Do verbo amar

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á muitos instantes que podem inspirar para sempre as nossas vidas. Instantes como pactos gravados e por nós sentidos como se fossem presentes, dádivas. Quais altas instâncias que nos devolvem o bem que fizéramos e num relâmpago nos beneficia. Os milagres são acasos muito particulares, sem aviso prévio, nem aparente sentido, mas que na génese têm a sua razão de ser. Ao fazerem-se tais constatações somos nós também que definimos as benesses da mensagem gravada em rito. Nem sempre somos merecedores! A vida ardilosa e plena de trabalho asfixia o bom desenvolvimento de uma visão periférica dando como adquiridas as conclusões benignas. Mas nem tanto! Tudo o que está exposto ao grau da gravidade exulta em nós como queda contínua. Daí o caos permanente, a consequência errática, o labor em círculo, a não aquisição de outros “órgãos” que apenas e ainda nos estão prometidos como potências geradoras de coisas outras.
Serão então tributos? Janelas mais além? Lampejos, cintilações, assombros? Serão talvez lembranças e recados, antevisões, merecimentos? Talvez isso tudo e um pouco mais. Possivelmente uma aritmética composta de subtis harmonias que se revela plataforma de um entendimento maior e nem sempre mesurável com o dom dos sentidos e da razão. Por que há efectivamente muita coisa que não sabemos de nós mesmos, e muitos de nós, gostaríamos para sempre desconhecer. Sabemo-nos falíveis, frágeis, ingratos, soberbos, tristes, incompreendidos, machucados, mas nunca sabemos até onde vai o dom de ser. A opacidade criou no Homem grutas de invisíveis recortes, cavernas de obscuridade, lesões da anima, e a alma não é um levante, trazemo-la até merecermos um sopro de incondicional amor que dentro das batalhas funciona como talismã. Se a Terra é cada vez mais igual, já o Homem é cada vez mais diferente. Muitos vivem no substracto da primeira essência como se de taumaturgos e lapas metabólicas de grandes quaternários se tratasse. Têm ardentes fomes, e desejos tamanhos, que não existe universo que os mantenha saciados. Outros, porém, renunciam, como se tivessem escalado o fardo de uma primeira etapa e fossem por umas escadas, tão altas como as de Jacob, que num sopro sonâmbulo, viu agitarem-se os que iam e os que vinham, numa dança imparável de Eternos Retornos. Outros, ainda, desenvolveram qualidades mediúnicas, outros geométricas, outros fixas, outros móveis. A Terra é regular, ao lado deste filho que não sustém a sua órbita. Uns são areia e magna, outros pedra e diamante, outros doença hereditária, outros, invencíveis.
Mas há de facto os encontros. Encontros raiados de magia, de sagrado, que magicar nunca será o mesmo que consagrar (aqui, as palavras querem dizer coisas e não a mera técnica do exercício da escrita) que de tão preciosos, são remetidos e processados para um local, outro local. Há partes que se procuram como derivas de continentes que se encaixam, formas que se buscam, que têm saudades, nunca se sabendo como defini-las. Um puro momento alquímico pode encarnar naquilo que os olhos serão efectivamente os últimos a ver. Sabemos como os amantes se cansam da vida, a vida nunca é amante, a vida é mordaça, é ferida. Um impulso de rotinas, de grandes ciclos cansados, de partes massacrantes, de zonas viciadas, com tantas fantasias de felicidade quantas as desilusões. A nossa mente construiu o espectro da Felicidade, esse cenário invisível por onde ninguém passa e todos se esforçam por parecer habitá-lo, danificando-nos.
Talvez seja por isso que no puro amor existe a única realidade possível, aquele acontecimento em que forjamos a nossa consciência humana transfigurada. Não é preciso sonhá-lo. Ele, a haver, manifestar-se-á. Também não parece emplumado nem ataviado de coisas, é fresco como as sombras- como a frescura das sombras- melhor dizendo, porque nos é desconhecido e temos de o viver com as túnicas do repouso. Quanto mais elaborada é a mente humana mais amorosa se torna a sua prática, é um tecido alvíssimo composto de um requinte tal, que nenhuma filigrana se lhe iguala. Nos interstícios tem a lucidez da mente e algo de tão perdoável que faz dos amorosos, aqueles grandes seres parados.
Quando estamos perto sentimos-lhe o aroma, a dimensão sagrada, o dom maior, a bonança interna como um lago de luz… sentimos algo que milagrosamente nos harmoniza e orienta deixando para trás o entulho das defesas e o massacre dos sentidos. Estamos num campo abençoado! Manter tal situação como rotina exige entrega, exercício constante e ordem. Encontrar alguém nesta viagem ainda é mais bonito… é como a certeza de que fomos contemplados. Dizia Safo: «Vedado é o choro na casa de um poeta, nunca um tal pesar se apartará de nós». Entrar com botas cardadas nestes antros pode provocar catástrofes naturais, desabamentos de terra, chuvas incontroláveis e mudar alguma coisa no equilíbrio das forças naturais. Os muito amados nem sempre são os mais prováveis, mas, talvez os mais protegidos, os mais férteis em produzir reacções, e se de fora vierem agrestes, o fora que são se transformará na insolvência dos seus dias. Aliás, a Fé e o Amor, são a mesma gema de um Ovo duplo.
Não se deve dar às sensações e aos sentimentos o epíteto de Amor, seria reduzi-lo a uma escala natural. Ora o Amor não é natural dado o seu carácter absolutamente excepcional. Está fora ainda da regra, não sendo contudo um desregramento. É uma simplicidade que enlouquece.
Portugal é um país onde não se sonha, onde o amor é uma caricatura de um gemido fadista, de um passional informe, e onde até a palavra em si se fez tabu. Não sei o que buscam os poetas nem esta literatura descarnada, talvez dizer qualquer coisa que nem eles, nem ninguém entende. É uma vingança apelidar de poetas estes seres, cogumelos, a vingança contra o Poeta. A descrença democrática perante o seu labor, a usura mais ingénua, a indecência mais indecorosa, atacou as suas bases: «Para que serve afinal um poeta em termos de indigência?» já Holderlin perguntava. Eu acho que para nada, mesmo para nada. Mas, há um hiato aberto no tempo: os poetas servem para aperfeiçoar o Amor, não para o descobrirem, porque o Amor não se desoculta, mas pode ser visitado: “o amor que sinto por ti, é uma chama que ilumina a penumbra do que sou; a mão do Amor corrige a natureza”, Elizabeht Browning, in Sonetos Portugueses. São sonetos na bela forma Camoniana que dedicou àquele que viria a ser seu marido o também poeta Robert Browning. E diria mais: “pois que toda a lira, desde que é tocada por mão de mestre, é boa. E ser amada de um grande coração é ter valor.”
Todo o valor do Amor é ser amor, mais nada. E nada o legitima mais que a própria inocência, a sua natureza alada, o seu enlace de matizes, a sua voz que chama e um ouvido atento à sua doce mensagem. Tudo desaparecerá e arrefecerá um dia, menos o amor que num tubo de ensaio irá intacto para o lugar de onde emanou, e aí, todos os nomes dos Amantes serão por fim revelados.
Os amantes são as peças de um corpo incompleto, aqueles que liga a deidade aos canais da existência, nem sempre são as certas todas as formas de amor buscadas, mas são para nós as derivas de uma lembrança. Enquanto ele não chegar, a nossa vida também não nasceu.
Por muitas vidas erraticamente o iremos buscar, até desvivermos nele toda a eternidade merecida. Porque, afinal, ele é merecimento. Conquista da luz sobre a obscura forma aceite, talvez mesmo o que contemplámos no fundo da nossa eternidade.
Para compensar a fome temos a finança, para alargar as vistas os grandes horizontes, para saborear, os repastos, mas para amar não há ninguém. Ninguém que tivéssemos encontrado com esse dom, porque os dons se vão quando deixamos de os contemplar, ou até de acreditar neles.
Creio no “cadáver adiado que procria” no equilibrado sentido das funções e essa certeza não me dá nada. As certezas são as coisas mais terríveis que inventamos. São espectros.
Ninguém procura a morte, dado que nos está ainda reservada como certeza, ninguém ama a certeza. Certos de tantos efeitos, desfazemos longamente os véus destes teares que nos parecem defesas para tanta insatisfação. Porém, e como diria Catarina de Médicis em pleno massacre da Noite de São Bartolomeu, “haverá um dia em que o Homem será amigo de outro Homem.”
Sem dúvida! No tempo do Amor.

11 Abr 2016

O Clube dos Poetas Mortos

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]este sem dúvida um belo filme, mas a particularidade é que ele gira em torno do poeta Walt Whitman, desde a sala de aula com a sua fotografia de fundo, imagem tutelar, bem como o que domina depois o espírito do filme, o poema magnífico de «Oh, Captain, my Captain» para nós, toda aquela insubordinação e camaradagem perante uma austera estrutura nos traz particularmente à memória outros Capitães. Aqueles de uma manhã que bem poderia ser um poema de Whitman. Tal como no filme, os capitães abandonam o palco onde nasceram punhados de coisas incríveis e, convidados a sair, existirão contudo alguns soldados que se levantarão prestando-lhes a homenagem merecida, os outros, nem tanto, entrando em silêncio no ritmo das coisas interrompidas, e o poema agora, começa a fazer real sentido, como de uma antevisão o poeta nos falasse.

O meu Capitão não responde, os seus lábios estão pálidos e imóveis.
O navio ancorou são e salvo a viagem terminou e está concluída.
Mas eu com passo desolado caminho no convés onde jaz meu Capitão.
Tombado, frio e morto.

Este poema é quase um alegoria a todo um tecido social, é uma visão precisa, belíssima, e traz em si a morte do poeta, do capitão. Whitman fora jornalista e ensaísta também, em seu tempo, e considerado o pai do verso livre, a sua obra está centrada em «Leaves of Grass» havendo dela várias edições com acrescentos numa mesma colectânea. Fernando Pessoa teceu-lhe várias homenagens dizendo que a sua poesia influenciou toda a posterior, e sem dúvida a sua própria, referindo-se à sua verve como um profundo hino à vida. Portanto, Witman é também um pioneiro, um poeta que se destaca por uma liberdade que ajuda a libertar os seus pares. Nunca esteve parado numa vida alegadamente susceptível ou contemplativa, foi um guerreiro, trabalhando para o exército como voluntário em hospitais militares, mas toda a compilação de « Leaves of Grass» agora com novos poemas acerca da Guerra Civil e da sua experiência, valeram-lhe um despedimento por indecência da parte do Departamento do interior. A partir de aqui, segue a sua pobreza que alguns admiradores e amigos tentam colmatar.

A vida deste “Capitão” é a de um poeta, acrescentando páginas a um livro, pois que um poema nunca está concluído , tendo sempre sínteses fantásticas de um mesmo nomear. Estamos numa trincheira, num vapor violeta que não sucumbe ao ultraje numa maré viva de bem conduzir a Barca, numa realização suprema. Sem estes acrescentos, sem esta caminhada de um percurso constante, não há comando possível, dado que as viagens, não raro distraem o viajante acerca do propósito inicial, e muitos vêm morrer à praia contemplando o horizonte por que nada tinham a dizer. Mesmo Ulisses na sua permanência pela Ilha Encantada, não se esquecera de Penélope, pois que há homens como sonhos e heróis como poetas.

Salgueiro Maia, foi arquetipicamente este Capitão, e por isso, devemos alguma reflexão aos mitos de natureza poética, dado que eles representam os Homens e sagram vencedora aquilo a que apelidamos de Humanidade. Talvez as manhãs nubladas tragam o «Desejado» que depois de materializado é esquecido, como as próprias nuvens e os sonhos. Os Clubes, mantemo-los, para que nos oiçam para fora do tempo como uma invocação, um treino, uma vontade. Com mais tempo, ter-lhe-íamos dado uma forma mais precisa, mas, há tempos que não se interligam, nem andam pela mão nas coisas correntes.

Nos socalcos que transpomos e nas vidas que habitamos, faltam-nos os Cânticos e o «Cântico de mim mesmo» um Juan de La Cruz, um Salomão…. Falta-nos de novo entrar neste segredo imenso onde só os Clubes se distinguem à revelia das escutas em surdina de uma forma gasta. E, por que os Capitães são jovens e o grupo um núcleo de um coração para todos, o próprio Witman nos diz:

Oh, instante da juventude! Elasticidade infatigável!
Oh, equilibrada virilidade, florida e plena.

para depois:

Velhice soberana que desponta! Bem-vinda sejas, inefável graça dos dias que morrem!

A nossa seiva já não tem a mesma sede, a nossa guerra não tem já inimigos, o nosso tempo contempla a sorte de termos vivido o momento de um rito que um Clube de homens parecidos a Aquiles nos fizeram viver num poema em carne viva. Perante factos assim, não se deve julgar, há coisas que acontecem como dádivas, instantes de amor. Julgar, é não compreender. Depois, não somos juízes, e esta é de facto para muitos uma causa alheia.

Comum, têm-se as ideias, as formas de vida, os ritmos quotidianos, alguns pequenos Clubes e uma língua que se esforça, de incomum, temos aqueles que são incomuns, que nos lembram algo que quando estamos tentados a esquecer, renasce, para nos relembrar:

Um chamamento no meio da multidão
É a minha própria voz, avassaladora e final.

Temos medo, sim, de ter afugentado estas sedes, estas fomes, estas forças, que elas por descaso e tristeza se tenham afastado de nós, temos vazios tão duros como balas, e uma paz que se sustem só em conforto, temos medo, muito medo, pois que sabemos que ultrapassámos um limite onde podemos vir a não ser contemplados. Por isso, se os invocarmos, estamos a nomear os caminhos por onde eles retornarão. Ficar sem a sua presença é pior que tudo e o nosso esforço nunca será recompensado se não tivermos acesso a uma pequena fimbria dos seus “Clubes.”
Eles também vêm para o Banquete.

Um Banquete vivo de uma temporada que nos galvanizará para sempre.

A ti, peito que apertas outro peito!
A ti, emaranhada sebe de cabeça, barba e músculo!
Gotejante seiva de ácer! Fibra de trigo viril, a vós!
A vós, ventos que me roçais com vossos genitais!
A vós, amplos campos musculares, ramos de azinheira vadiando amorosamente nos meandros dos meus caminhos.

5 Abr 2016

Idos de Março

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]inha razão César ao temer o ano 44, naquela tarde de 15 de Março sucumbia assassinado por Brutus. Também os Cátaros uns séculos após desceriam de Montségur, os últimos resistentes desta heresia tão especial que dera origem aos chamados «Homens Bons» e que no seu Maniqueísmo ajudara a uma civilização melhorada na região do Languedoc. Cá em baixo esperava-os a fogueira. Era a manhã de 16 de Março, de 1244. Pouco tempo depois, Jacques de Molay, o vigésimo terceiro Grão-Mestre da Ordem Templária, nascido exactamente no mesmo dia da extinção cátara, acabaria numa tarde de 18 de Março do ano de 1314, também ele na fogueira, depois dos anátemas que desferiu no Papa Clemente e no rei Filipe o Belo. Anátemas com carácter de maldição já que no espaço de um ano ambos morreriam e o malefício acompanhara os reis de França. Simão Botelho parte para o desterro nessa manhã de 17 de Março… A viagem para a morte em pleno mar e o amor estranho de Mariana…
De facto, os Romanos sempre temeram os cinco últimos dias que antecediam a Primavera. Muitos se fechavam em casa para escapar a tão nefasto instante. Os últimos dias do Inverno têm presenças assombrosas como se uma janela desse para o sublime, a dor, e o terror, emblematicamente na cúspide de Peixes, a casa zodiacal da memória universal, parece sim, que se abrem as portas para o improvável habitado. Podemos viver este tempo como uma anunciação de nós em vidas múltiplas, um resgate de todas as vidas que trazemos vindas, uma memória intercalada de estímulos antigos ligados ao sacrifício e a uma liberdade inesperada. Todo o tecido deste tempo nos atira para uma saudade de antanho, mas também para algo que estava oculto em nós. A morte aparece-nos como a mais estranha das missões e não raro sentimos que ela é uma passagem grandiosa, e dizer adeus uma manifestação poética como jamais tínhamos imaginado. Os que ficam nem sempre têm a sensação da forma mudada, da grande alquimia, pois que nos vamos formando nas horas seguintes e nas formas activas dos dias, mas, a neblina de uma vaga sensação de um tempo diferente, nos habita. 31316P19T1
Não só Simão Botelho parte para o desterro como o próprio Camilo nasceu nesse dia, não sei até que ponto ele nos quer dizer de si na imagem de Simão. Sabemos da sua índole complexa, anticonvencional e algo belicosa, da sua imensa necessidade de afecto e de paixão, de uma vida passada nos limites do admitido e com toda a carga de desvio e penas. A sua natureza típica de um romântico não foi indiferente a este personagem trágico que se debatia com uma dualidade amorosa e uma imensa lealdade para com o seu grande amor, este tempo de absorção entre a partida e o nascer, entre a personagem e a sua própria, ocupa hoje o dia toda em reflexões, diria até, que extemporâneas.
Mas neste dimensionar está a vida daqueles que viveram no limite, dos que porventura chegaram a um mundo onde a ideia fora mais de partida para um desterro do qual só as águas afogariam na sua imensidão de destino. Vemos como a febril herança de um escritor se nos alucina e perturba, como aquela vertigem foi grandiosa, também, como todos os resultados foram válidos e trabalhosos, como se chegou à cegueira e se contorceu a vida numa alma que não tinha mais razão de viver. Os seus olhos viram a tragédia que a própria vida não foi capaz de suster. Ninguém morre porque quer, morre-se por falência e desistência, morre-se por condição. E a de um homem a quem lhe é amputada a vida, esta poder-se-á revelar-se uma jaula de infortúnios. Essa decisão não é um pedido, ninguém pede a outro tal trabalho se ainda lhe for dado discernimento para o efectuar. Ninguém convoca outro para assassino, sobretudo um poeta, um escritor, um homem livre. Não vejo Antero, Camilo, Espanca, Sá-Carneiro, pedirem para os matarem. Eles, não pedem, eles exercem a força do destino. Esta diferença faz a distinção da tão discutida Eutanásia. Estes são os dias que nos informam da natureza trágica do Homem, e quando tocamos nessa fímbria não nos é dado discutir formas nem comandar outros para resoluções tamanhas, estamos face ao desconhecido, a um processo de transformação que desagua numa surpreendente vitória.
Horderlin, o poeta dos poetas, nasceu a vinte de Março. O seu espectro, a sua natureza, eram a de um ser assaltado pela beleza, pela transparência das coisas sublimes, porém a sua vida foi metade passada nas sombras da loucura que não notara e que imprimiu com voz de arauto. Todas as coisas prodigiosas morrem e nascem neste ciclo dos Idos de Março e nós limpamos uma a uma as nossas quentes lágrimas porque o Sublime é triste e a Beleza também. Como se fosse uma ferida o tempo se desnuda e nos mostra o que não vimos em outros momentos, e a Graça é o « Dom das Lágrimas» as oblatas da antiga liturgia cristã o refúgio de uma salvação. «Vacilas por ternura Deus omnipotente da pedra fonte da água viva rompeste a um povo sedento retira da nossa dureza a compunção das lágrimas longo pranto por nossos pecados concede pois vendo-nos assim te compadeces e obtemos remissão» .
É uma digna forma de estarmos preparados, este suor das nossas entranhas, por que os Idos de Março são de facto os que nos arrancam da flama da nossa carne o mais comovente de nós, esta passagem pelo lago prateado e pelas dores que param, porque passada a dor, todo o Universo é um canto grave de uma doce e funda tristeza. Estamos abertos para o imensurável mistério de Deus, e ao focar a existência de Jesus no signo dos Peixes, damos-lhe as qualidades deste momento cósmico, como se nestes dias fosse ele o nascituro.
Lembro-me da cascata de poetas que em Março de 1993 morreram no espaço de uma semana nestes Idos, e nem por isso a memória se me torna tormentosa, eles partiram na sua fase de expressão superior, e todo o homem animado, que tem de facto uma alma, convoca os outros para a partida e juntos vão numa saga que a nós ainda não nos é dado compreender. Creio na santidade do propósito bem como no invulgar poder da invocação. Ninguém morre só, quando foi habitado por certos elementos : o Universo conspira na sua deidade e força o encontro entre pares. Assim nós, que deste lado do vitral fugimos aos sonhos e nos adensamos num real imposto, possamos um dia chegar a eles de forma transparente. Estes são os Idos de Março, os mais assombrosos e transcendentais, e ninguém que tem um destino escapa indelével que seja ao seu tão inigualável encontro.
E terminam neste lago:

Dignai-vos dar em abundância
Luz da inteligência verdadeira a estes submissos servos
Lágrimas aos olhos
Contrição ao coração
Até que purificados do actual luto e da tristeza espiritual
Da morte eterna nos afastemos como de uma ruína.

31 Mar 2016

Quarta-feira de cinzas

Porque eu sei que o tempo É sempre o tempo
E o lugar É sempre e apenas o lugar
E o que É real É real apenas por uma vez
E apenas para um lugar
Regozijo-me que as coisas sejam como são e
Renuncio ao rosto abençoado
T S Eliot, in Quarta-feira de Cinzas

[dropcap]H[/dropcap]oje é um dia especial na liturgia católica mas não será exactamente isso que inspira este instante, ou seja, é isso, dez, como o decálogo dos mandamentos , mas sim o poema de T. S. Elliot, exactamente chamado «Quarta-feira de Cinzas», um poema tutelar que abarca a Cultura Ocidental, feito por um poeta que bem pode estar ao lado dos profetas, pois que é demasiado fascinante para ser abordado sem uma profunda experiência do mundo. Este poema, que faz parte das células do imaginário, tem, claro está, num dia assim mais sentido. Vive-se nele o dia todo e quase a primeira essência se dissipa sem contudo nos dissociarmos face ao que o poeta dele instituiu. Entra-se num momento que nos reporta ao número quarenta, a Quaresma, a quarentena, uma passagem de dias, de anos, como forma de abordar ciclos vitais, tanto pode ser um poema elegíaco como um metadiscurso entre leituras comparadas.

“Porque eu não espero voltar
Porque eu não espero
Porque eu não espero conhecer de novo a glória frágil da hora concreta.”

O Livro de Ezequiel – 37- dá-nos a tónica do poema em ossos, os ossos daqueles que retornam à vida e fazem parte do corpo de um povo naquela planície de ossos onde um sopro lhes dá a vida nova em corpo e forma. O profeta Elias, subjugado por tristezas várias, pede para morrer debaixo de um zimbro e a cena é marejada de sofrimento e dor, como uma implorante profecia na linguagem do poeta:

“Debaixo de um zimbro os ossos cantavam dispersos e brilhantes, regozijamo-nos por estar dispersos, pouco bem fazíamos uns aos outros, debaixo de uma árvore à friagem do dia, com a bênção da areia esquecidos de si próprios e uns dos outros, unidos, na quietude do deserto. Esta é a terra que tu partilharás em lotes. Recebemos a nossa herança”

É toda a estranheza do verbo que com o sopro se faz carne e mora nos Homens que aqui se bem diz e elucida. Já não podendo mais, Elias fora arrebatado por um carro de fogo e não mais voltou àquele local. Ainda hoje é esperado com entusiasmo e fé por aqueles que crêem que o desaparecimento faz parte do plano dos que não aguentando são, por forças divinas, arrebatados da sua desdita: pois que “eu não espero voltar, porque eu não espero”. Mas nós esperamo-lo! – Elias… Elias… Ele fala com Elias. – Na fronteira, Elias fala ainda aos que estão na linhagem desta imensa história de não retorno.

O poema levanta contudo muitas perturbações, e até formas nunca reveladas pelo poeta, pois que Eliot era parco a fornecer explicações da sua obra, na medida em que nada de conclusivo se pode tirar de um texto que passa em muito o factor surpresa, de uma voragem feita por leopardos na friagem do dia que se alimentavam até à saciedade de pernas, de coração e de fígados, daí os ossos, daí aquela necrópole improvável. Se fôramos cera, arderíamos apenas, mas este comerem-nos até à saciedade levanta o problema de termos sido ultrapassados nas leis não naturais. «Este é o meu corpo, comei e bebei». Nós estaremos nesse alimento de que se alimenta o poema e da minha vida ficará o tributo a um bem que todos podem partilhar, por isso o roteiro de jejuns que o próprio dia fornece, para lembrar os que têm fome e da nossa mortalidade em cinzas.

Aparece uma Senhora no poema – senhora dos silêncios calma e perturbada dilacerada e ilesa preocupada em repousa a Rosa única que era agora o Jardim – jardim esse, onde todo o amor finda terminado o tormento do amor insaciado e ainda o tormento maior do amor saciado fim do infindável, jornada para parte alguma conclusão de tudo o que é inconcludente

… Graças à Mãe pelo jardim onde todo o amor finda. Quem finda nesta voragem e o quê? Oh, meu Povo, que fiz eu de Ti? O que é isto de tão arrepiante mente ilusório, de tão assombrosamente maternal? Esta abundância de estranheza não dá para definir nem um Reino nem um Povo nem um Poeta nem um Profeta, mas as datas continuam charneiras a este tecido.

Comecemos numa indigestão de coisas articuladas pois que ao princípio da divindade subjaz a grande fúria. Aqui, neste poema, a grande deidade não está em paz, nem morre de fastio, pois que usa a vida como alimento e nutre-se de si mesma. Não será afinal este efeito maior o que faz de Eliot o enigma desta quarta-feira?

Já em «Terra sem vida» ele fala com as pedras e o mesmo povo devorado e que se articula com carnes nos ossos, faz as pedras brotarem água pela vara de Moisés. Talvez isto explique que não há poeta sem esta imensa área de mergulho na sua história civilizacional e tudo o que se faz à revelia deste caminho acabe inexoravelmente morto e invertebrado. Aquelas pedras são gotas de água. Tudo neste poeta está sempre por dizer, pois ele disse aquilo que ninguém sabe da sua própria Cultura. Eles vêm dizer-nos que se não for por estes passos que nos dilaceram por vezes os sentidos os poetas não têm razão de se apelidar assim e que quando eles desaparecem o mundo estará tão perdido que as rotas se transformarão em vãos desígnios de vociferação indistinta.

Nascido no ano de Fernando Pessoa, ambos trilharam caminhos que nos colocam agora neste dia em face do seu mistério. Tudo aconteceu para que sejam eles a revisitar na sua ânsia de não perder o fio de prumo à espectacular forma da natureza humana.

Há quem não queira mais, sim, e implore sair, e quem queira tudo e nada implore. Há os pacíficos que transbordam de tédio e os enaltecidos que usurpam os lugares que habilmente a indigência preparou, conquanto, se houver ainda um roteiro que nos transcenda, as coisas e até os ossos terão no tempo o seu lugar.

Não mais voltar ao local de um crime, mas os criminosos voltam sempre. É por isso que os seus crimes não compensam, dado que a segurança dos predadores é também a sua derrota. Quem não quer voltar sabe que fez o melhor e se for arrebatado é porque não se extinguiu no asfalto onde todo o sonho morre e a lembrança de que um deus não é a palavra que o designa, mas algo mais que convém estar atento, não vá o manto do nada apanhar-nos neste lugar sem força para implorar uma saída.

São os quarenta anos, e os quarenta dias e as quarentenas dos que andam a somar dias aos seus inesgotáveis esforços, mas a força aplica-se só, e somente, onde houver uma pedra, um osso, uma estrutura. E sem os nossos colossos e palmares de sonho e colunas, nada deste dia restaria se não a cinza de uma lembrança que julgáramos morta pela vitória de uma razão que afinal, está muito aquém de fazer um poema como este.

26 Fev 2016

A dez quilómetros da Via Láctea

Enquanto andamos entre escolhos e danças, terras e mares, culturas e ideias, paraísos e bonanças, a Terra tem sessenta e dois homens que acumulam mais riqueza que metade da Humanidade. É de facto exemplificativo do que é, e para que serve uma tal Sociedade Humana: ode aos Vencedores, ode aos Ogres, aos que arrebatam tudo aquilo que algures nos ensinaram ser devido a todos. É mais que provável que toda a moral esteja errada e toda a base que permitiu vir até aqui não tenha vencido a primeira condição. Pensando bem, é melhor poucos e bons, melhor rico que pobre, melhor ter que parecer e reduzir o número de eleitos porque os gáudios são de chumbo e os frutos pesados.
Face àquilo que conhecemos de tal espécie não se encontram motivos de deslumbre, nem uma razão explícita que nos faça amar-nos mais uns aos outros do que a qualquer outra coisa, até podemos acertar tal disfunção pelo Livro do Apocalipse: – se alguém aumentar alguma coisa, Deus lhe aumentará os flagelos, bem como se alguém retirar palavras deste livro profético, Deus lhe retirará a parte que tem na árvore da Vida – não vou mais tirar daqui o que quer que seja, na certeza porém que o aumento dos flagelos, mais a minha parte retirada mesmo agora da Árvore da Vida, contribuam para fazer o Universo mais harmónico. Olhado assim, o mundo remete-nos para os Contos de Fadas e os seus Ogres e até, psicanaliticamente, imagine-se a forma que esta tem nestes estudos, afirma isto: – sinto muito, mas os pobres são maus – aquando do menino da Floresta cujos pais o abandonam e ele espalhando migalhas de pão perde o rasto porque os pássaros o comem, o que faz dos desgraçados pessoas duplamente punidas.
É certo que dos felizes não reza a história, muito menos dos muitos pobres, então o que é preciso para se ser o sexagésimo terceiro? Um bom argumento para analisarmos e tentar, como com os Jogos da Santa Casa… Fixemo-nos nestas sessenta e duas deidades que armazenam o Festim de que é feito o Mundo com seus batalhões de matéria viva prestes a tudo devorar: Que comerão eles? Que presas? Como amam? (depois de Cardeal, já não se acredita em Deus) Terão contactos com extraterrestres?
Há mecanismos cuja complexidade nos remete para o Velho Urizen, aquele deus tão bem descrito por William Blake, afastado do mundo indiviso e que acabará por ver consumado o perpétuo isolamento do seu estado, dessa unidade original que fora a plenitude divina, pois que a matéria é já algo distante das origens o que faz da riqueza, vista por este prisma, um grau de distúrbio máximo que tende a colapsar nos seus próprios limites de sustentabilidade. Ouvimos isto tudo que nos dizem como informação, e nesta transmissão, se pode aferir da imensa irracionalidade vivente. Nem a Rússia Czarista, pré-bolchevique, criou tais fossos, nem mesmo as antigas sociedades feudais, o assalariado de hoje está em proporção no mesmo grau de pobreza.
«Para sermos felizes vivamos escondidos», sem dúvida, é um adágio. Para comanda há que ter perspectiva, olhar tudo como que à distância de um Campeonato de Jogos Florais, uma excessiva intimidade impede o lúdico, arma secreta para a angariação do sucesso e toda a ideia precisa de espaço para fazer de um grupo um resultado pretendido. Creio que já não ando longe de ver nascer o homem cibernético feito à imagem e semelhança do Homem porque nós, os que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, parecemos não ter resultado.
É por estas evidências que não se pode levar a sério, nem ter esperança na Economia enquanto emblema social de recurso a tudo. Se ela fosse uma actividade inteligente, ou quanto muito, organizativa, estávamos em outras estatísticas com resultados bem diferentes. É neste monstro, no entanto, que a Humanidade deposita toda a sua fé ou aquilo que dela restou, a sua inquietação, e faz dos seus dias realidades menores.
Neste século, já quase nos aproximamos da leitura visionária do real, por isso falei de Urizen, do uno para o múltiplo, do indiviso ao fragmentário, do sincrético ao analítico, da eternidade ao tempo, pois este rosto voraz, inicialmente infanticida, coloca um tampão de pedra e diz: – Agora sou eu o deus para toda a eternidade! – Este demiurgo vazio e raivoso selou pela impertinência a Terra, para nela formar o tempo e ser o Deus inexpugnável. É um mito cosmogónico. Ele vai isolar o que o Uno tinha unido numa mundividência romântica, ele isola e reina. Assim estamos hoje, agora, aqui, neste inabalável princípio sem que possamos ter a brecha de saída do circuito É um Laboratório de fazedores de espectros, que reproduz uma causa assustadora.
“… e ele viu a Fêmea e condoeu-se; estreitou-a; ela chorava, esquiva;
entregue a um prazer cruel, perverso, ela escapava ao abraço que teimava persegui-la.
tremeu a Eternidade, ao contemplar o Homem a procriar a sua imagem.
Na sua própria carne dividida. ”
A Civilização, ela, a Fêmea, está como que paralisada no fim do tempo cósmico, é o que quer dizer este número. Por vezes, os números das Bestas não são aqueles esperados, ao fazerem-nos olhar para um ponto esquecemos contar as várias perspectivas. O que poderá vir desta escalada ainda não sabemos, até porque se lhe acrescentarmos o dobro, teremos então cento e vinte e quatro homens mais ricos do que toda a população mundial. Sabemos que a lei da voragem subjaz a todo o elemento vivo, e, que a fragilidade do ter, só mesmo comparado ao efémero do viver, que mau grado a expectativa de tantos, somos menos melhorados do que supúnhamos, mas, que um grande momento, talvez mudança, tão necessária quanto urgente na equação da Terra se terá de demonstrar. Sabemos bem dentro de nós que passámos uma meta e não sabemos designá-la dado que é fluida… mas ela vive em nós como um barco naufragado. Queria poder pensar que tudo isto é roda e fim e começo… não sei, creio que nada vai ficar como prevíramos e que se tivermos ainda tempo há que avançar muito mais do que era esperado de seres tão rudimentares.
Esta nem notícia é, em última instância é uma constatação um aviso, um alarme, que soa como uma evidência, um clamor de guerra. Admitir tal realidade é uma prova irrevogável de que tudo falhou.
Só que estamos a dez quilómetros da Via Láctea e, a menos que não saibamos voar, só aqui ficamos se não houver da nossa parte vontade para que nos transplantem para um outro lado, onde se volte a repor uma certa harmonia, e cuja gravidade nos vote ao esquecimento desta época, deste ainda permanecer.

11 Fev 2016

Urbi et Orbi

Os povos cansaram-se das eleições um pouco por todo o lado na Europa numa massiva desconsideração pela forma de se fazerem representar. Isto quer dizer que os actuais sistemas estão disfuncionais face à sua razão de existir e que o facto de estarem a colapsar não vai assegurar, como é óbvio, a sua legitimidade: não sabemos para onde se dirige a marcha mas à medida que a farsa se contempla a si mesma, intuímos o fim dela, e esta sensação não é boa. Há uma manutenção de moribundo que culmina com a saúde do morto no dia das eleições.
O que falhou? Isso são abordagens mais amplas, como as sociológicas, históricas, filosóficas , mesmo, para as pessoas, neste estado ainda do seu desenvolvimento, elas apenas processam a auto-sustentação das suas vidas intranquilas que as impede de indagar o seu instante como um argumento urgente para a sua continuidade. Também não creio que estejamos em processo reformativo, tudo o que foi mudando, talvez seja tanto, que o que ficou não possa ser reformulado… Os fluxos migratórios parecem diques… inundações, toda esta geopolítica é muito fluída e não temos uma ideia clara do que venha a ser o futuro imediato. Os problemas ambientais só agora se sentem, os reflexos, as mutações… Estamos num Inverno quente e cinzento… o calor é tão estranho quanto a nossa impreparação orgânica.
Lidamos quotidianamente com uma dimensão pouco habitável, difícil, onde temos de adaptar os nossos organismos à imprevisibilidade reinante como jamais nos fora exigido no vasto programa das idiossincrasias cósmicas e naturais. Estamos naturalmente acossados dentro de um prisma que sentimos irrespirável, pondo a funcionar o sentido de uma “guelra” antiga pois não tarda a emagrecerem as costas e a subirem os mares numa conquista que tanto pode ser continuada como abrupta. O ciclo luarento que ditou a ganância, a usura, a fome contínua, essa febre do útero infernal, está como paralisado ou então a fome mudou. Nem tudo é já para “comer”; rodamos esta ampulheta e nada, quase, já se pode comer. Ou a fome é mesmo outra coisa que já não quer dizer nada acerca dos fundamentos do ciclo alimentício do passado ou tudo isto poderá, como disse, acabar de vez de forma abrupta ou descontinuada, como agora está tão em voga quando querem acabar com um produto, deixando-o existir até à sua falência.
Estas designações verbais, aliás, também não são inocentes, já que como todos sabemos não há signos assim e a linguagem é a sinalética menos inocente que temos. Olhar agora para o mundo com as prerrogativas artesanais do ciclo da grande voragem é, quanto a isso sim, um estado de inocência, é uma mansidão que já não se coordena com a radicalidade atmosférica. Estamos dessincronizados do “habitat” em cada vez maior escala, obviamente que isto dará toda a espécie de psicoses e até de más formações congénitas. Atravessamos um deserto imenso onde cada um tem de levar a sua lanterna, porque a visão do grupo não é condutora de nenhum caminho.
Encaminhados para o leve, falemos um pouco de «Massa e Poder», o livro de Elias Canetti, que dá bem a dimensão de um mundo a ir, sem uma plataforma de devir muito clara e cujo poder se chama outra coisa. Acerca desta obra se diz: – Canetti ensina-nos que a massa não se reduz a ser um simples aspecto característico das sociedades modernas, mas que foi e continua a ser muitas outras coisas; que pode matar e ao mesmo tempo atrair; e, sobretudo, que não existe sem o seu contrapeso: o poder. À proliferação da primeira corresponde a solidão e paranóia do segundo. Há um longo epílogo no livro que se chama muito exemplificativamente «A dissolução do sobrevivente».
Fronteiras que tecem territórios móveis são sempre inquietantes. Mas não duvido que tenhamos todos que pegar em duas ou três verdades tidas por conhecidas e avançar, dado que nada se resolve voltando para trás. Como vimos, há um sistema gasto, ou cansado de ser, uma caricatura da participação, dado que metade das populações dos países se demite da sua liberdade de a usar o que não tardará a criar desconforto e ilegitimidade aos próprios eleitos. É certo que cada vez mais os seres se agrupam tentando ser eles a criar as soluções dos seus destinos, que gerir bem o mais perto é a vantagem de se conhecer o terreno e que os tratados e códigos se acham atolados de inoperância fase à magnitude da necessidade humana. Que mesmo que queiramos ver intentos passadistas nas intenções, eles também já são feitos de outra maneira e com outros pressupostos, que começa a haver um hiato entre aquilo que os mais velhos estipularam e a surpresa de não conseguirem com as mesmas práticas os mesmos resultados. A noção da equidade talvez esteja a ser sobreposta pela da igualdade, que a contempla, num justo processo acelerativo, o que faz de cada um de nós, indivíduos despertos para sair da manada ou da alcateia, sem com isso ter de ser ostracizado pelo ritual da partilha que é ainda a forma primitiva de distribuição em série.
São as leis laborais que vão ordenar o nosso espaço ambiental e fazer que tenhamos uma noção individual não programática, mas com reparações em cada novo ano. Não sei que ruptura se dará perante o estado de coisas em voga, já tão generalista quanto impróprio para se fazer ouvir. Há momentos muito reveladores que parecem não serem apenas tristes acasos, mas sim , algo de muito mais profundo que vai ser preciso abordar.
Escuso-me a qualquer pergunta dado que esta é sempre uma intromissão, mas gostaria de indagar este estado de coisas a partir desta altura que me parece tão charneira. Como se fossemos todos encetar uma longa viagem por caminhos muito pouco programáticos e que nos dissessem que é neste estado de coisas que não nos podemos esquecemos de salvar o Homem mais como acto poético do que como resolução objectiva. Há dias duros na Terra e ela muda tão rapidamente… e toda a estrutura fixa da nossa dor não passa de um acaso não visitado pela nossa inteligência que só agora irrompe em buscas de outras Catedrais.
Ao nosso redor a mudança vária, mas uma estrutura que tende a parar para a sua própria compressão num imobilismo muito denso, tal se nos apresentam agora as sociedades que num labor insuficiente procuram desesperadamente auscultar o que se passa nos interstícios daquilo que afinal obedece também ao fascínio Humano: o não saber prever o ângulo de acção mais directa.

4 Fev 2016

A memória do corpo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s sociedades são matérias em transformação constante mas com grandes reservatórios de memória condensada e enquanto à superfície avançam indemnes as ideias, o pensamento e as trocas, as suas estruturas mais pesadas encontram-se inamovíveis. São aterradoramente paradas e silenciosas, imperceptíveis para os apaixonados e aqueles que manejam os futuros, pois que não navegam jamais no oceano gentil dos entusiasmos e sabem suportar até à monotonia o ciclo biológico da vida.
Pensamento é acrescentar à realidade definida outros elementos que não estavam lá, dado que o Homem não é exactamente como a natureza: faz-se Humano, inventando-se. Andar pelo caminho do leve é já o princípio natural das sociedades, desmaterializar, tentar combater a escravidão das bolsas atávicas nessa base que não canse por tão imperecível e estática… Estamos no momento transformado e isso sente-se diante dos que marcham adiante.
Vem este primeiro prólogo a propósito das eleições presidenciais, deste entrançado de tempos que não culmina numa visão de ecrã único e tridimensional, mas num regresso de fundo que tresanda a mofo. Tal como nas operações físicas, o corpo melhora com… vamos chamar-lhes, novos ares… dado que transformações são revoluções, onde podem ser implantados órgãos novos e membros, transformando para sempre a primeira condição.
Se experimentamos uma rinoplastia, passado uns anos o septo está de novo torto na mesma direcção, o efeito dura poucos anos, só o tempo dele restruturar a sua memória, ora, olhando para isto, para o que se vai passar, quarenta anos volvidos sobre aquela “operação cirúrgica”, o organismo social capitulou: eis que vêm todos agora ainda mais veementes ocupar a cena social. Acresce mesmo que não faltam Marcelos, Senhoras de Belém e até Padres. Poder-se-ia dizer — eis um acaso — só que não o é, e numa linha muito estóica permito-me agora considerar: ordenada é a Natureza permeada de racionalidade e nós o princípio passivo que sofremos a acção de uma razão maior, o que faz com que a haver um fio condutor inquebrantável ele se deva a tal desígnio dessa memória que permeia todas as coisas. A memória que criámos de um “pathos” vai certamente marcar toda a estrutura do tema.
Por uma qualquer falha do pensamento colectivo, a Nação não tem uma sã consciência da morte, essa noção de rigor e de limite que lhe daria um sentido da prioridade — não, não deseja essa abordagem — bem como desistir dos ciclos que passaram. Somos amigos dos que se foram e não raro mantemos com eles relações de continuidade tais que é difícil saber-se onde ficam nos nossos tempos. É assim no amor, no trabalho, nos pequenos e grandes artefactos, seguros que estamos que toda esta tralha acumulada, não só é riqueza, como requerida por alguém nalgum tempo, e em qualquer lugar.
O corpo, na sua memória, não tem espaço para inovar, e uma coisa é consumir o que nos deu o progresso e outra é mudar as rotas do seu sangue. A Nação encontra-se bizarramente no mesmo lugar de há quarenta anos. Até acho que mesmo sem “Revolução” se tinha produzido pela inevitável marcha dos tempos internacionais os mesmos resultados, ou melhor, talvez até tivéssemos exactamente no mesmo lugar volvidos quarenta anos, dado que uma senhora das missões, um afilhado de um ditador e um ex-seminarista , é tudo o que sobrou para a representar.
Efectivamente não há mais, não há mais por onde escolher mas, neste mesmo lugar que de quarentena em quarentena se nos apresenta vazio, o século vinte, no início, deu sinais de ser vivo e passível de entendimento revolucionário de vanguarda, em dez anos mataram um rei e um presidente, houve «Orpheu» de Almada, Pessoa, Sá-Carneiro, existiu envolvimento que poderia ter impulsionado o futuro, mas uma avareza insaciável apossa-se de cada um e lá vem o Santo Ofício mascarado em Pide e o Povo fazer o que sempre soube de melhor: guardar a sua herança parada.
As leis físicas são alarmantes, sobretudo num local de gente frágil e medrosa pela sua condição estrutural e também pela sua fragilíssima condição social que prefere não ousar naquilo a que tem direito. Nunca esquecem o passado, mas negligenciam o presente e esquecem o futuro.
Este corpo, com estados de progresso e de avanços conseguido, o corpo que cresce, onde por vezes as pernas se tornam gigantes e saem da moldura, como disse Eugénio de Andrade, este corpo lembra-se de nós sempre pequenos e nós apenas quiséramos sair da moldura, e ficar, um pouco lá, só no coração, mas não enfiados dentro dela, e então, ele trazendo todos os ecos de antanho, meios mortos, meios arquétipos, vem dizer algo de medonho: pensaram andar, mas basicamente ainda estão parados; e queremos tirar este sangue denso que nos cobre de atraso e lei, como se arrancássemos um órgão congelado.
Devia haver um mantra que nos permitisse dizer: — Nação, nenhum de nós forçará a tua morte todos te ensinaremos a morrer, nenhum dissipará teus anos, mas te oferecerá os seus.
Fomos guiados para aqui no momento em que não sonhávamos que iria entrar nas nossas vidas este sistema tão programado como os ciclos banais. E nem há que olhar mais para o que está. Tal como o Barco de Peter Pan : eu acho que já o vi este navio há muito tempo, mas nesse tempo eu era feliz.
Fatigantes e atormentadas provas nos trazem invariavelmente aos mesmos lugares, e não vale a pena acrescentar que não quero ninguém que se candidate desta maneira, por que esta maneira, mesmo a do tempo em que era feliz, também por isso, ou sobretudo por isso, não quero voltar a lembrar.

21 Jan 2016

Noite ditosa

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]uan de La Cruz escreve talvez a mais bela poesia da língua espanhola, ao começar Janeiro, e perto da Lua-Nova, é essa «Noite Escura» de que nos fala um poema cuja beleza ultrapassa a previsibilidade da sua maravilhosa linguística ou, por isso mesmo, a insufla de monumental qualidade poética. Este é também o verso exegético do noivo, da noiva, bem ao gosto dos cantares de Salomão, uma interpretação amorosa de uma ideia que o outro mantém mas que o supera em utopia e finalidade. E… “Em uma noite escura com ânsias, em amores inflamada, oh ditosa ventura!, Saí sem ser notada, estando minha casa sossegada… nessa noite ditosa, secretamente, que ninguém me via, de nada curiosa, sem outra luz nem guia senão a que no coração ardia… Oh noite, que guiaste, noite amável como a alvorada! Oh, noite que juntaste Amado com amada, amada em seu Amado transformada!”
Estamos perante um texto confidencial e amoroso de tocante intimidade, o brilho que sai da escuridão, a casa vazia e tudo aquilo que no coração ardia. O erotismo é uma vontade firme para que o sexo não caía no degrau da casa e se despenhe nessa vertente, onde o Amado o retire da cena de um desejo maior. É uma demanda, uma fonte espiritual que envolve a cenário do poema até este se tornar um clarão de beleza sem par. blog4
Juan de la Cruz é influenciado pelos cancioneiros, adaptando muitos dos temas tradicionais pela sua vocação religiosa, como o fez com o conhecido «Cântico Espiritual», mas a sua imensa beleza supera e intriga até hoje o universo literário. Estamos em frente de um poeta, não sabemos por vezes nem o que dizer, nem como o dizer, talvez, e sempre dizer, que nasceu em tal século, este em 1542, Camões nasceu em 1524, talvez fosse um bom século para os seus nascimentos. Afinal, ele insere-se no «Século de Ouro» espanhol. Influenciado também pelo Renascimento Italiano há um ritmo absolutamente envolvente que deve ter provocado a melodia – a lira.
Este é um tema que me parece quase hermético pela dimensão até do conceito, mas, renascidos que estamos das coisas mais densas contribuímos agora para iluminar áreas que o vazio fazia de escura forma sem ser de noite escura. Esquecidos andamos destas noites belas e esguias como Catedrais, assim designou Aquilo Ribeiro a estas noites de Janeiro, em que os gatos lá longe já viam o despertar da alvorada… Esta é a noite das noites, a do início a do imenso cosmos a rodar na zona de acção de uma melhoria de factos que precisamos desenvolver.
Nós somos agora quem pode cantar estes poemas de forma vária, dado que não existe um Catolicismo de Estado que nos empunhe um emblema litúrgico. Podemos ir buscá-los ao passado histórico e fazê-los cantar na nossa causa comum. Não sei o que se pode fazer com outras formas, dado que cada um de nós traz a matriz do seu trabalho e da sua lição no todo. Eu creio que há que reabilitar as naturezas e ir sempre à origem para se ser de facto original.
Para que haja um « Cântico Espiritual» há que haver o principio da anima, da alma, da vontade que guia, para sermos guiados temos de permanecer em silêncio e ouvir as «vozes». Mas, se não houver espaço e tempo, os nossos assombros permanecerão visuais e o mundo um local de imagens loucas. Há que construir o receptáculo, a Arca, a forma de templo onde ao longo da jornada o coração refresque dos abrasantes momentos da vida… Há que ir ao poema mais vasto, ao canto e a esta alma, porque quase sempre ficamos como este lindo instante do poema: «Aonde te sumiste Amado, e me deixaste soluçando?»
Para onde se foram deuses e vozes, deus e canto? Não seremos certamente as plantas de um vasto Jardim mas convém não expulsar de nós certas correntes, sob pena de ficarmos tão duros que pensamos estar imortais. Infelizmente não, não estamos imortais, toda a vida é para que a cantemos ainda e deixar a severidade aos que ficam no tempo como uma monotonia. Era tanta a certeza deste bem, que o verso era um servidor das cargas humanas que ficavam rígidas dentro de nós e por isso, antes desta altura , um pouco antes, ainda havia «Oblatas» aqueles versos da liturgia cristã para que nos fosse dado o dom das lágrimas. São de uma profunda humanidade! Enfim, chorar, se já não faz parte de nós como medida de defesa emocional, faz parte dos políticos mundiais, que tal como Obama ou Putin nos surpreendem de cara molhada e expressão que até agora nestes homens não conhecíamos. Eu acho tão bom!
Tentemos desocultar o porquê da célebre frase de Churchill «Sangue, suor e lágrimas». É sim e afinal um grito pantanoso de Neptuno em que tudo se liquefaz, mas foi um ciclo de águas de “banhos marias” de verdetes e aguadeiros, não tardam os mares outra vez… mas as nossas naturezas secaram de tal forma que talvez até já saibamos navegar por cima dos maremotos, ou resistir debaixo de água. Sempre ficarei com o « Cântico Espiritual»: “buscando meus amores, irei por montes e ribeiras; não colherei as flores, nem temerei as feras, e passarei os fortes e as fronteiras”. Há um Esposo para esta Alma que está na raiz das coisas que buscamos, um ser que nos guia em formas de procelas… esta deidade tão boa!
Constelar e vazia vai ser a noite de Juan de la Cruz, aqui não mora já ninguém – em meu peito florido….que ficou adormecido e eu o afagava e com leque de cedros brisa dava”. Aqui o amor não veio nem o vi em uma noite escura nem a noite era ditosa …….mas ela ainda me guiava mais pura que a luz do meio dia ……em parte onde ninguém me aparecia. –
E assim na noite fria e tão ditosa se pode começar o primeiro degrau da difícil e urgente marcha deste Poema.

11 Jan 2016

A sarça ardente

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]al como a Fénix renasce da sua própria cinza, a sarça – quando parasitada por uma outra planta de frutos e inflorescências avermelhadas – dá-nos a impressão de chamas. Esta planta é mais vulgarmente conhecida como acácia e os seus belos ramos, tão valorizados em ritos e liturgias. A Fénix é uma ave e esta é uma planta: as coisas extraordinárias acontecem entre estes dois planos, de forma sempre renovável, presente e até insondavelmente desafiando muitas leis ditas imutáveis e pondo a funcionar o mecanismo alternativo da realidade paralela, partindo das mesmas organizações internas mas mudando-lhes a forma.
Para os primeiros hebreus, Deus era mesmo designado por “Ehyeh” “Ehyeh-Asher-Ehyeh” – o que habita na sarça – sendo todos os objectos da liturgia feitos a partir dela. A Fénix entrava em combustão e desfazia-se, as suas lágrimas curavam a dor e a doença ao misturarem-se com o que sobrou do incêndio dela; tinha o poder de voltar à vida, a sarça não se consumia, não ardia, não entrava em combustão, era um fogo que não tinha o ciclo transformador. Aparentemente entre uma Sarça e uma Fénix parece haver antagonismo completo: onde mora o estático da planta que arde e não consome?
As árvores sempre guardaram segredos. São os reinos vegetais, tão passíveis de produzir frutos proibidos como comestíveis, a estranha maneira de morrerem de pé com aquilo que por cima delas se passa e aparece, como se o reino vegetal fosse aquele onde os insondáveis caminhos do conhecimento de Deus mais falam sem que possamos extrair de tanta linguagem grande coisa.
É nos ciclos de florestação que os incidentes mais bonitos e estranhos se consumam e quase sempre os seus efeitos, ora perversos, ora benéficos, nos instruem da finalidade sagrada da sua função. As aves quase sempre podem também morrer no ar, que o mesmo é dizer que de pé, mas, no vasto princípio paradisíaco, elas não estavam lá nem se manifestavam, era talvez um paraíso onde o céu não era este e o apelo da liberdade não se punha.
Afinal, o Homem Adâmico era «Para lá do Bem e do Mal». Nietzsche testou esse efeito e conseguiu provar que nem toda a consciência necessita de juízo de valor. Os anjos vieram mais tarde como querubins que guardam a parte oriental ainda do Paraíso e não se lhes conhecendo outras actividades de mor importância nestas entradas, eles velam, voam, como a Fénix combusta, mas nada lhes é dado ainda de efeito inalterável “estão ao serviço de…”. São “intermediários”.
Muitas vezes – e hoje que estamos no fim do Ano –as coisas tornam-se de uma eterna monotonia giratória, pois que ele se devolve aos nossos sonhos como cantigas de um circuito instável. Nós estamos efectivamente numa Terra com pouca sustentabilidade para podermos continuar aqui por muito mais tempo. O Ano que vem já deve ser a descontar para o «Êxodo» e nem que comamos as ervas amargas e o pão que o diabo amassou, parecemos aptos a recomeçar.
Como não somos a Fénix, não ardemos, nem fazemos arder. Estamos em formas mansas de atrasar a transformação radical, mas que seria bom não esquecermos da vista, pois que a saturação dos Invernos é como a saturação dos cadáveres: gera pestilência. Entre coisas que nos deviam aproximar e a distância do sorriso bom do Verão, vimos como as águas avançam mais que as labaredas e a humidade do ar seguramente será boa para batráquios daqui para a frente. Nada de gelar que estamos a aquecer, mas este melhoramento climatérico tem pouco de risonho, ele quase nos agride a reserva biológica de dispositivo automático.
Embora nem todas as plantas sejam acácias, o que arde deve fazer-nos pensar e o que nos inunda também. Não haver combustão não é suficiente para que salvemos o Mundo, nem as asas nos protegerão em caso de raios disparados, mas há algo que me intriga na grande marcha ambiental. Chegámos mais rápido do que julgáramos. Tão rápido que todas as esferas sonhadas e sabidas nos vêm agora à memória como possíveis esclarecimentos e tentativas de compreensão. A Terra é efectivamente e cada vez mais um planeta instável, onde a grande transformação se dá com alguma incerteza para o nosso permanecer. Vicissitudes de origem invulgar, abruptas, chegam-nos como tufões, os anjos devem andar chamuscados neste redil, e nem de nós por vezes dão conta, com o seu sistema de renovação radical.
Por vezes, podem ser desesperantes como o de Heine Muller, que se suicidou num 30 de Dezembro e escreveu o «Anjo do desespero», no qual acrescentou esta coisa tão bela e enigmática: «Depois do desaparecimento das mães o trauma do segundo nascimento e o que eu vi era mais do que eu podia suportar». Talvez que nascer segunda vez não seja afinal um bem, talvez que não suportemos essa forma de nós outra vez.
É certo que os anos passam, ou seja, que nós passamos pelo tempo, umas vezes tão indelevelmente que ele nos esquece. Parecemos abandonados da sua demolidora passagem, mas, depois, vimos que tal como a Sarça que estávamos sem nos consumirmos e sagramo-nos da sua luz estática. Depois tudo avança e desejamos descansar, um estranho sono que nos ajude pela mão das ervas daninhas a ficar sem a memória das coisas que fôramos. Quase nem podemos chorar! Há uma calcinação muito grande nos olhos que nos obrigam a manter abertos e que empurramos com quentes lágrimas pela vida que nos deram.
Por vezes era melhor saudarmos coisas mais simples, ter reservas, andar em outro chão… por vezes não aguentamos as “asas” como bem disse Baudelaire : “o poeta é semelhante ao princípio da altura …. exilado no chão em meio à corja impura … a asa de gigante impedem-no de voar”.
Sim, mas nunca de se gastar, de fazer de si a Fénix e deixar para Deus as labaredas sem chamas, como as línguas do Espírito Santo, que sendo luzes e em luz caem, permanecendo todas e como vozes, produzindo a não combustão.
A língua como um fenómeno imenso, os homens antigos ouviam sempre vozes… talvez haja um lado cerebral que os dispunha para isso… As vozes à medida que as sociedades se transformam vão tendo outras características. Esta nossa, mais visual, e já nada nos visita de forma apelativa, e com o tempo de tudo dizer, as vozes se foram. Nomear, ouvir, escutar, mas o cérebro tornou-se intolerante à solidão, o cérebro humano não ausculta e por isso não ardem as sarças nos locais de uma fogueira, que o lume aquece e os dias do últimos dias do Ano são frios.

7 Jan 2016

Sandeman – O homem da capa negra

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]andeman foi um teólogo do século XIX unido ao Catolicismo e talvez seja por aqui que a beberagem da marca tomou nome. As capas só depois de Cardeal é que se tornam púrpuras e talvez, acima deles, já fique mais ténue a própria noção metafísica de Deus. Porém, os meus sentidos captaram muito bem no rudimentar de um país cinzento a Capa Negra no alto dos promontórios de Lisboa, com um chapéu de breu e um cálice na mão. Seria um cálice normal, não era o sagrado, o da ceia, o do vinho da amizade, não era esse: o santo graal não entra nas capas negras, nem os promontórios lhe são destinados: esta era a imagem que fica da frágil infância, um convite velado como os antídotos da Rainha da Noite que nunca resultaram.
Ele ficou para sempre como um presságio de mau augúrio no topo da cidade, como os corvos e um poema de Poe. O tempo passou e deu lugar ao destronar da sua sombra, com muitos efeitos coloridos de néon que brilhavam doravante em caleidoscópica miragem, nos efeitos dos arco-íris da «Poesia está na Rua» dos rubros cravos e do panfletismo de massas. O mundo tinha-se tornado um Natal ao rubro, e das capas mesmo em épocas revolucionárias, havia ainda as do Pai Natal e as azuis dos Super-Homens.
Contudo, voltei a vê-lo com toda a nitidez das profecias na colina alta da cidade, ainda de negro, menos azeviche, opaco, mesmo, e mais esguio, simulado em frágil Deus do Sinai, disse-me: – Não olhes para mim!
Mas era tarde. Viu-o! E sei que o que se passou não é confidenciável. Numa escarpa onde morrem os sonhos, este estar de pé é um saudoso equilíbrio de antanho… prostrado está do cansaço do Homem.
A economia dispara ondas de choque e bem cedo já a repartição da riqueza tal como a conhecemos se alterará, desaparecendo o efeito do poder da materialidade financeira. O que foi dado do cimo de uma Montanha era outrora território mas, numa Terra como esta que herdámos, esse aspecto já não é passível de ser trocado por outro qualquer elemento. E, como um qualquer sem-abrigo, um pária ou um ser cansado, desaparece do espectro óptico, numa imanação toda de vulto e de gravidade. As minhas pupilas não se fecham neste isntante, ele ficou comigo a falar de coisas que não quero interpretar, descodificar, aquela presença magoa-me e, retornado que está nas cidades onde deambula, pressinto que nos ausculta, nos pede algo que não sei explicar. «Esta é a Voz da Europa» (Ezra Pound), ouvimos-lhe «Uzura», tão quietos no gelo destas transformações, que o relembramos. sandeman-anuncio-original-1928
Ontem mesmo, na cálida cidade, uma jovem mulher comprava trivialmente «Mein Kampf». Olhei-a, olhámo-nos, e quase sorri, e o homem da Capa Negra parecia dizer-me: Vê. «Arreceio-me de ti, de ti, Velho Marinheiro! Da tua mão macilenta! Assim comprido e delgado lembra a tua compleição um litoral enrugado». Rimas do Velho Marinheiro. A Europa gela com as idas às urnas, cada vez que lá deixa o querer, as nossas órbitas tornam-se mais profundas.
A China tem um véu de poeira inaguentável… em Portugal fazem-se lindos debates para daqui a cem anos, as redes sociais são transpessoais, as fúrias passeiam-se devagar entre ciprestes que confundimos com frondosas árvores do Paraíso. As serpentes vêm beber o leite no cimo das Falésias de Mármore, as cadeiras baloiçam de rabo em rabo, sem caudas nem capas para as suster.
Há um dia em que as capas negras dos estudantes também caem nos oceanos e se fica a pensar nas práticas ritualísticas de tais esforços, que os jovens se emolam por conquistas de tal ordem graves, que uma Nação inteira tenta rápido esquecer. Os Fados estão mais Fúrias que fadados ao seu trivial condão, enquanto as coisas se “normalizam” e pedimos tréguas para a montagem de uma era que nos foge. É previsível até certo ponto saber para onde vamos, mas nem todos, querem concordar que o espaço é o mesmo. Se o território se vai, os caminhos estão abertos, e nem sempre acontecem poemas como na minha rua que escrito tem no asfalto no espaço de um quilómetro esta coisa maravilhosa: “Adoro-te”. As estrelas podem cair a nossos pés e a rota dos Magos estar já desfeita, nem sempre nascem salvadores, mas a marcha prossegue. “No mais pantanoso dos abismos depuram os alquimistas os seus metais.”
Estamos parados a ver se não estamos delirando num vasto mar de probabilidades ameaçadoras. A vida é todos os dias e dia após dia vamos vivendo com as regras que temos, mas velozmente as coisas mudaram.
«Aqui a voz da Europa», fala Ezra Pound. Uma ideia é colorida por aquilo que contém. Sim, mas o Homem da Capa Negra não me veio dar ideias nenhumas. Ele não tem ideias, vive por um desígnio inalterável e já não bebe. Para combater o crescente, bebamos, bebamos vinho, mesmo que estejamos ébrios, é o nosso vinho. Mas não perder o sentido e nunca deixar a «Voz da Europa» tomar o pulso das grandes questões. Sempre os poetas são porta-vozes, e tanto as coisas saem bem, como lhes saem muito mal. Mas o mal é como as ideias, não se enegrece por aquilo que contém( se é que ele é escuro) uma vez que os fantasmas são brancos, de onde nos vem tal percepção?
Hoje, que porta bandeiras temos que não sejam os aviões de metralha? Os porta-vozes anunciam-nos e alertam-nos para o quê? Para nada. Cada um alucina dentro do seu mundo aberto que se quer adaptável para o efeito de maré morta do devir. Estamos confinados à desdita de tudo ser razoável e não ser viável, somos o que sobrou dos quentes dias, das cores e de um mundo feito de muita púrpura e vivos escarlates, mas, o que aconteceu ainda não sabemos, nem falamos disso, não temos concordâncias verbais para debates tão surpreendentes.
Expectantes estamos na Hora, como os corvos transportando a Barca, estamos a ver se o morto não tomba do bico impreciso das aves friorentas, se elas se mantém na zona de conforto que faz da morte dos mártires belas estátuas jacentes, estamos em guarda, salvaguardando as muitas coisas boas, bebendo-as, antes que os túneis sejam atirados aos rios, aos mares, e nos falte o sabor da Maçã. Parece que elaboramos o futuro que há-de vir como um furioso cavalo a relinchar, e subitamente, a quadriga não nos deixa ver a cor. Por detrás desta fórmula há factos, cobradores de impostos, quotidianos difíceis, vidas que ao tempo se dão para acalmar os vendavais, e de tão estanques e gelados com o que aconteceu nas eleições ali em cima, supomos que aquilo é outra coisa. Será certamente, mas com o mesmo prósito de sempre, e talvez seja por isto que encontrei o Homem da Capa Negra.
Somos os Cantos de Maldoror.
Prossegue o Natal em que as meninas adoptam perús para não serem mortos, talvez isto seja verdadeiramente a notícia melhor, coisas tão simples como um sorriso. O resto não retém o nosso entusiasmo mais que breves segundos num ciclo de coisas que começam a perecer.
«Eis que por vezes se ouvem gritos nos silêncios das noites sem estrelas. Embora ouçamos esses gritos, aquele que os solta não está, contudo, aqui perto; pois podem ouvir-se estes gemidos a três léguas de distância, transportados pelo vento de cidade em cidade.»
Lautréamont.
E, por fim, o mundo não é mais que a Cidade.

17 Dez 2015

Se nasce morre nasce… desmorre… desnasce

No dia da morte de Oscar Wilde e Fernando Pessoa

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omeçar com uma frase do belo poema visual de Haroldo Campos na rítmica compreensão do tempo cíclico, que é um mantra belíssimo na linguagem, na arquitectura métrica, para falar do dia 30 de Novembro, dia de Oscar Wilde e Fernando Pessoa, que morrem por razões naturais, no mesmo dia, num mundo, que nem sempre para eles, pareceu muito óbvio.

Se
Nasce
Morre nasce
Morre nasce morre
Renasce remorre renasce.
Re
Desnasce
Nascemorrenasce
Morrenasce.
Morre.
Se.

Sim! Este ir e vir, este vai e vem, que morre, que nasce, que desmorre… remorre… é uma dança tão bonita que podemos ficar nela pendurados até aos quadris da eternidade, se para os mais optimistas e vivificantes hiperbólicos «Tudo é vida», já para os tristes tudo «É morte», mas nada é do que se supõe de tão definitivo, nada mesmo nada se encontra de um lado só, e nada melhor que a frase de Pessoa: “morrer é só não ser visto”. Também não temos a certeza se vivos o somos… Daí que, na vasta perspectiva das sombras, estar vivo é uma função sombreada e estar morto é ser-se talvez um fantasma; e, como bem se sabe, eles são brancos.
Há dias inscritos como sombras florestais no seio de uma aritmética gigante, coisas dos fundos que os acompanham a compasso, estes dois poetas, escritores, foram desaguar no seu Sargaço no mesmo dia frio em que o Inverno assoma. Nem um nem outro se conheceram, obviamente, mas ainda tiveram vivos no mesmo tempo físico, breves anos é certo, o que dá uma ligeira intimidade contemporânea, mas com as diferenças típicas dos seus respectivos meios ambientes e educações.
Se o véu da possível homossexualidade de Pessoa se levanta indelével, já Wilde a tocou, sim, de modo trágico. Pessoa era um judeu em fuga às quiméricas Inquisições e por isso havia que inventar nomes, desviar, mitigar, perder o rasto, multiplicar…. aluarar…. pé ligeiro e alma ao vento.
Wilde era um «dandy» exibicionista, muito irónico, cosmopolita e perdulário. O mundo para eles era um palco de nações perdidas e de actos que não chegavam jamais à transcendência. Nisto pareciam semelhantes, na causticidade de um destino, onde Deus no último instante e cansado de os inspirar os abandonava, e eles se abandonavam a um nada que sempre pressentiram, em última instância, existir.
Se Wilde estava mergulhado na Inglaterra vitoriana que não lhe perdoa ousadias, nem prevaricações, Pessoa enublou-se de uma Lisboa cinzenta de tal ordem ofensiva que ele “desmorreu”. O traquejo dos sub-reptícios súbditos de sua Majestade não gostam desta gente: Wilde é mesmo condenado sem apelo nem agravo por todas as luxúrias que o seu apetite não ousou disfarçar e Paris, que nem sempre é uma festa, vai dar-lhe a mais assombrosa das experiências.
Escreve então a obra redentora para depois morrer na sua miséria e indignado por causa de um papel de parede: «De Profundis» uma obra epistolar onde as «Cartas de amor» de Pessoa parecem coisas anormais de caricatas. Wilde sabia de qualquer coisa… outra… grandiosa… essa, sim, redentora. Sofreu mais! Quando leio esta obra, peço-lhe sempre desculpa, pois que para isso acontecer está subjacente um drama imenso, uma náusea severa, um destino fabuloso. Dirigia-a a Lord Douglas mas, tanto faz, ele é um arquétipo de toda a mediocridade malévola que povoa o Mundo.
Por isso, creio, que entre cartas e fenómenos vários, ambos devem ter morrido, de fome ou coisa parecida, assunto de somenos, dado que no estádio adiantando de grande depuração comer é até perigoso, mas que se morre, morre. Tanto que comiam, que viveram alguns anos, um quarenta e outro quarenta e sete… um até bebeu mais do que comeu, suponho.
Por isso eu creio que a data “papoilita” do 21 de Março não corresponde à “coisa”, que esta coisa não é simples, nem fresca, nem florida, embora creio que eles tenham feito do Mundo uma espécie de «Jogos Florais»: sabemos que se morre no Inverno, morre-nasce na Primavera. Pés de Cereja para drenar o cérebro e os rins, pouco afoitos a datas eram eles, um disse mesmo: só ficam com o dia do meu nascimento e da minha morte, de resto, todos os dias são meus. O nascimento é outra história e não vamos falar dele se não o fantasma branco de Pessoa começa a fazer horóscopos. Por um triz que não bateu certo! Mas ele não era de coisas e disse logo: não morri naquele dia porque seis meses correspondem a dois minutos na carta do céu. Uma carta que era diferente do autor do «De Profundis» mas que ele explicaria muito bem, caso a tivesse averiguado. oscar-wilde
– Para histórias da carochinha, já bastam os dramas cómicos. Tu, Fernando, não sabes escrever cartas; tu, Óscar, fizeste a melhor do mundo. Achou-vos graça Deus, levando-os a 30, uma espécie de 125-Azul. –
Ambos gostavam de jovens, o Fernando era de crianças, mas, de forma exemplar.
– Oscar, não te devias ter metido com aquele rapaz!
Mas se não te tivesses metido com aquele rapaz tinha-se perdido o testamento que faz com que tudo na vida, afinal (e só depois o averiguarmos) fique tão certo, a matemática do destino que vos empurra para um mesmo número. Sabemos nós destas coisas, nós os “descamisados”, sabemos muito de números, e o mundo é irregular dado que quem toca neles não entende da sua aritmética.
Por mim, que vos amo, não me foi difícil, esta manifestação que embora estranha é à medida daquilo que sois. Estamos cansados de ouvir “palrar” coisas sem sentido da parte de uns e de outros, que até de vós fujo quando por eles pronunciadas… pois que quando nasce… morre… agora que ao desmorrermos iremos brincar, dado que a nossa tarefa no mundo também passa por essa linda experiência. Já encomendei uma morte para o mesmo dia. Vejam lá se aparecem, pois que não estive a fazer este texto por acaso.
E assim, na trágica composição do elemento que transforma palavras em coisas, se desmorre sempre para o infinito instante de nós mesmos.
Se um tinha amigos imaginários e outro escrevia cartas para o «boneco», eu não só tenho amigos fantasmas como escrevo missivas para os espectros. Não me assombrem mais, que tenho que vos ler e olhar por vezes o quanto as chuvas são oblíquas e tirar retratos sempre jovem.
O que mais me aprazaria era ser Salomé e que me desassossegassem sem ver de quê . Não digo o que fizemos no dia de finados porque já não nos acreditariam. Não me esqueço das más companhias como a do Alexey Crowley… de ti Fernando… e essas coisas que só o éter digere. Quanto ao querido Oscar deves ter ido mesmo para um local qualquer… passaste a fronteira, não foi? E repetiste a gracinha quando te perguntaram: que tem a declarar nesta alfândega?! «Nada mais que o meu génio». Pois claro.

10 Dez 2015

Susana e os velhos

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] passagem mais emblemática que nos fala da concupiscente idade tardia talvez seja esta: Uma bela e jovem esposa é apanhada nas armadilhas de dois patriarcas que conspiram um plano de aniquilamento quando os seus desejos são gorados. Juízes do povo, anciãos respeitados, visitas da casa de Joaquim, seu marido, estes homens que há muito tinham passado a idade de se fazerem amar pelo corpo, encetam um plano, que dir-se-ia de vingança contra o tempo que passa, vingança contra uma mulher que era a imagem da sua impotência e do seu rancor, de entes a quem a vida abandonara para o grande festim dos belos encontros.
Talvez que, de tempos a tempos, seja bom não esquecermos toda este conhecimento herdado, que tenhamos em conta que o mais velho livro contém as mais intemporais questões. Efectivamente, dois velhos são uma imagem carregada de maus presságios… dois homens velhos subitamente despertos pela recordação de um Eros esmagado por carnes que definham e vontades que não se erguem… por uma raiva surda de um desejo esquecido. Nesta passagem, eles culpam um jovem a quem imputam culpas, um jovem imaginário, projectam a culpa numa virilidade normal e boa dos amantes. Para eles, o amor e a libido não são contemplações saudosas, mas raivas surdas, recalcadas. Impotentes, lançam blasfémias, sacrificam o objecto de desejo, incriminam uma inocente. Estes anciãos eram, no entanto, os sábios de uma tribo.
Pois bem, a sábia e respeitada velhice nem sempre é tão isenta de trama e perfídia quanto a julgamos e, num mundo envelhecido como o que nos foi dado viver, as sociedades requintaram a sua perversa dose de ignaras abominações. Tudo parece mais calmo, mais ordeiro e racional. Parece, porque, efectivamente, por debaixo deste glaciar, há uma antiga máquina de seres em desgaste que atemorizam e condenam a vida, pelo escape rasgado da esperança. Um velho, mesmo que seja Papa, lá no fundo, já nem acredita em Deus. Há um enorme despeito agreste que o tempo dá, como se enferruja o pouco de grande que uma alma contém. Porém, nós fomos apanhados na razão inversa da imagem do sábio.
Toda a trama ardilosa da matéria de facto, toda a clandestina tendência para o vício, a ocultação, o dolo e a má-fé se encontram neste tempo que passa, como uma vitória de que afinal o Homem não é passível de redenção. Conquistados os direitos fundamentais é com eles que devemos agir e é com eles que estamos seguros, jamais com a sabedoria dos outros que envelhecem e nos dizem que são a confiança melhorada.
A astúcia dos sobreviventes pode ser algo com que a soberana natureza dos fortes não contava, um dado demasiado agreste para os seus sentidos… uma erosão na incapacidade de lidar com o ambíguo. Nem sempre se deve deixar os mais velhos por aí, entregues a quaisquer uns ou a si mesmos, podem provocar reacções instintivas estranhas e o Homem não difere muito dos leões em matéria de macho dominante. As vítimas nem todas são biblícas… nem Deus se revela sempre para escorraçar os capciosos e o julgamento destes dois não deixa de ser uma nobre lição.
Nas nossas sociedades tão arrastadas no tempo, convém não esquecer componentes e factos. A geriatria é sem dúvida a mais honorável profissão do mundo, é uma missão quase superior. Vamos precisar de muitos e de uma competência sempre e mais actualizada. A fragilidade com que se revestem aqueles a quem o tempo esqueceu, a usura da sua mórbida sensibilidade, a reserva com que olham a vida, é já de si, e em muitos casos nos parece, um maligno olhar. Uma sociedade, que sexualizou as pessoas até à caricatura, pede para que se entre de novo nos sonhos de Daniel. Os anciãos de Susana existem. O tráfico e abuso sobre aqueles que são a denúncia a algo que morreu continua a ser o mais forte objecto de punição. Se consentirmos, eles não terão piedade, e a mentira das bocas desdentadas terá uma abjecta e tocante má fé que convém estar atento, para não nos abeirar-mos de uma monstruosidade.
Os velhos precisam de protecção, mas os novos também. Dir-se-ia que precisamos de estar salvaguardados da punição do ódio torpe, de um desvio da libido, de tramas subreptícias e da manipulação psíquica de que sempre deram provas. Pode ser duro o que se diz… mas mais duro é o que eles não dizem, inventam e conspiram nas costas das Susanas, dos mundos e das sociedades.
Vivemos em ciclos que não se preparam para questionar e abordar os ângulos das situações, vivemos quase que vinculados a estereótipos que nos impedem de ser defensivos e atentos, remetendo para um corpo colectivo, algo que o nosso não sabe explicar: o corpo, aliás, é um bem que permanece pouco falante… alguns apenas lhe vêem a nudez, a carnação, a gula onanista…. para nós, ele está parado a banhar-se no Jardim.
Mas o corpo pensa e informa-nos. O corpo pensa muito antes da nossa consciência. É um sinal de alerta máximo e não gostamos que nos espreitem sem a devida noção da medida. O corpo não gosta que os velhos olhares sabotem nele o novo, o improvável, o que inspira.
Uma advertência a todos nós que por avançados estados de desenvolvimento nos vamos tornando cada vez mais velhos: transformemo-nos! Nada mais velho, de facto, que uma juventude que se prolonga. Pensemos no bem que é estar perto de outra coisa, do quão difícil é ser jovem, do bem que deixámos de fazer-lhes e quanto isso é mais temível que a morte. Um pouco de afinidade com os que vão na mesma caminhada – um pouco mais de além – mesmo que já não sejam brasa, nem nunca tivéssem sido sóis.
Aquém disto é perigoso ficar. A alma dos anciãos é matéria esquecida pelas formas nascentes que amam os ciclos transformados.

3 Dez 2015

Novembro ou o mundo mutantis

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ascidos das trevas e do breu, formamos pactos com a luz, pois que toda a estrutura é sombra ainda de outros reflexos, prostrados em cada mancha que o movimento cobre. É uma impudência este cerco com um imenso campo de probabilidades, que tanto prendem como libertam da imensa, e ainda, escuridão. Podemos ser aqueles que ansiaram a cólera e a tragédia como reflexo da origem, plasmadas em vício e trauma, como escamas antigas de um reino morto. Tudo aquilo que os lassos sentidos não firmaram, arrancados nos são em Novembro, quando o tempo se abre para a ranhura inescrutável do abismo.
A Festa dos Mortos, esse paradoxo, um Verão de noites que não são pequenas, um afundar na beberragem gratuita e fausta antes de se fechar o grande postigo do tempo cíclico: avança então para os úteros infernais de onde sairá a dois de Fevereiro, Festa da Candelária, Senhora da Purificação, cruzando com os mitos Eulesianos, mas de carácter judaico-cristão, a contar depois do Natal: (trinta e nove dias as mulheres seriam purificadas do nascimento de um menino). Mas Novembro era em si tão grande, que Outubro não tinha casa zodiacal, acabando por ficar subdividido com o símbolo da Balança as qualidades de César. Novembro começava em Setembro e tudo era outro tempo na roda das Estações.
Novembro hoje, agora, este ano foi todo ele o mês do breu. E se existe de facto uma hora propícia para as acções devastadoras, essa hora é a das manhãs, este Novembro adensou a escuridão, a mudança do paradigma; treze de Novembro, Lua-Nova e sexta-feira, a escuridão foi um selo que nos sitiou. Até os antigos condenados sabem bem do ar da Alba… dos amanheceres. Mundo-Mutandis.
Esta noite, este Novembro, este sangue, este medo, esta contaminação do terror em nossas praças, estas mandíbulas de cercos que avançam como se fossemos a Jibóia engolida pelo ventre da Baleia, faz mais escuros os dias que nos cercam. Vivemos sem pensar que a melhor herança da Liberdade, fora afinal a confiança no outro, e, sem pensar, o nosso tempo, não sendo o melhor, tinha tido esse alto grau da consciência humana; neste Novembro, vemos com a perplexidade dos que acordam no meio dos pesadelos, o que quer dizer a falta dela. Sitiados, os nossos sentidos estão cautelosos, em alerta.
São jovens a maior parte dos assassinos e também as suas vítimas. O sangue jovem sempre foi aquele que os deuses gostaram mais para saciar as suas sedes, como se um lado sacrificial do Novilho ainda fosse a condição «Tão jovem! Que idade tem? Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe».
Novembro nove, novo, é sempre o que restou das noites muito curtas do Verão. Disse Flaubert: “Felizes aqueles que comem demoradamente… afastam convivas insaciáveis que os importunam com pedidos e que, no último dia, à sobremesa, quando uns dormem e outros se foram embora doentes, podem beber finalmente os vinhos mais finos, saborear os frutos maduros, gozar os últimos fins da orgia, esvaziar o que restou, de um grande trago, apagar as velas e morrer!”
O ciclo das coisas alterou-se, e até quem gostava das brisas da manhã para as ideias irrigadas de fresco oxigénio, até elas, entram agora pela noite no transbordo de um ciclo transformado.
Que as trevas não nos vejam chorar que lágrimas nos caem sem sentido aparente na nebulosa Estação vivente, e que um Mundo tão mudado não nos tire uma certa claridade a que nos agarrámos como últimos sobreviventes. Ainda temos Goethe que às portas da morte exclamava com transcendente apelo….«Luz, mais Luz…». Mas os poetas morreram há muito neste mundo que se foi mudando sem eles, e quando morrem os poetas, levantam-se agrestes, as trevas. Eles estavam anulados mas ainda equilibravam o mundo nas coisas mais funestas tal como as sentinelas nos seus postes, seria preciso uma quase imolação para salvarem o que tanto se perdeu.
Novembro tirou-me a tranquilidade para amanhã pensar que a noite pode ser como os «Hinos de Novalis» e entrar nela cantando. Já não há Cânticos que apaziguem as feras, nem cítaras para que elas fiquem em paz. As flautas de Pan estão partidas nestes caminhos e os Concertos, a alegria, o som que se produz, parece até enraivece-las um pouco mais. Flautistas de Hamelin procuram-se para afugentar as pragas.
Uma música concertada que dê rumo aos que não sabem que o som pode vir dos acordes e dos acordos mais bonitos.
Talvez compor um Hino e pô-lo a cantar no Coração das Nações.

26 Nov 2015

Entre o seio e céu

«Sei os teus seios… sei-os de cor»

Alexandre O´Neill

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] um imenso instante do saber do que a língua tem de fruto, de nascimento, de acrescento, de volúpia e de bem-dizer. É para isso que os poetas eram feitos, trabalhados, identificados, respeitados e quase sempre consentidos na grande esteira da transformação. Para saberem do seio que sabe e ao que sabe o seio, que sabe a algo mais além do que sabor e saber.

Nesse céu límpido das formas que se jogavam em saberes e que nós nos deleitávamos pelo seu amplo sabor, estão inscritos os homens da linguagem, aqueles que fizeram o mais que admirável trabalho de escribas, escritores e professores de uma matéria quase gasosa, quase em éter. Alexandre, o Grande.

Toda a métrica deixada pelos poetas é uma quase noção de firmamento, teciam a metalinguagem e um metadiscurso, uma melodia plena de inventividade rítmica. O aparelho fonador é tão complexo, que para imitir sons coordenados precisamos de um enorme manancial de signos escritos e, depois, adaptá-los com tanta beleza que ficamos atónitos, mas produzir no cérebro os filamentos associativos das fórmulas e signos conhecidos formando outros é sem dúvida o mais maravilhoso.

Um seio amado desta maneira nunca cancerígena, não fica com metástases, não se inunda de vazio… pois que é “tocado” com saber que só o amor consegue. A sexualidade bravia deve ter provocado na anatomia feminina uma tormenta enorme, dado que não há razões aparentes para tanta coisa malsã. Claro que não há poetas em cada quarteirão que façam dos seios cânticos, nem que saibam deles assim, mas deve haver quem os encante, na medida em que são berço longo do mundo.

Há a síndrome do corpo vazio, daquele que fica triste e não responde à sua fórmula natural, que se deixa invadir e matar por exércitos de doenças quantas vezes requisitadas inconscientemente para pôr fim a outra doença que se transformou o viver: não é fácil estar em pé, nem andar de pé, nem amar, nem nascer, nem morrer. Um organismo só está apto quando o cérebro fez bem as suas associações e transmitiu ao todo o poema da vida. Antes disso, há uma imensa falta de coordenação motora e desordem sem fim naquilo que deve ser uma leveza a transpor.

Inundamos os afectos de coisas pragmáticas e tudo o que ficou por escutar nos mata de repente… não gosta a vida de ser desvivida nos seus círculos sacrais… e faz bem. De tanto andarmos podemos ficar insensíveis a uma maré que corre mesmo a nossos pés. Quando tudo gelar estaremos a pensar em brasas acesas num território que não tem fogo, e a memória que estava bem estruturada pode transformar-se em pequenos elencos sem sentido na mente ordenada , que não desarrumando, não gere mais memória do que aquela que armazena de fora, pela sua cabeça adentro.

Estamos numa enorme transformação linguística, mas os meios telepáticos não se equilibram nas orelhas estranhas dos homens… os amplexos laterais são para pendurar fios eléctricos, e fazer de cada orelha um suporte cujo descanso, serve apenas a surdez . Surdo, mas não fechado, nós vamos tendo coisas anatomicamente diferentes… Pensamos é que são doenças e combatemo-las… são doenças, mas não são mortais, nós ainda morremos por outras invasões. Por que temos as narinas dilatadas, por exemplo, e há oxigénio a mais… por que não sabemos ouvir o corpo… daí a raiva incontida contra as cabeças. Se não serve para o resto não tem espaço para o que quer… qualquer coisa assim de brutal ditou a raiva ofensiva contra elas.

Dizer que ainda aqui vamos é admitir uma fraca transformação, mas ela pode até não ser passível de mais metamorfoses. Nós podemos muito bem ter chegar ao máximo possível e a partir daqui haver um ser feito à nossa própria imagem e semelhança. Se, como bem disse Pessoa, «Deus é um Deus de um Deus maior», nós podemos ser os Homens médios de um maior, também. Impressiona-me o grau de atavismo de alguns médicos, ainda… como se fossem uma panaceia do tempo da «Morgadinha dos Canaviais» estão compelidos a uma técnica grosseira da anatomia, mas a felicidade é que vão aparecendo novas gerações que se sente fazerem o melhor de forma completamente nova.

Onde colocar esta medicina portuguesa com botas cardadas de doutores e mãos pesadas de curandeiros? Clínicas onde eles se entretenham a fazer “trabalhos manuais” . Não se podem deitar pessoas fora e temos de aproveitar o que sabem, mas não devemos estar sujeitos a saberes que não foram continuamente actualizados numa prática exigida pelas instituições que representam.

É muito penoso ver-se desaparecer gerações, mas elas, de facto, já não estão disponíveis para nada a não ser aos vínculos que têm e manter uma natureza enraizada a práticas desgastadas. Confrontamo-nos com multidões de paralíticos que não actualizam as fórmulas nem são permissivos a discursos outros. Há gente assim ao pé de nós, que caso estejamos mal , nos podem literalmente deixar morrer. Já não é um problema de liberdade individual, mas de consciência pública. Portugal deve ser o local do mundo onde mais gente se empata uma à outra, dado que quase todos fazem o mesmo, ou seja, optam pelas mesmas profissões.

A matéria “gorda” do entupimento colectivo é uma banha da cobra de tão difícil remoção que se morre sem que o próprio por vezes saiba de quê. Isto também é político, dado que se não fosse um martírio de governações dolosas e impertinentes nas chancelas, não havia tanta miséria e queda, que podem enfraquecer um país até à sua própria diluição.

Egos de gentes que vêm da Covilhã, do Minho, de Loulé, de Valado dos Frades… Gente que não tem a menor formação humanista: engenheiros, técnicos… (a Filosofia desapareceu dos currículos nacionais), toda esta tralha mecanicista ou economicista invadiu os pólos da Governação. E advogados? Há um em cada esquina. Vejamos o resultado prático desta “coisa”.

Claro que é preciso analisar o mercado e mais uma perspectiva sociológica, as leis laborais e governativas, pois que tudo é afinal muito difícil e temos de perder muitas horas a treinar nuns cursos fantasmas leccionados por inaptos, mas as sociedades estão em grande derrocada e todos estes aparentes saberes não dão para a vida das pessoas. As pessoas são, como começamos a ver, o que menos importa às outras pessoas, pois que se não houvesse uma mão cheia de códigos civilizacionais de base nem elas já existiriam.

A fome salva e a fome mata. De tanto laborarmos para a destreza dos bens para alguns o mundo corre agora o perigo de implosão a nível do seu próprio potencial humano, feito a duras penas por épocas e épocas de conquistas. Se a juntar a isto a crise energética vacilar, quem seremos nós, parados, num instante em que estar vivo é o mesmo que nos mexermos desgovernadamente todos os dias?

Lembremo-nos sempre da velha frase Romana «Os deuses enlouquecem aqueles que desejam perder». Pois nunca estiveram tantos condenados à espera da trombeta real!

E nós, os dos seios e os dos saberes, mesmo nus, não somos capazes de fazer enamorar as trevas. Com trevos se fazem as festas e os dons maiores, a nossa vida é uma peça gigantesca do próprio teatro do absurdo e nem Ionesco conseguiria agora descrever a peça inteira deste “puzzle”. Vivemos num conto fantástico para além de Kafka que, ao lado disto tudo, era apenas ilusionista de um imaginário saudável.

Atravessamos como os doidos as Praças, estamos a ir para o lado onde a força se faz e se fizerem mais força ainda nem memória teremos do que pode vir a acontecer. Tecemos o jeito gregário do mal adaptados, mudamos as coisas, mas as coisas não nos mudam mais do que a resistência de a elas nos adaptarmos de olhos vazios face aos abismos reais.
Entre os seios dos Cânticos e dos Poemas de Amor temos um abismo onde já não cabe a nossa anatomia. Já não sabemos o que de cor e de olhos fechados tocamos ….a nossa matéria não é a forma esperada nem a Humanidade sabe disso. Sem os «colos de garça» e os nossos sonhos somos agora, também, matéria apetecida por fomes que não esperámos. A fúria dos comedores de pedras.

20 Nov 2015

Europa 2015

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s mitos são como os sonhos, no dizer de Calderon de la Barca: “eles sempre têm razão e não há maior dor que a de não poder amar”. Nós, paradoxalmente, nascemos numa cultura de Amor, na tradição judaico-cristã. O facto de parecer ter sido um insucesso deve-se mais aos novos preconceitos que ao registo da herança. Vem isto a propósito da Europa, esse continente de fronteiras fluídas e instante sombrio, da flutuação da sua deriva, do seu rápido desaparecer como modelo de uma virtude já quase esquecida: a soberania.
Os europeus já devem estar em minoria nos seus próprios territórios, com populações envelhecidas, uma decadência e esvaziamento notórios. Os europeus são, enquanto população autóctone, uma população doente. Doente animicamente, esvaziada, logo que o mito do dinheiro e da abundância para todos também se foi. Subitamente ficaram mais pobres, e tanto mais pobres porque os grandes mitos se foram, as ilusões e a sua laicidade ajudou a criar esferas de um imenso vazio onde o Catolicismo parece uma ressonância sem sentido. Ficámos mais tristes, mais pobres e não temos Deus. O Diabo em que acreditámos traiu-nos e também não quis saber de nós. Esse belo deus do Capital só quer saber de alguns e iludiu com força mortal os que esperaram o fim das provações.
As coisas parecem pacíficas, sim, mas sente-se uma estranha tensão, uma quase nuvem de bolha flutuante que poderá rebentar a um qualquer momento, aquela paz que antecede os grandes temporais. Existe efectivamente um “ vapor” escuro no ar dos céus europeus, para não falar na imensa truculência dos povos a norte, cujo louro define quantas vezes o que tão “civilizadas” estruturas são capazes nos momentos especiais de fazer e pôr em prática.
Dois mil e dezasseis vai ser o ano da reedição da tão esperada (imaginem) «Mein Kampf», o grande tratado criminal da era moderna e a negação da nossa identidade humana universal. Esta reedição não será de todo inocente, mesmo com o trabalho explicativo das notas introdutórias, nem ausente de sentido. Num instante destes era tudo o que não precisaríamos, mas a Europa ama os seus Infernos: o editor não tem dúvidas, o texto deve ser publicado – eu sou favorável à publicação de «Mein Kampf» pois é um documento histórico que influenciou milhões de pessoas.
Claro, nós nem devemos fazer juízos de valor, História é isso mesmo, e as pessoas como bem sabemos são seres influenciáveis, o que o rebanho pensa não é História, mas sim aquilo que melhor se adapta às circunstâncias de alguns. No entanto, essa pobre gente pensa que pensa, mas efectivamente há quem a pense melhor: e diz mais: « é preciso deixar algum tempo para esta iniciativa se organizar pois que não se trata de uma iniciativa de mercenários, mas de uma decisão colectiva de historiadores».
Nós, leitores, somos como bem se sabe personagens incautas, lemos o que os grandes grupos de “historiadores” acham, porque eles pensam em tudo, as notas vão ser talvez de uma incisiva e subliminar tendência a um nazismo mais limpo, menos húmido, mais seco, rápido e que se não consubstancie nas nossas células nervosas, pois há que secar os pântanos e preparar para o electrochoque de néon que as mentes não mercenárias assim desejam. Talvez que Hitler até seja demasiado grotesco face ao “inteligente” esquema historicista em curso e não passe de um palhaço amestrado e ainda cheio de vastos oceanos de emoções.
Nós vivemos nesta Europa e não na outra, aquela que nos dizem outras histórias de encantar, vivemos qualquer coisa entre o impensável fortemente provável, num espaço de tempo tão veloz que melhor será não focarmos demais as atenções: entre o mito da felicidade e as fotos bem-sucedidas, o glamour, e toda essa trapalhada e a vida dos cidadãos, há diferenças maiores que entre a água de Marte e a água da Terra, mas o Sol de facto tapa tudo.
Seria de mau gosto não relevar aqui o prazer estético que foi as cabeças com lenços das mulheres islâmicas, lindas, de calças, de tudo o mais, mas castamente e rigorosamente enleadas nas suas decentes silhuetas. Ao lado da mulher europeia, de cabelos em pé, pintados, despenteados, são figuras dignas de mulher, o não reparar o quanto me faz feliz os judeus ortodoxos passeando-se com os seus tefilins, kiipás, livros de orações, e os islâmicos rezando descalços numa qualquer praça ou estação, é uma paisagem de uma imensa civilidade ao contrário das expressões materialistas de efeito cartesiano. É uma revelação e um maravilhamento. Digo judeus e árabes, dado que não se vêem católicos, freiras, padres, monges, nem se sabe bem o que trajam, no corpo e na alma. As imponentes catedrais não tardarão a ser readaptadas para o Islão (nada que não se tivesse já feito no sentido inverso –bem pensado, aliás, a ver pelo carnaval de imagens e coisas que são típicas manifestações dos povos bárbaros cristianizados), as duas outras religiões são iconoclastas e vão partir a estatuária e deitar para um canto aquela quantidade de abominações que é a representação de Deus em fascículos. Todo o ser que ora é digno de amor.
Poder-se-ia pensar numa grande Babilónia, já que somos uma cidade única, as coisas estão unidas umas às outras formando a Cidade, todos juntos repartindo o chão, mas creio que nos abeiramos também de uma supra catástrofe humanitária cujos contornos não nos pode ser dado conhecer. Pareceu-me de uma beleza trágica!
Bela, só mesmo a exposição de Chagall, no Museu de Arte Contemporânea de Lille no primeiro dia da apresentação. Todas as mais representativas obras ali estavam à distância de um beijo, ou de uns olhos marejados de quentes lágrimas… a delícia de uma música em forma de pintura e toda a sua orquestração de maravilhoso e santo, de terno e bom, de féerico e onírico; Chagall é um menino, meio anjo, meu homem… As cartas a Man Ray, aos pais… tudo nele é absolutamente Poesia. Ele não esqueceu de reintegrar Jesus na sua tribo e fá-lo com a beleza de um grande artista: integra-o na cena ao lado dos seus. É um movimento espiritual maravilhoso que dá um efeito estético inaudito. Não estamos à espera que tudo numa tela se mova de dentro para fora e de fora para dentro de maneira tão integrada. A dança, a união, os pés sempre no ar (para quem não tem terra, os pés devem de facto ser asas) a imensa ternura do Anjo Azul, o profeta Elias num carro rumo ao céu de fogo a um cantinho da memória das coisas, o rei David, a sua harpa, tudo é música, tudo isto pertence ao sonho profundo onde brota movimento e cor.O seu olhar tão límpido, também- como um girassol- o grande plano do seu rosto iluminando o grave Outono europeu. São estes os maiores momentos.
Nada nos surpreende mais do que aquilo que conhecemos ou julgamos conhecer, pois é da intimidade que nasce a voz nascente das coisas transformadas. Se nada conhecemos, nada nos surpreende, porque o novo é em si matéria pobre, precisamos de conhecer para encontrar pontos de surpresa, tanto, que por momentos, pensamos em todas as direcções do real e o que é de facto uma realidade.
O deus cornígero que raptou Europa fê-lo por razões sem dúvida apaixonadas… disso nos dá conta a imensa arte pictórica, pondo-a numa posição de quem gosta do dorso do amante raptor. Assim ela me pareceu na sua beleza de velha matrona, ainda lúdica e robusta, mas sem a força de inspirar e de se refazer da “gordura” que foi acumulando na sua própria estrutura. É agora a deusa velha de um panteão de velhos que se entretém vagamente nos últimos deleites, nem que seja um rapto estratégico para alimentar a gula e a luxúria que por vezes ficam ridiculamente mal, mas, que há muito sabe que outras mais belas deusas a substituíram. Neste caso presente, uma ocupação sem freio nos seus domínios e salões onde diz pouco e nada sabe resolver.
Estejamos sempre atentos ao Crepúsculo dos Deuses, se o Doutor Fausto nos aparecer não tenhamos medo: ele espera como o deus das auroras, também e mais do que nunca, o seu alvorecer.

16 Nov 2015

A diáspora dos nossos dias

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ragmentam-se as sociedades, os tempos correm num equilíbrio de forças, a distribuição das riquezas é desmesuradamente instável, os impérios findam, outros nascem…. e sempre as populações do mundo andaram móveis nestes corredores da História. Fazer da Diáspora uma condição foi uma prática litúrgica do judaísmo que, várias vezes expulso da sua terra, andou pelo Mundo, e ainda mais atrás por questões de fome partiu para o Egipto. Não é apanágio de um Povo tal condição, mas que foi levada a uma imensa esteira de consequências culturais, isso, sem dúvida. Mesmo Jesus fala nela eufemisticamente e do seu Reino fora deste mundo. Dir-se-ia que o conceito é mito, mais para além do territorial e nos apela para outras “terras” onde esta é apenas Viagem.
Na bagagem levaram os Hebreus o seu Sião e nas noites Babilónicas ali o choraram como filhos sem mãe, nos longos séculos pelo mundo diziam: até para o ano em Jerusalém. Por isso, e pela escassez do território, aquilo não é apenas uma questão de sobrevivência, mas sim um amor atávico, feito por uma ordem aglomeradora que a memória não quis que se extinguisse. Um para lá das necessidades fala aos Povos das suas pátrias afundadas, uma força estranha que nos questiona: afinal o que são e para que servem os territórios? Ainda hoje os Gatos, oriundos de África se deleitam no calor torrencial como se fossem cobras ao sol… eles recordam-se do solo original depois de caídos os Impérios, refeitas as pragas, cruzando-se mais a Norte, eles, os dos telhados, ditos «Europeus» procuram como as árvores chegar ao céu onde os aguarda ainda aquele sol.
Como é que a máxima experiência da mente se conjuga com tais ditames ancestrais é um maravilhamento: Heidegger afirmou — O poeta quer dizer: onde deve medrar uma obra humana verdadeiramente alegre e salutar, o Homem tem de poder brotar das profundezas do solo natal, elevando-se em direcção ao Éter. Éter significa: o ar livre das alturas do céu, a esfera aberta do espírito. Sim! Nós as plantas carnívoras temos raízes que são tanto mais fundas quanto fundas são as vastas memórias. Esta infinita consciência deve estar em todos como preceito terreno. Não digo que sejamos daqui, todos de aqui, há seres mais terrenos que outros, para quem as leis se aplicam como compósitos de vida a qualquer custo e o mimetismo transmite o dom da sobrevivência, mas falo daqueles que não tendo “gérmen” terrestre querem da sua terra uma reposição cósmica mais alargada. Existe sempre e para além do mais, o pensamento que calcula e a reflexão.
Estamos em pleno século vinte e um, e o grupo das pessoas que se movem, é de facto quase uma experiência bíblica; assistimos a uma “transumância ” sem Pastor na deriva dos Continentes que nos deixa entreaberta a porta da delinquência e do desespero das debandadas. Talvez se fuja já a uma antiga consciência gasta… a um findar de códigos… a uma usurpação do melhor da memória. Foge-se para qualquer lado com a esperança de renascer num outro, leva-se de nós, ou eleva-se de nós um grito qualquer, a Terra é estreita, e a nossa, aquela que o outro nos tira, afinal não está em lado nenhum.
O território é a base da organização social, fez parte das Guerras, desse definir de fronteiras, do que pode e não o outro em território estrangeiro. As nossas casas são pequenos países onde quem entra passa a ter as nossas regras, mesmo como exilados, sem abrigos, e coisas desventuradas que vamos ajudando mas sem nunca perdermos o ordenamento do nosso próprio território. Os tempos ditam-nos essa consciência de que temos de ajudar! Que não podemos permitir que os seres caiam na rua, esse território de ninguém, onde habitam os espectros. Eles também nos ajudam em tarefas que até aí não fazíamos tão bem. Mas, este mas aqui é enfático, como viver-se na proximidade física, na intimidade permanente, na partilha de coisas que eram apenas nossas? Um outro ordenamento mental se tem de se estabelecer, ou então, entramos em ruptura, o mesmo que dizer, em guerra. Vasco de Lima Couto (acho que estamos num tempo que já nem sabe quem é) dizia: preciso de espaço para ser feliz, e outro para ser raiz.
Esta imensa noção poética do espaço é uma harmonia universal que não se coaduna com as homilias morais das Nações, estas andam a contramão daquilo que define as grandes Leis, são formas morais que estabelecemos para conseguirmos viver em grupo, mas, que activam a via de um demonismo que não faz brilhante o Homem. Se é certo que as trocas nos enriquecem, não é garantido que a prática de vida múltipla nos faça melhorados. Precisamos sempre de espaço para ver o outro, não como um adoptado, mas, enquanto um ente que nos olha e olhamos. Tudo junto é um processo acéfalo.
O desconhecimento profundo que os Povos parecem ter uns dos outros e a maneira como se integram faz prever o pior. É nestas “barafundas” que aparecem os grandes algozes, movidos de forças higienistas tão do agrado dos tempos modernos. Antídotos radicais que matam os que não têm a força de saberem o seu lugar nos organismos. Estamos a viver mais ou menos isto, de forma informe, tresloucada, de denominador comum.
A consciência procura o Homem, mas se não lhe damos ouvidos, ela se separa irremediavelmente ficando um charco perdido, nós, no meio das estrelas. E se a alimentação, a ginástica, as dietas e os “regimes” nos fazem viver mais anos, temos de começar a saber também para quê, para que estamos vivos. A vida é uma medida que não interessa só como hedonismo ou força de hábito, ela, serve sem dúvida um propósito que se não for maior a desprestigia como fim em si.
Alvoradas houve muitas e nenhuma combateu ainda esta ignóbil condição de nos machucarmos de forma impensável, se não for para sair da Roda, para que nos serve a Inteligência, a conquista e tudo o que nos ronda? Levemos a memória do Amor nestas grandes diásporas e já vamos com a bagagem cheia e fértil. Guarde cada um para si a sua” chama” porque, e rematando com os poetas «uma chama não chama a mesma chama há uma outra chama que se chama em cada chama que chama pela chama que a chama no chamar se incendeia».

5 Nov 2015

Anima-Mundi

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]odos os meses existem teorias de fim do mundo, fim disto e daquilo, fim de sistemas, de certezas, de amores. Estamos rodeados de projectos finais, ora abruptos, ora subliminares, um metafinal discurso de doutrina milenar que nos desfaz as seguranças existentes e todas as formas convencionais de permanência. Abeirados que estamos de tal condição e numa inexorável marcha de imponderáveis, vamos por sucessivas vitórias da vontade continuando o impensável. Deixámos de chorar, estamos exangues, o presente aparece-nos como a grande eternidade provável, pois que o dia de hoje é sempre aquele que nos anunciam ser o último.
No dia 4 de Outubro assistimos ao fim de uma era, de um tempo, nesta escala pequena de um país, pois que a vaicuidade, a luxúria, a impunidade, a vitalícia governação dos “heróis” do sistema se foram para sempre, ficando, como os fins de mundos, em amanhãs que cantam… O expirar de uma hierarquia que teve fome e sede, não de infinito, mas de estatuto — que a memória da fome é algo que é mais forte que a razão — e fora preciso acelerar a “carroça” da história em bases nativas de cultos a bezerros de ouro.
Os que ganharam a nova alvorada, longe andam dos Messias e dos Sebastiões, temos guardas-livros amestrados para responder à natureza do embate, de tal ordem bem treinados, que só se espera que outro dia nasça e pouco mais, na medida em que o deposto é agora a secreta experiência da autofagia, comum a todos os outros fins; depois de comerem literalmente o espaço exterior preparam-se para a experiência alquímica maior. Quando saciados de tudo, entra-se no processo da – endura – devoramo-nos, cortando os fios com o exterior, alimentando-nos das próprias reservas. É um circuito interno de alta tensão, quando bem aceite, base subtil de clarividência, chama-se «Epoptia Iniciática», a alma enquanto centro da voragem.
Neste grau de “endurance” permanecem os devoradores de um sistema feito para ter sido, em princípio, de todos e mantido como autoabastecimento de um grupo que em vez de ter feito um Estado, exerceu ao longo de anos um “gangsterismo” também de Estado, muito longe das necessidades vitais dos cidadãos. Estamos no grau Luciferino que cortada a corrente de relação com a natureza exterior, agora que expirou, a força ígnea se devora a si própria, um mito de Narciso contemplando o abismo. O poder desagregador opera-se agora na alma, pois que a velocidade em que se pode perde-la, essa anima-mundi está agora bem patente no ciclo que finda.
Aquietamo-nos de uma mordaça, não estamos fortes para lutar, não nos querem mais resistentes que as afirmações permitidas, estamos talvez exangues das sucções dos vampiros moribundos, mas nós temos de continuar, mesmo que nos digam que o mundo acaba hoje e amanhã faço anos e depois morreremos: nós temos o dever de continuar.
Sem o pirótico fogo da voragem ainda há alma nas nossas bagagens e, aos poucos, refazer um mundo que acaba em bases novas, renováveis, vai ser um desafio. Nesta hora o mundo mudandis diz-me que nem nós seremos mais isto…. diz-me que um Homem amanhã será tão raro como uma outra espécie em extinção, e que olhar esse ser – o filho do Homem – será quase uma experiência comovedora. Outros vão ser, que já não somos nós, à nossa imagem e semelhança, melhorados, pois que a vida não anda para trás. O fim do mundo de hoje é mais acelerativo que no tempo de Joaquim de Fiora, temos uma urgência inscrita nas veias, um amor inaguentável, uma vontade cada vez mais amputada….
Portugal é parado, difícil, complexo, desorganizado. Viver num local assim é só para nós. Nós que perifericamente já não temos mar, a Europa se esvai, e o chão está seco… Nós, que não temos filhos e nos tiram os que temos e nos ameaçam ter de trabalhar até ao fim , ao fim dos tempos das nossas vidas. Nós temos de saber, apesar de tudo, continuar.
Sob a égide do términus que fazem os bárbaros às portas da cidade? “Ah! Eles eram a única solução”, dizia Kávafis: hoje, também já não são. Não há soluções, não há quem nos salve das agruras do Tempo mas, mesmo assim, os nossos passos e o nosso corpo pensam coisas novas, saídos da morte dos reinos inglórios. Abram alas, que a anima das coisas quer passar e até ao fim seremos os que encontram soluções.
“Vejo ao fundo um pássaro em fuga… vejo Deus e não sei que é… e penso que é número que me empurra”.
Os que vão nesta viagem, recomecem os ofícios de Sísifo, os voos de Ícaro, nós talvez não consigamos mais que este embate, mas o sonho permanece e, findos os tempos, a alma do mundo torna à casa, no coração das coisas que vivem: e podem ousar da nobreza esquecida olhar o sol mais uma vez, dizendo: Nós os que vamos morrer te saudamos!

16 Out 2015

Barca Bela

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] Romantismo não foi entre nós o mais expressivo momento mas, sem dúvida, deixou alguns brilhantes testemunhos, tanto assim que sem ele teríamos perdido muita memória genética da tradição literária portuguesa. O confessionalismo não faz dele um instante “piegas” como muitos acharam, nem o reviver dos gostos medievais um obscurantismo enevoado. Ele foi bastante colorido, pleno de acção, intrépido e revolucionário. Vem da educação arcádica cuja linguagem escrita teve o mérito de se aproximar sempre da linguagem falada do seu tempo. Depois, o conto, as novelas, o romance histórico, conferem-lhe graça e o desligar dos enfadonhos tratados.
Falar desta corrente é, como bem se entende logo à partida, falar de Almeida Garrett, que o tempo do início do Outono faz de forma natural assemelhar-se logo às «Viagens na Minha Terra», num deslizar suave por entre os vales… O romantismo sem ultra, o maduro, o das alucinações visuais, das cores e dos sons, mas é nas «Folhas Caídas», agora de Outubro, que a representação do lirismo português abre portas ao entendimento: há tanto nos interstícios das palavras!
– Pescador da Barca Bela onde vais pescar com ela que é tão bela ó pescador? – Quanto pesa uma alma? Vinte e um gramas, dizem, vinte e um séculos para vinte e um gramas romando numa Barca bela! Ela.
Mas quem é afinal este “ela” que surge e fala com o poeta? A alma. O poeta dirige-se assim à sua alma na sua Barca, a Barca que tem a vela, a vela que tem a chama, o corpo que tem a alma. A Barca é também um transporte mortuário e relembro «A Barca da Morte» de D.H.Lawrence no poema de dez cânticos e que começa assim: «Agora é Outono, o cair dos frutos e a longa viagem para o esquecimento. É tempo de ir, do adeus ao próprio eu, de encontrar uma saída do eu caído. Já construíste a tua Barca da morte, a tua?».
Coisas que o tempo cala porque os tempos apostaram na morte da alma. Mas ela não se cala! E eis que Garrett, agora, na sua Barca, vem lembrar a grande maravilha com o mais requintado tratamento da linguagem falando com a sua própria alma: – «Não vês que a última estrela no céu nublado se Vela? Colhe a Vela, ó pescador!» Esta subtil passagem de velas que não são sinónimas mas que são a mesma essência….. este Velar, esta alma que faz andar a Barca e o nublado da estrela… pois que: «não se enrede a rede nela, que perdido é remo e Vela só de vê-la Ó pescador!» Há que fugir então do canto da sereia, essa ilusão que pode levá-la para o local escuro da sua essência ou fazê-la desaparecer, há que velar, velejando, a alma que vela, a vela que veleja… a anima encontra-se toda aqui! Só animados somos um propósito de viagem, mas animados com aquilo que a própria expressão à alma conduz. Ela é aquela energia que não deve andar “enredada”, que se deve acautelar face à sua natureza etérea, das ilusões do mundo, pois que essa mesma alma pode bem perder-se no assombro da viagem, afundar-se, e não mais animar o viadante. E, tal como Ulisses amarrado às cordas, aqui também surge a advertência: «Inda é tempo, foge dela, foge dela, ó Pescador».
Esta alma do poeta é uma amiga simples, ainda não é o espírito, é uma força que surge como conselheira. Esta é uma luta de um pescador com a sua deidade e não a «Rima do Velho Marinheiro», de Colleridge, que por sinal é a obra que muitos acham ser inaugural do Romantismo.
As Barcas, essas, levam os navegantes com a alma deles dentro e sempre ao longo da viagem lhes será mostrada a estrela d’Alva na forma de anjo interno como um espelho…
Esta é a vela de ti, a chama que terás que entregar. Escuta o seu conselho e caminha sobre as águas.
Talvez tivesse falado com a minha naquele dia… em que … «Vês que vejo a vela verde, vês que sou o tempo e a teia, e que importa se és e não sou uma estátua de areia?!»
A alma pode cair aos pedaços, ser pressionada a pesos que a atormentam, mas só ela existe para saber ver a bela frase de Rilke «Todo o Anjo é terrível». Ela põe-nos também à prova no limite de todas as coisas. Ela está em guarda. Todos os que foram encontrados depois do Naufrágio estavam numa Barca. Tudo mais tinha perecido.

13 Out 2015

Santo Ofício

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]draconismo severo tem sido um hábito mormente gentil numa terra morna com mecanismos impiedosos. Mecanicamente verboso com tendências mórbidas a extrapolar a sua escala de acção, numa continuidade diluída em outras coisas, como o dislate, a delação, o disfarce e a corrupção, muitas vezes alienado, pois nada se trata com a precisão dos casos simples. Não é fácil portanto o desapego a um «Santo Ofício» umbilical, de teor complexo e bizarramente amarfanhado em brumas. A repressão inquisitorial deu azo a um recalcamento dos afectos que levam a um siso, também ele difuso… sisando muito a propósito de nada, numa esteira de saúde pública doente de todo na sua invenção dos males. Recuemos ao século dezoito e ao disparate guardado nas Arcádias, como a vida de Filipe Elísio, o poeta, pois foi a sua mãe que o traiu num processo quase macabro.
Filipe Elísio foi um maravilhoso poeta helenístico que, ao serem-lhe atribuídas afirmações heréticas e a leitura de livros proibidos, lhe fora movido um processo duro, em que o poeta ao encetar a fuga não mais viria ao país. Foi amigo de Lamartine e, após o indulto de D.Maria I, acabou por não regressar devido à maquinação dos seus inimigos que numa irracionalidade ilimitada o haviam de perseguir até ao fim. Por isso, e quando escutamos agora a essência das coisas, nós ainda as vemos como reflexos que trespassam o fino asfalto da consciência; sempre a mesma mordaça, aquela forma de reduzir o outro ao nível de um perseguido, persecutoriamente e visceralmente inimigos nem se sabe bem de quê, num local pequeno cujo alongamento pode muito bem ferir de morte um outro e cujo conteúdo de zelo passa indiscriminadamente por punir.
Filipe Elísio está publicado no «Parnaso Lusitano» da Arte Poética Portuguesa . Grande trabalhador da língua que o tempo pareceu esquecer, não sendo redimido, como tantos outros, pelo erro da expulsão. De uma forma mais ténue, estamos mais ou menos nestes beirais, a sociedade portuguesa filtra-se quase sempre nas elites sem expressividade para ser representativa do que quer que seja. Por outro lado, são eles que ainda firmam os “guetos”, os esquecimentos estratégicos por onde sempre passará a sua influência de uma hidra sem rosto.
Não é por isso, na escala da Paz, aquele lugar seguro que almejam as gentes, bem pelo contrário: há dramas inconfessáveis em cada beiral das vidas, que só não são confessáveis porque de nada serve, não se vê o movimento para a interajuda como resolução social, é preciso saber isto e calar. A escola do fascismo mais não foi que o prolongamento, não sei se com mães delatoras ou não mas, pelo menos, com familiares muito próximos. O imaginário do fantástico talvez até seja limitado para entender tais psiques pois que qualquer metamorfose é sem dúvida mais simples que esta chaga aberta na mente e “modus-vivendi” de um Povo.

Por três homens que vi dignos de estima, vi mil malvados Judas.
Avarentos, filautes, vis sejanos.
Cavernas de calúnia, sem pesar me despeço; e, se o previra
Rejeitar entrar na orbe.

Um excerto do seu epitáfio

Todos os dias há processos e proibições, como seja a última de não se poder ser fotografado ao lado de alguém sem o seu consentimento para passar a publicado, das mães que são presas porque fogem com os filhos num enquadramento de fragilidade social de arrepiar, de não se ousar pronunciar o nome de um adversário, de coisas absolutamente estarrecedoras e impróprias para uma mente sã. E uma sociedade civilizada. Voltou o gene obscurantista como se dormisse à espera de um acordar tão óbvio quanto impossível de combater. Direi que num clima destes, em que cada um se espreita pelas piores razões, apetece nunca mais vir, caso se vá para um outro lado, impelido por um tentáculo sem freio.
Questionar estes assuntos é tão tabu quanto inimaginável, convém sempre dar a impressão que o futuro é agora, e que se ultimam os preparos de uma Humanidade melhorada. Mas não nos enganemos: ela é apenas o lado que ressurge do tempo das perseguições. A Justiça é quase plenária, está cada vez mais ao serviço de coisas morais face ao conteúdo da matéria, as pessoas agora podem aventurar-se na prática do abominável.
Quem não tem para onde ir, sentindo-se a mais, vê melhor um destino ameaçador, uma mórbida onda de desproteção maciça e de negrume. Os grandes ideais ainda foram no tempo em que se comiam bifes e as barbas suavam nos Verões. Não há tempo a perder para começar a dizer o óbvio, com o risco de nada mais se poder dizer do que aquilo que não é óbvio e nos deixarão. E com toda esta imensa nuvem de chumbo lendária nos queremos entender nos interstícios destes sinais.
Com o tempo aprendemos que o medo é uma ausência de generosidade. E que não a ter, contribui para uma escalada onde ninguém fica a salvo, quase como um excesso de zelo movediço que faz asfixiar o seu autor. Olhamos e reparamos que há sombras… sombras e com elas espectros invencíveis.
Agora é altura de rasgar os autos porque a Fé se busca em outras paragens.
Sem mais nada que a incerteza, a diferença pode constituir de novo a culpa formada para se actuar, e, até, nos fazer migrantes engalanados a salto em buscas de novas paragens.

14 Set 2015

A morte saiu à rua num dia assim

Federico Garcia Lorca
(5 de Junho de 1898 — 18 de Agosto de 1936)

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]ezanove de Agosto de mil novecentos e trinta e seis. E, naquela noite de Estio, cumprir-se-ia um destino singular às margens do Guadalquivir: Federico Garcia Lorca assassinado pela corrente Falangista na sua Granada natal onde se havia refugiado, cede ao cansaço de estar fechado em casa e passeia-se na noite luarenta, alguém o reconhecera -volta a casa – e não tarda a baterem para o irem buscar, naquilo que foi talvez aquele instante: estou pronto e só. Porém, ele aninhara-se no seu berço para fugir ao perigo que a partir de Julho se afigurara real, fugiu para a sua terra onde politicamente tinha amigos das duas facções rivais, certo estando que nada aí lhe poderia acontecer. E, mais uma vez, se estende a questão: ninguém deve abrigar-se na sua terra em caso de perigo, é aí que estão os delatores, os algozes, talvez até entre insuspeitos que secretamente jamais perdoaram a vitória de alguns. Este erro, aliás, é cometido por todos. E todos aí encontram o mesmo fim.

Lorca seguiu sempre o trilho da sua própria universalidade não estando filiado em nenhuma das correntes que fizeram a guerra. Exigir tais coisas a personalidades assim seria o mesmo que amputá-las. Garcia Lorca devia ter o encanto das crianças e a natureza brutal dos homens era-lhe talvez intimamente desconhecida, pois que não se pode ter feito aquela obra com noções estreitas de razão e de vontade. Tudo nele pertence a outros interiores, onde não raro o trágico habita, mas sempre pleno de focos redentores.

Com uma aturada atenção dei-me conta o quanto a sua morte está cravejada na sua poesia: uma noção visionária, um destino irredutível, uma visão soberana plasmada nele como uma certeza. Os poetas sabem tudo do futuro das coisas, não sabendo contudo que já sabem, mas uma grande obra poética revela esse assombro para lá das incertezas humanas e das perguntas sem sentido. Ela dá-se onde os outros não têm voz, ela exercita-se nos canais subtis de um mecanismo de sonda que é raro acontecer. Mas está lá, como uma certeza toda de dimensão precisa, outra, inquietante.

Este homem tão regional, foi também um grande cosmopolita, um ser que viajou, desde a sua bolsa em Nova Iorque, passando pela América Latina, Europa, Venezuela, conheceu escritores da sua têmpera, recitou, tocou, conferenciou mundo fora. Grande parte da sua obra foi compilada, revista, nas alturas que antecediam as viagens. Depois, ele tinha um enorme encanto pessoal, era imensamente sedutor criando uma aura quase hipnótica, reportando-nos às palavras de Alberti. Existe mesmo na sua morte uma nuvem de enigma tipo “Salieri-Mozart” com o poeta Luís Sales, que se tornaria o poeta do regime franquista, mais tarde, e a quem Lorca propôs o Hino Falangista conjunto, dúvidas que nunca vieram à luz do dia.

Ele estava perto e teria podido intervir na sua libertação, teria sido muito fácil intervir…. mas é um assunto controverso. Eles adormecem, com o vinho da noite quando os amigos são condenados à morte, já tinha sido assim com alguém que nos é familiar. O facto de ser seu amigo não excluía que o fosse de todos os vanguardistas como Fernando Del Rio, republicano e fundador do Partido Socialista, onde fizeram parte dos grupos de vanguarda formados por Alberti, Guillin e Salinas, o chamado grupo dos «Poetas de Vanguarda». Não nos esqueçamos que foi ele o fundador da «Barraca» teatro ambulante destinado a educar as massas nas cidades e nos campos (não como a nossa Cilampus) e que em plena ditadura de Primo de Rivera pôs em palco « Bernarda Alba», um hino libertador.

Por tudo isto e por muito menos são os homens abatidos e hoje, dezanove de Agosto, nunca é demais lembrar que aquilo que um poeta avança numa geração precisam os homens por vezes de séculos. Claro que fora descuidado e confiante, claro que facilitou a vista ao algoz, mas porquê matar um homem assim?! «Romanceiro Gitano» é das obras mais belas do mundo, todo um poder regional condensado a obra universal, pois que ainda agora quando desejo o cheiro das laranjas, meninos a correr, ciganos, pombos, burros e cães procuro-os nestas páginas de um chão transfigurado em Poema, tão sagrado como a Galileia, tão divina Granada como Jerusalém.

O seu corpo nunca foi encontrado, para que serve um corpo, quando se é Lorca? Talvez para amar e morrer de amor, estes corpos têm coisas estranhas por dentro. Mas morto, é a universalidade que o instala sem sombras no nosso espectro de luzes.

19 de Agosto de 2015

Amo a Federico, nada me poderia ser mais amante, mais tocante, mais rasante a todas as lágrimas de agradecimento que o seu luminoso exemplo de Poeta. O amor vive-se a muitos níveis – sabem-no eles – e, mesmo que os corações sejam de lama e carne, existirá um reduto de outros elementos que batem por este belo ser em uníssono, sem tempo, nem distância. Mais meridional que os seus imensos olhos castanhos, nem as fogueiras de Saloon, mais passivo que o seu semblante, nem as impressões de Cristo, e mais belo que o seu saber, nem mesmo Salomão.

Os políticos hão-de todos morrer, os homens fortes e os fracos, as coisas boas e más, mas o que fica (recorro agora à bela frase de Holderlin)« o que fica, os poetas o fundam».

“Do Oriente ao Ocidente
Levo tua luz redonda.
Tua grande luz que sustém
Minha alma, em tensão aguda.
Do Oriente ao Ocidente.
Que trabalho me dá.
Levar-te com teus pássaros.
E teus braços de vento!”

25 Ago 2015

Os que vão morrer te saúdam

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]audar a morte é talvez a mais conseguida expressão de uma vida lúcida. Nem todos têm este maravilhoso privilégio e as nossas sociedades nada preparam de filosófico e religioso que inaugure o ciclo desta realidade, entretida que anda em ser eterna. Agora que sabemos que o Universo lentamente se apaga, ou seja, também morre, algumas lembranças dos Homens que não a sentiam como horror ou tabu, pois que ilustres são todos aqueles que a esperam de pé — “de pé, como um Poeta ou um Cavalo, de pé, como quem deve estar quem é!”
Há uma bela frase talmúdica que diz: – o último instante de vida ainda é vida –: o que fez que muitos rabis, numa fila esperando pela morte, corrigissem os últimos textos, limassem os seus “metais”, depois depusessem o livro, o lápis e partissem. Não muito diferente dos gladiadores romanos que na arena saudaram a César a sua última batalha, Buda foi saudar a Lua de Maio e sorriu, Zaratustra subiu à montanha e esperou o Sol, e aqueles que subiam também às neves para o último suspiro em provas ritualísticas como Otto Rahn, o cátaro dos Pirenéus. Aliás, os últimos Cátaros não ofereceram resistência nenhuma, descendo uma montanha para o seu sopé, onde lhes esperava a fogueira. Há muitos seres que entram nos abismos a sorrir. Que terão eles mais do que nós, os parasitas do medo, os grandes prazenteiros? Creio que eles têm mais do que nós, uma educada consciência da fragilidade e da insignificância de tudo, mas ao mesmo tempo uma forte noção da sacralidade da vida.
Certas mortes rituais não são bem-vindas, fazem parte de um espectro primitivo muito agudo, como aquele onde fazer correr sangue acalma a divindade. O Templo de Salomão tinha essa prática, pela primeira vez com sangue animal. Daí Abraão ter sido tão importante dado que põe fim ao infanticídio das sociedades pré-agrárias, aquele Anjo que impediu o Holocausto é a consciência de um novo patamar humano. Mas a saga não acaba aqui, como reminiscência ainda aparece Cristo, que vem lembrar que o Pai mata o Filho e que nessa morte o filho se Abandona. Ele não pode lutar, nem sabe, perante esse Saturno mau que engole a progenitura e, num abandono tocante e grandioso, ele quase agradece a sua sorte tão ditosa como a de um outro qualquer eleito, pois que nesses instantes que se percorre o “fio de prata” estamos cosmicamente sós, mais sós do que a nossa solidão alguma vez pôde pensar. Aqui, nem amigos, nem pai, nem família, nem povo, nem tribo… Só uma mãe alquímica e suave como a luz de Deus chora um ser que é seu, não somos amados por mais ninguém, ninguém nos viu, ninguém nos sonha, ninguém sabe dessa dor. Há inclusive uma bela passagem do Purgatório de Dante canto XXVII que explica talvez isto:

Chegados ao grau último da escada
Disse Virgílio, olhando-me nos olhos,
Com voz firme suave e sossegada.
Do lugar onde toda a alma chora
E dos duros caminhos já liberto.
Para ti, finalmente, chegou a hora.
A ajudar-te, deixa-te andar….pois não ouvirás mais os meus conselhos.
Conselhos de pai sábio ao seu menino.
A tua vontade é livre, inteira e pura.
Constituo-te senhor do teu destino.

O que pode acontecer nas várias saídas de todos nós, é nem ouvirmos o que algo nos tem para dizer, e nem sempre o suicídio parece calmo ou aceitável, afinal, não se resolve morrer: morremos.
Antero faz-me sempre uma dura impressão pela forma dolorosa da sua longa agonia, ele não merecia este esgotar-se de si mesmo, este estertor, esta lancinante dor, ele que era “santo” acabou por se diluir no seu espectro mais carregado. E também os pequenos suicídios que ao longo da jornada infringimos parecem actos de impaciência e de curiosidade, mas não lhe apanhamos o sentido, já que tantos precisam de nós…..
“Fazes falta? Não fazes falta a ninguém”. Pessoa assim o afirmava, mas podemos fazer-nos falta a nós como agentes que somos de habitantes de um deus desconhecido e isso é a mais faltosa de todas as faltas. Há quem nos procure ainda por telepatia, por puro orquestrar de factos maiores… há aqueles que prolongam os nossos segundos antes do desconhecido….é bom?! É doce, no entanto.
Nós, gladiadores de todas as batalhas diremos no Portal: Nós te saudamos! Tudo o mais foi acaso e ter nascido.

18 Ago 2015

Oceano – Lua

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]im, foi há quarenta e seis anos. Ainda a Terra pairava em rota de colisão com a sua Estrela, seguindo um ritmo muito próprio, quando alinhou com aquela massa cinzenta, vazia, sem som, como se de repente o Homem tivesse de novo descoberto a Roda avançando a passos gigantes para além de si. Entre a visão infantil do Peter Pan e aquela imagem em câmara lenta, a imaginação de uma criança desdobra-se em mil efeitos que não cessam jamais, dentro e fora dela. Presentes estavam as pessoas da «Viagem à Lua» de Georges Méliès quando os astronautas vagueavam na sua superfície. Lembro-me bem, da curiosidade e da vontade de lá ir, descolar, andar sem gravidade, muitas vezes me coloquei de forma a andar assim, porque quando somos crianças tudo é possível. Portanto, ontem, 20 de Julho, sinto-me sempre neófita. «Ir à Índia sem abandonar Portugal» Agostinho da Silva explica bem a correlação entre as coisas: ir à Lua sem abandonar a Terra, ainda é melhor!
Findado que foi o ciclo das Águas, recomeça o ciclo do Ar. Ora, por mais que queiramos, há mais gases e ar que águas, oceanos. Estamos, sem que lhe demos a importância devida, no ciclo da Era Espacial. Não tenho preciso tudo o que senti naqueles instantes, mas ficou claro um imenso amor pelo Oceano-Galáctico. Aliás, não gosto de água, devo ser um raro organismo vivo juntamente com os gatos a ter tal reacção. A Água da Terra mete medo, é o resquício de um barro indistinto… uma manobra descongelada… chegados lá, já não temos guelras, mais fácil crescerem-nos asas. Em proporção ao espaço-tempo, levou tanto a sair da Terra como os Hebreus atravessarem o deserto; pois, era logo ali, claro, muito perto, mas libertar é tarefa dura e, na primeira parte do processo, estes aparelhos e marchas estão quase ao nível da Roda – mas é preciso ir.
Quando a sonda chegou a Marte senti o mesmo frémito, olhei para o fundo de um oceano vazio, uma paisagem árida como quem olha para um deserto de libertação, ficamos encantados até com a escassez, a luz, a vibração outra… e, por instantes, há aquela dúvida, se não andamos em viagem, numa Diáspora que é preciso resolver. O Profeta Elias pode estar ainda algures no seu carro de fogo, numa dessas superfícies que o sol esqueceu, e a vida, tal como a entendemos, não contempla. ….”os homens amam a Terra por que esta lhes resiste”.
Vir até aqui, à Terra, já não é destino, há moléculas que ficam presas às teias da quase invencível sobrevivência que vieram apenas registar e acabaram engolidas na engrenagem da reprodução dado que há sistemas sensíveis às fontes de calor…e eis, que nascemos pessoas, numa atmosfera hostil onde nada se mexe a não ser o movimento louco que faz da corrente de ar uma manobra difícil. Há um suborno à massa desfeita, que não é passível de ser acelerada, por outro lado, entre o Homem que somos e o que virá, o abismo cresce na proporção da recusa de um e da urgência de outro.
Os «Velos de Ouro» estão agora além, além das águas dos Argonautas, Argos é Apolo.
Todo o distintivo em provocar rupturas ficou aberto desde aquele dia, mas quase ninguém se lembra, dado que o asfalto é grandioso para quem se alimenta de húmus e na escala que evolui há um Olho Gigante que nos inquire da capacidade que cada um tem em suplantar a lei. Leis que não são eternas, apenas andaimes de uma estrutura tão requintada que nem damos conta, e tão implacável que só nas suas dobras se acorda. “Vi então um novo Céu e uma nova Terra pois que a primeira tinha desaparecido”- Apocalipse, um livro fortemente espacial, de grandezas várias e resultados insuspeitos.
A Lua sempre estará vazia de curso nas instalações dos nossos mapas celestes, dado que não nos governa com a rotatividade das harmonias simples. Está ali, mas ninguém sabe bem para quê, não é uma sentinela de gestação, de fecundidade, de cortar cabelos (mais, cabeças?) tudo se produz num laboratório demasiado humano para ter o rasgo feiticeiro da sua luz… não nascemos lunares, os colos são frios, as barrigas até se alugam e quem dá curvas lindas são ainda os Matisses do Mundo. Quase não serve para nada a vitória da curva sobre a recta… giramos sem cessar mas sem projecto de Dança… Quando há Eclipses vai tudo espreitar, gostam de sobreposições, encavalgamentos, linhas rectas… mas, findo o instante, desatam a circular de forma desordenada. O Homem Fantasma! A Lua Lobisomem, perderam-se… eles também eram reais. As Lunações mais perfeitas, as casas a cheirar a lavado pela Lua-Nova, os acasalementos da Lua-Cheia, nada, nada disso a Lua faz, bem como a memória de a ela ter chegado se dissipou em mil verdades e mentiras, num desdobramento consoante ao «Homem que engoliu a Lua». E como ela esta vazia, temos muita fome de tudo, insaciáveis, somos os monstros que comem pedras.
Pela noite ela ainda me vem visitar a pique no meu jardim secreto, e não vem redonda, dado que a espiral morreu, mas logo aqui, a faço Mãe e Irmã, dos meus sonhos mais fecundos.
Lembro-me de ter lá estado, e nela ter vogado, numa atmosfera feliz.

30 Jul 2015

As brumas

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stamos na Europa e foi 14 de Julho, nada de expressivo aconteceu, nem sequer a data pareceu interessar na azáfama da dívida grega e nos vãos de escada dos peditórios: a Europa é hoje um armazém de guarda-livros “merceeiros” e banqueiros, um rescaldo de contabilidades cujos princípios justificam os fins. A Revolução foi nas calendas de antanho e o tempo não está para grandes ardores. Nem sempre temos força física, anímica, para entrarmos em tais domínios, não nos podemos deixar galvanizar por ideais cujos resultados são imprecisos e utopias que não pagam contas. Parecendo grotesco o que agora digo, é assim que se vive, mesmo os mais aptos para uma participação de fundo.
É claro que ninguém fica sentado a ver uma Revolução passar, uns tomam-lhe o freio, outros transferem-se para heróis, outros fogem, uns são presos, e os que nada ganham ou perdem também entram na “dança” nesta actividade ígnea não há horas para as reuniões, para tocar nos colarinhos, para cada um fazer a sua “paneleirice” rasteira num marasmo que mata mais que mil soldados. A Reforma é agora a modalidade mais eficaz e a sabotagem do direito do outro à vida, a diversão mais requintada do capital estrangulador. Articular revoltas nesta “benemérita” sociedade é algo de inconcebível, está tudo pensado ao detalhe: quem rouba também dá e dá espectáculo e coisas para manter os “sans- culottes” devidamente entretidos e alienados. Ainda são precisos. Porém, creio, que no dia em que este «Cérebro» entender que estão a mais, haverá estruturas para os fazer desaparecer: as investigações nazis da «Bayer» só agora estão perfeitas. Aliás, estamos perto de um efeito que não desmerece um qualquer outro que possamos ter achado menos bom.
A Grécia lá teve que estender o fio de Ariadne, mas desta vez não matou o Minotauro e ao regressar a Atenas foi mais pobre, pois que os heróis morrem jovens e, no tempo deles e das Revoluções, o mundo também era outro, mais cativante em formato Humano. É nos Estios que elas se dão, pois que o Inverno não dá “pão”. Revolução é coisa Estival!
Nós não podemos estar pior, ou seja, podemos sempre vir a estar, é um facto, mas dado que desconhecemos o abismo, agora mesmo nos sentimos muito mal, mas com recurso a tudo, pois que o acto da sugestão nos pode induzir de forma “Voltariana” ao melhor dos mundos. Estávamos nós a festejar oniricamente a Revolução quando estas coisas paralelas de afundar mais a Grécia se produziram; a partir de um certo instante a salvação é o abandono e não vale a pena capitular, dado que hoje, e como nunca, quem pode sabe e tem razão. E os ricos têm muita, dado que são eles que fazem as leis. Apanhamos sustos vários cada vez que passamos certas datas, dado que elas efectivamente morreram, congelaram na inércia dos séculos, de tal ordem que haverá um doido que nos virá alertar futuramente que o passado nunca existiu.
No que diz respeito à Igualdade, ela, embora não designe de facto coisa nenhuma, devia ser neste tempo substituída por Equidade, ou seja, tratar diferentemente aquilo que é diferente, com formas de acção coordenadas, e não o simplismo igualitário, pondo nas portas das comissões este poema: «Todas as coisas têm o seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada um foi prescrito».
Descodificar tratados da União requer alguma filosofia, o que falta à Europa é uma estratégia política, apenas existe a financeira. Há países que estão calados, pois sabem, o quão maravilhoso seria serem geo-estrategicamente os “Bons Samaritanos” irem a correr dar água do seu poço; nesse dia os sonhos morrer-nos-iam, aqueles poucos que sobraram- porque, se bem entendo, essa expectativa é subliminar a todo este processo, quanto a nós, que há muito nos esquecemos da Revolução o melhor será irmos aos poucos esquecendo uma Civilização inteira. Penso que é isso que sabem lá no fundo os europeus, basta a «Pedra Angular» do berço dela se ir, para ruirmos e começarmos a perder-nos na penumbra dos tempos. O dinheiro, a Banca, os Banqueiros e a Economia vão matar o mundo, e nesse começar, somos agora o alvo que convém focar em silêncio.
A Liberdade, essa não é a mesma que aquela que se gritou da cima da Bastille, o nosso sopro não aguentou o voo de Ícaro, nem o Sol gosta dos que não são águias. Fraternos somos a modos que solidários numa desgraça colectiva que adjectivou o princípio para uma escalada de valores onde não queríamos ter voltado.
E foi nestes ditirambos que se passou a data do Grito Libertador, que tanto deu vida, como matou, dado que matar e dar vida, são actos da mesma “Revolução” e da primeira grande condição do Homem. Foram grandes esses tempos. Agora, sentados a uma mesa, vamos elaborando o estertor da última etapa.
Gostava de te ver voltar. Ninguém deve nascer para isto.
Se ao menos soubéssemos o dom da Equidade, dessa expressão que tem em si um principio inviolável de grande Justiça! Mas não: de tão iguais estamos exangues e o nosso sangue já não aquece a Terra.

23 Jul 2015

A nau catrineta

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]onge vão os tempos em que a língua falada era um legado de fábulas e um canto em verso que se soletrava em forma de uma Constituição oral das regras de um país, de maneira a produzir uma receptividade comunicante de unidade e completude de esfera onírica, no tempo da Barcarolas, dos Cânticos, dos Trovadores, das Orações e das Trovas.
Ela articulava-se para produzir efeitos, desejar bênçãos, aperfeiçoar a melodia interna, profetizar e unir o inconsciente colectivo. Tudo isto foi a um tempo bem distinto da linguagem do agora, com ritmos e ciclos outros, que dava ao Verbo o papel de profecia. A cultura era também esta maneira de oralidade imensamente poética que merece ser vista com alguma consciência mais precisa quando falamos deste género literário. Vivemos hoje o fim de todo este ciclo: a língua não serve mais este propósito ou estes vários propósitos, tendo, na era da comunicação, sido práticamente abolida a sua imanência. Continuamos arduamente a produzir cultura, ferreamente empenhados em compreender tudo de todas as maneiras, a falar como nunca, a produzir sons e a jogar todos os verbos de forma a comunicar sempre mais, não se sabendo exactamente o quê.
Com o recurso ao pensamento individual todas as formas de relato são agora possíveis, todas as misturas argumentativas, todos os diálogos, todas as línguas, toda a verificação automática da sua norma, enfim, querer ser compreendido por meio da palavra tornou-se uma obsessão ilimitada e quase perturbadora. Informar, passar a mensagem, factualizar, argumentar, dizer, desdizer, tudo isso os discursos abusivos e a comunicação aceleram numa vertigem sem paralelo.
Estamos então no tempo de todos os recursos linguísticos e fonadores, pois que o Homem é o resultado da linguagem e o seu cérebro vai-se desocultando no exercício dela, de forma quantas vezes imprevisível , como no tempo em que o cérebro ainda possuía alucinações auditivas e os patriarcas, xamãs, profetas as ouviam a partir do seu lóbulo frontal e escreviam e ditavam coisas que ainda agora nos deleitamos e curvamos de pura admiração. Ora os seus cérebros estavam formados para outros raios comunicantes sem dúvida, porque hoje, não ouvimos mais essas “vozes”, nem elas nos ditam coisa nenhuma. Ficamos a sós uns com os outros a falar, por vezes mesmo a sós, outras porque nos disseram que não podemos estar calados, que todos temos uma palavra a dizer e assim por diante. As “vozes” hoje são ouvidas por escribas de editoras que lhes dita um outro, tão humano quanto ele, para relatar algo, que certamente vende e enche o mundo de papel, histórias essas quase sempre plausíveis, chamando para o poder humano aquele que algures tinham Deus e outras sublimes forças.
Um escriba já não é o homem com acesso ao vocabulário e ao sinais gráficos mas um ente que escrevinha o que um outro pensa muitas vezes de si mesmo. Esta total separação de fontes ordenou que todos tentassem escrever a sua história em moldes e formas unitárias, tiradas de todos, para que todos possam participar na vida uns dos outros em depoimento humano tão falível quanto as narrativas não batem certo. Os Faraós, que tinham linguagens e formas de lucubração metodológica talvez pouco desenvoltas e não estariam propriamente a falar com o redactor, este teria também que saber interpretar a voz de um “deus”. Não se sabe muito bem o que é que os Faraós disseram, a não ser aquele, o Aqueneton, que resolveu acabar com a casta sacerdotal, talvez demasiado palavrosa para as suas ideias monoteístas. Mas havia o labor do escriba! 9715P11T1
A dialéctica, essa arte da oratória, cresceu não como factualidade de enumerar coisas, mas tão somente pela “beauté do verbe”. Falar era uma arte maior, que não tinha de contar factos ou dizer o que se sabia. Era a pura interpretação inteligente da maneira de argumentar sem um sentido pré-determinado: poder-se-ia falar da coisa falada e renunciar a ela num atalho da própria matéria verbal. Devia ser delicioso. Ajudava a dar ao pensamento a antecipação de uma acção, a percorrer memorandos de informação, que são cultura armazenada. Aliás, as religiões monoteístas aplicaram brilhantemente estes princípios nas orações, nas preces, nos salmos e na retórica que transmitiam com bases sólidas das fontes linguísticas que foram o latim e o grego.
Esqueçamos tudo isto, porque o que não se exercita se esquece, claro, e vamos para o hoje do mundo falante. Nada disto parece sequer fazer sentido, nós os detentores da informação estamos tão nus destas verdades como despidos face a nós mesmos, as línguas são agora ferramentas ao serviço da nossa escalada de solidões várias, onde não vem colmatar nenhuma esfera desprotegida e direi até grandiosa. O que se disse hoje, amanhã diz-se de novo de outra maneira para assim nos dar a sensação que dizemos coisas novas. Meia perversa meia grotesca, serve-se dos acontecimentos ao redor (ao redor agora é a Terra toda) dando o brilho artificial de que quase sempre a própria informação se reveste.
Há o lado monocórdico, que tanto fala da morte como da vida, como do sexo como da paz, com a mesma inexpressiva dose informática, de modo que tudo se resume a acontecimentos no grande entulho das coisas sensíveis, factuais, os responsos a estas várias desgraças há muito que foram esquecidas e a felicidade é tudo quanto se almeja. Só que para ela há códigos que não lembram ao diabo, erguidos como grandes paragonas, tão politicamente correctos que ninguém ousa desafiar. Caso o faça, fica morto porque, quem não fala assim, não está do lado certo da jornada.
Olhando apenas o factor som do aparelho fonador, descobriu-se que a voz feminina pode provocar depressão nos homens e que pode estar associada ao grande número de agressões por parte destes. É uma conclusão que aponta para um total reaccionarismo mas que não deixa de ser interessante, porque corrobora com a ideia de Lou Salomé quando afirmou que a loucura afecta o desregramento vocabular na mulher enquanto que nos homens lhes retrai o dom da palavra, ou seja, a um provoca autismo, a outro a obsessão linguística.
Estou certa que o futuro ditará novas abordagens no fenómeno comunicante, outros órgãos que ainda desconhecemos se irão aos poucos desenvolver deste aparelho, quiçá ainda rudimentar, se ampliarão outros, com novos símbolos gráficos como acesso à telepatia, onde o poder comunicante se desenvolverá como hoje só é possível nas máquinas de sonhar e que todo este ruído a que fomos sujeitos findará, porque não foi afinal por causa dele que fomos enquanto criaturas melhor compreendidos. Aliás, nunca os afectos recuaram tanto perante a exigência de os analisar, nunca tantos se entenderam tão mal. Aqueles que nos dizem o que é essencial saber, reunir-se-ão na nossa esfera de empatias melhoradas, sem longe e sem distância, como um Fernão Capelo Gaivota, para nos sussurrarem ao ouvido o seu precioso entendimento e dele nascerá a esfera de um conhecimento que amplia a linguagem em muitos saberes.
Levados pelas vozes de uma esquecida Nau Catrineta talvez as histórias sejam então de pasmar.

Que queres então, meu gajeiro?
Que alvissaras te hei-de dar?
Quero só a tua alma para comigo levar.
Pegou-lhe um anjo nos braços, não o deixou afogar.
Deu um estouro o demónio.
E sossegou logo o mar.

9 Jul 2015