Europa 2015

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s mitos são como os sonhos, no dizer de Calderon de la Barca: “eles sempre têm razão e não há maior dor que a de não poder amar”. Nós, paradoxalmente, nascemos numa cultura de Amor, na tradição judaico-cristã. O facto de parecer ter sido um insucesso deve-se mais aos novos preconceitos que ao registo da herança. Vem isto a propósito da Europa, esse continente de fronteiras fluídas e instante sombrio, da flutuação da sua deriva, do seu rápido desaparecer como modelo de uma virtude já quase esquecida: a soberania.
Os europeus já devem estar em minoria nos seus próprios territórios, com populações envelhecidas, uma decadência e esvaziamento notórios. Os europeus são, enquanto população autóctone, uma população doente. Doente animicamente, esvaziada, logo que o mito do dinheiro e da abundância para todos também se foi. Subitamente ficaram mais pobres, e tanto mais pobres porque os grandes mitos se foram, as ilusões e a sua laicidade ajudou a criar esferas de um imenso vazio onde o Catolicismo parece uma ressonância sem sentido. Ficámos mais tristes, mais pobres e não temos Deus. O Diabo em que acreditámos traiu-nos e também não quis saber de nós. Esse belo deus do Capital só quer saber de alguns e iludiu com força mortal os que esperaram o fim das provações.
As coisas parecem pacíficas, sim, mas sente-se uma estranha tensão, uma quase nuvem de bolha flutuante que poderá rebentar a um qualquer momento, aquela paz que antecede os grandes temporais. Existe efectivamente um “ vapor” escuro no ar dos céus europeus, para não falar na imensa truculência dos povos a norte, cujo louro define quantas vezes o que tão “civilizadas” estruturas são capazes nos momentos especiais de fazer e pôr em prática.
Dois mil e dezasseis vai ser o ano da reedição da tão esperada (imaginem) «Mein Kampf», o grande tratado criminal da era moderna e a negação da nossa identidade humana universal. Esta reedição não será de todo inocente, mesmo com o trabalho explicativo das notas introdutórias, nem ausente de sentido. Num instante destes era tudo o que não precisaríamos, mas a Europa ama os seus Infernos: o editor não tem dúvidas, o texto deve ser publicado – eu sou favorável à publicação de «Mein Kampf» pois é um documento histórico que influenciou milhões de pessoas.
Claro, nós nem devemos fazer juízos de valor, História é isso mesmo, e as pessoas como bem sabemos são seres influenciáveis, o que o rebanho pensa não é História, mas sim aquilo que melhor se adapta às circunstâncias de alguns. No entanto, essa pobre gente pensa que pensa, mas efectivamente há quem a pense melhor: e diz mais: « é preciso deixar algum tempo para esta iniciativa se organizar pois que não se trata de uma iniciativa de mercenários, mas de uma decisão colectiva de historiadores».
Nós, leitores, somos como bem se sabe personagens incautas, lemos o que os grandes grupos de “historiadores” acham, porque eles pensam em tudo, as notas vão ser talvez de uma incisiva e subliminar tendência a um nazismo mais limpo, menos húmido, mais seco, rápido e que se não consubstancie nas nossas células nervosas, pois há que secar os pântanos e preparar para o electrochoque de néon que as mentes não mercenárias assim desejam. Talvez que Hitler até seja demasiado grotesco face ao “inteligente” esquema historicista em curso e não passe de um palhaço amestrado e ainda cheio de vastos oceanos de emoções.
Nós vivemos nesta Europa e não na outra, aquela que nos dizem outras histórias de encantar, vivemos qualquer coisa entre o impensável fortemente provável, num espaço de tempo tão veloz que melhor será não focarmos demais as atenções: entre o mito da felicidade e as fotos bem-sucedidas, o glamour, e toda essa trapalhada e a vida dos cidadãos, há diferenças maiores que entre a água de Marte e a água da Terra, mas o Sol de facto tapa tudo.
Seria de mau gosto não relevar aqui o prazer estético que foi as cabeças com lenços das mulheres islâmicas, lindas, de calças, de tudo o mais, mas castamente e rigorosamente enleadas nas suas decentes silhuetas. Ao lado da mulher europeia, de cabelos em pé, pintados, despenteados, são figuras dignas de mulher, o não reparar o quanto me faz feliz os judeus ortodoxos passeando-se com os seus tefilins, kiipás, livros de orações, e os islâmicos rezando descalços numa qualquer praça ou estação, é uma paisagem de uma imensa civilidade ao contrário das expressões materialistas de efeito cartesiano. É uma revelação e um maravilhamento. Digo judeus e árabes, dado que não se vêem católicos, freiras, padres, monges, nem se sabe bem o que trajam, no corpo e na alma. As imponentes catedrais não tardarão a ser readaptadas para o Islão (nada que não se tivesse já feito no sentido inverso –bem pensado, aliás, a ver pelo carnaval de imagens e coisas que são típicas manifestações dos povos bárbaros cristianizados), as duas outras religiões são iconoclastas e vão partir a estatuária e deitar para um canto aquela quantidade de abominações que é a representação de Deus em fascículos. Todo o ser que ora é digno de amor.
Poder-se-ia pensar numa grande Babilónia, já que somos uma cidade única, as coisas estão unidas umas às outras formando a Cidade, todos juntos repartindo o chão, mas creio que nos abeiramos também de uma supra catástrofe humanitária cujos contornos não nos pode ser dado conhecer. Pareceu-me de uma beleza trágica!
Bela, só mesmo a exposição de Chagall, no Museu de Arte Contemporânea de Lille no primeiro dia da apresentação. Todas as mais representativas obras ali estavam à distância de um beijo, ou de uns olhos marejados de quentes lágrimas… a delícia de uma música em forma de pintura e toda a sua orquestração de maravilhoso e santo, de terno e bom, de féerico e onírico; Chagall é um menino, meio anjo, meu homem… As cartas a Man Ray, aos pais… tudo nele é absolutamente Poesia. Ele não esqueceu de reintegrar Jesus na sua tribo e fá-lo com a beleza de um grande artista: integra-o na cena ao lado dos seus. É um movimento espiritual maravilhoso que dá um efeito estético inaudito. Não estamos à espera que tudo numa tela se mova de dentro para fora e de fora para dentro de maneira tão integrada. A dança, a união, os pés sempre no ar (para quem não tem terra, os pés devem de facto ser asas) a imensa ternura do Anjo Azul, o profeta Elias num carro rumo ao céu de fogo a um cantinho da memória das coisas, o rei David, a sua harpa, tudo é música, tudo isto pertence ao sonho profundo onde brota movimento e cor.O seu olhar tão límpido, também- como um girassol- o grande plano do seu rosto iluminando o grave Outono europeu. São estes os maiores momentos.
Nada nos surpreende mais do que aquilo que conhecemos ou julgamos conhecer, pois é da intimidade que nasce a voz nascente das coisas transformadas. Se nada conhecemos, nada nos surpreende, porque o novo é em si matéria pobre, precisamos de conhecer para encontrar pontos de surpresa, tanto, que por momentos, pensamos em todas as direcções do real e o que é de facto uma realidade.
O deus cornígero que raptou Europa fê-lo por razões sem dúvida apaixonadas… disso nos dá conta a imensa arte pictórica, pondo-a numa posição de quem gosta do dorso do amante raptor. Assim ela me pareceu na sua beleza de velha matrona, ainda lúdica e robusta, mas sem a força de inspirar e de se refazer da “gordura” que foi acumulando na sua própria estrutura. É agora a deusa velha de um panteão de velhos que se entretém vagamente nos últimos deleites, nem que seja um rapto estratégico para alimentar a gula e a luxúria que por vezes ficam ridiculamente mal, mas, que há muito sabe que outras mais belas deusas a substituíram. Neste caso presente, uma ocupação sem freio nos seus domínios e salões onde diz pouco e nada sabe resolver.
Estejamos sempre atentos ao Crepúsculo dos Deuses, se o Doutor Fausto nos aparecer não tenhamos medo: ele espera como o deus das auroras, também e mais do que nunca, o seu alvorecer.

16 Nov 2015

A diáspora dos nossos dias

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ragmentam-se as sociedades, os tempos correm num equilíbrio de forças, a distribuição das riquezas é desmesuradamente instável, os impérios findam, outros nascem…. e sempre as populações do mundo andaram móveis nestes corredores da História. Fazer da Diáspora uma condição foi uma prática litúrgica do judaísmo que, várias vezes expulso da sua terra, andou pelo Mundo, e ainda mais atrás por questões de fome partiu para o Egipto. Não é apanágio de um Povo tal condição, mas que foi levada a uma imensa esteira de consequências culturais, isso, sem dúvida. Mesmo Jesus fala nela eufemisticamente e do seu Reino fora deste mundo. Dir-se-ia que o conceito é mito, mais para além do territorial e nos apela para outras “terras” onde esta é apenas Viagem.
Na bagagem levaram os Hebreus o seu Sião e nas noites Babilónicas ali o choraram como filhos sem mãe, nos longos séculos pelo mundo diziam: até para o ano em Jerusalém. Por isso, e pela escassez do território, aquilo não é apenas uma questão de sobrevivência, mas sim um amor atávico, feito por uma ordem aglomeradora que a memória não quis que se extinguisse. Um para lá das necessidades fala aos Povos das suas pátrias afundadas, uma força estranha que nos questiona: afinal o que são e para que servem os territórios? Ainda hoje os Gatos, oriundos de África se deleitam no calor torrencial como se fossem cobras ao sol… eles recordam-se do solo original depois de caídos os Impérios, refeitas as pragas, cruzando-se mais a Norte, eles, os dos telhados, ditos «Europeus» procuram como as árvores chegar ao céu onde os aguarda ainda aquele sol.
Como é que a máxima experiência da mente se conjuga com tais ditames ancestrais é um maravilhamento: Heidegger afirmou — O poeta quer dizer: onde deve medrar uma obra humana verdadeiramente alegre e salutar, o Homem tem de poder brotar das profundezas do solo natal, elevando-se em direcção ao Éter. Éter significa: o ar livre das alturas do céu, a esfera aberta do espírito. Sim! Nós as plantas carnívoras temos raízes que são tanto mais fundas quanto fundas são as vastas memórias. Esta infinita consciência deve estar em todos como preceito terreno. Não digo que sejamos daqui, todos de aqui, há seres mais terrenos que outros, para quem as leis se aplicam como compósitos de vida a qualquer custo e o mimetismo transmite o dom da sobrevivência, mas falo daqueles que não tendo “gérmen” terrestre querem da sua terra uma reposição cósmica mais alargada. Existe sempre e para além do mais, o pensamento que calcula e a reflexão.
Estamos em pleno século vinte e um, e o grupo das pessoas que se movem, é de facto quase uma experiência bíblica; assistimos a uma “transumância ” sem Pastor na deriva dos Continentes que nos deixa entreaberta a porta da delinquência e do desespero das debandadas. Talvez se fuja já a uma antiga consciência gasta… a um findar de códigos… a uma usurpação do melhor da memória. Foge-se para qualquer lado com a esperança de renascer num outro, leva-se de nós, ou eleva-se de nós um grito qualquer, a Terra é estreita, e a nossa, aquela que o outro nos tira, afinal não está em lado nenhum.
O território é a base da organização social, fez parte das Guerras, desse definir de fronteiras, do que pode e não o outro em território estrangeiro. As nossas casas são pequenos países onde quem entra passa a ter as nossas regras, mesmo como exilados, sem abrigos, e coisas desventuradas que vamos ajudando mas sem nunca perdermos o ordenamento do nosso próprio território. Os tempos ditam-nos essa consciência de que temos de ajudar! Que não podemos permitir que os seres caiam na rua, esse território de ninguém, onde habitam os espectros. Eles também nos ajudam em tarefas que até aí não fazíamos tão bem. Mas, este mas aqui é enfático, como viver-se na proximidade física, na intimidade permanente, na partilha de coisas que eram apenas nossas? Um outro ordenamento mental se tem de se estabelecer, ou então, entramos em ruptura, o mesmo que dizer, em guerra. Vasco de Lima Couto (acho que estamos num tempo que já nem sabe quem é) dizia: preciso de espaço para ser feliz, e outro para ser raiz.
Esta imensa noção poética do espaço é uma harmonia universal que não se coaduna com as homilias morais das Nações, estas andam a contramão daquilo que define as grandes Leis, são formas morais que estabelecemos para conseguirmos viver em grupo, mas, que activam a via de um demonismo que não faz brilhante o Homem. Se é certo que as trocas nos enriquecem, não é garantido que a prática de vida múltipla nos faça melhorados. Precisamos sempre de espaço para ver o outro, não como um adoptado, mas, enquanto um ente que nos olha e olhamos. Tudo junto é um processo acéfalo.
O desconhecimento profundo que os Povos parecem ter uns dos outros e a maneira como se integram faz prever o pior. É nestas “barafundas” que aparecem os grandes algozes, movidos de forças higienistas tão do agrado dos tempos modernos. Antídotos radicais que matam os que não têm a força de saberem o seu lugar nos organismos. Estamos a viver mais ou menos isto, de forma informe, tresloucada, de denominador comum.
A consciência procura o Homem, mas se não lhe damos ouvidos, ela se separa irremediavelmente ficando um charco perdido, nós, no meio das estrelas. E se a alimentação, a ginástica, as dietas e os “regimes” nos fazem viver mais anos, temos de começar a saber também para quê, para que estamos vivos. A vida é uma medida que não interessa só como hedonismo ou força de hábito, ela, serve sem dúvida um propósito que se não for maior a desprestigia como fim em si.
Alvoradas houve muitas e nenhuma combateu ainda esta ignóbil condição de nos machucarmos de forma impensável, se não for para sair da Roda, para que nos serve a Inteligência, a conquista e tudo o que nos ronda? Levemos a memória do Amor nestas grandes diásporas e já vamos com a bagagem cheia e fértil. Guarde cada um para si a sua” chama” porque, e rematando com os poetas «uma chama não chama a mesma chama há uma outra chama que se chama em cada chama que chama pela chama que a chama no chamar se incendeia».

5 Nov 2015

Anima-Mundi

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]odos os meses existem teorias de fim do mundo, fim disto e daquilo, fim de sistemas, de certezas, de amores. Estamos rodeados de projectos finais, ora abruptos, ora subliminares, um metafinal discurso de doutrina milenar que nos desfaz as seguranças existentes e todas as formas convencionais de permanência. Abeirados que estamos de tal condição e numa inexorável marcha de imponderáveis, vamos por sucessivas vitórias da vontade continuando o impensável. Deixámos de chorar, estamos exangues, o presente aparece-nos como a grande eternidade provável, pois que o dia de hoje é sempre aquele que nos anunciam ser o último.
No dia 4 de Outubro assistimos ao fim de uma era, de um tempo, nesta escala pequena de um país, pois que a vaicuidade, a luxúria, a impunidade, a vitalícia governação dos “heróis” do sistema se foram para sempre, ficando, como os fins de mundos, em amanhãs que cantam… O expirar de uma hierarquia que teve fome e sede, não de infinito, mas de estatuto — que a memória da fome é algo que é mais forte que a razão — e fora preciso acelerar a “carroça” da história em bases nativas de cultos a bezerros de ouro.
Os que ganharam a nova alvorada, longe andam dos Messias e dos Sebastiões, temos guardas-livros amestrados para responder à natureza do embate, de tal ordem bem treinados, que só se espera que outro dia nasça e pouco mais, na medida em que o deposto é agora a secreta experiência da autofagia, comum a todos os outros fins; depois de comerem literalmente o espaço exterior preparam-se para a experiência alquímica maior. Quando saciados de tudo, entra-se no processo da – endura – devoramo-nos, cortando os fios com o exterior, alimentando-nos das próprias reservas. É um circuito interno de alta tensão, quando bem aceite, base subtil de clarividência, chama-se «Epoptia Iniciática», a alma enquanto centro da voragem.
Neste grau de “endurance” permanecem os devoradores de um sistema feito para ter sido, em princípio, de todos e mantido como autoabastecimento de um grupo que em vez de ter feito um Estado, exerceu ao longo de anos um “gangsterismo” também de Estado, muito longe das necessidades vitais dos cidadãos. Estamos no grau Luciferino que cortada a corrente de relação com a natureza exterior, agora que expirou, a força ígnea se devora a si própria, um mito de Narciso contemplando o abismo. O poder desagregador opera-se agora na alma, pois que a velocidade em que se pode perde-la, essa anima-mundi está agora bem patente no ciclo que finda.
Aquietamo-nos de uma mordaça, não estamos fortes para lutar, não nos querem mais resistentes que as afirmações permitidas, estamos talvez exangues das sucções dos vampiros moribundos, mas nós temos de continuar, mesmo que nos digam que o mundo acaba hoje e amanhã faço anos e depois morreremos: nós temos o dever de continuar.
Sem o pirótico fogo da voragem ainda há alma nas nossas bagagens e, aos poucos, refazer um mundo que acaba em bases novas, renováveis, vai ser um desafio. Nesta hora o mundo mudandis diz-me que nem nós seremos mais isto…. diz-me que um Homem amanhã será tão raro como uma outra espécie em extinção, e que olhar esse ser – o filho do Homem – será quase uma experiência comovedora. Outros vão ser, que já não somos nós, à nossa imagem e semelhança, melhorados, pois que a vida não anda para trás. O fim do mundo de hoje é mais acelerativo que no tempo de Joaquim de Fiora, temos uma urgência inscrita nas veias, um amor inaguentável, uma vontade cada vez mais amputada….
Portugal é parado, difícil, complexo, desorganizado. Viver num local assim é só para nós. Nós que perifericamente já não temos mar, a Europa se esvai, e o chão está seco… Nós, que não temos filhos e nos tiram os que temos e nos ameaçam ter de trabalhar até ao fim , ao fim dos tempos das nossas vidas. Nós temos de saber, apesar de tudo, continuar.
Sob a égide do términus que fazem os bárbaros às portas da cidade? “Ah! Eles eram a única solução”, dizia Kávafis: hoje, também já não são. Não há soluções, não há quem nos salve das agruras do Tempo mas, mesmo assim, os nossos passos e o nosso corpo pensam coisas novas, saídos da morte dos reinos inglórios. Abram alas, que a anima das coisas quer passar e até ao fim seremos os que encontram soluções.
“Vejo ao fundo um pássaro em fuga… vejo Deus e não sei que é… e penso que é número que me empurra”.
Os que vão nesta viagem, recomecem os ofícios de Sísifo, os voos de Ícaro, nós talvez não consigamos mais que este embate, mas o sonho permanece e, findos os tempos, a alma do mundo torna à casa, no coração das coisas que vivem: e podem ousar da nobreza esquecida olhar o sol mais uma vez, dizendo: Nós os que vamos morrer te saudamos!

16 Out 2015

Barca Bela

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] Romantismo não foi entre nós o mais expressivo momento mas, sem dúvida, deixou alguns brilhantes testemunhos, tanto assim que sem ele teríamos perdido muita memória genética da tradição literária portuguesa. O confessionalismo não faz dele um instante “piegas” como muitos acharam, nem o reviver dos gostos medievais um obscurantismo enevoado. Ele foi bastante colorido, pleno de acção, intrépido e revolucionário. Vem da educação arcádica cuja linguagem escrita teve o mérito de se aproximar sempre da linguagem falada do seu tempo. Depois, o conto, as novelas, o romance histórico, conferem-lhe graça e o desligar dos enfadonhos tratados.
Falar desta corrente é, como bem se entende logo à partida, falar de Almeida Garrett, que o tempo do início do Outono faz de forma natural assemelhar-se logo às «Viagens na Minha Terra», num deslizar suave por entre os vales… O romantismo sem ultra, o maduro, o das alucinações visuais, das cores e dos sons, mas é nas «Folhas Caídas», agora de Outubro, que a representação do lirismo português abre portas ao entendimento: há tanto nos interstícios das palavras!
– Pescador da Barca Bela onde vais pescar com ela que é tão bela ó pescador? – Quanto pesa uma alma? Vinte e um gramas, dizem, vinte e um séculos para vinte e um gramas romando numa Barca bela! Ela.
Mas quem é afinal este “ela” que surge e fala com o poeta? A alma. O poeta dirige-se assim à sua alma na sua Barca, a Barca que tem a vela, a vela que tem a chama, o corpo que tem a alma. A Barca é também um transporte mortuário e relembro «A Barca da Morte» de D.H.Lawrence no poema de dez cânticos e que começa assim: «Agora é Outono, o cair dos frutos e a longa viagem para o esquecimento. É tempo de ir, do adeus ao próprio eu, de encontrar uma saída do eu caído. Já construíste a tua Barca da morte, a tua?».
Coisas que o tempo cala porque os tempos apostaram na morte da alma. Mas ela não se cala! E eis que Garrett, agora, na sua Barca, vem lembrar a grande maravilha com o mais requintado tratamento da linguagem falando com a sua própria alma: – «Não vês que a última estrela no céu nublado se Vela? Colhe a Vela, ó pescador!» Esta subtil passagem de velas que não são sinónimas mas que são a mesma essência….. este Velar, esta alma que faz andar a Barca e o nublado da estrela… pois que: «não se enrede a rede nela, que perdido é remo e Vela só de vê-la Ó pescador!» Há que fugir então do canto da sereia, essa ilusão que pode levá-la para o local escuro da sua essência ou fazê-la desaparecer, há que velar, velejando, a alma que vela, a vela que veleja… a anima encontra-se toda aqui! Só animados somos um propósito de viagem, mas animados com aquilo que a própria expressão à alma conduz. Ela é aquela energia que não deve andar “enredada”, que se deve acautelar face à sua natureza etérea, das ilusões do mundo, pois que essa mesma alma pode bem perder-se no assombro da viagem, afundar-se, e não mais animar o viadante. E, tal como Ulisses amarrado às cordas, aqui também surge a advertência: «Inda é tempo, foge dela, foge dela, ó Pescador».
Esta alma do poeta é uma amiga simples, ainda não é o espírito, é uma força que surge como conselheira. Esta é uma luta de um pescador com a sua deidade e não a «Rima do Velho Marinheiro», de Colleridge, que por sinal é a obra que muitos acham ser inaugural do Romantismo.
As Barcas, essas, levam os navegantes com a alma deles dentro e sempre ao longo da viagem lhes será mostrada a estrela d’Alva na forma de anjo interno como um espelho…
Esta é a vela de ti, a chama que terás que entregar. Escuta o seu conselho e caminha sobre as águas.
Talvez tivesse falado com a minha naquele dia… em que … «Vês que vejo a vela verde, vês que sou o tempo e a teia, e que importa se és e não sou uma estátua de areia?!»
A alma pode cair aos pedaços, ser pressionada a pesos que a atormentam, mas só ela existe para saber ver a bela frase de Rilke «Todo o Anjo é terrível». Ela põe-nos também à prova no limite de todas as coisas. Ela está em guarda. Todos os que foram encontrados depois do Naufrágio estavam numa Barca. Tudo mais tinha perecido.

13 Out 2015

Santo Ofício

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]draconismo severo tem sido um hábito mormente gentil numa terra morna com mecanismos impiedosos. Mecanicamente verboso com tendências mórbidas a extrapolar a sua escala de acção, numa continuidade diluída em outras coisas, como o dislate, a delação, o disfarce e a corrupção, muitas vezes alienado, pois nada se trata com a precisão dos casos simples. Não é fácil portanto o desapego a um «Santo Ofício» umbilical, de teor complexo e bizarramente amarfanhado em brumas. A repressão inquisitorial deu azo a um recalcamento dos afectos que levam a um siso, também ele difuso… sisando muito a propósito de nada, numa esteira de saúde pública doente de todo na sua invenção dos males. Recuemos ao século dezoito e ao disparate guardado nas Arcádias, como a vida de Filipe Elísio, o poeta, pois foi a sua mãe que o traiu num processo quase macabro.
Filipe Elísio foi um maravilhoso poeta helenístico que, ao serem-lhe atribuídas afirmações heréticas e a leitura de livros proibidos, lhe fora movido um processo duro, em que o poeta ao encetar a fuga não mais viria ao país. Foi amigo de Lamartine e, após o indulto de D.Maria I, acabou por não regressar devido à maquinação dos seus inimigos que numa irracionalidade ilimitada o haviam de perseguir até ao fim. Por isso, e quando escutamos agora a essência das coisas, nós ainda as vemos como reflexos que trespassam o fino asfalto da consciência; sempre a mesma mordaça, aquela forma de reduzir o outro ao nível de um perseguido, persecutoriamente e visceralmente inimigos nem se sabe bem de quê, num local pequeno cujo alongamento pode muito bem ferir de morte um outro e cujo conteúdo de zelo passa indiscriminadamente por punir.
Filipe Elísio está publicado no «Parnaso Lusitano» da Arte Poética Portuguesa . Grande trabalhador da língua que o tempo pareceu esquecer, não sendo redimido, como tantos outros, pelo erro da expulsão. De uma forma mais ténue, estamos mais ou menos nestes beirais, a sociedade portuguesa filtra-se quase sempre nas elites sem expressividade para ser representativa do que quer que seja. Por outro lado, são eles que ainda firmam os “guetos”, os esquecimentos estratégicos por onde sempre passará a sua influência de uma hidra sem rosto.
Não é por isso, na escala da Paz, aquele lugar seguro que almejam as gentes, bem pelo contrário: há dramas inconfessáveis em cada beiral das vidas, que só não são confessáveis porque de nada serve, não se vê o movimento para a interajuda como resolução social, é preciso saber isto e calar. A escola do fascismo mais não foi que o prolongamento, não sei se com mães delatoras ou não mas, pelo menos, com familiares muito próximos. O imaginário do fantástico talvez até seja limitado para entender tais psiques pois que qualquer metamorfose é sem dúvida mais simples que esta chaga aberta na mente e “modus-vivendi” de um Povo.

Por três homens que vi dignos de estima, vi mil malvados Judas.
Avarentos, filautes, vis sejanos.
Cavernas de calúnia, sem pesar me despeço; e, se o previra
Rejeitar entrar na orbe.

Um excerto do seu epitáfio

Todos os dias há processos e proibições, como seja a última de não se poder ser fotografado ao lado de alguém sem o seu consentimento para passar a publicado, das mães que são presas porque fogem com os filhos num enquadramento de fragilidade social de arrepiar, de não se ousar pronunciar o nome de um adversário, de coisas absolutamente estarrecedoras e impróprias para uma mente sã. E uma sociedade civilizada. Voltou o gene obscurantista como se dormisse à espera de um acordar tão óbvio quanto impossível de combater. Direi que num clima destes, em que cada um se espreita pelas piores razões, apetece nunca mais vir, caso se vá para um outro lado, impelido por um tentáculo sem freio.
Questionar estes assuntos é tão tabu quanto inimaginável, convém sempre dar a impressão que o futuro é agora, e que se ultimam os preparos de uma Humanidade melhorada. Mas não nos enganemos: ela é apenas o lado que ressurge do tempo das perseguições. A Justiça é quase plenária, está cada vez mais ao serviço de coisas morais face ao conteúdo da matéria, as pessoas agora podem aventurar-se na prática do abominável.
Quem não tem para onde ir, sentindo-se a mais, vê melhor um destino ameaçador, uma mórbida onda de desproteção maciça e de negrume. Os grandes ideais ainda foram no tempo em que se comiam bifes e as barbas suavam nos Verões. Não há tempo a perder para começar a dizer o óbvio, com o risco de nada mais se poder dizer do que aquilo que não é óbvio e nos deixarão. E com toda esta imensa nuvem de chumbo lendária nos queremos entender nos interstícios destes sinais.
Com o tempo aprendemos que o medo é uma ausência de generosidade. E que não a ter, contribui para uma escalada onde ninguém fica a salvo, quase como um excesso de zelo movediço que faz asfixiar o seu autor. Olhamos e reparamos que há sombras… sombras e com elas espectros invencíveis.
Agora é altura de rasgar os autos porque a Fé se busca em outras paragens.
Sem mais nada que a incerteza, a diferença pode constituir de novo a culpa formada para se actuar, e, até, nos fazer migrantes engalanados a salto em buscas de novas paragens.

14 Set 2015

A morte saiu à rua num dia assim

Federico Garcia Lorca
(5 de Junho de 1898 — 18 de Agosto de 1936)

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]ezanove de Agosto de mil novecentos e trinta e seis. E, naquela noite de Estio, cumprir-se-ia um destino singular às margens do Guadalquivir: Federico Garcia Lorca assassinado pela corrente Falangista na sua Granada natal onde se havia refugiado, cede ao cansaço de estar fechado em casa e passeia-se na noite luarenta, alguém o reconhecera -volta a casa – e não tarda a baterem para o irem buscar, naquilo que foi talvez aquele instante: estou pronto e só. Porém, ele aninhara-se no seu berço para fugir ao perigo que a partir de Julho se afigurara real, fugiu para a sua terra onde politicamente tinha amigos das duas facções rivais, certo estando que nada aí lhe poderia acontecer. E, mais uma vez, se estende a questão: ninguém deve abrigar-se na sua terra em caso de perigo, é aí que estão os delatores, os algozes, talvez até entre insuspeitos que secretamente jamais perdoaram a vitória de alguns. Este erro, aliás, é cometido por todos. E todos aí encontram o mesmo fim.

Lorca seguiu sempre o trilho da sua própria universalidade não estando filiado em nenhuma das correntes que fizeram a guerra. Exigir tais coisas a personalidades assim seria o mesmo que amputá-las. Garcia Lorca devia ter o encanto das crianças e a natureza brutal dos homens era-lhe talvez intimamente desconhecida, pois que não se pode ter feito aquela obra com noções estreitas de razão e de vontade. Tudo nele pertence a outros interiores, onde não raro o trágico habita, mas sempre pleno de focos redentores.

Com uma aturada atenção dei-me conta o quanto a sua morte está cravejada na sua poesia: uma noção visionária, um destino irredutível, uma visão soberana plasmada nele como uma certeza. Os poetas sabem tudo do futuro das coisas, não sabendo contudo que já sabem, mas uma grande obra poética revela esse assombro para lá das incertezas humanas e das perguntas sem sentido. Ela dá-se onde os outros não têm voz, ela exercita-se nos canais subtis de um mecanismo de sonda que é raro acontecer. Mas está lá, como uma certeza toda de dimensão precisa, outra, inquietante.

Este homem tão regional, foi também um grande cosmopolita, um ser que viajou, desde a sua bolsa em Nova Iorque, passando pela América Latina, Europa, Venezuela, conheceu escritores da sua têmpera, recitou, tocou, conferenciou mundo fora. Grande parte da sua obra foi compilada, revista, nas alturas que antecediam as viagens. Depois, ele tinha um enorme encanto pessoal, era imensamente sedutor criando uma aura quase hipnótica, reportando-nos às palavras de Alberti. Existe mesmo na sua morte uma nuvem de enigma tipo “Salieri-Mozart” com o poeta Luís Sales, que se tornaria o poeta do regime franquista, mais tarde, e a quem Lorca propôs o Hino Falangista conjunto, dúvidas que nunca vieram à luz do dia.

Ele estava perto e teria podido intervir na sua libertação, teria sido muito fácil intervir…. mas é um assunto controverso. Eles adormecem, com o vinho da noite quando os amigos são condenados à morte, já tinha sido assim com alguém que nos é familiar. O facto de ser seu amigo não excluía que o fosse de todos os vanguardistas como Fernando Del Rio, republicano e fundador do Partido Socialista, onde fizeram parte dos grupos de vanguarda formados por Alberti, Guillin e Salinas, o chamado grupo dos «Poetas de Vanguarda». Não nos esqueçamos que foi ele o fundador da «Barraca» teatro ambulante destinado a educar as massas nas cidades e nos campos (não como a nossa Cilampus) e que em plena ditadura de Primo de Rivera pôs em palco « Bernarda Alba», um hino libertador.

Por tudo isto e por muito menos são os homens abatidos e hoje, dezanove de Agosto, nunca é demais lembrar que aquilo que um poeta avança numa geração precisam os homens por vezes de séculos. Claro que fora descuidado e confiante, claro que facilitou a vista ao algoz, mas porquê matar um homem assim?! «Romanceiro Gitano» é das obras mais belas do mundo, todo um poder regional condensado a obra universal, pois que ainda agora quando desejo o cheiro das laranjas, meninos a correr, ciganos, pombos, burros e cães procuro-os nestas páginas de um chão transfigurado em Poema, tão sagrado como a Galileia, tão divina Granada como Jerusalém.

O seu corpo nunca foi encontrado, para que serve um corpo, quando se é Lorca? Talvez para amar e morrer de amor, estes corpos têm coisas estranhas por dentro. Mas morto, é a universalidade que o instala sem sombras no nosso espectro de luzes.

19 de Agosto de 2015

Amo a Federico, nada me poderia ser mais amante, mais tocante, mais rasante a todas as lágrimas de agradecimento que o seu luminoso exemplo de Poeta. O amor vive-se a muitos níveis – sabem-no eles – e, mesmo que os corações sejam de lama e carne, existirá um reduto de outros elementos que batem por este belo ser em uníssono, sem tempo, nem distância. Mais meridional que os seus imensos olhos castanhos, nem as fogueiras de Saloon, mais passivo que o seu semblante, nem as impressões de Cristo, e mais belo que o seu saber, nem mesmo Salomão.

Os políticos hão-de todos morrer, os homens fortes e os fracos, as coisas boas e más, mas o que fica (recorro agora à bela frase de Holderlin)« o que fica, os poetas o fundam».

“Do Oriente ao Ocidente
Levo tua luz redonda.
Tua grande luz que sustém
Minha alma, em tensão aguda.
Do Oriente ao Ocidente.
Que trabalho me dá.
Levar-te com teus pássaros.
E teus braços de vento!”

25 Ago 2015

Os que vão morrer te saúdam

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]audar a morte é talvez a mais conseguida expressão de uma vida lúcida. Nem todos têm este maravilhoso privilégio e as nossas sociedades nada preparam de filosófico e religioso que inaugure o ciclo desta realidade, entretida que anda em ser eterna. Agora que sabemos que o Universo lentamente se apaga, ou seja, também morre, algumas lembranças dos Homens que não a sentiam como horror ou tabu, pois que ilustres são todos aqueles que a esperam de pé — “de pé, como um Poeta ou um Cavalo, de pé, como quem deve estar quem é!”
Há uma bela frase talmúdica que diz: – o último instante de vida ainda é vida –: o que fez que muitos rabis, numa fila esperando pela morte, corrigissem os últimos textos, limassem os seus “metais”, depois depusessem o livro, o lápis e partissem. Não muito diferente dos gladiadores romanos que na arena saudaram a César a sua última batalha, Buda foi saudar a Lua de Maio e sorriu, Zaratustra subiu à montanha e esperou o Sol, e aqueles que subiam também às neves para o último suspiro em provas ritualísticas como Otto Rahn, o cátaro dos Pirenéus. Aliás, os últimos Cátaros não ofereceram resistência nenhuma, descendo uma montanha para o seu sopé, onde lhes esperava a fogueira. Há muitos seres que entram nos abismos a sorrir. Que terão eles mais do que nós, os parasitas do medo, os grandes prazenteiros? Creio que eles têm mais do que nós, uma educada consciência da fragilidade e da insignificância de tudo, mas ao mesmo tempo uma forte noção da sacralidade da vida.
Certas mortes rituais não são bem-vindas, fazem parte de um espectro primitivo muito agudo, como aquele onde fazer correr sangue acalma a divindade. O Templo de Salomão tinha essa prática, pela primeira vez com sangue animal. Daí Abraão ter sido tão importante dado que põe fim ao infanticídio das sociedades pré-agrárias, aquele Anjo que impediu o Holocausto é a consciência de um novo patamar humano. Mas a saga não acaba aqui, como reminiscência ainda aparece Cristo, que vem lembrar que o Pai mata o Filho e que nessa morte o filho se Abandona. Ele não pode lutar, nem sabe, perante esse Saturno mau que engole a progenitura e, num abandono tocante e grandioso, ele quase agradece a sua sorte tão ditosa como a de um outro qualquer eleito, pois que nesses instantes que se percorre o “fio de prata” estamos cosmicamente sós, mais sós do que a nossa solidão alguma vez pôde pensar. Aqui, nem amigos, nem pai, nem família, nem povo, nem tribo… Só uma mãe alquímica e suave como a luz de Deus chora um ser que é seu, não somos amados por mais ninguém, ninguém nos viu, ninguém nos sonha, ninguém sabe dessa dor. Há inclusive uma bela passagem do Purgatório de Dante canto XXVII que explica talvez isto:

Chegados ao grau último da escada
Disse Virgílio, olhando-me nos olhos,
Com voz firme suave e sossegada.
Do lugar onde toda a alma chora
E dos duros caminhos já liberto.
Para ti, finalmente, chegou a hora.
A ajudar-te, deixa-te andar….pois não ouvirás mais os meus conselhos.
Conselhos de pai sábio ao seu menino.
A tua vontade é livre, inteira e pura.
Constituo-te senhor do teu destino.

O que pode acontecer nas várias saídas de todos nós, é nem ouvirmos o que algo nos tem para dizer, e nem sempre o suicídio parece calmo ou aceitável, afinal, não se resolve morrer: morremos.
Antero faz-me sempre uma dura impressão pela forma dolorosa da sua longa agonia, ele não merecia este esgotar-se de si mesmo, este estertor, esta lancinante dor, ele que era “santo” acabou por se diluir no seu espectro mais carregado. E também os pequenos suicídios que ao longo da jornada infringimos parecem actos de impaciência e de curiosidade, mas não lhe apanhamos o sentido, já que tantos precisam de nós…..
“Fazes falta? Não fazes falta a ninguém”. Pessoa assim o afirmava, mas podemos fazer-nos falta a nós como agentes que somos de habitantes de um deus desconhecido e isso é a mais faltosa de todas as faltas. Há quem nos procure ainda por telepatia, por puro orquestrar de factos maiores… há aqueles que prolongam os nossos segundos antes do desconhecido….é bom?! É doce, no entanto.
Nós, gladiadores de todas as batalhas diremos no Portal: Nós te saudamos! Tudo o mais foi acaso e ter nascido.

18 Ago 2015

Oceano – Lua

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]im, foi há quarenta e seis anos. Ainda a Terra pairava em rota de colisão com a sua Estrela, seguindo um ritmo muito próprio, quando alinhou com aquela massa cinzenta, vazia, sem som, como se de repente o Homem tivesse de novo descoberto a Roda avançando a passos gigantes para além de si. Entre a visão infantil do Peter Pan e aquela imagem em câmara lenta, a imaginação de uma criança desdobra-se em mil efeitos que não cessam jamais, dentro e fora dela. Presentes estavam as pessoas da «Viagem à Lua» de Georges Méliès quando os astronautas vagueavam na sua superfície. Lembro-me bem, da curiosidade e da vontade de lá ir, descolar, andar sem gravidade, muitas vezes me coloquei de forma a andar assim, porque quando somos crianças tudo é possível. Portanto, ontem, 20 de Julho, sinto-me sempre neófita. «Ir à Índia sem abandonar Portugal» Agostinho da Silva explica bem a correlação entre as coisas: ir à Lua sem abandonar a Terra, ainda é melhor!
Findado que foi o ciclo das Águas, recomeça o ciclo do Ar. Ora, por mais que queiramos, há mais gases e ar que águas, oceanos. Estamos, sem que lhe demos a importância devida, no ciclo da Era Espacial. Não tenho preciso tudo o que senti naqueles instantes, mas ficou claro um imenso amor pelo Oceano-Galáctico. Aliás, não gosto de água, devo ser um raro organismo vivo juntamente com os gatos a ter tal reacção. A Água da Terra mete medo, é o resquício de um barro indistinto… uma manobra descongelada… chegados lá, já não temos guelras, mais fácil crescerem-nos asas. Em proporção ao espaço-tempo, levou tanto a sair da Terra como os Hebreus atravessarem o deserto; pois, era logo ali, claro, muito perto, mas libertar é tarefa dura e, na primeira parte do processo, estes aparelhos e marchas estão quase ao nível da Roda – mas é preciso ir.
Quando a sonda chegou a Marte senti o mesmo frémito, olhei para o fundo de um oceano vazio, uma paisagem árida como quem olha para um deserto de libertação, ficamos encantados até com a escassez, a luz, a vibração outra… e, por instantes, há aquela dúvida, se não andamos em viagem, numa Diáspora que é preciso resolver. O Profeta Elias pode estar ainda algures no seu carro de fogo, numa dessas superfícies que o sol esqueceu, e a vida, tal como a entendemos, não contempla. ….”os homens amam a Terra por que esta lhes resiste”.
Vir até aqui, à Terra, já não é destino, há moléculas que ficam presas às teias da quase invencível sobrevivência que vieram apenas registar e acabaram engolidas na engrenagem da reprodução dado que há sistemas sensíveis às fontes de calor…e eis, que nascemos pessoas, numa atmosfera hostil onde nada se mexe a não ser o movimento louco que faz da corrente de ar uma manobra difícil. Há um suborno à massa desfeita, que não é passível de ser acelerada, por outro lado, entre o Homem que somos e o que virá, o abismo cresce na proporção da recusa de um e da urgência de outro.
Os «Velos de Ouro» estão agora além, além das águas dos Argonautas, Argos é Apolo.
Todo o distintivo em provocar rupturas ficou aberto desde aquele dia, mas quase ninguém se lembra, dado que o asfalto é grandioso para quem se alimenta de húmus e na escala que evolui há um Olho Gigante que nos inquire da capacidade que cada um tem em suplantar a lei. Leis que não são eternas, apenas andaimes de uma estrutura tão requintada que nem damos conta, e tão implacável que só nas suas dobras se acorda. “Vi então um novo Céu e uma nova Terra pois que a primeira tinha desaparecido”- Apocalipse, um livro fortemente espacial, de grandezas várias e resultados insuspeitos.
A Lua sempre estará vazia de curso nas instalações dos nossos mapas celestes, dado que não nos governa com a rotatividade das harmonias simples. Está ali, mas ninguém sabe bem para quê, não é uma sentinela de gestação, de fecundidade, de cortar cabelos (mais, cabeças?) tudo se produz num laboratório demasiado humano para ter o rasgo feiticeiro da sua luz… não nascemos lunares, os colos são frios, as barrigas até se alugam e quem dá curvas lindas são ainda os Matisses do Mundo. Quase não serve para nada a vitória da curva sobre a recta… giramos sem cessar mas sem projecto de Dança… Quando há Eclipses vai tudo espreitar, gostam de sobreposições, encavalgamentos, linhas rectas… mas, findo o instante, desatam a circular de forma desordenada. O Homem Fantasma! A Lua Lobisomem, perderam-se… eles também eram reais. As Lunações mais perfeitas, as casas a cheirar a lavado pela Lua-Nova, os acasalementos da Lua-Cheia, nada, nada disso a Lua faz, bem como a memória de a ela ter chegado se dissipou em mil verdades e mentiras, num desdobramento consoante ao «Homem que engoliu a Lua». E como ela esta vazia, temos muita fome de tudo, insaciáveis, somos os monstros que comem pedras.
Pela noite ela ainda me vem visitar a pique no meu jardim secreto, e não vem redonda, dado que a espiral morreu, mas logo aqui, a faço Mãe e Irmã, dos meus sonhos mais fecundos.
Lembro-me de ter lá estado, e nela ter vogado, numa atmosfera feliz.

30 Jul 2015

As brumas

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stamos na Europa e foi 14 de Julho, nada de expressivo aconteceu, nem sequer a data pareceu interessar na azáfama da dívida grega e nos vãos de escada dos peditórios: a Europa é hoje um armazém de guarda-livros “merceeiros” e banqueiros, um rescaldo de contabilidades cujos princípios justificam os fins. A Revolução foi nas calendas de antanho e o tempo não está para grandes ardores. Nem sempre temos força física, anímica, para entrarmos em tais domínios, não nos podemos deixar galvanizar por ideais cujos resultados são imprecisos e utopias que não pagam contas. Parecendo grotesco o que agora digo, é assim que se vive, mesmo os mais aptos para uma participação de fundo.
É claro que ninguém fica sentado a ver uma Revolução passar, uns tomam-lhe o freio, outros transferem-se para heróis, outros fogem, uns são presos, e os que nada ganham ou perdem também entram na “dança” nesta actividade ígnea não há horas para as reuniões, para tocar nos colarinhos, para cada um fazer a sua “paneleirice” rasteira num marasmo que mata mais que mil soldados. A Reforma é agora a modalidade mais eficaz e a sabotagem do direito do outro à vida, a diversão mais requintada do capital estrangulador. Articular revoltas nesta “benemérita” sociedade é algo de inconcebível, está tudo pensado ao detalhe: quem rouba também dá e dá espectáculo e coisas para manter os “sans- culottes” devidamente entretidos e alienados. Ainda são precisos. Porém, creio, que no dia em que este «Cérebro» entender que estão a mais, haverá estruturas para os fazer desaparecer: as investigações nazis da «Bayer» só agora estão perfeitas. Aliás, estamos perto de um efeito que não desmerece um qualquer outro que possamos ter achado menos bom.
A Grécia lá teve que estender o fio de Ariadne, mas desta vez não matou o Minotauro e ao regressar a Atenas foi mais pobre, pois que os heróis morrem jovens e, no tempo deles e das Revoluções, o mundo também era outro, mais cativante em formato Humano. É nos Estios que elas se dão, pois que o Inverno não dá “pão”. Revolução é coisa Estival!
Nós não podemos estar pior, ou seja, podemos sempre vir a estar, é um facto, mas dado que desconhecemos o abismo, agora mesmo nos sentimos muito mal, mas com recurso a tudo, pois que o acto da sugestão nos pode induzir de forma “Voltariana” ao melhor dos mundos. Estávamos nós a festejar oniricamente a Revolução quando estas coisas paralelas de afundar mais a Grécia se produziram; a partir de um certo instante a salvação é o abandono e não vale a pena capitular, dado que hoje, e como nunca, quem pode sabe e tem razão. E os ricos têm muita, dado que são eles que fazem as leis. Apanhamos sustos vários cada vez que passamos certas datas, dado que elas efectivamente morreram, congelaram na inércia dos séculos, de tal ordem que haverá um doido que nos virá alertar futuramente que o passado nunca existiu.
No que diz respeito à Igualdade, ela, embora não designe de facto coisa nenhuma, devia ser neste tempo substituída por Equidade, ou seja, tratar diferentemente aquilo que é diferente, com formas de acção coordenadas, e não o simplismo igualitário, pondo nas portas das comissões este poema: «Todas as coisas têm o seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada um foi prescrito».
Descodificar tratados da União requer alguma filosofia, o que falta à Europa é uma estratégia política, apenas existe a financeira. Há países que estão calados, pois sabem, o quão maravilhoso seria serem geo-estrategicamente os “Bons Samaritanos” irem a correr dar água do seu poço; nesse dia os sonhos morrer-nos-iam, aqueles poucos que sobraram- porque, se bem entendo, essa expectativa é subliminar a todo este processo, quanto a nós, que há muito nos esquecemos da Revolução o melhor será irmos aos poucos esquecendo uma Civilização inteira. Penso que é isso que sabem lá no fundo os europeus, basta a «Pedra Angular» do berço dela se ir, para ruirmos e começarmos a perder-nos na penumbra dos tempos. O dinheiro, a Banca, os Banqueiros e a Economia vão matar o mundo, e nesse começar, somos agora o alvo que convém focar em silêncio.
A Liberdade, essa não é a mesma que aquela que se gritou da cima da Bastille, o nosso sopro não aguentou o voo de Ícaro, nem o Sol gosta dos que não são águias. Fraternos somos a modos que solidários numa desgraça colectiva que adjectivou o princípio para uma escalada de valores onde não queríamos ter voltado.
E foi nestes ditirambos que se passou a data do Grito Libertador, que tanto deu vida, como matou, dado que matar e dar vida, são actos da mesma “Revolução” e da primeira grande condição do Homem. Foram grandes esses tempos. Agora, sentados a uma mesa, vamos elaborando o estertor da última etapa.
Gostava de te ver voltar. Ninguém deve nascer para isto.
Se ao menos soubéssemos o dom da Equidade, dessa expressão que tem em si um principio inviolável de grande Justiça! Mas não: de tão iguais estamos exangues e o nosso sangue já não aquece a Terra.

23 Jul 2015

A nau catrineta

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]onge vão os tempos em que a língua falada era um legado de fábulas e um canto em verso que se soletrava em forma de uma Constituição oral das regras de um país, de maneira a produzir uma receptividade comunicante de unidade e completude de esfera onírica, no tempo da Barcarolas, dos Cânticos, dos Trovadores, das Orações e das Trovas.
Ela articulava-se para produzir efeitos, desejar bênçãos, aperfeiçoar a melodia interna, profetizar e unir o inconsciente colectivo. Tudo isto foi a um tempo bem distinto da linguagem do agora, com ritmos e ciclos outros, que dava ao Verbo o papel de profecia. A cultura era também esta maneira de oralidade imensamente poética que merece ser vista com alguma consciência mais precisa quando falamos deste género literário. Vivemos hoje o fim de todo este ciclo: a língua não serve mais este propósito ou estes vários propósitos, tendo, na era da comunicação, sido práticamente abolida a sua imanência. Continuamos arduamente a produzir cultura, ferreamente empenhados em compreender tudo de todas as maneiras, a falar como nunca, a produzir sons e a jogar todos os verbos de forma a comunicar sempre mais, não se sabendo exactamente o quê.
Com o recurso ao pensamento individual todas as formas de relato são agora possíveis, todas as misturas argumentativas, todos os diálogos, todas as línguas, toda a verificação automática da sua norma, enfim, querer ser compreendido por meio da palavra tornou-se uma obsessão ilimitada e quase perturbadora. Informar, passar a mensagem, factualizar, argumentar, dizer, desdizer, tudo isso os discursos abusivos e a comunicação aceleram numa vertigem sem paralelo.
Estamos então no tempo de todos os recursos linguísticos e fonadores, pois que o Homem é o resultado da linguagem e o seu cérebro vai-se desocultando no exercício dela, de forma quantas vezes imprevisível , como no tempo em que o cérebro ainda possuía alucinações auditivas e os patriarcas, xamãs, profetas as ouviam a partir do seu lóbulo frontal e escreviam e ditavam coisas que ainda agora nos deleitamos e curvamos de pura admiração. Ora os seus cérebros estavam formados para outros raios comunicantes sem dúvida, porque hoje, não ouvimos mais essas “vozes”, nem elas nos ditam coisa nenhuma. Ficamos a sós uns com os outros a falar, por vezes mesmo a sós, outras porque nos disseram que não podemos estar calados, que todos temos uma palavra a dizer e assim por diante. As “vozes” hoje são ouvidas por escribas de editoras que lhes dita um outro, tão humano quanto ele, para relatar algo, que certamente vende e enche o mundo de papel, histórias essas quase sempre plausíveis, chamando para o poder humano aquele que algures tinham Deus e outras sublimes forças.
Um escriba já não é o homem com acesso ao vocabulário e ao sinais gráficos mas um ente que escrevinha o que um outro pensa muitas vezes de si mesmo. Esta total separação de fontes ordenou que todos tentassem escrever a sua história em moldes e formas unitárias, tiradas de todos, para que todos possam participar na vida uns dos outros em depoimento humano tão falível quanto as narrativas não batem certo. Os Faraós, que tinham linguagens e formas de lucubração metodológica talvez pouco desenvoltas e não estariam propriamente a falar com o redactor, este teria também que saber interpretar a voz de um “deus”. Não se sabe muito bem o que é que os Faraós disseram, a não ser aquele, o Aqueneton, que resolveu acabar com a casta sacerdotal, talvez demasiado palavrosa para as suas ideias monoteístas. Mas havia o labor do escriba! 9715P11T1
A dialéctica, essa arte da oratória, cresceu não como factualidade de enumerar coisas, mas tão somente pela “beauté do verbe”. Falar era uma arte maior, que não tinha de contar factos ou dizer o que se sabia. Era a pura interpretação inteligente da maneira de argumentar sem um sentido pré-determinado: poder-se-ia falar da coisa falada e renunciar a ela num atalho da própria matéria verbal. Devia ser delicioso. Ajudava a dar ao pensamento a antecipação de uma acção, a percorrer memorandos de informação, que são cultura armazenada. Aliás, as religiões monoteístas aplicaram brilhantemente estes princípios nas orações, nas preces, nos salmos e na retórica que transmitiam com bases sólidas das fontes linguísticas que foram o latim e o grego.
Esqueçamos tudo isto, porque o que não se exercita se esquece, claro, e vamos para o hoje do mundo falante. Nada disto parece sequer fazer sentido, nós os detentores da informação estamos tão nus destas verdades como despidos face a nós mesmos, as línguas são agora ferramentas ao serviço da nossa escalada de solidões várias, onde não vem colmatar nenhuma esfera desprotegida e direi até grandiosa. O que se disse hoje, amanhã diz-se de novo de outra maneira para assim nos dar a sensação que dizemos coisas novas. Meia perversa meia grotesca, serve-se dos acontecimentos ao redor (ao redor agora é a Terra toda) dando o brilho artificial de que quase sempre a própria informação se reveste.
Há o lado monocórdico, que tanto fala da morte como da vida, como do sexo como da paz, com a mesma inexpressiva dose informática, de modo que tudo se resume a acontecimentos no grande entulho das coisas sensíveis, factuais, os responsos a estas várias desgraças há muito que foram esquecidas e a felicidade é tudo quanto se almeja. Só que para ela há códigos que não lembram ao diabo, erguidos como grandes paragonas, tão politicamente correctos que ninguém ousa desafiar. Caso o faça, fica morto porque, quem não fala assim, não está do lado certo da jornada.
Olhando apenas o factor som do aparelho fonador, descobriu-se que a voz feminina pode provocar depressão nos homens e que pode estar associada ao grande número de agressões por parte destes. É uma conclusão que aponta para um total reaccionarismo mas que não deixa de ser interessante, porque corrobora com a ideia de Lou Salomé quando afirmou que a loucura afecta o desregramento vocabular na mulher enquanto que nos homens lhes retrai o dom da palavra, ou seja, a um provoca autismo, a outro a obsessão linguística.
Estou certa que o futuro ditará novas abordagens no fenómeno comunicante, outros órgãos que ainda desconhecemos se irão aos poucos desenvolver deste aparelho, quiçá ainda rudimentar, se ampliarão outros, com novos símbolos gráficos como acesso à telepatia, onde o poder comunicante se desenvolverá como hoje só é possível nas máquinas de sonhar e que todo este ruído a que fomos sujeitos findará, porque não foi afinal por causa dele que fomos enquanto criaturas melhor compreendidos. Aliás, nunca os afectos recuaram tanto perante a exigência de os analisar, nunca tantos se entenderam tão mal. Aqueles que nos dizem o que é essencial saber, reunir-se-ão na nossa esfera de empatias melhoradas, sem longe e sem distância, como um Fernão Capelo Gaivota, para nos sussurrarem ao ouvido o seu precioso entendimento e dele nascerá a esfera de um conhecimento que amplia a linguagem em muitos saberes.
Levados pelas vozes de uma esquecida Nau Catrineta talvez as histórias sejam então de pasmar.

Que queres então, meu gajeiro?
Que alvissaras te hei-de dar?
Quero só a tua alma para comigo levar.
Pegou-lhe um anjo nos braços, não o deixou afogar.
Deu um estouro o demónio.
E sossegou logo o mar.

9 Jul 2015

Maus ventos e maus casamentos

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]periférico país que é Portugal tem cada vez mais o velado aspecto das «Ilhas do Encoberto» no imaginário, neste caso, no nosso imaginário colectivo. Eram estas Ilhas levantes que emergiam do fundo oceânico nas noites de S.João por volta do Solstício, sendo um fenómeno inteiramente natural devido à actividade tectónica das placas neste momento do ano. Ora as populações não tinham conhecimentos que tal as informasse e delas se criou um mito maravilhoso e terrível. Pessoa, sempre atento aos fenómenos do inconsciente colectivo e aos mistérios que o habitavam, até escreveu um belíssimo poema em sua homenagem: “– não sei se é sonho se realidade se uma mistura de sonho e vida… aquela terra de suavidade que da orla esquerda do sul se olvida… é a que ansiamos…. aí, aí, o mal não cessa não dura o bem…. mas, aí, aí, meu ser é jovem e o amor sorri. Não é com Ilhas do Fim do Mundo nem com palmares de sonho ou não que cura a alma seu mal profundo e o bem nos entra no coração. É em nós que tudo”.
Qual «Jangada de Pedra», que nos parece um pouco a «Nau Catrineta» ou a «Arca de Noé», estamos expostos a todos os ataques de forma tão sóbria, quanto nós encobertos por densas camadas de doce alienação. Aqui mesmo ao lado, mais exactamente em Almaraz, a cem quilómetros com a fronteira portuguesa, a central nuclear mais antiga de Espanha acaba de ser chumbada pela área de energia nuclear da Greenpeace por inexistência das mesmas válvulas que permitiu o acidente em Fukushima. Foi a partir daqui que se exigiu que todas as autoridades reguladoras aderissem a este sistema com carácter de urgência. Mas outras falhas são mencionadas no inquérito, tal como o risco de actividade sísmica para o qual não está preparada, desenhando-se assim, um problema de primeiro plano, cuja gravidade de uma ameaça indelével é tanto maior que a Grécia, o euro e a senhora Barroso, e o senhor y, x e b, na medida em que, com Grécia, com ou sem senhora, se tudo rebentar, também nada de relevante pode existir que valha a pena ser contado.
Chamados a manifestarem-se, os nossos queridos “hermanos” nem abriram a boca. Talvez até tivessem ali construído estrategicamente, com os ventos voltados para soprar para estas bandas… os ventos são óptimas locomotivas e, assim, se livrassem potencialmente de algo de muito indesejável, em parte, pois ninguém fica a salvo. Séneca teria pensado próximo disto caso estivesse agora a escrever este estranho texto. Os cínicos são muito lúcidos e não vagueiam nesta beberagem dos “Amigos para sempre”, ou seja, estão-se nas tintas, passe a expressão, para os seus vizinhos; nem um pedido de desculpa, ou uma desculpazinha de mau pagador, mau ventilador….
O Estado Português é um altar que ora está palrador, ora está devedor, ora está pleno de actividades paralelas, para chegar a tanta coisa, e certo anda que já ninguém se casa nem os ventos já puxam vela. No tempo dos Filipes, eles não ensaiariam em tê-la construído no estuário do Douro para haver mais aragem. Talvez já nem existíssemos num anteprojecto de Solução Final.
O facto de Portugal não ter esta energia, e com a gravidade do que se passa, o país seria receptáculo de toda a radioactividade em caso de desastre. As prioridades do país, exactamente como a dos loucos, são aleatórias, dependendo muito do entusiasmo do momento. Há o futebol, a Grécia, o euro, a crise, o Sócrates, os concursos, o Ambiente… –que é uma coisa que serve para ganhar ambiente – mas não há uma nítida percepção do que é uma prioridade, talvez porque esta paz amoleça a noção do indispensável e do acessório, ficando tudo confusamente misturado.
Este sim seria um tema para convidar os homólogos espanhóis, obrigando-os a sentarem-se a uma mesma mesa, discutindo em conjunto algo que afecta a todos e de forma urgente, grave, eficaz, mas a estrutura governativa que é uma coisa que está ali em funções de uma outra regência, quer esquecer o mau casamento com o país aqui do lado. E anda a vender coisas que se por acaso as válvulas não estiverem bem seguras lhes estragará o negócio. Portugal é isto: uma coisa meia à deriva, entre ventos e marés, acossado e sem soluções, que não seja o descolar pelo mar fora… ou submergir como as Ilhas Encantadas.
Estes aspectos que estão unidos à soberania precisavam de abordagens rápidas, e os cidadãos deviam ser informados de forma digna e com a devida consideração, infelizmente, isso não acontece num labirinto de formas que se estreitam até ao estertor da insanidade.
Para que existe um Estado? Ninguém sabe. Ele tomou o papel do nosso guarda-livros, e em matéria de soberania e defesa somos tão frágeis como entes isolados. Vivemos à beira de toda a indigência, de todos os perigos e ouvimos diariamente discursos alucinantes acerca de assuntos que não interessam nada.
Mais uma vez os “maus ventos e os maus casamentos” podem trazer a morte. E não se trata da nossa, apenas, porque essa doravante será um bem para a Terra, mas para outros reinos, que são a vida no seu equilíbrio de forças. Isso pode acontecer a qualquer momento ou nunca mas para que nunca aconteça o melhor é prevenir e não abrir um chapéu de chuva ao primeiro sinal de radioactividade. Ou as covas. Não estou a ver esta gente debaixo de uma catástrofe. Morreriam todos de inanição e estupefacção e seria como a morte dos inocentes.
Os cérebros lusos funcionam muito de forma organizada, não existe a modalidade plural e, por isso, é fácil entretê-los fazendo-os olhar para um lado, e dizendo: é dali que há-de vir o Agamémnon e ali andam estonteados até à náusea a discutir o sexo do monstro e dos Anjos, quando um mais esperto desaperta as válvulas, estende as garras e vai polir o último metal. O Federalismo Europeu começará também com a política da terra queimada. Do Juízo em Chamas. Final.
Um suporte sem forma não nos causará injúria, nós mesmos nos tornámos uma receita para a diluição, partimos da visão errónea de que para ser grande sê repartido e, neste lodaçal de coisas várias, tudo o que pode acontecer é a vitimação incrédula. Sabemos o quanto o imprevisto é o que fundamenta a História e mesmo assim não acreditamos em “brujas, pero que las hay, las hay”. Chegados àquele ponto em que quem der um tiro para o ar fará uma Revolução, neste caso, quem deixar as coisas assim, fará ainda muito mais e pior, dado que as Revoluções com um só disparo para o ar até são bonitas. Com apreensão nos deitamos nestes tempos, debaixo de factos inconclusivos, uns por não serem factuais, outros porque nem lhes sentimos o pulso ameaçador. O Governo português foi a correr meter-se num lodaçal de armas de destruição maciça, que afinal não havia, só para tirar uma foto ao lado de uns assassinos com poder, mas existem muito perto das suas janelas reais perigos que a visão esquemática não deixa ver. O rosto com que fita é uma Górgone que não se chama Portugal e o que ganhará a batalha será Perseu. Que por estas terras não existe e, aí sim, há que implorar ao Panteão Grego que nos anuncie rápido a sua vinda.
As grandes auto-estradas são veios por onde a morte célere e o tráfico ilícito há-de doravante passar à velocidade de um qualquer Ájax: aquele tornado branco, o mais Poderoso.
Todos os fantasmas são Brancos.
E todos estão adormecidos, existindo como nunca, agora e aqui, a possibilidade de serem reais.

2 Jul 2015

Os torna-viagens

[dropcap style =’circle’]O[/dropcap]Brasil tornou-se desde a sua origem o grande mito português de uma causa mais vasta que a própria noção territorial, um vasto significado de mitos de um Império renascido na mais plural vertente humana e de uma necessidade de aludir ao conceito da osmose daquilo que ficou conhecido por «Filosofia Portuguesa» e que teve os seus arautos, após, e sempre mais fundamentadamente, depois da sua existência. Estamos no Reino do Quinto Império, negado que nos foi o encontro com o Rei do Mundo, o tal Prestes João. Nunca, como aqui, depois de uma longa conversação com os homólogos espanhóis, nos pareceu tanto o fruto de uma habilidade e proveniências divinas. O mais vasto continente da América Latina era sem dúvida a nossa «Ilha dos Amores», o culto do Rei Midas e todas as coisas com que tecer o mito ardente de uma Terra Prometida. Multirracial, fraterno, rico, grande, estava concluída a saga dos navegadores, com êxito. África nunca produziria o mesmo encanto nem as praças fortes a Oriente. O Brasil era a nossa estrutura arquetípica, resultado de uma busca de espaço e de exotismo que na mente se buscava e seria necessário acontecer.

Com as guerras napoleónicas a fuga do Rei tornou-se um marco de preservação daquilo que devia ser mantido a todo o custo, ficando o território nacional para segundo plano nos momentos mais difíceis. Quanto a mim, esta atitude revela uma inquietante indulgência territorial para com os invasores, transmitindo-lhes a segurança de governar um Reino sem retaliações maiores. Portugal perde credibilidade e autonomia com esta fuga que até hoje não conseguiu recuperar. Um Rei que foge devia ser punido pela História, que foge porque o seu país é atacado, diga-se. Mas Portugal jamais reagiu a tal aviltamento, o facto de ser o Brasil o local da fuga iliba o monarca aos olhos do país. Com ele, foi um séquito, um mundo hierarquicamente constituído e não faltaram os fidalgos de província que, cansados de morgadio peninsular, quiseram novos escravos, mais genuínos e dóceis. Uma fidalguia desgastada e enraizada em modos feudais dá agora azo à sua megalomania, fundando um complexo conceito social, onde eles reinam de forma autónoma. E, assim, a noção de um Império é lá que se funda com o primeiro Imperador. Da ala liberal nascem paradoxalmente os grandes e primeiros bastardos da Nação. É preciso inovar na base de uma mensagem vinda de outros locais e esquecer, como em 1383-85, o Povo. A partir de um certo momento há que fazer como todos fazem se, se deseja a noção de “status”. O Povo é sempre essa massa anódina de mercenários e valentes que se levantam quando as causas e os discursos não resultam. Certos de que ele no seu labor de séculos há-de aguentar – por outro lado há quem não possa partir – o território tem de estar assegurado por aqueles a quem a vida dura não permite sonhos de grandeza. Há que guardar a reserva daquilo que o fez acontecer mantida a duras penas, dado que os Governos a partir daí foram formações de ajuda a outros Impérios, quiçá, não tão belos, mas mais poderosos. Aquilo que consideramos pequeno fica para o fim, e assim, sem atenção às gentes, Portugal se foi tornando paralisante, em cada etapa mais agonizante, dando para sempre a ideia de quem aqui fica não foi bem sucedido.

Mas toda esta noção implicou uma constante falta de rigor e a mais básica noção de Estado, eles são feitos para as pessoas e não o contrário. E assim nos fomos tornando aventureiros, numa aventura de sobreviventes que correm contra o seu próprio mito. Foi destas águas muito turvas que nasceu o fazer improvisado, o milagre da acção, a vida enquanto excepção e nunca como regra. Ficou-nos o sabor amargo dos que se vão quando mais precisamos deles, a desconfiança nos Governos, a deriva das ilusões. Desenvolvemos uma psicose colectiva que é a megalomania “ o melhor do mundo, o maior do mundo, o mais poderoso do mundo, o ardor infinito pelos nossos egos abandonados à loucura do transtorno… uma infinidade de sintomas digno de diagnósticos e de ajudas. Em vez de nos exaltarmos colectivamente na base da justiça ou da fraternidade, tornámo-nos sagazes nas artes do enredo, mesquinhos a ver o outro, medrosos a negociar, com artimanhas tais que cada um quer ser o poder de um centro que lhes falta. Há uma periferia amarga muito para lá da geográfica, e, como que aluados olhamos o mar de onde nos vem um horizonte sem lei para nos perdermos por aí fora. A terra fundada é um local onde se sofre. Mansamente, porque a escala contém as vontades e os ritos marciais que fariam bem para desanuviar os traumas. Não sendo possível anular a agressividade, comemo-la como um espectro abafante dando origem a uma má postura física e uma enevoada visão psíquica. O rebordo destas duas faz-se muitas vezes pela auto-imagem desgastada até às calendas de um inferno qualquer, e, como reféns, vivemos no torpor de todas as prisões.

Claro que continuamos a ir para o Brasil, é lá que ainda está a «Ilha dos Amores» ou ele vem até cá para nos mostrar o quanto estamos cansados. Os homens portugueses amam o exotismo erótico do povo que ajudaram, pensam, paternalmente a construir, dá-lhes a soberania dos machos Alfas, ao lado das suas mulheres, que eles por séculos abandonaram, e se tornaram dirigistas e muito responsáveis nas acções, a mulher portuguesa é quase um macho disfarçado . É valente, sim. Esteve quase sempre a sós ao comando da Nação. A protecção que lhes é devida, foi e continua a ser muito baixa. Eles que já são poucos e se vão, fundam novos sistemas “coloniais” abraçando as causas que lhes foram negadas enquanto machos dominantes. Neste vaivém, quem fica para trás, que sobreviva, porque também a própria estrutura e justiça da época não está para contemplar o feminino.

Levando os levantes de literaturas há muito gastas no Velho Continente, montam as suas bancas de uma inventividade que passou e de uma originalidade que foi palco vai para uns cem anos. Transportam assim os fantasmas de uma modernidade que nunca viveram e com ele encantam indígenas e anfíbias populações autóctones. Não seria possível brilhar tanto entre aqueles que sabem mais. Por isso, estendem lá as suas tendas de “artes mágicas” quase sempre falhas de talento, mas ousadas na acção, e sempre malsã, de antigos colonos.

Não falando na grave forma do ninho de víboras dos nazis e vândalos europeus que se escondem na selva Amazónica e de toda a espécie de condutas que o Velho Continente não quer, eles têm a largueza que se estreita cada vez mais a nossos olhos. A mentalidade de antigos negreiros não foi abolida e, por vezes, existe na memória colectiva, tensões. O Instituto Camões padece de soberania nacional tendo-se tornado um feudo da cultura brasileira, que fazem teses, milhões de teses acerca do Eça de Queiroz. Não passaram de um certo realismo de opereta, na vasta sanzala de uma cultura artificial. Salvam-se os poetas, dos melhores da Língua Portuguesa mas que, dados à economia verbal e à beleza pujante, nem sempre têm como mereceriam aqui lugar. O território é deles, cantam, dançam, levam a “boa-nova” como outrora nos seus casarios de fidalgos de província. Nunca deixaram de o ser perante uma elite embevecida com os antigos amos.

Os que ficaram, porém, muitos foram literalmente corridos- dos bons- não precisaram de fugir, e quando a Nação estava mais triste do que nunca, ainda lhe apararam as lágrimas deixaram testemunho das suas inolvidáveis obras, e com estranho amor ainda lhe sorriram. Não tiveram pedaço de terra que fosse sua, foram maltratados em todos os regimes e continuaram sonhando um país, afinal, que lhes deve tudo. O resto são mercadores, torna-viagem, esperteza saloia e incómodo ao próprio génio de ser. São esses que farão sempre falta a uma Nação assim, paralisada e imprópria, para o melhor das suas gentes.

Se morrer fosse tão fácil como deixar de existir, diria que o sol dos trópicos os há-de queimar para sempre no coração da Nação que, cansada de abutres, está agora a tentar sobreviver ao último estandarte da usura desenfreada, tal qual fizeram com o ouro que lhes veio do Brasil, numa ânsia de fazer brilhar o país de todas as ruínas.

25 Jun 2015