A sarça ardente

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]al como a Fénix renasce da sua própria cinza, a sarça – quando parasitada por uma outra planta de frutos e inflorescências avermelhadas – dá-nos a impressão de chamas. Esta planta é mais vulgarmente conhecida como acácia e os seus belos ramos, tão valorizados em ritos e liturgias. A Fénix é uma ave e esta é uma planta: as coisas extraordinárias acontecem entre estes dois planos, de forma sempre renovável, presente e até insondavelmente desafiando muitas leis ditas imutáveis e pondo a funcionar o mecanismo alternativo da realidade paralela, partindo das mesmas organizações internas mas mudando-lhes a forma.
Para os primeiros hebreus, Deus era mesmo designado por “Ehyeh” “Ehyeh-Asher-Ehyeh” – o que habita na sarça – sendo todos os objectos da liturgia feitos a partir dela. A Fénix entrava em combustão e desfazia-se, as suas lágrimas curavam a dor e a doença ao misturarem-se com o que sobrou do incêndio dela; tinha o poder de voltar à vida, a sarça não se consumia, não ardia, não entrava em combustão, era um fogo que não tinha o ciclo transformador. Aparentemente entre uma Sarça e uma Fénix parece haver antagonismo completo: onde mora o estático da planta que arde e não consome?
As árvores sempre guardaram segredos. São os reinos vegetais, tão passíveis de produzir frutos proibidos como comestíveis, a estranha maneira de morrerem de pé com aquilo que por cima delas se passa e aparece, como se o reino vegetal fosse aquele onde os insondáveis caminhos do conhecimento de Deus mais falam sem que possamos extrair de tanta linguagem grande coisa.
É nos ciclos de florestação que os incidentes mais bonitos e estranhos se consumam e quase sempre os seus efeitos, ora perversos, ora benéficos, nos instruem da finalidade sagrada da sua função. As aves quase sempre podem também morrer no ar, que o mesmo é dizer que de pé, mas, no vasto princípio paradisíaco, elas não estavam lá nem se manifestavam, era talvez um paraíso onde o céu não era este e o apelo da liberdade não se punha.
Afinal, o Homem Adâmico era «Para lá do Bem e do Mal». Nietzsche testou esse efeito e conseguiu provar que nem toda a consciência necessita de juízo de valor. Os anjos vieram mais tarde como querubins que guardam a parte oriental ainda do Paraíso e não se lhes conhecendo outras actividades de mor importância nestas entradas, eles velam, voam, como a Fénix combusta, mas nada lhes é dado ainda de efeito inalterável “estão ao serviço de…”. São “intermediários”.
Muitas vezes – e hoje que estamos no fim do Ano –as coisas tornam-se de uma eterna monotonia giratória, pois que ele se devolve aos nossos sonhos como cantigas de um circuito instável. Nós estamos efectivamente numa Terra com pouca sustentabilidade para podermos continuar aqui por muito mais tempo. O Ano que vem já deve ser a descontar para o «Êxodo» e nem que comamos as ervas amargas e o pão que o diabo amassou, parecemos aptos a recomeçar.
Como não somos a Fénix, não ardemos, nem fazemos arder. Estamos em formas mansas de atrasar a transformação radical, mas que seria bom não esquecermos da vista, pois que a saturação dos Invernos é como a saturação dos cadáveres: gera pestilência. Entre coisas que nos deviam aproximar e a distância do sorriso bom do Verão, vimos como as águas avançam mais que as labaredas e a humidade do ar seguramente será boa para batráquios daqui para a frente. Nada de gelar que estamos a aquecer, mas este melhoramento climatérico tem pouco de risonho, ele quase nos agride a reserva biológica de dispositivo automático.
Embora nem todas as plantas sejam acácias, o que arde deve fazer-nos pensar e o que nos inunda também. Não haver combustão não é suficiente para que salvemos o Mundo, nem as asas nos protegerão em caso de raios disparados, mas há algo que me intriga na grande marcha ambiental. Chegámos mais rápido do que julgáramos. Tão rápido que todas as esferas sonhadas e sabidas nos vêm agora à memória como possíveis esclarecimentos e tentativas de compreensão. A Terra é efectivamente e cada vez mais um planeta instável, onde a grande transformação se dá com alguma incerteza para o nosso permanecer. Vicissitudes de origem invulgar, abruptas, chegam-nos como tufões, os anjos devem andar chamuscados neste redil, e nem de nós por vezes dão conta, com o seu sistema de renovação radical.
Por vezes, podem ser desesperantes como o de Heine Muller, que se suicidou num 30 de Dezembro e escreveu o «Anjo do desespero», no qual acrescentou esta coisa tão bela e enigmática: «Depois do desaparecimento das mães o trauma do segundo nascimento e o que eu vi era mais do que eu podia suportar». Talvez que nascer segunda vez não seja afinal um bem, talvez que não suportemos essa forma de nós outra vez.
É certo que os anos passam, ou seja, que nós passamos pelo tempo, umas vezes tão indelevelmente que ele nos esquece. Parecemos abandonados da sua demolidora passagem, mas, depois, vimos que tal como a Sarça que estávamos sem nos consumirmos e sagramo-nos da sua luz estática. Depois tudo avança e desejamos descansar, um estranho sono que nos ajude pela mão das ervas daninhas a ficar sem a memória das coisas que fôramos. Quase nem podemos chorar! Há uma calcinação muito grande nos olhos que nos obrigam a manter abertos e que empurramos com quentes lágrimas pela vida que nos deram.
Por vezes era melhor saudarmos coisas mais simples, ter reservas, andar em outro chão… por vezes não aguentamos as “asas” como bem disse Baudelaire : “o poeta é semelhante ao princípio da altura …. exilado no chão em meio à corja impura … a asa de gigante impedem-no de voar”.
Sim, mas nunca de se gastar, de fazer de si a Fénix e deixar para Deus as labaredas sem chamas, como as línguas do Espírito Santo, que sendo luzes e em luz caem, permanecendo todas e como vozes, produzindo a não combustão.
A língua como um fenómeno imenso, os homens antigos ouviam sempre vozes… talvez haja um lado cerebral que os dispunha para isso… As vozes à medida que as sociedades se transformam vão tendo outras características. Esta nossa, mais visual, e já nada nos visita de forma apelativa, e com o tempo de tudo dizer, as vozes se foram. Nomear, ouvir, escutar, mas o cérebro tornou-se intolerante à solidão, o cérebro humano não ausculta e por isso não ardem as sarças nos locais de uma fogueira, que o lume aquece e os dias do últimos dias do Ano são frios.

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