamos a acumulação de funções, nós, os que amamos , amamos sempre, e mais, a mesma coisa, aquela com que nos casámos nos dias felizes dos juramentos eternos.

Nenhuma leviandade, nenhum cansaço, nenhuma infidelidade entram no imenso espírito de um poeta, não pode viver com a fealdade de uma traição nem com uma permanente falta de atenção para consigo num esquecimento sem memória, pois que ele constrói e une todas as memórias e por vezes, a falta de rigor e o desconhecimento  dos outros face à sua,  sempre, e naturalmente, gentil pessoa, abrasa-o, pois que não sabe como encaminhar os outros  e não entende a distância que o mantém tão isolado. Sim, a Humanidade não é polida, nem sensível à sua existência neste mundo, muitas vezes mandam-no fazer coisas que ele só de ouvir se envergonha, pois não sabem, que o seu pacto é uma fera consciência que não sabe  transmitir numa linguagem imediata.  No entanto, há que viver, até para continuar fazendo a obra, viver é muito abstracto, e, se não houver uma causa, um amor, uma demanda… para que serve uma vida? Para que serve o prazer isolado dos dias sem um fio condutor de alguma eternidade?

Neste momento histórico vivemos uma interface programática de incentivo à criatividade, só que, as pessoas andam  na mansidão terrível dos regimes como se cumprissem pactos com eles, e, na profunda superfície de vidro vazio « Furor e  Mistério» não está, por que para estar, seria preciso uma natureza religiosa, uma espécie de êxtase perante o abismo daquilo que é o vazio e o desconhecido , era preciso, entretanto, que a palavra fosse uma lava de matéria ardente para ser desocultada:  nada disto nos dita nestes  dias dos frémitos do esvaziamento pelas explicações indevidas,  como se tudo fosse explicadamente  acessível e em tudo tivéssemos que orientar o pequeno mundo que vai sendo o global instante de um reconhecimento vário.

Se há uma« Homenagem e Fome» em verso livre numa destas páginas, ela transmite o mundo de Elliot junto daqueles ossos que se tornariam vida….- “Hão-de viver estes ossos?”- Aqui é uma  Mulher e não a Senhora de Elliot, toda semente para feras ansiosas, numa hora esteva de ossadas…. daquele homem que para melhor a adorar recuava indefinidamente….com esta sorte sabia então que a terra não iria morrer e a fome era só o tormento de uma espera.. ..- Perguntar-me-ão, do poético da  composição, pois que nada existe de mais poético que a carga de uma insuportável vontade   que não se rende ao espaço da diversão narrativa que retira a força da tenção.   Dar às pessoas uma dose articulada de resultados é adormecê-las, e ao manter a máxima inquietude, a linguagem,  é o puro exercício poético.

O amor que em tempo de consubstancialidade assume o integrar o outro é mais que possessividade, é a legenda de uma absorção  radical  que se deseja, e « Allégeance» é um fenómeno sonoro de longos mistérios a cumprir:

Dans les rues de la ville il y a mon amour, peut importe oú il va dans le temp divisé. Il n´est plus mon amour chacun peut lui parler.

il ne se souvient plus qui au juste l´aima et l´éclaire de loin pour qu´il ne tombe pas.

Nós que atravessamos tão sós os nossos instantes, que trabalhamos para as auroras como se as conhecêssemos, que ficamos  nos limbos das terras alheias, que não tendo chão, também perdemos o gosto de  andar, não estamos nos locais que outros deviam ocupar. Ou estamos? E se sim, por que não os ocupam?  E se estamos por que não fazemos  pontes? Toda esta mágoa…este tecer, e ler a beleza que aqui está, nos faz…não sei, prisioneiros, e depois não mais estaremos juntos sorrindo com o gosto dos dias nos nossos rostos….

Char, nesta bela recolha diz que o poeta vive na maldição, isto é, assume perigos perpétuos e renovados do mesmo modo que recusa, com os olhos abertos, aquilo que outros aceitam com os olhos fechados: o proveito de o ser. Passando por todos os graus solitários  de uma memória colectiva, da qual as regras do jogo o excluem.

Neste imenso brilhantismo incandescente faz a obra  cujo resultado é mais do que podemos suportar, e, no tempo das leves brisas estas Fúrias tão gentis revolvem a nossa natureza que deve estar disforme de tanta voz dissonante e matéria volátil, nós que agarrados às Barcas aguentamos os lemos, não nos atiramos à água por medo da fúria magnética. No fundo as sereias cantam…mas, quem as encanta são ainda os poetas que presos aos mastros continuam a misteriosa Viagem.  E agora que as correntes se foram nos silêncios dos cânticos, nos vazios dos mares,  talvez não se entenda por que se morre nas travessias das guerras que preparámos só  por não  sabermos compor. Sempre que deixamos os Ofícios dos Mistérios os mares tornam-se grandes sepulturas, e os nossos olhos, secam, para não ler o mapa de um mundo que  se liquefaz e se desfaz.

« Viver com semelhantes homens»  tenho tanta fome… durmo sob a canícula das provas. Viajei até à exaustão, a fronte sob o enxugadouro nodoso. Já não é a vontade elíptica da escrupulosa solidão… mostrai  os vossos desígnios e essa vasta abdicação do remorso!

Tanta gente!  São nossos irmãos.

15 Nov 2016

De Profundis

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] arte como epístola deixou há muito de fazer sentido dado que todas as formas de comunicação directa nos distanciaram deste exercício quase lendário que em muitos recantos de nós nos deixam vivas saudades. Aquela espera, aquele interesse nas linhas que dizendo nos indicavam e escavavam coisas tão ilegíveis como proféticas, tão enaltecedoras quanto expectantes… Foi assim, nesta busca de signos esculpidos pelos dedos quantas vezes nervosos, que demos ao amor uma carga imensa e nos fomos fazendo seres da escrita no que ela tem de mais narrativo, sentido, oculto e registador. Estávamos tecendo a renda interna das nossas emoções e tentando dar-lhes o suporte perfeito de um conteúdo: muita gente debruçada  em folhas de papel foi educando os sentidos e deles unindo todas as letras que reverberaram em uniões sentidas e mantidas pela vida fora, pois que nelas inscreveram vontades e tudo o que se escreve a outro adensa o registo do que a ela nos une.

Foram lendárias as cartas, desde Abelardo e Eloísa, a Rilke e Salomé, a Soror Mariana, a Pessoa e Ofélia, em outro registo de Laranjeiro a Unamuno, elas foram tecendo o melhor da identidade literária não podendo por isso serem passíveis de esquecimento ou ficarem num reduto silenciado da matéria da escrita. E é exatamente nesta linha que a longa carta de Oscar Wilde a Lorde Douglas insere neste texto a matéria do discurso. Wilde, que até esta  monumental carta tinha sido o arauto do «esteticismo» na defesa da arte pela arte, na medida em que é a vida que imita a arte e nunca a arte que imita a vida, banindo todo o comprometimento moral  e social, dado que a inteira liberdade nada tem que justificar, alcança aqui a transcendência  do grande desconhecido de si mesmo: dir-se-ia que é o seu legado de redenção este momento em que em golfadas de deslumbrante e dádiva vai expor a sua natureza religiosa abrangente e mística no enaltecer poético de um cristianismo que lhe desconhecíamos. E é aqui, que ele eleva Cristo à figura do grande poeta do mundo, da beleza de ser sem roupagens. Ele que na sua qualidade de antigo “dandy” chorou lágrimas amargas até à consciência que aqui nos presenteia.

Vem esta célebre carta a um tempo de queda e dor e também de tudo aquilo que o despiu de si, que se inicia como todos sabem com uma acção judicial onde vai procurar defender-se da difamação contra o pai do seu amante, Alfredo Douglas, Marquês de Queensberry. Enceta a sua defesa, mas perde, é condenado a uma pena de prisão e Paris vai encontrá-lo na miséria absoluta. Mas neste estertor, neste desmantelamento de si, ele vai então fazer a obra que nos fascina.  Ele vai recordar-se então de muitas passagens bíblicas, vai interligar os factos, enumerá-los, compreendê-los, quase incarná-los na sua desdita que enuncia numa estranha paz para quem passa por tão desconhecido tormento. Ao longo desta leitura vamos nós mesmo pondo em causa tanta coisa… despindo-nos de outras e, não raro, marejarmo-nos de lágrimas, pois não é a sua dor que nos interessa mas a capacidade que tem ao superá-la pelo entendimento da perda.   

Não o reconhecemos, quase, naquela outrora e genial soberba, naquela garbosa e distinta imagem de si mesmo. Ficamos por instantes atónitos, quase que molestados por tanto desassombro e, com ímpeto difícil de entender, começamos a pensar que este inimigo que o levou ao fundo foi afinal um anjo salvador: entender isto é um acto de pura iluminação, saímos limpos desta carta como de um banho no Jordão.  Não há aqui, nem ódio, nem punição, aos carrascos, ao destino, aos fados maus: apenas é gigantesco o narrar daquilo que foi amor e nos faz pensar na estranha maravilha de quem ama, daqueles que são por natureza amantes. Wilde não esconde que é frágil, que está só, que fora abandonado, mas é aqui que paradoxalmente ele fica maior, tão grande, que tudo mingua. Ele fala das feridas como se se psicanalisasse para melhor entender o mistério do mundo, ele diz: – eu fiz, eu dei-te, eu estava… – mas não se lhe nota tristeza, creio que nunca esteve tão lúcido e tão admirado face ao resultado do mundo.

“Os deuses tinham-me dado quase tudo. Tinha génio, um nome reconhecido, uma posição social elevada, brilho, coragem intelectual: tinha feito da arte uma filosofia e da filosofia uma arte … despertei a imaginação do meu século… resumi todos os sistemas numa frase, e toda a existência num epigrama… diverti-me a ser um flâneur, um vaidoso, um homem da moda…

“Estou na prisão há quase dois anos. Agora encontro, escondido no fundo da minha natureza qualquer coisa que me diz que nada, em todo o mundo é sem sentido, e o sofrimento menos que qualquer outra coisa e essa qualquer coisa escondida no fundo da minha natureza é a Humildade.”

Todas estas linhas são litúrgicas e, sendo a verdadeira «Carta aos Coríntios», não deixa de ser também dirigida a cada um de nós, que julgamos e estigmatizamos, que procuramos a culpa e os culpados, que nas formas mais naturais de ser só somos enquanto emitirmos  opinião e dela fizermos alarde. É uma carta aos Douglas escondidos em cada um de nós, tentando comer a presa gigante e derrubá-la  por leviandade; a nós, cujos dons desconhecidos nos fazem enveredar pela protecção alheia, por isso tem duas leituras intensamente vividas em ambos os sentidos.

Ele diz que embora Cristo não tenha dito aos homens «Vivei pelos outros», afirmou que não havia diferença entre as vidas dos outros e a nossa e que por isso mesmo deu ao homem uma personalidade titânica.  Não sei se Douglas alguma vez a leu, talvez isso seja o mais irrelevante, pois não seria este Wilde aquele que lhe interessava , mas caso a tivesse lido, como foi  a sua vida a partir de então?!

Não se nos ocorre dizer muito, de algo que diz tudo, porque dizer de algo assim, é quase nada, é uma demostração de rotina linguística que pode até fazer o efeito contrário e, também, ainda não há exegetas literários em matéria de texto público… mas, detemo-nos a  tentar, talvez ousadamente, neste algo em que a tentação foi para sempre banida.

Estava preso e era pobre, restava-me uma coisa bela: o meu filho! Subitamente, ele foi-me tirado pela lei, cai de joelhos, inclinei a cabeça e chorei. Encontrei a alma intacta como a de uma criança e entendi o que Cristo, enfim, dissera.”

Uma carta para a Eternidade. Uma carta que não se diz.

Não será com as cartas aos «Coronéis» que manteremos vivas as epístolas, nem sabotando o receptor que lhe iniberemos o gosto por outras leituras. Aqui, não há patentes, e fica patente, que o que se disser, não regista o que ela tão brilhantemente nos anunciou.

8 Nov 2016

Ser a vida inteira

Vinho! A jorros! Que ele palpite nas minhas veias! Que ele fervilhe na minha cabeça!

Taças… Depressa! Eu já envelheci…

Omar Khayyam

[dropcap style≠’circle’]– S[/dropcap]im, agora que o Outono chegou, que as tardes são mais maduras e a luz se vai coando de uma quietude quente onde as formas ganham um relevo suave e a nudez fica mais vestida – apetece sempre esse vinho da lenda que foi Omar Khayyam. Na sua Pérsia natal ele representa a herança da cultura grega numa sociedade muçulmana, onde nasce em 1048 para levar uma vida de sábio, de estudioso e rigoroso observador. Para tanto lhe valera uma pensão vitalícia que lhe permitira uma imensa criatividade e deleite intelectual. Um pouco isolado das tradições religiosas e filosóficas da época, Sufistas e Islamitas, não menos redutor se torna o epíteto de poeta do vinho dada a sua perspetiva universalista. Há um panteísmo filosófico, resultado hedonista da sua herança helénica, acerca do maravilhamento do instante e da hora que passa elevado a arte de viver, talvez um pan-helénico em terreno nada conflituoso para a sua energia poética.

Vejamos que mesmo assim o Sufismo também introduz muitas notas sonantes na sua poesia no que diz respeito ao amor e a uma busca da pobreza que facilite o não andar agarrado às sombras ilusórias da vida. Aqui aproxima-se deste estado de coisas e leva até ao seu diálogo a influência pois, como bem sabemos, beber vinho não é prática islâmica. Um deus báquico nascido na bela Pérsia que vai escrever as suas” rubaiyat”, que são uma renovação da poesia persa e que têm como princípio estilístico uma separação das formas tradicionais. Obviamente que tais deslocamentos estilísticos se tornaram não muito ortodoxos face à religião oficial, o que não as fez menos populares.

“Ruba’i “significa pequena composição e usamo-la no plural, aproximando-se sem dúvida às influencias orientalistas do Haiku, mais epigramática, talvez, mas fazendo jus a uma grande síntese de linguagem. Usamo-la como a base de uma máxima estética ou de um efeito, de uma moral contida em forma de sabedoria. É efectivamente a antítese da nossa forma de dizer tão repleta de argumentos que enumera até ao absurdo, dando por isso voz aos alicerces que gostam nos interstícios de ficar na sombra como um mecanismo que utilizamos para chegar a uma mais condensada conclusão. Talvez tivessem o dom da economia e, sabendo do gosto destes povos por gatos, mais não quisessem em termos falantes do que assemelharem-se-lhes no enigma e na solidez essencial.

Já os poetas árabes do Al-Andaluz ilustram uma contenção que nos inebria, uma mesura linguística que nos deixa surpreendidos. Andam distantes ainda deste registo, mas ambas as fontes parecem conhecerem-se. Dir-se-ia que nem é o intimismo da modalidade que os acalenta, o lado confessional dos estados de espírito ou a razão de um desejo, mas toda uma subtil arquitectura de saberes e sentires, onde no meio vamos encontrar uma maravilhosa noção de Civilização. Todos parecem cantar, para além de si, uma música cujo significado semântico- acústico diz tudo acerca do valor maior do poema. Vamos encontrar, por vias quantas vezes dolorosas pela mudança de registo, estas influências nas « Cantigas de Amigo», uma esteira de vinhos paralelos nos trazem com nitidez à lembrança toda a geometria das fórmulas, talvez por que agora o vinho nos evola na sua deidade de motor de uma estirpe onde estas coisas aconteceram. Talvez por isso a nossa vida inteira nestas margens do mundo tenha um registo geográfico muito perto do Jardim que os tempos na sua transgressão não conseguem sonegar. O vinho é um produto alquímico feito de solo e sol, desse casamento, e transplantá-lo não será fazê-lo melhor nem dará a mesma cepa destas tão ilustres taças. Tudo se pode fazer, é certo, até melhor que o original, mas quem faz a “coisa” imperfeita e bela só mesmo alguns, nestas, como noutras coisas, não se procura a perfeição, mas sim a plenitude, que ser-se, é, tudo aquilo que se opõe a toda a prática de um perfeccionismo desenraizado.

Se o mundo se transformasse numa vinha, seríamos então todos descendentes de Noé.

O sistema de castas, hoje mesmo só serve para os vinhos, sendo também lendárias as formas que as designam e as vastas descrições de que são feitas. Nós, cujo produto reverte para a estatística do mundo, já não somos uma casta, mas uma espécie aparentemente transformável. A alteração da percepção é também uma via de sublimação espiritual e o exercício da sua prática remete-nos para outros estados de consciência moldados pela natureza das opções estilísticas. Somos herdeiros mas não reféns daquilo que encontrámos já feito e dito como definição, nós vamos em busca, formamos e acrescentamos ao tecido do realizado mais realidade. Não interessa a arma secreta nem a dúvida sempre metódica, que duvidar não é fazer, nem o secretismo maior anda escondido, nós precisamos do nosso tempo de vida para deixar a vida mais longa sem nós.

Estamos com certeza ainda aqui nos augúrios do tempo, sem a demonologia e as portas fechadas dos fantasmas do ego dadas por alucinogénios – aquela árvore que nos disseram para não tocar. Aqui ainda a vinha é sagrada e como tal o espectro não se produz, nem as brasas da loucura nos engolem com a fantasmagórica sombra de nós. Estamos num outro registo no qual, quem sabe, a psique tão cara aos homens do nossos dias estava como que adormecida nas portas do cérebro e da alma: o mal era outro e tinha também contornos menos maus, suponho, que o tal mal procurado na escada funda que vai para os nossos abismos.

Por isso, aos primeiros alvores do Outono voltamo-nos para a Primavera da Civilização onde temos condensadas todas as lendas, os frutos maduros e a beberagem sadia e, enquanto esta taça nos for dada como um desígnio a manter, jamais esqueceremos de lembrar aos vindouros a casta maravilhosa de que foram feitos os Povos. Por isso:

Dissimulo a minha tristeza,

porque as aves feridas se escondem para morrer.

Vinho! Escuta os meus gracejos!

Vinho, rosas, cantos de alaúde

e a tua indiferença à minha tristeza, ó bem-amada!

26 Out 2016

Boca do inferno

«Afastai-vos de mim que aguardo sem boca; aos vossos pés nasci, porém vós me perdestes; bem demais com o meu fogo demarquei o meu reino…. »
René Char – posta- scriptum. (Furor e Mistério)

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]guardar o tempo certo, estar mansamente escutando as gentes, ver nelas toda a gente -quaisquer pessoas – que estas são um coro, uma ladainha grega de choro, sem a trágica profecia. Deixá-las debruçarem-se na soberba, na imensa e difusa consubstancialização da sua espuma, das suas névoas, dos seus saberes, dos seus deteres, que, nada se propagará para além desse instante de dolo, gigante bolo, argamassa das horas.
Há muita vacuidade nestes tempos! Metade do que se anda a fazer é inútil e uma grande parte não serve para nos alegrarmos tampouco. Estamos assim, sempre expectantes que algo mais novo do que o novíssimo instante nos preceda e de tal forma estamos confiantes que o mundo tem como factor principal o surpreender-nos, que não nos interrogamos da farsa da “imaginação” decalcada em contínuas representações sem o menor interesse.
A vida como representação e “performance” tende a ser uma tendência que não entende o rigor e a quem se destina. Nas coisas simples há que ser simples, nas coisas ordeiras há que ser recto, nas coisas básicas há que ser prático, mas a avaria da complexidade permanente é talvez o mais notório elemento de uma máquina louca onde todos por uma razão qualquer se atropelam para escrever, dizer, pensar a melhor coisa. Uma forma de viver que cansa, só de a pensar – que a forma de nos darmos é uma competição atenta – aturada, programada. Ora, tudo isto retira liberdade de expressão, espontaneidade , profundidade a toda a constelação da inventividade pura.
Já sabemos por vezes como os livros esgotam e quem os faz tão prolíficos nas vendas, as coisas que se fazem para resultar na fonte das estatística! Eles andam aí, esses “escritores” que nos perguntamos o que falhou para aqueles semblantes não negarem uma coisa que é da ordem da blasfémia comportamental. Mas não só destes obreiros estamos povoados: há os recintos dos obreiros, que ora estão em Centros Comerciais, ora em Bancos como as Caixas, ora ali, ora acolá…. E, nestes antros de sub-desenvolta vida cultural nos vamos amarfanhando até ao ponto da renúncia. Tudo se faz por inscrições e por altas paragonas que dizem «Esgotado» para reverterem à sociedade o bem que esta lhes fez, transferem para as pobres consciências, delas, espaços que não lembram ao Diabo. Ao Diabo do dito interesse do saber. Uma escolta de propósitos propagandísticos e mesmo publicitários, se reúne nas bordas dos eventos.
Não são estes os Festivais Medievais em que toda a gente se mascara de Afonso Sanches, Urracas ou Joaquinas, estando para saber o manifesto interesse de tanta figuração em volta de um Mosteiro, Templo, ou outras coisas: tudo o que não passe por uma ardilosa representação parece aos olhos fatigados e públicos, de descoroçoado interesse, pois que a abstracção não foi desenvolvida para uma arquitectura de pensamento que relegue para a imanação somente: é preciso qualquer fenómeno visual; e entre doces, bordados, cornetas e assobios, tudo é Cultura, ou seja, a vastidão é tanta que a Cultura já nem se sabe às páginas tantas onde anda e em que sentido transporta os seus grandes afãs.
Vivemos alquebrantados de cultura de culto duvidoso: quanto aos terreiros, quem nos dera serem de Santo, aquele sincronismo deveras cultural entre a tradição europeia, africana e índia, mas nada disso! Somos de um tempo em que falavam os mestres, entravam as gentes, sentavam-se todos, nem que fosse ao colo, nem que fosse na pedra, nem que fosse na mesa, não se deixava ninguém de fora, havia o manifesto contacto de que os lugares são coisas irrisórias face ao que íamos escutar e, porque todos tinhamos os mesmos ouvidos, o amor de todos pela audição, trabalhava em grupo que se auto-regulava para obter o mesmo fim.
Depois, as bocas abrem-se mas nós já estamos tão bem, que deixámos de ser a sala cheia e o calor de todos, para darmos encantados as boas vindas aos discursos. Era assim, entre deslumbre e vida simples, entre estar e partilhar, entre tecer e beber, que a Cultura, esse elo feito de interesses conjuntos, de muito labor e sintonia, nos convocava para as fontes.
Pessoa muito aborrecido estava e sabe-se o quanto era apreciador de literatura criminal e faz aquela bela armação com Crowley fazendo-o desaparecer lá para a Boca do Inferno. Ambos se divertiram imenso, aliás, ambos eram grandes poetas, esse dom embate no outro e produz coisas inovadoras mesmo que sejam estranhas. Sabe-se que andavam mesmo embeiçados pela Dama Escarlate, a companheira de Crowley, tendo mesmo erotizado Pessoa a um grau que nunca até então lhe tinha sido visto. Fizeram coisas criativas e giras, como se diz em linguagem chã, sem precisarem de grandes recintos e inscrições para escutar qualquer palestrante que duvido os pudesse manter quietos nas cadeiras. Tudo isto se passou há um século, num tempo atrasado, como se diz e melhor se pensa, tão atrasado, que neste adiantamento onde nos situamos nem sabemos se existiu.
Poder-lhe-íamos chamar a tão inesperado instante uma «Divina Comédia» mas dado que a laicidade obriga e a comédia é farsa, temos então uma órbita alargada de divertimento cosmopolita através de uma população informe que escuta o «Homem que aguarda sem boca» o que «O dos ouvidos sem tímpanos há-de escutar»

“Porém, vós me perdeste”, diz o Homem sem boca de Char “e a vossos pés nasci.”

O Homem sem Boca não foi mais avistado entre as gentes do seu país. Saiu, fechou o postigo do tempo e ninguém mais o ouviu. Nós tinhamos todo o interesse em gritar: “Afastai-vos de Nós que aguardamos sem Boca”. Somos um buraco rochoso por onde os magos desertam nas águas.

“ (…) sem companhia, mudos e sozinhos, íamos, um atrás do outro e outro no topo, como frades menores pelos caminhos (…)”
Dante, Divina Comédia, Canto XXIII

6 Out 2016

Terra Queimada

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]ostamos dos destinos que se desprendem das coisas que herdaram, dos que numa só existência sobem as montanhas com seus cascos, por vezes ensanguentados, e sobem-nas, não para ficarem mais altos, mas por que na montanha não há ninguém. Ninguém para nos afastar da lembrança, nada para nos entreter, coisa alguma que nos dite as horas para além do Sol invencível repetindo-se em disco e pondo-se radioso. Olhar o nosso rosto é quase ver um deus, e se falarmos às pedras elas seguramente nos responderão, e se falarmos às ervas elas cantam, e se chegarmos de longe toda a paisagem nos saudará. É um plano cósmico de taumaturgos tempos onde tudo comunica.
Na ânsia de fugir à turba, Moisés foi para o Sinai, Jesus para o deserto, Buda para debaixo de uma árvore, Francisco foi falar com os lobos, e todos a pretexto se foram para longe com acasos que acabaram por ser leis, pois tudo valia a pena desde que descansassem junto das cobras, das nuvens e dos dentes afiados. Estar disponível para prosseguir surge-nos como um desafio assombroso, pois caso não o saibamos trilhar o próprio destino se esfarrapa no asfalto dos dias.
Nem sempre entramos num templo dourado como nos nossos sonhos, que contra todas as probabilidades, alguns e algures, souberam e soubéramos conquistar, Moisés nunca entrou na Terra Prometida, apenas dela a visão dourada….. entrar nas coisas é uma conquista do real, pois há quem entre pelo real adentro sem nunca ter tido um sonho, uma vontade, uma ânsia de um depois, há quem se sente nos Banquetes do Mundo como um jumento entre catedrais, que não ultrapassará o estádio do verme que se deleita.
Esgrimamos todos os dias a vida, o nosso sabre está gasto, os nossos reflexos agem num desassossego de vozes que não conseguimos filtrar…a vertigem impele-nos para baixo, porque os abismos são fundos e atrativos na passagem, e nessa marcha há vagas de condenados a quem ilusoriamente damos as mãos numa velocidade tão medonha que parecemos parados, os nossos sentidos mais finos desaparecem, vamos como que atraídos por força magnética, se nos tocarem arrancam-nos pedaços, se nos largarem de mão, não reparamos na mão que se segue, que nunca é aquela que faz reverter a marcha. O estrado deste estertor é um enigma, pois que ninguém de lá volta para dizer como foi, nada contraria a gravidade e não se faz subir de novo a maçã à árvore.
Séquitos de filoxeras esverdeadas são postas nas trincheiras coladas como lapas aos pedregulhos de uma nação dinástica, de um país de sátiros, uma lei da descendência ao serviço da causa pública, uma ralé arcaica e branda, plena de insidiosos propósitos que ofendem toda a estrutura. Os comedores de pedras, os grandes ogres do fantástico que se emolam numa impune frialdade . …. Quando resolvemos fugir, nem uma fonte encontramos como retábulo, ordenham-se em pastos os rebanhos que os lobos já não comem- nem os bebedores de leite têm sede-: aquela paisagem das «Falésias de Mármore» de Ernest Junger em que as serpentes emplumadas vinham pela noite beber leite, elas tiravam-no a alguém, mas perante o fascínio de tal visão quem era o homem para matar aquela cena quase divina? Que espécie de divindade somos nós para retirarmos o manjar das víboras?
A Terra não fora pensada para a proliferação em massa do Homem, não fôramos eleitos para tal finalidade e fomos construindo um casulo à base de todas as distâncias. Estar com o Homem é estar desprotegido «Ah, o Homem, o Homem, o Homem é o que precisa ser vencido.»
Do alto de uma ideia transformada não desçamos nunca mais, o que vai ruir está programado, e tudo ruirá. Saber passar o estreito sem nos questionarmos do sentido pois que são raros os resgatados, e como sempre, lhes acontece algo como nos raptos: não fora assim com Elias no seu carro de fogo? Depois de uma longa depressão ele partira de forma abrupta, sem paragem, para nunca mais não ser visto.
O fogo alastra, a harmonia desfez-se , servir doravante com taças frias, levantar voo e deixar os restos para os chacais e as hienas, cobrir de negro as mesas, e que venham comer as últimas iguarias, não olhar para trás, que as necrópoles são chagas a céu aberto.
– Um esplendor luminoso irrompeu pela claridade azulada do jardim, eram as víboras lanceoladas que, fulgurando como relâmpagos, saíam das suas fendas. Deslizavam por sobre os canteiros como correias reluzentes de um chicote, e o ímpeto com que progrediam provocava um torvelinho de pétalas – «Sobre as falésias de mármore».
Estamos na tranquila Estação e deste Verão restam cinzas ainda em brasa… restos de fuligem, muito ignição na frente quente desta mudança climatérica, vivemos a sede, a fúria, a imensidão. Dilatados e expandidos, a nossa alma ficou a um canto como os vestidos antigos, e, nestes instantes apetece vesti-la de Baile e festejar o seu regresso, cansados de ardor e nudez, à boa maneira das víboras bebedoras de leite que pelos caminhos foram largando a pele.
Ernest Junger foi um veterano de guerra. Tendo sido aliciado vezes sem conta para o lado nazi, não só resistiu, como também se recusou a entrar para a Academia alemã de poesia dominada por eles. Não foi fácil tais opções para um homem que teria certamente sido mais bafejado perante uma sociedade que o apreciava, após o atentado a Hitler e a prisão do filho Ernest por oposição aquele, Junger deixa o exército. O estudioso de insectos, que via o mundo a partir de orientações microcelulares, inspira-nos pela coragem, aventura e brilhantismo ao lidar com títulos e temáticas. Se uns são «Falésias de Mármore», outras são «Abelhas de vidro», e sempre que nos diz que “o melhor concede-nos os deuses gratuitamente.”
Vem alertar-nos agora para as múltiplas etapas do Incêndio e outra vez seria bom percorrermos-lhes as rotas, não esquecer o seu trilho e não estarmos tão atentos à ginástica, que com ferimentos de guerra, exílios, injustiças e duras batalhas, o corajoso Junger chegou aos cem anos.
E porque a «Terra Queimada» se reergue e a vida retoma o ciclo, lembremos o terror de Junger acerca do Nacional-Socialismo em marcha: «Era sobretudo o espírito plebeu do movimento que lhe repugnava. O instinto aristocrático de Junger era de uma finura delicadíssima». Esta intuição está plasmada em «Falésias de Mármore».

29 Set 2016

Um fonema para ti

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]A língua que transporto é um veredicto e não sei falar.» O aparelho fonador fica assim como longa estrada que nos permitiu uma evolução complexa e que fez do cérebro um lugar maior, uma “máquina” poderosa. Esta evolução transversal deu-nos o advento de algo talvez não previsto nos ciclos da evolução e foi no seu aperfeiçoamento constante que outras associações se formaram, como os rios, galgando os seus deltas, correndo para os mares, formando a paisagem. Esta enorme massa associativa define a busca de um sopro que foi dado como emanação, registo primordial, e continha no seu núcleo todo o conhecimento do Universo. Foi para nós uma aturada desconstrução a sua análise, legada pelo «Verbo», aquele que no princípio foi e ainda não sabemos exactamente como e como foi. É por isto mesmo que a linguagem continua a ser o mais misterioso dos processos e quem a usa acrescenta ao homem, homem novo, formas novas, coisas outras, na medida em que se Deus é o Verbo, ele se faz em nós e nós fazemo-lo a ele numa leitura só possível com a descoberta que é o casamento entre as partes. Afinal, tudo se une para o encontro, todas as coisas se projectam para formar outras e das outras nascem coisas inimagináveis e ao nascerem acontecem, dado que é fazendo que se vai criando, que se vê, andando que se encontra.
Os signos visuais que nos são dados pelo alfabeto são composições abstractas que materializamos em formatos e sons para designarmos as coisas, coisas essas, porventura inomináveis, mas que precisamos para a Ordem cósmica da nossa já tão complexa natureza, que não fez mais do que laboriosamente criar até os seus obstáculos para se permitir viver. A ilusão de «Nós» forjou uma espécie só possível com um desconcertante labor, que é o ter-se separado da origem, esquecendo os pressupostos. Não por acaso, Babel existe nos nossos códigos, a espécie em movimento separada por uma técnica de puro desaire. Foi preciso registar tamanho e laborioso movimento, dar dele conhecimento, conhecimento esse que requer a prática constante do aperfeiçoar decalcado em vezes tais que, da primeira à última interpretação, se regista apenas o mote; e a história continua como se de uma “fábrica” louca estivéssemos munidos sem saber para onde vai e em que circunstância pará-la. picasso-dois-saltimbancos
A tensão permanente de uma vogal que encha toda a cavidade bocal, de um som que se altere nos músculos falantes, faz-nos sentinelas e fontes de transformação incapazes de ser domadas por um cânone que amenize tanta Pandora registadora de uma consciência que, aos poucos, nos foi dominando. Explicar só não serve, é preciso entender. Entender talvez que cada sopro destes pode ser de facto uma potência direccionada para um ilimitado poder e se deve ter dele um secreto medo, dado que a leveza primeva permanecerá como o último segredo por revelar: e aqui reside outro ardente mistério: quem fala melhor? O que deixa ao vento o sopro, ou quem direccionado e firme o leva pela consciência?
Em ambos os casos, falta no tempo presente uma disciplina formativa que é a Retórica. Parece até demasiado pomposo, mas não é, na medida em que há efectivamente um lugar mágico na voz e ela pode ser inibidora do entendimento se por agudos e graves nos for fornecido um ruído doente, febril ou cabisbaixo. Se monocordicamente nos anunciarmos “matando” o receptor e ficando assim a alma tão morta quanto a crença continuada da leiga formação dos falantes de que ela nem existe, o barulho das coisas, o tormento das vozes, as “hormonas” discursivas, o falatório, o diz que pensa, o fale agora, o não dito, o interdito… o amontoado, o vociferado, as conjugações, os acordos, os desacordos, criam um campo de guerra onde a palavra não é o vínculo que define a sua essência em nós.
Não por acaso o canto e o poema, as formas de comunicar respeitante ao tratamento da linguagem, formavam disciplinas que se requeriam como princípio moral. Elas ordenavam a consciência num semblante harmonioso de e para o quê toda a manifestação serviria: começou até como fonte de sobrevivência, acalmando as feras. É muito ilusória a propagação da comunicação que mantemos e creio que, ao continuarmos assim, não muito longe haverá uma forma telepática cujo aparelho ainda não desenvolvido pode começar a fazer anatomias diferentes. Ele terá o seu vocabulário e a sua métrica, e o som induzi-lo-á a outra compreensão do entendimento. Mas, magoado que foi todo o aparelho fonador e sujeito a repressões audíveis, tudo se tornou neste domínio e no momento da nossa evolução, pesado demais e destituído dos princípios fundamentais, que é já com algum desgosto que nos abeiramos dos componentes falantes.
Se a poesia se tornou matéria vã e é tantas vezes constituída por aqueles que dela não lhe conhecem a gravidade, é por causa de um desmoronar de noções em série, que vê numa liberdade sem transcendência a forma de anunciar, que existe sem a noção de que a existência não escuta os autoproclamados viventes. Na medida em que existir não supõe dizer-se o que se quer, mas dizer o que nos “dão” para dizer, nós continuamos a ser nada, perante as coisas que de bom grado passam para se revelarem. Assim como o estar mais receptivo que defensivo, mais disponível que interdito, mais confiante que céptico, menos musculado e mais dinâmico, ser a única saída possível. Uma transparência de página volante, as páginas estão soltas em tudo que fazemos e só lemos o que a consciência pode alcançar…. Talvez saibamos todos muito pouco, pois o saber é ainda casar, empatia, ternura pelas fontes. Há coisas bem agrestes que devemos saber, dado que a técnica é o martelo de Thor com que iremos forjar os metais.
Se estivermos atentos aos barulhos feitos pelos jovens, entendemos que está gasto o dom da linguagem, o que não quer dizer que não tenham desenvolvido outro e que essa anatomia herdada se reajuste como o fim do conflito perante a mecânica do som. “O Verbo que te leva e me leva a todas as coisas. Levo-o eu também e o recolho em mim.”
“Os jornais são já livros feitos em comum. «O escrever em comum» é um sintoma interessante, que faz prever um grande aperfeiçoamento na arte da escrita. Talvez um dia se escreva, se pense, se aja em massa. Comunas inteiras, países, empreenderão uma obra.” (Novalis)

22 Set 2016

“Fogos” de Marguerite Yourcenar

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste é o Verão de todos os calores, de todas as ignições, o Estio abrasador, a chama mais alta que a temperatura ambiente e a combustão de todas as nossas células que tentaram a catarse de um grande encontro no limite das nossas forças. Gosto do Verão! Do extremo calor, da luz que cega, de não ter roupas, de não ter fome, de beber, de cheirar o quente que vem do fundo de um deserto… mas foi este Verão revelador do quanto tudo na Terra se radicaliza de modo a testar capacidades para se habitar ainda nela.
O país ardeu, o país pequeno e esguio com mar por fronteira tem metade da sua área ardida. Nem se devia dizer isto desta maneira dado que nos envergonha a simples noção de o constatarmos. Os meios e os socorros, a planificação e as políticas de ordenamento do território falharam em todas as frentes e, caso não fosse a heroicidade sem tréguas dos bombeiros, creio que tínhamos ardido todos. Foi um “rasgão” no tecido social tão fragilizado por realidades tão danosas e que pôs a descoberto a ineficácia dos sistemas e a inutilidade dos governos. Continuar com esta gente pode-se tornar fatal para cada cidadão, estas políticas binárias, estes imensos desastres financeiros, esta deriva, este aleatório sentido das coisas, que já não é passível de ser mantido, mesmo que nos esqueçamos que muitas das vítimas foram adeptas indefesas da sua própria derrocada. Nas cidades viveu-se o tampão do fumo, a imensa carapaça do ar que trazia o obscuro propósito de nos sufocar – não – não foi preciso terrorismo nenhum: este foi o terrorismo interno que tivemos de enfrentar.
A matéria da combustão é sempre alquímica. O Fogo é um elemento que concentra uma imensa variedade de significados paradoxais e nunca nos deixa indiferentes, nem adormecer face à sua acção física ou emocional. Ele galvaniza tudo, ele amplia, destrói, funde e ajuda os processos a um sucessivo grau de purificação. Daí que a paixão, sendo de elemento fogoso, seja tão importante para curar ou reacender as zonas mortas em nós. Esse processo, creio ser da ordem da saúde pura, do curar as “sarnas” pesadas das doces tendências dos pequenos afectos. E também pode muito bem testemunhar o lado arrasador das cinzas e a temperatura a que ficamos depois de um incêndio. Iremos precisar das Lágrimas, da divina maciez do Dom das Lágrimas e como Fénix renascer daquele impacto tão forte para as nossas naturezas corporais e emocionais. É certo que vamos ardendo, vamo-nos gastando num fogo, ora lento, ora acelerado, mas tudo em nós tende um dia a romper o fio que o liga ao acto animado e, mesmo assim, a morte não existe, porque tudo entra de novo no combusto da tormenta dos materiais. Talvez a alma, que é uma subtileza dada ao corpo, um fio límpido de luz, fogo transmutado, se evole e se vá sem uma só mácula deste local onde encerrada andou norteando as brasas; inspiramo-la ao nascer, expiramo-la na morte.

*

«Fogos» é um livro de prosa lírica e novela inspirado no grande rescaldo de uma paixão de Marguerite Yourcenar. Ela vai revisitar as grandes lendas amorosas do passado e o seu profundo e culto sentido do dever de esclarecer levam-na a Aquiles, Fedra, Antígona, Fédon, Safo, Madalena, para nos mostrar da intemporalidade de tal estado e da beleza que pode provocar em quem por maus Fados se foi dela sentido um elemento digno e insuperável perante todas as outras matérias. Começa com « Fedra ou o Desespero» e diz assim: “Fedra tudo consuma. Abandona a mãe ao touro, a irmã à solidão: tais formas de amor não lhe interessam. Abandona o seu país do mesmo modo que renunciamos aos sonhos; renega a família, tal como vendemos os objectos usados. Naquele meio em que a inocência é um crime.”
Mais para a frente, em «Pátroclo ou o Destino», os amores de Pentesileia e Aquiles são de uma densidade poética que nos arrasa: dois chefes guerreiros possuídos por um ódio inaugural apaixonam-se em pleno campo de batalha, mas são guerreiros, ninguém pode desistir do mérito de encaminhar os seus exércitos para a vitória e, entreligando tempos, a rainha tomba, e Aquiles soluça segurando a cabeça daquela que era digna de ser um amigo. Pois era o único ser do mundo que se assemelhava a Pátroclo: “Aquiles defendia as pedras e o cimento que serviam para construir os túmulos. Quando o incêndio desceu das florestas de Ida e veio até ao porto lamber o ventre dos navios, Aquiles tomou, contra os troncos, os mastros e as velas, o partido do fogo que não teme abraçar os mortos no leito mortal das fogueiras”
“Queimada pelo excesso de fogos… Animal fatigado, um chicote em chamas golpeia-me os rins. Reencontrei o verdadeiro sentido das metáforas dos poetas. Desperto todas as noites no incêndio do meu próprio sangue.”
Toda a fuligem de « Fogos» nos leva longe e nos bascula na ofensa grave dos dias tépidos, todo ele nos traz confessionalmente o tratado de um esforço olímpico da alma e do corpo que carregam belezas tais que só desfazendo-se delas podem continuar a marcha. Quando pensamos na brochura das psicanálises sem verve e consciência, sabemos também por que o talento acabou. O génio da transfiguração! Pois como bem diz Yourcenar “deixar de ser amado é ficar invisível.”
“Fazer versos, digo, acender Fogueiras”, Natália Correia. Talvez haja um lado pirótico nas demonstrações poéticas a que não sejam alheias as noções de calor extremo quando os textos se fazem, e ao fazê-los nos abrasem tanto que se nada fizermos para parar, neles ficamos plasmados como grandes mortalhas incandescentes. Já Deus se insurgia como um Fogo Abrasador!
Em «Antígona ou a escolha» começa com a noção de Nietzsche da hora sem sombra: “que diz o meio-dia profundo? O ódio paira sobre Tebas como um sol terrível.”
Foi desta matéria que os dias de Estio foram feitos tentando olhar também os gatos, quais répteis carnívoros prostrados ao sol abrasador, uma centelha de raios florescentes nas pupilas imóveis… o gozo hermético que este animal nocturno adopta como se um deus egípcio fosse nele Rá e a divindade o próprio disco solar dos seus olhos intactos.
Desce o Verão mansamente e em « Maria Madalena ou a Salvação» começamos a entrar nas frescas feridas que a paixão deixou depois dos estigmas em carne viva. Este pequeno conto apazigua assim a tensão passional atravessada pela genial Yourcenar aos trinta e dois anos.
E o tempo serena enfim, tão cansado quanto renovado de uma qualquer coisa que a mente e os sentidos não saberão jamais explicar. Como é o tempo das coisas vividas, e das coisas fruídas, e de como ele, todo, em trança e laço, é uma equação tamanha que ficamos agora a contemplar.

12 Set 2016

O campo de favas

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz-se que Pitágoras acreditava que a alma dos mortos recolhia ao “olho” das favas e nunca passava por cima de um campo onde crescessem, mesmo que fugisse de um inimigo. Ainda hoje há muita gente que não gosta delas por uma questão enigmática que nunca sabe explicar, pois que são óptimas, alimentícias, dadas aos cavalos para os fortalecer, mas Pitágoras saberia certamente do segredo que não deixava tragá-las, tendo mesmo domesticado um boi para que não pastasse nos seus terrenos fazendo-o assim escapar do matadouro e confiando-o ao templo de Hera.
O senhor do célebre teorema era um homem incomum: diz-se que tinha uma notável beleza e vestia sempre de branca lã, alimentando-se de pão, de mel e frutos secos; é mestre de uma congregação de vida austera e aristocrática e era eloquente como poucos. Ademais do dom da vidência, a lenda atribui-lhe uma ascendência sobre os animais, amansando mesmo uma ursa terrível que aterrorizava as populações .
Este mestre é o ancestral de um Francisco de Assis, um senhor das noves esferas celestes que rivaliza com os «Cânticos das Criaturas» na beleza de um Universo animado e que consegue graças a elevados dons de percepção escutar-lhe a música. A Itália é aqui o lugar onde as duas ordens florescem: os pitagóricos eram conhecidos pela sua imagem de pobres e marginais e o não usarem sapatos bem como uma longa cabeleira, vegetarianos; apenas lhes era impedido comerem peixes de cauda negra, uma semelhança com os Cátaros, que vieram de Itália e povoaram o sul de França. Pitágoras, diz-se, era um amigo muito querido, ele estabelece que entre os amigos tudo é comum: “um amigo é outro eu”, ficando lendária esta sua aliança com o próximo, e, se Francisco era o mestre, ele nem por isso deixou de ser um entre todos aqueles que lhe eram discípulos. São níveis de uma grande totalidade, com ensinamentos universalistas e com gente que partilha escrupulosamente os segredos.
Pensemos nestas coisas hoje, e como, e onde, se pode encontrar amigos assim de forma inequívoca, de tamanha união na composição do todo e que saibam calar o que não deve ser revelado? Pensemos, sim, mas os tempos têm os seus códigos e também a forma de dizer o não dito, de realizarem teoremas com a geometria do interesse de cada membro: pois que querem os membros de todos as sociedades mais fechadas? Destas nossas contemporâneas: poder! Não um poder de indagar estrelas, saber do Cântico do Universo, da chave dos mistérios, das leituras dos poemas; querem poder económico, querem projecção mediática, essa forma magnética pouco desenvolvida que dá a todos uma vaga semelhança a um Teatros de Fantoches; ali não há a frugal essência de uma imanente condição, mas um excesso de usura só comparado a um acto predador.
Quando os conclaves maçónicos convidam pessoas, hoje, a inquirição é feita à boa maneira dos antigos trabalhadores das Polícias Secretas, com a tónica no capital e com aquela figura que vem sondar o novo e possível membro, que da mesma forma que aparece sem revelar fontes, desaparece, desconfiando nós da técnica e da organização de quem faz os “testes”.
Por outro lado, um pequeno país de grandes delatores não será o local mais propício a uma organização amorosa de carácter iniciático e mesmo de novas buscas de um saber de fundo, pois mesmo que não o faça, até pelo seu modo transversal, há aquela ideia sociológica de que tudo é passível de ser entrevistado, ou seja, transmitido. O que restou do mundo forte dos afectos inteligentes parece não ocupar grande espaço na nossa consciência que reclama por dados financeiros estáveis e vida individual como a maior conquista alguma vez realizada na organização Humana, de resto, tudo é paralelo. É certo que não há abelhas para fazerem mel… assim… legumes e frutos estão em prateleiras, nós, em gavetas, os outros, competindo dentro do seu quadrado de hipóteses( não da hipotenusas) para fazerem a obra maior de todos os tempos, à revelia dos próprios tempos, se para tanto forem capazes.
Entre um campo de favas verde e intocável vai a distância de muitas labaredas e já nem me lembro de tais campos… há coisas que morreram nas nossas fontes de reconhecimento. Nós pisamos a Terra inteira porque ela nos pertence e tanto faz serem favas como abrolhos, certamente que jamais suspeitaríamos que a alma é ígnea e quando vai para corpos vegetais continua fogo e somos nós apenas que nada reparamos. O facto de em nada destas coisas repararmos não quer dizer que não existam, e elas- provavelmente ainda existem- pelo simples facto de não termos, ou termos mesmo deixado de reparar nelas.
Há uma cosmogonia muito Pitagórica que diz: “Todas as coisas são três, e o que constitui o valor de cada ser particular é a tríade formada pela inteligência, a força e o acaso.”
Neste patamar onde começamos por campos férteis, intocáveis, sabemos o quanto o pensamento pitagórico funcionou com base em analogias com subtis correspondências que tanto inspiraram os poetas do mundo, e, posto que tudo é número e o número é ponto, estamos diante a científica experiência que engendra o espaço geométrico e físico. Que tem isto a ver com um campo de favas? Tudo. Afinal é lá que reside o mais emblemático do tecido imortal chamado alma e que de natureza ígnea se refresca na vegetal forma que parece um embrião fecundado.
São estas interdições que fazem do mundo um local digno de observação a toda a hora, e, nem interessa tanto mestre de hoje em chãos pisados de Ordens e Graus que soletram a vacuidade da herança a que já não poderão responder, dado que ainda, e pitagoricamente, a alma estava na cabeça, depois, passou para o coração e agora está tão em baixa que pensamos que a matéria animada é apenas puro dejecto e volúpia. Por outro lado há quem desvende os segredos sacrificando a vida, e aquele que protege os mistérios da alma para ganhar um novo nascimento.
“Matematizando” ao invés de “materializando” seria a expressão certa para quem em forte desejo de não pisar nem campos de favas, nem sarças ardentes, retivesse da existência a sua parte imperecível e lega-se uma pequena pedra para a construção e reconstrução deste enorme “puzzle” cujo “Arquitecto do Mundo” se filia à beira de uma habitação onde as janelas não abrem para a natureza incerta que é causa sempre de morte ao não saber juntar o começo e o fim.
Não magicar nem arquitectar: vamos consagrar: este é o nosso campo de favas.

5 Set 2016

Todo o Atlântico

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Atlântico é como uma estrada de Atlas: ele corta continentes e nele sempre o mesmo verde-mar, o mesmo drama, a mesma costa agreste. Ele paira-nos como aqueles ventos que se cruzam em grito, nos sussurra e nos fala e toda a paisagem contínua como selva atlântica até às densas brumas. É em muitas costas de um profundo silêncio e grandeza agrestes. Sem a tranquila noção de um útero como o Mar Mediterrânico, o Atlântico abre para o mundo como uma boca indivisa e um lúgubre tormento de marear, voltado a norte. Temos medo, ele arranca-nos o sono com o ruído da sua proximidade de uma grandeza que cilindra a paz dos seres. Penso que ninguém é feliz junto a ele. As mulheres sofrem muitas vezes da função hirsuta que lhes chega do denso iodo e as transformam em Medusas desfiguradas e de dura cerviz. Os homens secam as carnes num sal que destempera toda a pele, que têm como um lenho, e estas povoações, peninsulares, albergam fantasmas e não são susceptíveis de maciez.

Para sul ele torna-se mais macio, mais doce, menos vulcânico, talvez, e sem dúvida por isso lhe estão associados os mais alegres efeitos e quase a rumar para África fiquem para trás as densas manifestações do seu corpo de gesso, da sua imensa transfiguração como Ventre da Baleia. Por isso gostamos de rumar para o sul de todos os sóis, para lhe fugirmos onde ele está mais sombrio. Bafejado pelas correntes do Golfo, ele torna-se um Mar, mas um mar onde já os Cânticos se podem ouvir sem a urdidura da gemida força da sua massa poderosa. O calor produz um reconfortante silêncio das funduras e talvez os vulcões sejam mesmo inaudíveis e por isso nos fascinem com tanta coisa que se vê em cintilação sem nos dizer dele mais nada. Entre a lava e o levante das ondas atlânticas este efeito talvez não nos atemorize tanto.

Por vezes levam-nos os sonhos até ao mar cobalto, fundo azul-redondos fundos até aos encantos onde os deuses moram, vagueamos pela secura da costa com aquelas árvores que quase lhes mergulham dentro, toda a beleza da fronteira entre terra e céu e água nos parece uma dança, esse líquido que tem dentro as sereias que enlouquecem Ulisses, expulsam Orpheu, e à sua entrada tange a lira, pois é ainda o sonho líquido que dele ficou. — Mas o Atlântico é um soberbo corredor de monstros marinhos, tão imenso como a Via Láctea e jazendo de pujança fria a nossos pés.

Talvez que a natureza de cada um de nós já não tenha um mapa anexo nos destinos a percorrer na viagem terrena mas, em todo o caso, não era este o implante que gostava de ter tido. Ainda agora, toda esta costa me ofende e perturba como um choro de harpias por detrás do verde azul — há todos os mortos e toda a força de um volume que há-de, em tempo impreciso, galgar a descarnada costa e suas audazes valentias de chamar a tais margens, terra; são chãos colossais e arenosos, mas não são ainda terra.

Hoje, 24 de Agosto, há uma prática lusíada que equivale a um Jordão, mas as crianças não gostam das águas do oceano daqui e mergulhadas em ondas em números ímpares, depois de rondarem a vila de Bartolomeu do Mar, são atiradas ao denso e fundo escuro deste instante. Diz-se que lhes faz bem: lhes tira gaguez, cegueira, epilepsias, talvez sim, porque antes sacrificam uma galinha negra que também será atirada ao mar. Todo o terror quando superado vence o mal que lhe estava subjacente. Penso que não haja memória de um Jordão assim, nem das águas de Lesbos estarem tão revoltas que as belas não fizessem delas os seus espelhos. Narciso precisou de uma suavidade translúcida e parada para contemplar tão forte

emoção: ser aquele por quem os elementos se apaixonavam. Os elementos por vezes reúnem-se para uma grande declaração de amor, assim como os sentidos todos concordarem na corrida para um encaixe perfeito entre partes. Chama-se a isso talvez Amor, mas é certamente um sistema de simpatias que de tão harmónicas formam o Encontro. Nestas paragens oceânicas tudo se perde…

Entre o pinhal de Leiria e a costa oeste há uma desassossegada vibração que nos domina, aquele mar deveria ter entrado sem impedimento, nós devíamos não ter sustentado a costa e com ela ter deitado ao mar os últimos habitantes de uma orla tão primitiva quanto os dinossauros. Mas há reis, que sendo poetas, são mais que reis: são missões no altar dos tempos e talvez soubesse dos bens merecidos destas vertentes e daquele de que viria a restar como matéria prima e que lhe falou mais alto que todos os apelos de erosão. Passar rente a tudo isto não é fácil, olhar o Atlântico altivo e fero faz-nos uma angústia de morte e nem sempre estamos destituídos de memórias antigas, que nos levam ao colo pela infância onde tanto horror nos parecia paradoxalmente… belo. É a saudade que ficou de frutos silvestres como camarinhas, de tudo o que é ácido e amargo, para sarar as feridas onde o sal penetrou tão fundo que deixamos de chorar e percorremos estes locais como a mulher de Ló- Alfeizerão, o pão é dele — Estranhos topónimos, nomes, tipografias… Sodoma ainda é longe de Nazaré e nada mais seca e disseca que o peixe aberto e assado ao sol das ondas. Quando por artes de navegação aqueles povos semitas se deram conta destas costas agrestes, eles, que vinham segundo Homero do Mar Vermelho e do Golfo Pérsico, tendo depois florescido no belo Mediterrâneo, não andaram mais e na Finisterra de todos os ocasos marítimos assim se foram tornando sombras. Os rios ficam entre sonhos e entre rotas-Jordão, Litani, Tigre, Eufrates… os nossos ficam entre sombras, Tejo, Douro, Mondego… Litani! Foi nas suas margens que a escrita das antigas litanias floresceram e em Biblos se fundou a fina pasta para comer o Livro: Ezequiel 1- come este Livro…! 2- Então abri a boca, e ele me deu o rolo para comer.

«Engole o Atlântico» e vi um Ser surgido das estrelas que engoliu de um trago o mar tamanho e dele também levou as nuvens que são nesta costa fria e dura, as eternas neblinas matinais.

Este Oceano não gosta de suicidas, mesmo sendo assim, devolve-os às margens, e deixa-os sem a dignidade de uma sepultura no seu ventre, as mulheres de cabeça para baixo e os homens invariavelmente de cabeça para cima. Só naqueles barcos que não eram feito de madeiras do Líbano mas de juncos e carvalhos, se deleitava com os náufragos que ele mesmo fazia descer às suas funduras.

Tem miragens dignas dos maiores poetas em visões cegas de antanho quando, ao largo nas noites perto do Solstício do Verão, levantavam blocos de Ilhas, e ao longe pareciam douradas… Pessoa nem delas se esquecera num ramo insular e lhes deixou de prestar o belo culto: “não sei se é sonho se realidade se uma mistura de sonho e vida aquela terra de suavidade que da orla esquerda do sul se olvida… É a que ansiamos. Não é com Ilhas de fim do mundo nem com palmares de sonho ou não que a alma cura seu mal profundo e o bem nos entra no coração… É em nós que é tudo! Aí, aí, meu ser é jovem e o amor sorri”. Ao largo atlântico de uma Ilha que esperamos ver um dia.

26 Ago 2016