Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDicionário infernal [dropcap]E[/dropcap]m dois mil e dois saía na Cavalo de Ferro, logo às primeiras edições da então jovem editora, uma obra de grande ousadia e interesse maior em forma de lenda dos medos, explicando muito da psique social de uma Europa que os arrasta e conserva em outras frentes, e, cujo interesse, parte desse magma identitário de superstição e superação de um Continente onde o fantástico e o horror coabitaram quase sempre como forma cultural. Tem a tradução de Ana Harherly, bem como introdução e notas, sendo, para que se realize tal proeza, um fôlego, só equiparado à sua qualidade literária. Não é fácil pegar-se numa coisa assim num mundo que baniu os restos mortais de um velho inconsciente colectivo e que se vê a braços para estabelecer a sua fantasia perversa com a tirania das imagens e dos conteúdos que fabricam espectros; deseja-se uma certa contextualização do abominável, por vezes, até, com apelos estéticos quase sempre caídos no logro brutal da sua manobra. O seu autor é um tal Collin de Plancy, francês, nascido em 1793 em plena Revolução, onde o ribombar dos tambores activaram a sua mente talvez delirante, ou tão só de uma robustez de conhecimento simbólico que sabe dos disfarces que são necessários para tudo afinal ter o mesmo fim. Sade nesta altura também se “passeava” entre duas eras, e nem uma nem outra o conseguiu tragar, sobretudo Collin seria aquilo a que apelidamos hoje de mágico, mas à época, exaltado pelo canto da guilhotina, pode ter desenvolvido uma tendência paranoide que não é mais que um estado de terror que desagua em interessantes formulações que não devemos abandonar com displicência: aqui tudo o que é humano interessa e não anda pendurado na razão daqueles códigos de honra dos pensamentos dos regimes. Herdeiro de todos os terrores o seu género literário chamar-se-ia de “género frenético” o que é sinónimo hoje de Literatura do Fantástico. Influenciado pelo “romance negro” inglês, mas com mudanças de construção que cobrem um espectro pagão, era simpatizante do Demo, mas mais tarde converter-se-ia num católico fervoroso, essa não menos belíssima religião que ergueu os pilares devocionais de todos os suplícios que desejamos esquecer. Tal qual como o próprio Diabo, Collins inventou para si bastantes nomes, o chamado heteronimizador compulsivo, que a nevrose sempre alimenta com identidades paralelas, ele escrevia com a avidez de uma necessidade monetária que nunca o abandonou mesmo na sua conversão, onde por todas as esquinas via o diabo de quem tentava fugir, e já na primeira metade do século dezanove a sua escrita social tinha a sua marca deixando aflorar este comprometimento satânico. Foi prolífico até ao fim. Nesta altura andava no ar a leitura estética de choque de assinatura inglesa, mas que se misturou aos atributos locais e fez por si só uma corrente nova, reforçada. Começa esta obra que estamos analisando com ditirambos de muitos escritores e pensadores de renome e méritos conhecidos que não encontram nenhuma razão para a inocência consentida e desferem juízos capciosos por toda a lógica da vida: entre eles estão, Goethe, Baudelaire, Blake, Poe, Dante, Goya, Sade, Milton… ficando esclarecidos, nós, das suas “fabricações” onde cresce um Belzebu em todos reinventado. Ou não? Se eles assim o descreveram é por que naturalmente se sentiram habilitados a fazê-lo até à perfídia máxima que é a sua auto- negação a partir da conhecida frase de Goethe, depois escreve Fausto e tudo se provou que era apenas uma frase conspirativa; – entretanto as vozes calam-se – e começam alfabeticamente as explicações (é um Dicionário) que bem pode ser um compêndio de saberes pois tudo o que se lê tem sempre uma sombra que nunca é a de um atrevido Peter-Pan… é outra coisa que pode despertar incautos e reconhecimentos vários lá para a esfera dos «Encantamentos» : a maior parte dos encantos fazem-se assim, através de palavras, e Plínio diz-nos ainda que por meio deles se extinguem os incêndios, se estanca o sangue, isto tudo em verso grego e latino. São sortilégios! Quanto aos judeus, metem-nos na categoria dos ciganos e colocam-nos a envenenar as águas dos poços tendo havido então um massacre na Germânia (primeiro nazismo) indo em fuga refugiarem-se nas florestas medonhas daqueles locais onde arranjaram subterrâneos só saindo passados cinquenta anos onde se ocupariam após este interregno das artes divinatórias. Vimos por isso que a História dos povos não pode jamais ser feita sem recurso a estas referências e que os ódios são também eles um reflexo social transportados de século para século. Entre nós temos a recolha etnográfica de Trindade Coelho onde toda uma tradição popular está plasmada deixando livre trânsito para saber que a tal “literatura frenética” se encontrava também entre nós « Senhor Sete»: são os agouros, rezas, superstições, ladainhas, os recursos “hídricos” desta água memorável que vem afinal de uma Hidra comum. A polissemia da palavra «praga» disso nos dá conta, que as naturezas que habita designam várias coisas, recorrem a muitos nomes, Gil Vicente nessa «Barca do Inferno» adjetiva-as com delícia linguística… A primeira edição deste Dicionário data então de 1818, outras se lhe seguiram, 1825 e 1826, 1863, sem dúvida para a época um verdadeiro “best seller” fornecendo ao seu autor já em fase de abjuração alguma secreta riqueza. Afinal o Diabo não brinca em serviço!
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA barca do mundo [dropcap]C[/dropcap]lima e urgência para o debate no Mundo que neste instante reflecte o seu destino comum, um momento galvanizador da consciência da vida e das suas transformações a curto prazo geram uma emergente expressão de combate a muitas vozes. Estamos a criar uma consciência cósmica repentina, e já nem espaço há para o bucólico regresso às fontes de que nos fomos libertando pela conquista de um bem estar não menos comum. Os países pobres alertam-nos ainda mais a consciência pois eles são as primeiras vítimas deste desequilíbrio e os que mais padecem neste momento, é já da ordem das antigas epidemias, por ora, é o que vemos acontecer ano para ano, pois o tempo se estreita nas suas variantes e a matéria tem de reequilibrar a sua massa que esgotada parece estar, é um processo, e se reorganiza para estruturar um outro em plena continuidade de movimentos e imprevisíveis fenómenos que pode liquidar desde já populações inteiras. O momento em que vivemos estes diálogos estão bem longe das práticas militantes dos anos sessenta em que a fuga para a natureza representava o desabotoar das roupas para o torneio do nu em grandes descampados depois das vestes severas que os antecederam. A natureza como retábulo idílico era uma coisa aceite na vanguarda dos insurrectos que logo que a juventude passou vieram fazer as suas vidas no grande espectro liberal e por lá se mantiveram até ao grande Banquete de todas as formas de extorsão energética que a Terra dava de forma ilimitada, juntaram a isto as guerras e os interesses comerciais e fundaram novas elites; estávamos ainda a caminhar para o auge, o dia perfeito, a abundância de fluxo, hoje, porém, a dinamização juvenil não ergue essa bandeira, e há muito ( se é que alguma vez chegou a sê-lo) não traz no seu código nenhuma forma de epicurismo, antes pelo contrário, vem activa, receosa, grave: jamais vimos uma juventude tão protocolar, tão atenta, tão firme e consciente, parecendo que vêem mais longe que o momento agora com uma transparência que não conhecíamos. Estamos fustigados não só por ventos ciclónicos como o estamos também por discursos novos, condenatórios, arrepiantes, a que não valerá a pena ripostar com a esperança da vida curta que nos resta e a sobranceria dos códigos, e nessa frecha aberta como uma avalanche de abismos titubeamos de forma concertada, tendemos a consentir mas sem no fundo entendermos bem, pois que a nossa versão nos destinos do mundo foi exactamente a inversa – consentimento e regalias – e com tanta ambulância foi essa outrora juventude que se prolongou no engodo de que o mundo lhe pertencia, quem está agora a ser confrontada com uma velhice que não merece e a pesar as suas próprias práticas inconscientemente tão funestas. É um alarme e os sinos soam a rebate! Nem sempre o que estamos à espera vem exactamente do lado esperado, e uma das mais vitoriosas formas que a vida nos dá é a sua capacidade de surpreender-nos, julgamos a partir do tangível ter a resposta para a efeito, mas as causas não se dão para satisfazer a nossas aparentes infalibilidades, para dizer, que neste jogo dos imponderáveis o que se rompe são estruturas cujos desígnios também desconhecemos, não valendo a pena por isso falar de um amontoado de números de milhões e biliões, pois que um dos disfarces da ignorância é revestir-se de muito. O que está de facto no grande «Olho do Vulcão» é a nossa perspectiva face a um modus vivendi cuja condição indisfarçavelmente não dá respostas para a saída do Labirinto. E não vale a pena contestar as Vacas, os Touros, que o centro é Minotaurico e está ainda representado pela inacessibilidade. Seremos nós quem ruminamos agora com dentes feitos só para sorrir e uma estrutura física desadequada para atravessar o estertor desta futura dimensão desconhecida? Quem sabe, nunca as coisas foram tão inúteis e tão pesadas para manter viva uma certa noção de Humano. A vida não acaba, nem tão pouco acaba aqui, na luta com fenómenos extremos, que nós sempre fomos extremados e continuamos sendo essa massa poderosa em expansão onde o paternalismo das hostes arranja sempre maneira de sustentar a sua ordem, mas agora, neste labirinto um tanto inefável, digamos, passando pelos que desistem do sexo com que nasceram para o transformar no outro, talvez nem valha a pena tanto dano uma vez que se pode ser andrógino no corpo nascido, isto apenas para dizer que poderemos adaptarmo-nos a severas mudanças a partir de órgãos novos e adaptações não sonhadas. Mas, e aqui está a dúvida: seremos ainda nós nessas formas de adaptação, ou seremos outros, na base deste longo ensaio? Estas questões só podem ser consentidas quando o medo da morte se dissipar, dado que também já não estamos longe de deslindar esse quase eterno sufoco acerca da brevidade da vida. Por isso, e para que não nos pese a vida mais, será preciso atender ao novo dela, ou estaremos irreconhecivelmente envelhecidos para responder para o que as nossas vidas servem. Ela servirá para viver, sem dúvida, mas todas as vidas estão subordinadas ao mesmo estatuto, e a nossa não será a mais consentânea sequer com as suas leis; que nos crescesse de repente uma certa compaixão por ela enquanto todo só abona a nosso favor pois que abarcamos nesta Arca todos aqueles que vão connosco. É tarde demais para glossários, de facto, estremecem os dias, e as nossas vidas terão de ser conduzidas pelas vozes dos Vindouros, esses, que nem sabemos bem quem são, tão atrapalhados nos tornámos com as competências e as fomes eternas. São as «Novas Epístolas aos Vindouros» e nós estaremos com eles, ou eles seguirão sozinhos e tão conscientes, que perderemos o melhor da nossa missão. Pensai que à doce Mística opusemos a acre e fria dialéctica E varremos a nobre Metafísica com a vassoura da Economia Que na ânsia pueril de termos tudo, reduzimos as dúvidas pretéritas – Angustiosas mas fecundas, a certeza do nada. … e empalhámos todas as formas vivas desde o coito à poesia… … desta época atroz da infância das técnicas… Orai por nós, orai por nós «Epístolas aos Vindouros» Carlos Queiroz
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasConjurados [dropcap]E[/dropcap]stamos socialmente alinhados na conspiração de grupo e nas articulações de grandes tramas que nos impedem quase a saudável natureza dos actos individuais ou das capacidades próprias: depois da grande artimanha da competição versus produtividade aninhámo-nos em seitas, umas mais, outras menos conspirativas e cooperativas com carácter de urgência, e é tanta a prazenteira delonga deste estar que não há ninguém por menos bípede que seja que não ande num transfere de competências associativas com fins determinados em reuniões sistemáticas e estratégias constantes. Creio mesmo que a noção laboral, a perspectiva do fazer ou saber fazer, realizando o melhor, mergulhou num longo sono todo ele encriptado de manobras várias com tentáculos de complexidades alarmantes. Cada vez ocorre menos a uma alma em repouso orientar-se para uma vitória de si mesma face à inércia do banditismo da informação vinda dos lados mais bizarros do esclarecimento, creio que andam entretidas a ver pela total incapacidade de indignação nas zonas de impacto onde se deseja que coloquem as vozes, quanto muito, interessando-se pelas coisas na razão directa de uma autodefesa que rapidamente passará a transtorno quando se desconfia de negligência face aos muitos e aturados méritos que carregam. Tudo isto pode gerar um pasto apetecível para orientações mais alargadas de tirania – que ela anda no ar – tentando fazer manobras quase indecorosas por cima da cabeça das Nações. Estes “Conjurados” não são da aura calorosa daqueles que estamos a pensar: a dos resistentes pela soberania do Reino em 1640, são outros- como não podia deixar de ser – que conspiram horas e anos a fio sobre práticas dolosas de como vender países a troco de nada arremessando para o seu grupo o maior número de proventos possível. Conspiram, ajustam, combinam, numa aleivosa actividade de banditismo de Estado nas suas associações de grupos e associados. São batalhas intermináveis que parecendo acção, são contra actividade, dura, o que nos deixa a pensar que em caso de um drama iminente não tenham a menor orientação e bom senso para servir de garantes seja do que for. Uma híper-liberalização ensaiou os seus tentáculos de supra sobrevivência no asfalto de um mundo onde as leis alteradas chegaram aos grandes desprotegidos em regime de imitação. Em última instância somos todos conspiradores das leis artificiais de um projecto de vida que se esfarrapa agora todo e anda pelas ruas da amargura. É certo, porém, que só vemos aquilo que queremos ver, e sobretudo aquilo que nos dão a ver, nos interstícios destes dislates fortemente “democratizantes” deve já existir “bunkers” em terra firme e funda para o caso de problemas esperados, ou mesmo, senão em marcha, fugas planeadas para Marte em grande escalada pagante ficando os pobres da Terra à mercê das intempéries. Também, longe vai o tempo do sigilo das seitas, o que deixa bem claro a desordem aparentemente amigável destas coisas e por coisa pouca que possa servir a imagem se vendem as mais poderosas informações. Conjurados sentam-se à mesa servidos pela sua tónica mais perfeita: a traição! Mas o que é a traição? Para tal é preciso que haja uma norma, ela não se encontra porém em lado nenhum, e tal como a interpretação bíblica de Caim e Abel nos diz que nada estava escrito que o informasse ( Caim) que não devia agir assim, também podemos regressar a tempos como esses, isto, se queremos levar a capacidade de luta até aos abismos onde ela se encontra. Mais simples afirmar «Que nem só de pão vive o Homem» o que resulta em moral cuja conceptualização nos indica no actual contexto, estranheza. Jorge Luís Borges tem um livro final com este título «Os Conjurados». É uma obra surpreendente e rara, nela se viaja no último instante da jornada de alguém que atravessou o tempo de forma exemplar. São poemas em prosa com várias matérias que raiam a visão sublime de um homem já cego e todo ele dependente de um amor que o fez avançar ainda assim; precisamos bem lá no fundo de um braço muito longo a que chamamos – chamou – o seu amor, para continuar de forma tão impressionante; quem não o tem morre cedo, arrefece num local qualquer da jornada mesmo fazendo a sua obra que renunciou ao socorro de um amor: não sei por que o intitulou assim, mas é certo que conjurou muitas vertentes de alinhamento histórico e pô-las a funcionar como mensagem extraordinária. Há seres que emitem sinais de agrupamento de vínculos tais que as suas próprias acções os ultrapassam, sabem que nada seria possível sem essa reunião e que caso a nossa essência não tivesse sido benignamente grupal não teríamos aquilo a que apelidamos de Civilização. Eram Conjurados! A outros níveis que já não nos é possível entender. Uma assembleia de Conjurados terá que ter sempre o impulsionador da conspiração, sem ela diluem-se os métodos da acção concertada que quase sempre avança para o terreno de forma própria e consciente. Precisam levar mais do que ambições pessoais, precisam estar unidos por um bem maior que liberte e una. Ora, nas componentes mais alargadas destes estados reconheceremos a fragmentação deste impulso onde as causas e os efeitos se tornaram na luta de cada um face a todos, e sem sagacidade activa e espírito de sacrifício deixou-se de acreditar que possamos estar abrangidos por alguma coisa que nos defenda. Esconjuremos um tal estado de vida que pode nem merecer ser vivida quando falta a troca benéfica da partilha. E Borges afirma o mais extremo laço deste contributo ainda solto pelo sentido transcendente da própria dádiva: «Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu… só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos… não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos”.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOutubro Ô temps! Suspends ton vol, et vous heures propices! Suspendez votre cours Lamartine [dropcap]N[/dropcap]unca é igual o tempo nas suas nuances nem o retorno dos seus ciclos, todavia, temos sempre mais tempo para cada Estação que vai sendo descontada na marcha, pois que se os anos em nós são Primaveras, ninguém festeja os Outonos celebrados. Os hemisférios “Outubram-se” de forma contrária, mas este nosso que suspende por momentos o voo é aquele de que gostamos pelo instante da suspensão, ficando no centro de uma natureza igual, cálida, precisa, como um doce interregno, e sob a seu fleuma não raro se levantam as grandes marés e tempestades colossais a fazer lembrar da repentina fúria dos calmos. Outubro lembra-nos assim do factor da imprevisibilidade em pleno estado de paz e acalenta a nossa liberdade associativa . Aquelas sombras tão pausadas, aquele equilíbrio entre os dias e as noites dão os vinhos que enchem os copos de rubra fraternidade que bem pode ser esse «Lago» do poeta romântico antes de se fechar o postigo e entrar na gruta. Já não há Revoluções, mas aconteceram quase todas entre Abril e Outubro, pois que o Inverno inibe a marcha da rebelião – que de interiores mantido – não gera no seio das colectividades cargas transformáveis, o ciclo delas fechava-se aqui, com Outubro a garantir a legalidade e a cultura dos movimentos como as suas mais altas exigências. A boa conduta do Outono vai engalanar os cabecilhas daquelas com estímulos muito civilizados, os regicidas já cumpriram a sua missão, e as consequências advertem-nos que a História não deve em caso algum andar para trás. Os nossos outrora Outubros foram mais cingidos ao ciclo biológico, nele se iniciavam as aulas quase esquecidas nos longos Verões, se reencontravam os amigos, e a vida voltava às suas rotinas com o formalismo de quem cumpria o primeiro dever básico de uma sociedade, aprender, seria assim o mês mais civilizado enquanto processo criador, pois que as nossas também outrora aprendizagens foram de muitas maneiras também outras que não somente as dos bancos de escola. Vínhamos de Verões selvagens e imensos onde aprendíamos os arrojos, as dores das quedas, as insolências e as aventuras que nos dariam amargas crises de desobediência, formas de aprender a lidar com o todo na cauda de cada Estação que dominávamos. Hoje, é certo, que de quando em vez o próprio amor não dura mais que uma Estação, em muitas delas nem nunca o vimos envelhecer, e destas Outonais folhas, nem já uma lembrança, e neste calor de Outubro apenas um peso de sombras paradas. Passamos assim no esquecimento do que em nós foi o ciclo novo, o tempo que nos dava de beber cedo finda a sua festa, e para que não esqueçamos devemos guardar as suas pétalas secas, deitá-las em nosso leito para quando vier o amanhecer sabermos que estamos nele, e que a sua maior dádiva será a imagem de uma outra qualquer coisa que se foi. Parados, amor e morte, podem assim começar a dar as mãos, que delas nos caem as flores pulverizadas das chamas do ainda tempo próximo do escaldante viver. No calendário romano era o mês oito, e a sua subdivisão vai dar-lhe as características de César, Vergílio canta-o – as festas a Baco principiam – e os judeus têm nele a sua festa mais sagrada, nela se pede perdão, aquele tempo que leva a ser pessoa e a restituir-lhe a natureza do seu reflexo humano. Embora o vinho esteja correndo há uma lucidez que não deve ser perturbada enquanto em suspensão esse tempo se mantiver. Dão-se os Nobéis, o resultado meritório de vidas de trabalho, que se começa a trabalhar em épocas mais combativas e se guardam os louros para a celebração das vindimas. Separam-se os trigos, separam-se os joios num roteiro de parábola, e a natureza selectiva impõe-se como uma medida justa e nunca fraccionária. Um dia outro virá, em que por méritos possamos sair da Roda, ficando nele e não mais esperar que nos tragam de novo a Primavera. “Par délicatesse j´ai perdue ma vie”. Outubro de Rimbaud que o viu nascer e nos lembra como é raro perder assim. Os que ganham andam demasiado ocupados para se darem conta das capacidades dos vencidos, que mais que vencidos, são excluídos, até do fardo obsoleto das vitórias. Viver suspenso por cima da arbitrariedade dos que não têm tempo para delicadamente receber os dons de Outubro, que não é já um jovem Apolo nem um campeão das grandes maratonas, passar por ele como por um lago tão transparente que não o transformemos em espelho para a inércia de um desmedido amor próprio.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasArtaud [dropcap]F[/dropcap]alemos primeiro da loucura, esse imenso espectro que se abate nesta personalidade. Não sabemos se nasceu louco, mas que foi uma criança já de si marcada, foi-o: uma gaguez insidiosa, meningite, sonambulismo, e uma visceral antipatia pela cidade natal, Marselha. Era um ser profundamente esquisito, daqueles que só a raridade faz, as pessoas estranham, e tudo delas analisam ou julgam entender, mas que logo os subtrai a um mal muito maior que é o das suas próprias existências comuns. Artaud trazia a marca do génio, essa aflição tão ingrata para o próprio, como para aqueles que a temem com o ferrão da mórbida cobiça: para isso, vestiu-se aquele corpo enfermo de singulares disposições anatómicas que o tornaram fascinantemente repulsivo para alguns, hipnótico para outros, excepcional, sempre. Esta vida vai fazer o favor a si mesma de elevar bem alto a ruptura a tudo, com tudo, com todos. Uma vida em rota de colisão com as coisas se abre inteira para uma difícil e apaixonante marcha: é Artaud, o eterno Feiticeiro! Artaud está a fazer 123 anos de vida no dia 4 de Setembro, uma efeméride que não deve ser esquecida neste mundo de doentes mentais que baniu para sempre o louco, de tal forma que deles nada mais saiu que pestilência nervosa… “arvoradas” em Amazónias de chamas insidiosas (aquilo não é um fogo, é uma fornalha a céu aberto que cobre de negritude os narizes de todos nós já de si bastante chamuscados) pertenceu ao Surrealismo, mas foi expulso por não querer a pés juntos politizar-se : “Que tenho eu a ver com todas as Revoluções do mundo, se sei permanecer eternamente doloroso e miserável, no seio do meu próprio ossário?”, e com toda esta recusa encontra-se no manicómio. Os amigos, esses, seguem os seus emblemas, e sabemos bem o quão ocupados se encontram nas suas ditirâmbicas manobras para se prostrarem de ora avante diante do seu insuportável sofrimento, dele, como o de qualquer outro, os mesmos que já lhe tinham sabotado algumas peças de teatro. É a editora Gallimard que tutela a sua obra, e foi ela mesma a recusar-lhe poemas recomendando-lhe uma conduta mais literária (seja lá o que isto quer dizer) e é desta ruptura onde não aceita qualquer tipo de dirigismo e galopa na radical manifestação de si mesmo em termos abissais, que nascerá em 1929 «A Arte e a Morte». Todas as formas de entendimento estão agora vedadas a este alguém que de raiva em raiva faz tremer de luz um esqueleto amaldiçoado. É uma obra memorável que dita o que um cérebro faz nas suas ligações extremas e violentas sem que tenha de pedir licença ou perdão para afirmar a trágica e obsoleta condição da vida. Ele desejou escrever a sua história com sangue, isso sabemo-lo, sobretudo enquanto dramaturgo, desejou que a exigência poética de que era portador não fosse interpretada por reducionismos de pareceres psiquiátricos, desejou duplicar-se quase metafisicamente muito para além da palavra que todos esperam. Ele criou a sua própria condição electrizante e ao subir ao palco, era o triunfador, todo o espectáculo. A sua miséria era uma ave de grandes penas e ele a flama de um bem único capaz de fulminar incautos. «O Teatro e o seu Duplo» é a escola de teatro de todo o século vinte. Artaud era incansável mesmo na insanidade e na desdita de uma vida que desejou que fosse gritada, e mais, escutada, e mesmo assim é ele quem rejeita a supremacia da palavra do chamado teatro digestivo. A arte é para ele como a morte, uma forma de reencontrar os pedaços estilhaçados de um corpo cuja combustão acelerava a sua própria tragédia, um pânico florescente que não cabia em nenhuma linguagem usada, vista, escutada ou composta, e é quando fala que ficamos agarrados a um feitiço qualquer que não podemos mais interromper. O que diz? Muita coisa, é um solavanco errático de esgares e sons onde se denota algumas palavras que pensamos conhecer e mesmo que não entendamos o propósito sabemos que o nosso cérebro abriu corredores muito fundos onde foi buscar um antigo xamã. Se o olharmos em simultâneo ficamos paralisados. Nós precisamos destas pessoas como de um bem maior, do seu sacrifício, da sua inteligência, da sua estranheza, da sua incontornável loucura de que estamos impedidos, do seu trabalho contínuo, audaz, perspicaz como única salvação para conseguir estar vivo, vida que se interrompe cedo, nesta caso, aos 52 anos, agarrado a um sapato. – Dirão: a arte performativa de Artaud! Mas não creio que qualquer intenção parecida lhe ocorresse nesse instante, morremos agarrados àquilo que temos à mão. …naquele ponto subtil onde o olhar da consciência projecta sem se perder um extremo fogo, lá onde o nervo se desprende enfim do pensamento a repousar sabe Deus em que estratificações astrais, jaz a MORTE como derradeiro sobressalto de um saber cheio de transes mas SUSPENSO Sem dúvida ainda uma obra de Arte. A Morte continua e a Arte é a sua versão mais completa. A Humanidade em suspenso aguarda os seus Avatares, ela terá que os escutar. Talvez entenda mais sobre si mesma e dispa a audácia de uma monótona vida que a todos igualou até à frouxidão. Valerá a pena dar-lhe os Parabéns. Já foi Setembro.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDas coisas começadas [dropcap]A[/dropcap] matéria de que somos feitos é um defeito. A matéria é um animal que mal sustenta os seus cascos. Poder do Demo quando bem empregue, bom, ao lado das coisas que são sombras. Quando a torturamos mais do que pode suportar somos possuídos por trevas sem fim. O Demo em nós é por vezes o único amigo quando bem compreendido. Tenhamos também por ele compaixão, é que neste chão um secreto amor lhe foi também preciso. O nada disto entender é ser esquecido. Pois que Demo e esta matéria já não são os mesmos, somos então um novo crescendo. A anima que aguenta e levanta a forma pesada, também muda, e volta sem nada. Há simulacros ditando os nortes vários mas a vitória é virá-los. Não são demónios, são anjos, caídos na robustez, nós vemo-los por vezes passar sem lhes descobrirmos a tez. Podem ser belos também – Lúcifer em vaga e lava- e podem ser feros sem ver onde projectam a alma. Nós já fomos os vulcanos das terras de todos os amos, e tentamos, tentamos, esconjurar esses danos. Toda a matéria flutua no vazo híbrido das coisas, e coisa sem forma é sentida como o marulhar dos tormentos. Se com eles se fizerem os assentos, e com os marulhares os incêndios, perderemos de vez o entendimento de quem nos fere no tempo. Deus emigrou e está no alto do planisfério, por vezes sentimos que dorme do lado de lá do Universo, e que em poema nos dá o luto para cobrirmos as lendas. Mata um samurai, e sai. Depois vem peregrino, e Demo e Deus vão sozinhos na construção dos acasos. Redobram de forças quando as nossas já falecem, e se lhe sentirmos as sebes transportamos nós as vestes, que ventos, degelos, e fogo, terão um dia o encontro dos encantos que nos despem. Lúcifer, o que fere e cura, que luz e fera em si mesmo se procura; vem! Hoje de negro cobalto, negros de luz e olfacto, vem a este teu Fado. Somos o vaguear de uma coluna de fogo, somos milhões e não parece haver de novo o novo que será o seu maior evento. Cobrindo então de cinzento a Terra inteira vestido de vento, vem do lado de todo o firmamento. Que se perde na noite longa da Fogueira. Depois disto tudo que vislumbrámos nas acácias do Verão, os solos viram-se então… Já são tectos glaciares e vozes vêm dos mares- náufragos da terra perdida- pois vós ireis avançar: Quem nos segue está escondido! Manchas e sulfatos de cobre despem as ilhas do meio, e sem medo marinheiro, rema para lá. Os dias vão ficar na nuvem e só haverá sol para além da bruma… Dias sem sol e sons de fora fazem no painel da Hora um recanto de silêncio. A bolha de cristal de fios de tule e vagas imperiosas vagueia entre todas as terras povoadas. Com receios de auroras e já sem Demo nem Deus, encobertos p´la. fuligem, as nossas vidas que passam são a suspeita de que ficámos sós na parte sagrada que não nos dirá mais nada. Vamos percorrer esta estrada, para quem nos encontrar seremos um quase nada, materializados nas Sombras que se arquearam em dobras… O nosso tempo vai-se embora! O tempo já não está. Feridos de tempo e sem Deus, a vida prosseguirá, não encontrando seu Demo que nos fizera companhia nos tempos da longa vigília. Derrete Inferno de esmalte, contorce-te em tua sina de fera gleba sem guia, e senta-te a contar as estrelas. Não haverá grutas, nem saudades de fazê-las. Há lilases, flores que irás refloresce-las para os olhos nascerem nas órbitas do velho iceberg que no olho da cratera será o ciclope que te vela. Teremos saudades de ti, um dia que a saudade venha, mas de ti não quero que tenhas a vida que aqui nasceu. Voamos, somos mais anjos, soltos somos melhorados, e todos seremos enfim, o maior acto sonhado de quem ainda segue e ri na vaga definição deste ocaso. São satélites de vida todos guardados nesses dias, podem cair, desdobrar-se, tudo a sonda sondará, e quem já foi encontrado pode sair por esse lado de lá. Quem não for encontrado é porque não estava marcado, marcas que o Demo nos dá. Corre outra essência, rios mais fundos, pois que vai e reencontra, são estes os desígnios dos mundos. Está prostrada a matéria e as fomes foram vencidas, e há alimento que sobra desses manjares da antiga vida. Comem-se os elementos brandamente numa outra Era- Estação… quando o tempo voltar e a voz recomeçar, talvez a mesma do Verbo Inaugural, que carne e verbo foram semente de todas as formas do mal. Quando estivermos distantes mesmo assim teremos lembranças, das núpcias que fizeram as belas alianças e alcançaram o dom da forma perfeita, que um Homem, mesmo derrotado, é saudade que nunca será desfeita. Está vento, calor, derretimento, fogo, e muito lento o vapor. Está um sabre junto a esta encruzilhada que guia os passos proscritos e todas as naturezas mortas das mesas dos aflitos. O necrófilo emanado do seu estado vegetativo engoliu as coisas, está exangue. É tempo de partir de forma conseguida, que a fome não se sente, e o quebrar das coisas enfeita os graus da consciência. A eternidade não pode mais com o ciclo que sucumbe e tenta virar a noção do espaço que ocupa, nós já não somos iguais, e onde não há igualdade são duros os sinais. Acabo aqui. Vim para ficar e desobedeci. Também aqui, não quero estar. Duro trabalho foi este do retorno ao lar. E um Ámen se escutou na Galáxia muito para além dos sois e seus planetas habitados. Tudo se transfigurou. E na senda, fomos mudados.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO amor leva-nos para casa «Se um homem pobre vem pedir-te ajuda de manhã, ajuda-o. Se ele voltar à noite, ajuda-o de novo» ( comentário sobre o Génesis ) [dropcap]A[/dropcap]credito que as nossas acções possam voltar um dia em pura sensação banidas que sejam as imagens, numa outra forma e num outro “olhar” pois se nada fica ocluso, nada ficará também por experienciar no tecido das coisas e das suas intenções – e se o tal dia amanhecer cruel, ainda assim, nos recordaremos que a proposta foi de novo regressar a Casa. Toda esta distância feita abismo de que se ocupam as gentes por manter de forma sitiada, é feita com muitos batendo à porta, e com outros tantos que o acaso faz brilhar pelo enigma das direcções felizes. Por vezes estamos exaustos, nada parece sobrar de nós que se possa doar ou mesmo partilhar, um sacrifício continuado quantas vezes nos impede de dormir, pois que noites há em que nos sentimos culpados e pequenos diante de nós mesmos. São os chamados pesadelos, essa decrescente massa sem visões salvíficas, são medos, são dolos… Um labirinto esmaltado é a Cidade, a pedra é dura, e dura a cidade na pedra em nossa fixação e nela há sempre mendigos – passam como sombras entre nós que andamos circulando e temos pena de não lhe darmos mais – sentimos que nem sempre são pessoas tristes, mas abandonadas e errantes que querem coisas… … talvez pequenas atenções como falar para não perderem a memória dos seus próprios sons, e comer, porque a fome só é perigosa para além daquele estado em que já não se sente. Vamos compreendendo que nunca são os mesmos, que a vida os abate em ciclo estreito e outros lhes seguem sonâmbulos nos mesmos locais onde deambularam, só nós somos os mesmos, os que vivem melhor e mais anos. Nós os que passam com intenção pelos locais, e sem fome, vemos o que se passa: «Não desdenhes de nenhum homem e não desprezes nenhuma coisa, porque não há homem que não tenha a sua hora e não há coisa que não tenha o seu lugar». Nesta vida temos ímpetos para fabricar comportamentos sem brio de selectiva obscuridade, e fazemo-lo com a certeza de uma superior condição que muito prejudica o bem de todos, essa matéria testada e destacada não deixa de ser por si uma forma de miséria e cresce sempre que a desprotecção social avança, nestes tempos, erguido o nosso olhar, vemos a crescente cauda daquilo de que a nossa Humanidade se envergonha e que por razões aleatórias e alienadas não são observadas com respeito e sustentabilidade, ainda nos vem a reserva do bicho que somos: se a vida não dá para todos, que se fique então com a maior e melhor parte, uma natureza fétida que oprime e castiga, pois que a sabemos distante dessa indelével marcha do regresso – o inviolável centro – onde iremos por alas, e pode ser que à espera das almas não lustrais esteja a máscara dos actos destas coisas tão terrenas, onde a Casa fechará as suas portas aos que habitaram a Terra sem a memória de uma lembrança sagrada. Se o amor partilhado foi esquecido, se aqueles que nos deixam prosseguem, se todo o abandono pode ser uma emboscada, é então necessário saber que dessas coisas já não precisamos e sem necessidade delas somos naturalmente mais livres, mas também mais vulneráveis, devendo então aparecer somente para a justiça breve daquilo que deverá ser acertado. Seria muito bom para alguns, outros não existirem, e esse medo das suas existências, traz-lhes a ruína da alma que agitada se move para o seu precipício. Criam os espectros que os atacarão mais tarde, depois não sossegam, têm vozes agrestes, dormem em sobressalto, carregam negrumes, inventam os danos, uma auto- sabotagem pois que todo o sobrevivente a si mesmo é uma forma batida sem correspondência com algum grito de salvação. Deles já não se abeiram os anjos para as ceias, esses momentos onde as horas são o legado da festa, que é o tempo dos amantes, e os cálices não se elevam amantíssimos na rota do entendimento. A morte vem-nos buscar um dia de forma tão normal como foi a vida gratuita ao ter-nos alcançado, e aí, o terminus ditar-nos-á a estrada do retorno, ou não. Ficar enjaulado de novo na batráquia origem do verme equilibrista é a maior derrota que se pode infligir a si mesmo. Temos de saber que a vida conspira para nos ajudar, em cada dia isso acontece, em cada instante vemos a sua grande causa, em nenhum momento ela nos deixou a sós. Como não ver isto, pode ser ainda a treva atravessando o horizonte da alma dos Homens. E quando nos abalroa e destitui, faz ainda um trabalho de reconhecimento que devemos aproveitar como lição. Afinal, queremos apenas, e de novo, o Amor ( esse bem sadio que a doença de ser entristeceu) e a Casa de antanho onde deixámos intacta a forma eleita de cada um dos nossos destinos. Para os que pedem, façam-no em segurança, pois serão saciados. Para os mendigos, o nosso Amor primeiro para que assim sejam salvos das garras da indiferença e da humilhação. As coisas mais bonitas, essas, ficarão sempre por contar, mas nem por isso deixarão de ser registadas como um legado de manifestações transversais de uma profunda compaixão por tudo o que vive. No emaranhado das intenções as coisas sonegam-se e nem sempre já existe entendimento para a gravidade dos factos mencionados, mas é preciso chegar como se chega a Casa, descalçar os sapatos, abraçar alguém, dormir, e saber que partindo disto tudo, iremos continuar. Que sejam então belos os caminhos. A caridade é maior do que os sacrifícios oferecidos no altar, mas a bondade é ainda maior do que a caridade. Rabi Nahman de Bratislava
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasIlusão [dropcap]M[/dropcap]aya é como as fundas Primaveras que nos agarra aos sentidos que reféns querem toda a manifestação das fomes trazidas, não por acaso Maio se nos dá em festa e das Maias são feitas as belas grinaldas das flores da Estação. Trazemos sentidos para as cores, imagens, cheiros e miragens, e nelas firmamos verdades que nos parecem eternas, como o germinar e o florir antes que se esgote o tempo de tão fecundo estar. Há quem se entranhe no mundo e mais não veja que o ciclo das coisas que o anima, são por si só os grandes animados, os soberbos animistas, as forças elementares em círculo nas fontes do desejo e na miragem da necessidade perpétua. Mas valerá ressalvar os diálogos perdidos que o prólogo de «Eclesiastes» 1, capítulo 2, traz a esta janela: “ilusão das ilusões: tudo é ilusão” que em latim é conhecida por :” vanitas, vanitatum et omnia vanitas”: mudada para vaidade, mas sinónima. Todo o capítulo nos fala então do espectro ilusório e, se a abordagem não é simples devido ao carácter compósito da obra, ela abre o princípio da interrogação que torna um texto litúrgico muito rico e até diferente daquilo que estamos habituados, as reflexões mantém-se no trilho de uma autoanálise que se aproxima do ciclo poético da intervenção, em algumas passagens vamos encontrar a Roda como ciclo do eterno retorno, noutras, a dúvida acerca das realizações humanas e tudo o que isso significa, até essa natureza criada da imagem que em nós projecta a miragem das coisas e do mundo. Fala-nos ainda do tempo das coisas sem nenhum juízo de valor incluído, e em toda essa maravilha vemos que uma vida que se quer conseguida terá necessariamente de as abranger, é um mantra ritual do conhecimento humano talhado apenas para ser. – Alude ao que ilude a resposta vã – nós que somos iludidos sempre que nos queremos mais velozes nem por isso estamos preparados para acarretar a desmesura dos erros nem conseguimos tirar as ideias feitas dos grandes observadores que somos que dizem coisas sem reconhecer quem as faz, ou quem as disse, ou porque foram ditas, e assim, na rigidez mental de uma forma de agir construímos imagens, conceitos e ideias que só a quimera mais terrível sabe fabricar. Dessas assombrações fazemos realidades, verdades, construímos conceitos, forjamos a moral, mas, o ser de que se fala, a coisa falada é até que aflore a bocas assim um completo desconhecido, somos vítimas da linguagem como submissos imprudentes, e dela não merecemos mais que a crítica constante e muitas vezes pertinaz. Se de ilusão o nosso tecido mental é feito, ela protege-nos todavia de realidades terríveis e assombrosos vislumbres de impossíveis. Morreríamos de dor ao não conseguir recorrer a uma galopante abstracção que nos desviasse das fronteiras cerradas da condição, mas não será bom derrubar as formas graves que subjazem a toda ela, não para a negar, mas para nos fazer mais conscientes da felicidade breve e do bem que é sentirmos que a conquistamos: como o livro dos amantes que diz que o ser amado primeiro se possuí e só depois se conquista. O erro de percepção é lúdico para com os nossos sentidos, a Nuvem por Juno é isso mesmo e, no entanto, cognitivamente, estamos talhados para o ilusório que fabrica assim todo o espaço do pensamento, e houve alguém que pensando, era aí que existia. O mundo tangível não dá nada aos que criam – recriando – mas as coisas criadas outros as completarão, e quem faz, quem dita e redita nele tudo quanto nele é capaz? Aqui, ficamos estoicos, mas isso abranda o uso costumeiro da análise e a ilusão é posta a irromper noutras vertentes. « Põe então tua mão sobre o meu cabelo, tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo». A ideia de Deus surge no livro como um ente desconhecido, infalível, e que premeditou a causa de toda a dúvida, será sempre mencionado como a força que nos impele a descobrir, não dita, é ditado, e essa natureza cria então um campo imenso de dura solidão na medida em que se ela nos faltar nem a nossa sombra existe no meio do invólucro que somos. Mais que ilusória se torna por isso a sua ausência em nós. Para caminhos diferentes a mesma finitude, a mesma conclusão: quem distingue o que está certo neste mundo? E se a ilusão está presa aos sentidos, sem eles, que outra ilusão nos colheria? Os poetas respondem bem ao improvável, talvez na sombra de outras naturezas e assombrados de lucidez, se mantenham estáticos nalgum lugar que esqueceram os seres: “….nada em mim é risonho, quero-te para sonho, não para te amar. Os meus desejos são cansaços nem quero ter nos braços meu sonho do teu ser.” Aquilo que é já existiu, e também o que há-de ser já antes foi. Deus só vai à procura daquilo que não se encontrou.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSaint-John Perse [dropcap]F[/dropcap]oi precisamente em Pau que tive conhecimento da sua poesia vai para muitos anos. John Perse frequentou o liceu da cidade, porque veio com os seus pais ainda pequeno de Guadalupe, onde nascera em 1887. Hoje há um liceu que tem o seu nome, e diz quem sabe, um distinto lugar de ensino. Chegou com doze anos e aí se manteve até ir para Bordéus para a Universidade de Direito, regressando a Pau para o serviço militar mas, como todos os habitantes das ex-colónias, o seu sentimento de expatriado fê-lo aventureiro, audaz na esgrima e no velejar, por que sem dúvida a vida nessas terras distantes teria para uma criança um brilho e liberdade que marcam sempre uma mente em formação. E vamos ao que dele interessa para além de muitos outros méritos que lhe foram reconhecidos, como a de uma brilhante carreira diplomática, à sua poesia, onde chega a receber um Prémio Nobel em 1960. Muito cedo toma contacto com o meio literário, conhece Francis Jammes, Paul Claudel e André Gide, e é exactamente Gide que lhe faculta a publicação dos primeiros poemas. O seu primeiro livro saiu em 1911 com o título de «Éloges». É conhecida a dificuldade de acesso ao seu vocabulário, estamos nos avanços da Modernidade e ele imprime aspectos arcaicos à linguagem poética, o que faz que André Breton o apelide de um “surrealista à distância”. Este primeiro livro tem ainda aspectos simbolistas, em «Anabase», no entanto, ele está pronto para um reconhecimento que em tom declamatório fará a bela rapsódia do seu estilo fundamental. É uma obra de coerência e grande riqueza estilística em que uma análise semântica mais apurada fundamentará como uma unidade brilhante, dado que as imagens são muito fortes e nem sempre fáceis de manejar com recurso a linguagem descritiva. Nesta linguagem rara, os elementos tomam assento como se convidados pela exaltação das suas presenças em nós estando muito perto de um tributo às fontes inaugurais. Referi «Anabase» dado que foi a primeira edição em língua portuguesa em 1961 pela Guimarães Editora, e bem poucas mais se lhe seguiram, é certo, pois que há poesia que não é de transporte fácil e contorno mediático, o que não nos importa absolutamente nada uma vez que a qualidade dela relevará certamente muito mais que toda a forma de popularidade que será sempre de desconfiar em termos gerais. De mencionar que entre 1916 e 1921 enquanto diplomata no Ministério dos Negócios Estrangeiros se encontra na China onde muito provavelmente escrevera « Anabase» que seria mais tarde publicado pela Gallimard. Nesta sua actividade política, foi castigado pelo Governo de Vichy que lhe retira a nacionalidade tendo que se exilar nos Estados Unidos. Publica então« Exílio», «Chuvas» e «Poema a uma estrangeira». Em 1954 o mesmo «Anabase» foi musicado por Alan Hovhannes um compositor americano. Aqui vamos encontrar o poema em prosa quando a prosa consegue falar assim todos os poemas e continuar prosando como o mais difícil e memorável acto de escrita poética. É impressionantemente solitária, e a solidão tem uma voz desértica de finas areias, é como se a novidade trouxe-se outras lembranças mais velhas assim de incomparável “l´éternité qui baîlle sur les sables”. O poder de recriar através da língua será composto por uma nova linguagem cujo mérito pertence inteiro a uma rara capacidade, e é na poesia que ela pode atingir a reserva e a distância na forma inventada que a incita a outra coisa que nunca fora experienciada. A estranheza deve-lhe ser subjacente, pois que na marcha atingirá um nível de beleza que de tão inusitado nos ajuda a experienciá-la como manifestação maior. Mas, e depois de muito esforço, quem pode ou deve julgar o domínio de uma língua que arrasta na sua composição a natureza do seu próprio mistério? Todos aqueles para quem a linguagem é um dom subtil e preciso que não tolera o escavar da sua própria métrica. O tratamento da linguagem forma-se com o rigor de um pensamento bem estruturado, que não pensando se escreve com a confiança das várias partes que se juntam ao processo. Perse, não quis misturar a carreira e a poesia, pondo-lhe mesmo fim durante uma época da sua carreira diplomática, o que é entendível, pois nestas coisas não devemos acumular nem facilitar. Esta sua lucidez só pode ser coroada com algo de muito bom que é este bem de sabê-la pensada assim. Saint-John Perse e também Saint-Leger Leger, eram afinal pseudónimos de Alex Leger, o tal menino nascido a 31 de Maio de 1887, e não fosse esta actividade a de um neófito, e os nomes naturais manter-se-iam como um incidente de percurso da estrada da vida, e muito bem, pois que aqui se é outro na continuidade de cada um. O poeta é filho de si mesmo e tem o nome que entender quando outro tipo de natureza nele se manifesta. Não se tratará de pura originalidade, mas de uma assinatura que deu as páginas mais relevantes da poesia francesa do século vinte.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasPoiesis [dropcap]C[/dropcap]he cos´è la poesia? Vem de um outro lugar, recria tudo, e liberta-se das cintilações e daquilo que para fora sujeita a esfera que o toma – ” ele ocorre então, no essencial, sem actividade, sem trabalho, no mais sóbrio pathos, estranho a qualquer produção, sobretudo a criação”. Do poema falamos, e o nosso braço vai buscar ainda a antiga asa dos pássaros lembrando que os braços vieram delas e que delas ainda há que dar testemunho. Não vem contar nada, a narrativa escasseia num grande poema, mas abundam estranhezas várias, as suas demonstrações e toda a composição verbal parte ao serviço de um dom absolutamente esquecido do antes da palavra, daí, o ser tão avassalador por vezes a leitura de um poema, onde regra geral, também não devemos em posição de choque perguntar nada, a não ser deixar-nos penetrar de modo desconhecido por esse corpo vivo que nasceu imerso em enigma. O que o separa do acto discursivo é ainda o saber escutar a antiga onomatopeia a que o cérebro acede como um animal que bebe numa fonte granítica as águas da infiltração, e, em magma inteligível, o poema fala. As ligações estão feitas, só falta deixar correr, e aos que não têm sede poder-se-ão saciar com licores, o poema não o carregamos nem deseja que o surpreendam, a manifestação acontece dado que se recria partindo de um ponto remoto ao movimento que o faz soltar-se da nossa mão, o fazedor nunca será o gerador do significado, mas aquele que o exercita, distanciando-se da natureza próxima para recriar aléns. Acrescentar, continuar o que não foi testado, é esta a base da sua origem semântica e do seu grande impulso vital, e neste processo, remontar a uma pré-articulação seria uma forma de amputar aquilo que só ele diz sem que tenhamos de o pensar. Assinamos um poema e foi ele que nos sinalizou, ele merece não ser do artesão, e não ser andor para a festa das “criatividades” falamos de uma estrutura mais ambivalente se assim se pode chamar, e bem mais complexa que o simples desejo de termos feito o poema que projectámos. Ainda fazemos muito pouco face a este fenómeno que nos faz, e por nós passa sem que carregue a nossa desconhecida causa. Por outro lado, não o podemos transgredir na medida que a norma não a sentimos presente, de tão longe as correspondências atravessam socalcos para alinharem na memória, que pode produzir por si só uma nova ordem recriando-se do caos das intenções, dedicar poemas é por isso um artefacto que não assenta na vertente mais elaborada deste registo, pois que atravessa na dedicatória um esforço para ir em direção a algo ou a alguma coisa ou a alguém, que nos obriga a um desvio e a procurar outro suporte, porventura belo e muito bem escrito, mas, que certamente retirou pelo dirigismo intencional a sua função primeira. Deixemo-lo, ele fará o seu percurso, muitas das vezes nem o queremos ver, por vezes a sua pegada em nós pode levar-nos à prostração – os alinhamentos sangram – ( Poieses também é um termo biológico para designar as células do sangue) e toda esta atmosfera não se vive como se estivéssemos numa luta de razão-acção- emoção, pode não se passar nada disto, pode apenas seguir-se o trilho, e se tocar num ponto brilhante sabemos da torrente fresca em nosso redor, que nos alivia e aligeira como se a acção tivesse produzido uma vida nova e diante de um primeiro idílio despontássemos. Os sistemas têm contudo a capacidade de se recriarem, ou criar algo bem diferente de si, e ao juntarmos tais “metabolismos” enquanto artesãos entramos sem dúvida num grau de consciência bastante mais aperfeiçoado. Sistemas existem que não possuem limites ou tempos autodefinidos, talvez se multipliquem indiscriminadamente repetindo a mesma fórmula, o que ocorre dizer da doença oncológico que ao não recriar se esgota no seu próprio efeito de repetição, e talvez, numa época tão incrivelmente e mentalmente não “meta-poética” a epidemia mundial seja mesmo o cancro . Um sistema calcinado de circulação fechada que se reproduz sem capacidade moderadora, e, portanto, imprópria para gerar vida nova, vítima de um processo de auto- semelhança onde a única coisa a nascer foi a teoria do caos. Poiesis significa “fazer” um termo grego, daí o poeta ser o fazedor por excelência. O fazedor é o amador, aquele que se irá transformar pouco a pouco na coisa amada, com o decorrer do tempo o amor bebe-se em cálices onde um cérebro cabe inteiro fazendo conexões transformáveis, e talvez se sinta que amplie e que lá bem por dentro esteja a molécula de Deus de onde todos os poemas nascem. Mas, ele não faz ligações à fronte projectada, mas sim aos que começam imperceptivalmente a tomar-lhe o pulso, e que sabem agora que o poema não nasce assim, e que se há esse encanto, por vezes até escarninho face a essa identidade tão rara, é porque sabem as gentes que sabem bem mais do que podem, ou para si mesmo admitem. O dom do poema não cita nada, não tem nenhum título, não faz mais histrionices, ele, sobrevém sem que tu o esperes, cortando o fôlego, cortando com a poesia discursiva e sobretudo literária. Nas próprias cinzas desta genealogia. Não a fénix, não a águia, o ouriço, muito baixo, bem baixo, próximo da terra. Nem sublime, nem incorpóreo, talvez angélico, temporariamente.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasGiacomo Leopardi [dropcap]E[/dropcap]steve uma imensa Lua-Cheia, a última da Primavera, e o tempo é vertical nestes momentos e quase sempre estamos mais perto do espaço sideral; subitamente recordo-me como ela será no deserto e vejo então o «Pastor errante da Ásia» esse canto noturno de Leopardi! Nada nos traz mais viva a Galáxia que um poema destes, nem as sombras da noite nos cansam a marcha, nem a Lua nos entontece, há aqui um caminho de estrelas a seguir, que todas elas e a Lua nos oferecem rotas prodigiosas. Parece que se passa lá para o Médio Oriente, entre a terra do Sião e a Pérsia, é certamente próximo destes territórios, onde iria ele buscar os rebanhos e a contemplação de uma noite assim? – «… tu sabes, por certo, a que doce amor sorria a Primavera/ mil coisas tu sabes, mil coisas descobres, que ficam ocultas ao simples pastor…/ que quer dizer esta imensa solidão? E eu, quem sou?». Leopardi foi um dos maiores poetas italianos do século XIX, romântico, central na cultura literária do seu tempo, a sua curta vida pareceu não ser um acaso feliz já que Leopardi de saúde frágil se tornou um enclausurado, nesta clausura teve mestres eclesiásticos dado a severa rigidez moral de uma família cuja mãe funcionava como o maior “aperto” para a cura. Nobre por nascimento, tinha na biblioteca paterna o único refugio e talvez a forma de pastorear o seu rebanho debaixo de uma Lua imaginária do tamanho da sua própria solidão. Era um classicista, um homem cheio de Mediterrânio; traduz Homero, é um pensador notável, um ensaísta brilhante e filólogo, mas é na poesia que recorre à sua possível libertação de homem condenado. Ela ser-lhe-á vital para prolongar os dias da sua vida. O Iluminismo dá-lhe também alento de prosseguir na demanda de um pensamento, não só absolutamente bem estruturado, como libertador. Se nos detivermos na sua vida pouco fértil em movimento, vamos paradoxalmente achar nela um homem de visão cosmológica impressionante, como se na quietude observa-se de um ponto remoto o Universo, e poemas como «Infinito» estão plasmados no seu interior por janelas que contemplam a distância, e também esse pensamento, essa forma de sentir em meditação lhe conferem ampla beleza e acentuada lucidez. É um poema sublime! Projecta-se em grandes interrogações filosóficas e quase temos um taumaturgo que a partir de bases precárias indaga as suas desconhecidas sugestões como um enamorado face à maravilha da possível existência do amor. Leopardi, também aqui não foi feliz! Experiências dolorosas o deixam ainda mais à beira da fadiga e quase disfere um golpe cínico e fatal em « Aspasia» uma espécie de vingança, uma luta que trava no seu interior, este homem, que afinal tinha um coração imenso que batera toda a vida, fá-lo parar, sem antes dizer que era a única beleza do mundo, mundo que devia ser pequeno, a ver pela amplitude de como falava da imensidão. Leopardi morreu por esta altura de Junho, quem sabe se na última Lua-Cheia da Primavera, e é dos tais poetas que estão escondidos nas nebulosas dos nossos sonhos, mas que não podemos passar sem eles, estava a trabalhar em « Moralidade Operette» reunido em «Pensamentos» e em tom satírico e irónico o seu género poético exigiu aqui o abandono do estilo lírico adoptando um ritmo narrativo mais crítico face ao pensamento contemporâneo, as questões sociais nunca foram deixadas de fora na sua inquietação, mas, sem dúvida que as analisava também a partir da infeliz experiência da sua própria vida. A sua força foi imensa, e só para o fim se lhe apodera um estado de espírito céptico para o qual a sua transbordante natureza de poeta não conseguiu lidar com governação e esperança renovada. Tinha trinta e nove anos durante uma epidemia de cólera e a sua saúde sempre frágil não resistiu. Talvez se o tivessem amado…Mas os poetas não são para amar. Quem lhes dera serem compreendidos e ternamente suportados por um sincero carinho de alguém. Não sendo o caso, a morte, que tanto desejou, deve-lhe ter parecido abençoada. A Terra é local maravilhoso para se erigirem templos de fogo! E ainda a Lua, a sua Lua de pastor: Isto eu conheço: que estas eternas caminhadas do meu frágil ser, algum bem ou contentamento outros terão…. para mim a vida é mal. Mil coisas tu sabes que ficam ocultas a um simples pastor…. As noites de Lua-Cheia das últimas Primaveras. Leopardi é um nome também inesquecível, é como o silêncio, tem a fome e a beleza nas vogais… vagueia só pelas savanas e a morte ronda-lhe o corpo alto como um anel de vento. Esquelético e vertiginoso, esquece a sua demanda osmótica na paisagem, e salta para a vida como uma última fronteira.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasUma estátua para Herodes [dropcap]É[/dropcap] este o título de um livro de Natália Correia de interesse maior e de polémica interpretação pelo conteúdo da matéria de facto (expressão jurídica que todos os dias escutamos num país que se intumesceu de banditismo económico e social) nem sempre é rigoroso, mas isso, é a imperativa vontade da autora que não sacrifica o génio de se fazer compreender apenas e não somente por métodos estilísticos que certamente tirariam peso ao suporte da mensagem que deseja passar. É esta economia muito imprópria aos tempos que correm pois que certas temáticas ao serem desbravadas por longos e enfadonhos sistemas discursivos tirariam o grau de choque que será sempre necessário nos grandes alertas. Sabemos todos do elevado grau de criancismo imposto e das muitas e artificiais aberrações que laudatoriamente vão passando como salvíficas diante das mentes tenras em formação e da profunda inoperância para fazer sentir que a protecção é um valor que se dá como um dever sem discussão possível, que as crianças, elas mesmas, gostam de sistemas firmes, até para poderem exercitar os limites da sua natureza de seres em crescimento. Isto que parece pouco, tem sido superiormente ignorado na manobra dos seus “interesses” retirando uma grande autonomia e agravando cada vez mais uma demarcação sadia entre elas e nós. As pobres crianças andam de local para local, de conversas para moral num grande tráfico experimental para resultados fictícios, e não fora a molesta forma de ensino um álibi a mais para a execução de entes retardados, estaríamos face a elas enquanto seres pensantes com uma muito provável falta de consideração por esse dom tão genuíno que é o de terem grandes recursos. Creio que neste grande afã do “menorizamento” do adulto, elas crescem com hiatos profundos entre aquilo que cada um deve ser. E, sem dúvida, que psicanalisar crianças é uma tarefa imprópria para a saúde e a motivação onírica das mesmas. Fala-nos a autora em linguagem admirável da conduta e da transmissão de pai para filho, dando-nos uma visão desse laço estranho e das consequências sociais firmadas no mais labiríntico da consciência, fala-nos das três idades: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo (substituindo este por o da Mãe) com sinalética muito demarcada para as religiões abraâmicas, neste discurso, reparamos num adulto com uma juventude que se prolonga em menorização infantilista, e segue depois para obliterar toda essa sagacidade da criança em formação, um problema embrionário que mau grado as Eras parece não ser solucionado, tomando apenas aspectos diferentes. «Desfalcado o ser da imagem do Pai que ministrava o logos e sem o apoio efectivo da Mãe que dá o amor, perdido no labirinto angustiante deste abandono, entrega-se às façanhas da sua irracionalidade.» Talvez que crescer tenha pilares que implementem na consciência uma unidade sem a qual não seja possível realizar o aperfeiçoamento de um ente que se deseja autónomo, e que o labor da luta progenitora tenha amarfanhado a criança por uma manobra indelicada causando-lhe estranhas ameaças que o futuro se encarregará de revelar. Adaptam-se para sobreviver, e parecendo protegidas nem sempre o estão nas áreas que mais importam. Ao capítulo intitulado «Os semeadores dos ventres» é da própria História que se fala, nas ferramentas que tornaram possível assegurar a legitimidade da progenitura, a força motriz da polaridade pai/ filho uma das características do projecto da transmissão para conseguir o maior número de prole que assegurem ao mais parecido o legado do pai, até ao movimento de rejeição do “filho rebelde” cujo castigo do pai seria tão impiedoso como injustificável aos olhos da mãe. A corrente transmissora criava assim o pai que na sua soberania se juntava aos filhos como uma criança mais e que tinha como filiação a mulher que tomava por companheira. E deste diabolismo infantil dos cérebros inacabados que comandam as sociedades receamos que as mesmas soçobrem numa orgia de irracionalidade em multiplicação desordenada criando Pai e Filho as estruturas ideológicas do extermínio. «Em cada pai que se faz de urso para divertir um bebé há um déspota que se bestializa num quadrúpede para atrair a vida de que se quer apropriar». O experimentalismo indagador da educação posto ao serviço da mente infantilizada terá o seu cenário mais provável na barbárie próxima, mas se desvincularmos estes efeitos, um regresso bom às origens da Mãe, ou quiçá ao feto imaterial, poderá reverter o facto. Mãe essa que não precisa certificar-se de nada, mas necessita desvincular-se da labiríntica forma em que um jogo habilmente preparado a desintegrou para ser um brinquedo mais do infantilismo do Pai. Escusado será dizer que mencionar Herodes é de um extremo choque juvenil e, na impiedosa forma como desejou abolir um seu concorrente, temos o grau de irracionalidade que as rédeas do poder assumem para guardarem o seu lugar, mas, há também que saber esclarecer o nervosismo cingido ao novo código em mudança que deu origem a uma violenta irritação, passando a dualidade a projetar-se no Filho. E esta guerra mantida chega aos nossos dias que estranhamente prefere brincar a encarar a dura frente da já muito fétida projecção. Mas também creio que Herodes tinha vidência:” o mal será esse Cristo dizer «Deixai vir a mim as criancinhas». Ficará coberto de moscas e tomá-lo-ão por um cadáver. Tanto bastará para que se forme uma religião.” Mimos intoleráveis para as manifestas noções reinantes da criancice imposta. Fala-nos também da figura negra de um Hilter todo projectado na observância dos poderes mágicos característica da psicose criancista, contorcendo-se na violenta revolta contra o Pai e aplicando alarmantes resoluções (o ódio que as crianças sentem perante alguma coisa e que as predispõe mais ao extermínio do que a acções concertadas) reflecte-o assim como uma liquidação definitiva do Pai, essa pedra angular do monoteísmo judaico. Esta é uma obra que nunca será neutra em matéria de visão urgente, que afinal, só mesmo os poetas conseguem resgatar à suprema lucidez pela qual são conhecidos.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasEvocação … Não te aconselhes com loucos porque não sabem guardar segredo BEN-SIRA- versículo 17- capítulo 8 [dropcap]S[/dropcap]erá certamente um erro grosseiro o elo permanente com a narrativa alheia devido a tanto ditirambo, razões soltas (ao invés de um conjunto de factos que permita a justa visão) delírios interpretativos, e ainda a mordaça que desestabiliza a forma de olhar correctamente para as coisas, criando a dessacralização do que deve ficar entre pares. Ter direito aos segredos é um exercício de empatia que configura saúde e satisfação para as partes intervenientes que assim recriam uma brecha de paraíso inexpugnável. Evoquemos as naturezas obreiras que se satisfazem nos labores e se dão bem no seu secreto sigilo sem que para tanto necessitem do que de fora vem como justificação para sê-lo, quando isso corre bem, o mundo anda melhor, e quando os grupos sigilosos são grandes perde-se tal eficácia: os loucos o que são, afinal? Os que escusam a interpretação, os devoradores das realidades alheias que no vazio de uma vida insana são arautos de todas as formas de comunicação desregulada e fazem assim realidade a partir de dispositivos falaciosos e surpreendentemente alterados. A confiança é a base da Obra, onde ela não estiver pode haver retrocessos que são nocivos para todos, pois que muitos padecem do confiar como medida de eleição para fazer, e sempre que se deixa entrar essa cicatriz reducionista perdem os seres o vínculo de uma eleição. Não somos feitos de transparências, não nos inoculamos nas fímbrias de uma consciência maior, que é o ter deixado esta mesma consciência onde nada acontece de inovador a não ser a circunstância que a produz, que não sendo também ela inovadora, apenas nos parece nova pela diferença de contexto. Não somos ainda o rio de Heraclito, e destas águas se faz o hábito de se continuar louco. Os seres intermediários nem sempre se encontram junto a nós, e as nossas virtudes não chegam para amparo nas ondulosas vagas da caminhada, por isso, o dom da evocação deve saber estar presente quando queremos dar livre curso a essa arbitrariedade de que somos possuidores; talvez um mantra, uma oração, uma chamada, aligeire a nociva tendência para o naufrágio em série. Que toda a palavra é feita para criar um campo vibratório que se transforma em realidade, por isso, ela deve ser, não só a factualidade encontrada, como o comando imperativo da nossa vontade. Se o mundo fosse telepático, a linguagem não sonora retrataria ainda assim uma outra, que se faria entender num glossário alfabético de maior fascinação, impedindo a cadeia do desastre e repondo níveis de desordem com mais celeridade. Mas as Vozes estão sempre presentes na ressonância das ondas cerebrais de cada um. Do Deus manifestado ao audível vai uma marcha tão grande que se suspeita até nem ser o mesmo, do criado ao não gerado vai um abismo… A procura da energia da Criação não será a nossa barca de Caronte que só admitia nela quem lhe pagasse a passagem, nem se deseja ir ali com aqueles órfãos todos em modelo sombra – se na outra margem ainda os mandarem embora… – Por isso, evoquemos os mantras da libertação. Parece não haver mesmo nada de novo nas águas… e debaixo do céu também não. Lá navegam os que fogem e se metem de Inferno para Inferno em condições que fazem as trevas chorar. Levantam-se outras, que dizem: não passarão! As portas dos “paraísos” estão guardadas com seus anéis de fogo, e neste deambular as medidas tardam e nada se esclarece de muito mais a não ser o sabermos que os mitos têm razão e sabem falar de nós como se fôramos um programa tal, que nos abismamos. O impulso ficcionista por vezes impede a objetividade, e se não for tudo isto ficcional, então como chamar a uma armadilha que anda à solta fazendo-se passar por dinâmica tentativa de criar soluções? – Repete uma palavra cem vezes-! Depois, espera pela resposta que escutarás como um chamamento em forma de código, segreda-o a quem amas e não a discutas mais. Os segredos são grandes fórmulas sagradas e sem eles ficamos frágeis, mas nada em ti te impeça de agir, dizendo aquilo que a falta de coragem dos que apenas falam não consegue pronunciar. No meio disto saberemos que o sacrifício dos mais nobres é fonte a que sempre, em nossa incompletude, retornaremos.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDas memórias de Adriano [dropcap]M[/dropcap]emórias de Adriano» de Marguerite Yourcenar é um livro que foi quase uma instituição pública, porém, a direita europeia mais conservadora adopta para com a autora uma reverência estranha, incomum – não que não fosse digna dela, era-o – Yourcenar é um marco brilhante na literatura, mas este aspecto talvez extravase os domínios de uma elite mais apegada a leituras menos públicas. As Academias e as mais variadas instituições fizeram seguir debates permanentes, homenagens, simpósios, colóquios, de forma continuada e sistemática durante décadas. Mas vamos ao que interessa desta análise: Adriano. Foi Adriano o mais radical antissemita que apareceu na História. É certo que construiu Jerusalém, mas a que preço e a que pretexto é que não pode ser esquecido: começa por lhe mudar o nome rasurando assim a sua herança e, passando então a chamar-se Élia Capitolina, ergue templos a deuses e a Júpiter sobre as ruínas da cidade judaica, proíbe a circuncisão sob pena de morte, e limpa a Judeia do mapa chamando-lhe Palestina que designa inimigo de judeus, neste caso em filisteu. Os judeus, esses, esconderam-se nas grutas da Judeia e foram dizimados nas zonas rurais, e nem Tito chegou a tanto, nem mais ninguém, creio, depois de Hitler, não existiu mesmo alguma vez uma vontade tão forte e arrasadora. Dir-se-ia que Adriano pode ser considerado o primeiro exterminador, fazendo (pior que a morte) do Templo, altar para deuses pagãos. Ora que seja enaltecido, será certamente por outras qualidades em esfera ficcional mas, falando de Yourcenar, falamos também de rigor e intenção, pois que não foi um ser de plumas que alguma vez se deixasse atravessar pelo reflexo de si mesma e cuja metodologia seguia planos bem traçados. No entanto, Yourcenar nos próprios apontamentos justifica a existência dele e diz isto: «Este livro foi concebido, depois escrito, completamente ou em parte, sob diversas formas, entre 1924 e 1929. Todos esses manuscritos foram no entanto destruídos e mereciam sê-lo.» Não sei se era prática dela fazê-lo, mas fê-lo neste caso. Por quê e o que por fim aconteceu ? Nada sabemos. A liberdade de escrita é maior que os desígnios morais, mas há sempre uma moral que serve mais que outra, sempre disposta a colher das coisas tudo o que delas interesse. De forma bastante subliminar se construía um ciclo imparável de descodificação à obra, entusiasmadas que estavam as Academias onde nenhuma mulher até então tivera assento, e dando relevo a um nome que a imaginação do leitor popular se deixou guiar como um analfabeto sequioso de comando. Esta experiência é bastante interessante e capciosamente fabricada para não mostrar as verdadeiras intenções. A extrema-direita sempre esteve por cá, ora na forma de se saber insinuar fabricando “estátuas”, ora aplicando a fórmula literária da múltipla leitura. O certo é que, “engolido” Adriano, a origem da besta se desvanecia, e o que representou filosoficamente (dado que era também um Imperador filósofo) superava em muito qualquer mal que se lhe pudesse atribuir. Uma das razões para a História se repetir é a cegueira daqueles que por ela passam, os seres precisam de estímulos dominantes e cada época é useira na sua propaganda. Debaixo dos olhos de todos, em todas as épocas, dormita a mesma evidência, mas a maior alucinação colectiva é o não conseguir vê-la. Mesmo os que têm responsabilidades parecem por vezes hipnotizados dado o grau de convencimento das fontes. Élio Adriano foi então o Esposo de Élia Capitolina, uma rábula pagã dos Cânticos de Salomão, que dormitavam no pó ardendo em prováveis golfadas de indignação ao testemunharem tais brutalidades, mas estas medidas são no entanto entendidas por muitos como conquistas, e é de assinalar que este tema é de tal ordem importante que se arrastou para os séculos posteriores e muito particularmente para a Europa dando uma dimensão que a influenciou até aos nossos dias, porém, e só aqueles que estão em guarda a usam de forma a manejar o “objecto mundo” que é uma rosácea de mariposas onde nada de verdadeiramente importante se deve saber sem o filtro de um dirigismo preparado, que usam então para seu gáudio. Foi este homem reabilitado na mais fina tradição cultural europeia e por ele se lourearam as teses e hoje pedimos aos judeus europeus para não usarem a “kipá” de modo a não serem agredidos, e voltamo-nos com unhas e dentes contra Israel, chamando os nomes que Marco António (sim, esse, verdadeiramente filósofo) disse ao passar por aquelas terras a caminho do Egipto: «sinto-me repugnado com os judeus mal-cheirosos e desordeiros». Agora é a esquerda barulhenta que faz suas estas palavras. Sim, que a direita das Academias pegou na eloquente versão de Yourcenar para mais subtis comandos. Não é no hélio, mas no éter, que quero agora deixar uma diáfana pergunta. Porquê, Yourcenar?
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasGenet e as flores [dropcap]N[/dropcap]ossa Senhora das Flores» é o título de um livro marcante de Jean Genet, um desfolhar de costumes em áreas fechadas num despir de convenções que faz fronteira com a “boa sociedade”. Chamou-lhe então a catedral magnífica para a trindade do Macho, da Bicha e do Herói. A natureza dessa senhora de branco tem muitos contornos e fixa sem dúvida a história de vida de cada um de nós. Nem toda a boa Humanidade tem acesso ao que se passa nos limites da incompreensível, e quantas vezes assassina outra Humanidade. Vivem fechados nas suas boas coisas como empalhados do nada, em labiríntico esforço das suas ternas intenções, mas faltando-lhes a inocência daqueles que nada sabem desses segredos e berços macios. E por isso, é bem possível que Genet tenha reinventado a sua própria vida pela perspectiva de alguém que não tem conhecimento do que trata a tão maravilhosa visão dos outros. Genet, é uma espécie de Peter Pan, só que neste caso ele representa também o pirata. Não teve mãe, não teve pai, andou de Instituição em Instituição, até que viu no crime uma santidade mais para a sua virgindade de afectos, e é tão lindo que desejou amar o próprio assassino do seu amante para partilhar ainda aquela réstia de ternura que o sangue faz misturar aos corpos que tanto se deram. Era a sua inocência, a sua força, a sua própria transcendência de grande escritor que já se manifestava à revelia das ficções de mau gosto dos contos negros de cada um. Genet é o tal Anjo da beleza terrível de que nos falou Rilke. «O sorriso do anjo», uma entrevista feita a Genet que ofende os sérios propósitos dos milhões de legítimos desonestos. De facto, Genet não precisou da família para nada, nem tão pouco recriou a sua. Homossexual, solitário, bandido a um tempo, sobrevivente a todas as ameaças, é ele no fim quem dita as condições e faz calar pela beleza os que gemem de raiva contra ele. Nem sequer gostava de Nabokov nem de Henry Miller, entendia então, que a virilidade era a capacidade de saber proteger uma mulher, e não esse aproveitamento de palavreado a mais. Ele que, pelos vistos, nem de mãe, nem de mulher propriamente dita, sabia o que era, mas esta posição distingui-o automaticamente. É bem claro que estamos num mês mariânico e se sucedem as rimas frouxas dos amores das mães, dos maiores amores dos filhos, e por aí fora, num estendal que chega a ser nesta visão uma realidade incompreensível e como os incompreendidos são minorias a mais, destes nada se fala porque destoam do coro da vitória (pensam eles) da vida sobre a morte; mas aí é que está! Estas pessoas existem, elas souberam articular a fonte ao ser, e nasceram de si mesmas como os cavalos do vento: havia uma lenda que dizia que as éguas da Península Ibérica emprenhavam por ele, não sendo um hispânico, podem ter subido os ventos lá mais para cima… e dado um tão exemplar filho de ninguém! E até podemos imaginar que Jesus Cristo fosse filho de uma destas rajadas de oxigénio, a ver pelo desplante com que tratou a progenitora, que agora é de todos, mas para ele, e no dizer Pessoano, não passava de uma mala. «O condenado à morte» de Genet (e nada nesta vida parece tão redentor) aliás, na sua execrável obscenidade em que raiou sempre um par de asas sublime, que aflige a moral como uma lâmina de guilhotina, nos parece mais próximo de uma vida que se liberta e se fez voz libertadora. Estes nasceres são capazes de coisas tais que não os imaginamos no cardápio das ideias puras. Estar preso é um derrame absoluto de sémen contido, e fechar os improváveis pode conter descargas de conhecimento transversal que obrigue os filhos, as mães, os pais, os tios e os primos, a suicidarem-se de vez, face a certas e improváveis vitórias da vida. Quero deixar claro o meu amor por estas gentes, por Genet em particular, e pela lembrança sem rosto que jamais se debruçou na sua rota, onde o tempo legislou leis outras, nem seguir esquecendo a manobra trágica do amor que nos menoriza face aos gigantes indefesos, e para sempre os únicos inocentes. A consequência das coisas nunca é a que esperávamos, e, inconsequentemente se elabora o melhor que a vida tem. Genet pode ser o mais perto que há de um santo, mas não é, nem bom, nem esclarecido, tornou-se assim divino, porque agarrou nas palavras pelo lado que ninguém sabe alcançar, e a tudo isso acresce o carinho do saber titular e a grande energia amorosa da criação que dá a cada ser o nascituro de si mesmo. Ó almas dos meus assassinados! Matai-me! Queimai-me! Como um extenuado Miguel Ângelo Eu esculpi na vida; mas a beleza, Senhor, sempre a servi Com o ventre, os joelhos, as mãos rosadas de emoção.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSolipsismo [dropcap]N[/dropcap]o tempo presente graduamos áreas vastas de condições que já foram amplamente debatidas quando este ser que hoje somos não existia em grande quantidade a um ritmo comum. Somos muitos, somos mais, somos tantos que nem sabemos para que serve tanta vida em vagas deambulatórias para todos os lados, e que numa visão mais aturada se parece a muitas outras nas circunstâncias em que estamos a ser. Mas, e pensando melhor, o que somos entre tantos, entretanto, entre muitos e nós – que nós – somos um, e cada um é tão uno como nós, entre todos somos talvez uma violenta abstração. – Sim, como bem viu Almada Negreiros, todas as soluções para mudar o mundo ao tempo em que nascemos já estavam tomadas, e cada um tem a sua esfera de razão inabalável para o desmentir, e o que acontece é que vivemos essa experiência como única – egoísmo pragmático – assim atirando o nosso eu para o palco das ideias redentoras, ficando quase sempre um vazio imenso ao redor que não é mais que a maravilha da projecção de pensadores, assim fornecido, para testar a pertinência das conclusões. Sem focar a matéria filosófica inerente ao tema, há no entanto literariamente um princípio assaz solipsista na vertente poesia, sempre que mencionamos eu lírico versus eu poético, o autor. Ou seja, o poeta que escreve não é o que escreve a “coisa” de si, o recurso que o possibilita fazer não é a natureza do autor, e essa transformação em coisa outra torna um fazedor num bem-fazente de tais coisas amadas que ele apenas para os outros tem autoria mas nenhuma autoridade acerca da sua construção. Quem faz se está fazendo pelo processo lírico inventado, e pode ser que nasça nele um ser novo, renascido, fruto da complementaridade desse exercício que sempre requer coragem pois que nada sabemos do que vem por aí talhado no grau da imaginação, e se se vai fazer dela a realidade única do centro de uma vida. Se para trás deixarmos o eu poético, é porque éramos poetas antes mesmo de começar. A vida espreita a sua oportunidade para se tornar centro robusto, e quando aí chegados a nossa posição assenta na demonstração que mais nada de superior ou inferior importa. Porém ( e aqui se esbate de novo o tema) criar não é o mesmo que imaginar que o que não queremos não é ou não existe, pois que passando a ser a inventividade plataforma para outras realidades, o fazedor tem uma maior responsabilidade face ao elemento com que se debate. «Se penso, logo existo» posso mesmo assim não ser responsável por nada saber daquilo que os outros são: posso dizer: – sou um eremita – mas o mundo está cheio deles que pensam a solidão como reforma antecipada ao acto perigoso de viver e, no fundo, estamos todos reduzidos à circunstância individual de existir sem que tenhamos em muitas das vezes criado o tal movimento que vai para locais que não podemos ponderar. Há verbas, isso nos faz solipsistas tamanhos que não conseguimos mais sair da continuada esfera de as contar, estar reduzido à contagem, sós nos labirintos das contas, mas também há verbos, que os verbos saem do solipsismo ambiental quando não arrancam para mais uma manifesta aragem de um eu encurralado. – Fazer, fazer, fazer… não importa o quê, onde, e a que preço, fazer o quê? – Contar a nossa história ímpar, tão única! Um reflexo gratuito se abate por todos os lados como um plasma irreflectido e a Criatura esqueceu-se do Criador, e sem que suspeite ficou louca e só no meio do martírio da sua galvanizadora manobra. Quando por momentos nos olhamos, queremos ver-nos nos outros como se fossem feitos para nos saciar do que somos, em grande parte já temos um plano para sermos, e uma predefinição daquilo que os outros são que nos atira para graus de solidão tamanha que julgamos que fizeram ou disseram aquilo que pensámos ter querido apenas escutar; no fundo, nem nunca olhámos para ninguém, ao acontecer, é cada vez mais por um ângulo esmagador que há-de fazer do outro um não existente. O que não queremos não existe. Mas o que queremos também muitas vezes não existe, de modo que o nada nos assola como um refúgio jamais imaginado. Em muitos aspectos estamos perto da vertente dos tiranos e também da esquizofrenia que leva a generalizar os factos extra nós como violentas celebrações de vontades alheias, e, o tempo, essa medida estranha aos laboriosos de uma condição demarcada, parece fugir mais que qualquer outra coisa que tenham, mas não se lhes assiste propriamente um destino que implique uma fonte constante de suave satisfação. Falta isto, esta delicadeza que tem o infinito e a crença na vida como uma terna presença em que não se pode tocar. Bloqueio sem firmeza gera espectros. E se temos de lidar com a nossa verdade como centro indiscutível, sejamos mais céleres no combate à memória daquilo que não queremos lembrar. Que mesmo assim, nos havemos de lembrar por fim. Que seja então para agradecer o mal que nos fizeram que soube produzir algum sincero bem. Para os que possuem o ónus da prova da sua existência, não adulterar os factos «que para ser grande, sê inteiro» e que ainda muitos não cabem dentro de si.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCantigas de Santa Maria [dropcap]M[/dropcap]aio é aquele tempo que sabe a jogral pelo instante da gesta em flor que nos coloca nos cursos de água destes Cantares. Desfolhamos os de Amigo, tão nossos, tão primaveris, e sentimos uma alegria nova, um sentido de chão e cheiro a bailias, de amores, noites fecundas, e descemos até àquela Idade Média que nada tem das ditas trevas. Não devemos nomear assim tempo algum, pois que a todos subjaz a negritude, porém, nem todos nos dão esta forma sedutora. Mais treva do que a dos operários da primeira Revolução Industrial é difícil imaginar, sem recurso aos nichos da flora natural, nem aos campos em flor, morrendo jovens sem nunca ver o sol nos casebres das cidades onde jamais uma flor cresceu. E a Segunda Guerra? Jamais se vira também treva igual. As Primaveras não nasceram nesses anos, suplantadas que foram pelos gases da combustão dos cadáveres, e foi em Maio que findou. Recuemos pois até ao título polémico «La grand clarté du Moyen Âge», que terá o seu zénite em pleno século XIII, onde se desfolham todas as artes e se unem diferenças mais tarde dissonantes. E é a Afonso X, o Sábio, a quem são atribuídas as Cantigas de Santa Maria desta época remota quem nos prende agora como os sonhos, avô de Dinis, tetravô de D.Pedro I, foi esse rei mecenas que quase poderíamos apelidar de rei da Península Ibérica nesse tempo de reconquistas e cujo extraordinário mérito foi o saber rodear-se de colaboradores muçulmanos, judeus e cristãos, uma forma laboral muito medieva, que só fez proporcionar a chegada deste legado. Em galaico-português, a estrutura recobre várias temáticas para duas vertentes, a profana e a religiosa, a religiosa é predominante, reunida em quatrocentos poemas e transforma-se assim o rei no trovador mariânico. Escutado amiúde ao som de sinos, é nas noites de Maio que refulgem ainda em nós em ritmos de encantar, e quando despertos destes momentos, todos os sons ao redor nos parecem toscos, tristes, sem aquela infinita humidade cristalina; são os efeitos de uma trança muito bem orquestrada nas três religiões, e se os vários recitativos não são bem entendidos sabemos ouvir neles todas as emanações litúrgicas em seus sons. Não raro estas Cantigas produzem pequenos milagres vibratórios como “a frescura de asa” que atribuímos sempre à manifestação, dado que as cantigas de milagre são mais expressivas que as de louvor na chamada proporção de nove para um, os milagres não são laudatórios, e em súmula sincrética e sintética, quase equivalem aos “haikus”. O narrador está na primeira pessoa e nada interfere nesta harmonia tão estranha para quem dela padece. Sempre a intertextualidade Bíblica será aqui uma menção honrosa com predomínio para o Velho Testamento, que os tradutores de Toledo, na sua maioria judeus, foram o elo imprescindível para a compilação de tais Cantigas, bem como a influência provençal tão presente e manifesta. O bestiário da obra é um elemento de verosimilhança elementar na sua estrutura, assim como uma antiga flauta de Pã ou uma harpa de Orpheu encantasse os animais que sujeitos a melodias belas tivessem o ajuste anatómico a uma celebração, esta interação é por si um elemento de extrema delicadeza dado não excluir as criaturas, e foi a elas que por este tempo um outro foi composto «O Cântico das Criaturas», de Francisco de Assis. O culto da Virgem é o tema dos trovadores que misturando lendas antigas, folclore e outros elementos contribuíram para uma enorme riqueza expressiva havendo em toda esta época a prática das romarias onde os romeiros edificaram os seus altares nas terras onde ainda hoje continuam presença viva estas tradições. As ermidas onde geralmente se tinham dado aparições foram por séculos lugares abençoados e ainda se mantêm transversais aos roteiros das viagens; o reportório de D. Afonso X é considerado o mais rico em termos de milagres narrados e daí a imensa disposição onírica dos cantares que envolve a soberania da manifesta presença a quem humildemente até um rei agradece com devoção e lealdade. A Dama. Ela está sempre presente ajudando um homem a livrar-se da sua natureza primária e dando-lhe o ensejo e a coragem de ser leal nas lutas que trava. É um tempo mariânico com toda a beleza que tal dote transporta, havendo a referência ao leite para testemunhar a divina substância da maternidade onde um seio é elevado a altar, outro dos elementos poéticos deste régio trovador. E Maio aparece cantado e metaforicamente composto na «Rosa das Rosas» ….Rosa das rosas e Flor das flores Dona das donas “Senhor das senhores” e talvez um género híbrido apareça tomando o Paço de amores pelo pacto entre a Senhora e o monarca. A língua oral encontra-se aqui, a um tempo em que a escrita era reservada, e talvez seja esta a prestação mais humano destes Cantares. A língua é materna se fecundada por poetas. Foram glosadas as três línguas poéticas de então entre os trovadores, o galaico-português, a provençal e o toscano, e por louvor a D. Afonso, em terras distantes, era na língua em que este escrevia que firmavam os seus versos. Uma melodia que convém lembrar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOs cavaleiros do amor Todos os pretextos são bons para lembrar autores tão escondidos como Sampaio Bruno, não pela matéria do entendimento (uma vez que o tempo actual não é condizente com a matéria tratada) mas por serem necessários e urgentes no combate ao pensamento único interpretado por milhares de vozes. Falta tempo ao nosso tempo, e o tempo que sobra não tem tempo para aquilo que não foque temporariamente a raiz dos problemas comuns, que por acaso são cada vez mais incomuns, na medida em que se nos apresentam como irresolúveis. Mas há um tempo em que nada fala mais alto que os saberes não revelados – revelar – voltar a velar. Processos dialécticos de ínfima construção se abatem neste nosso real, e quando já cansados do asfalto das superfícies teremos então de entrar numa zona de «Encoberto» ou as muitas vozes plenas de justo raciocínio e objetividade podem enlouquecer-nos, ou fazer de um ser um parasita que se esforça para tirar de si o que de si mesmo desconhece. Sampaio Bruno, de seu nome José Pereira de Sampaio, é considerado o fundador da Filosofia Portuguesa. A sua origem maçónica, a sua filiação republicana foram factores determinantes para a construção da sua moral cívica. Redactor do Manifesto Republicano do malogrado 31 de Janeiro de 1891, onde em conjunto com Antero de Quental também elabora os estatutos da Liga Patriótica do Norte, Sampaio Bruno é sem dúvida uma incontornável personalidade a quem o exílio em Paris fragilizou. O desvio dos princípios racionalistas da sua juventude destronam-se subitamente, ou não tanto, talvez até gradualmente, e Bruno ensimesmado, incansável, desiludido com a República, solitário e de saber tamanho, torna-se um esotérico, uma natureza religiosa, estruturando elementos que faltavam para a construção de uma Filosofia (independentemente do complexo conceito que neste caso convém ter em atenção). Os múltiplos aspectos de que se reveste talvez não sejam consentâneos com a Filosofia em si, mas a Ibéria reescreve um seu modelo filosófico onde esta voz foi importante para deixar abertas as portas deste diálogo. É claro que Fernando Pessoa o seguiu e consultou durante toda a sua vida, chegando mesmo a enviar-lhe o primeiro original de «Orpheu» e, acaso os mistérios falem, nem as datas aqui devem ficar por contar: Sampaio Bruno nasceu no dia em que Pessoa morreu. Os Cavaleiros do Amor, o livro que se intitula também – Plano de um livro a fazer – é uma obra complexa e apaixonante, intrigante, talvez demasiado onírica e pejada de conhecimentos que necessitam um caminhar constante nos trilhos de outros saberes, mas é neste mês de Abril que ele ergue o seu dom de manifestação e cariz profético. Nas nossas vidas, vimo-los e saudámo-los, aconteceu esse belo acaso sem que soubéssemos que estava anunciado, e quem são e ao que vêm estes Cavaleiros? Numa contemplação esotérica de enunciação remota eles são os Capitães de Abril e a sua mensagem é esta na voz do autor: os tais libertos libertadores, libertando-se a si, libertando os seus irmãos da espécie, contribuem para a libertação universal. É uma mensagem colectiva que ganhou na marcha o efeito sonhado. São as aspectos arquetípicos que possibilitaram a manifestação. E é por isso que os ângulos de um acontecimento não se esgotam nos seus reais efeitos, pode-se festejar a forma rara deste anunciado por prismas outros e continuar a Festa muito para além do seu artefacto. Creio mesmo que faltou uma abordagem diferente desta etapa da vida portuguesa, e isso iria reflectir-se da pior maneira. Que seja Sampaio Bruno, o grande «Encoberto», a desvendar a marcha, talvez nem queira agora dizer nada pois que ela fala por si na fonte das coisas imperecíveis. E quando cansados do trilho das sociedades nos preparamos para andar à roda de nós mesmos no ciclo fechado que nos atavia de mortes póstumas pelo festejar rotativo de algo por interpretar, seria bom conhecer melhor os nossos Cavaleiros do Amor. Nada é de facto mais parecido; nem faltou a juventude, a beleza, o arrojo, e um Maia lembrando as festas da Primavera, as «Maias», os «Maias» … os Maios. No entender de tudo isto e indo à essência pura do registo que aqui nos traz, e sabendo-o, ao autor, um conhecedor de todas as Ordens e um seu herdeiro, diz assim: «Todavia, – quero ter a coragem de dizê-lo, consoante ainda rapaz me atrevi a dizê-lo a meu próprio pai -, em regra, e como princípio geral superior, não simpatizo com associações secretas, e não simpatizo com associações secretas porque é força da sua essência que elas façam prevalecer sobre a ideia da justiça para todos, a ideia da protecção para alguns; e, assim, sacrificam o direito profano à iniquidade do iniciado, com cuja causa o laço da misteriosa solidariedade se aperta. » Ficam assim os efeitos germinais que de longe vêm para um tempo comum agora aqui, e que olha para onde? Endogâmico, incapaz de estabelecer contacto com a frustrante derrocada da sua liberdade, conspirando por deficiência para o aniquilamento de si mesmo, pode no entanto abrir ainda todas as portas que Abril abriu! Tudo o que está escondido é protegido por um anjo que incólume andará por entre as gentes. É tempo de o encontrar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasGuerra santa [dropcap]D[/dropcap]epois de assistirmos incautos à “matança da Páscoa” em vários locais do mundo durante o tempo litúrgico desta, a nossa atenção volta-se também para o efeito do ciclo de terror que julgáramos sanado. A grande noite da História das Guerras Santas, voltou como um tecido híbrido, é certo, todo ele deslocado, mas suficientemente emblemático para não esquecermos o que lhe está subjacente. Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial foi questão que nunca colheu adeptos, o Governo alemão, laico, enaltecido com práticas mágicas que pareceu até retirar-lhe o efeito de culpa, gravitava em torno de uma brutalidade instintiva por onde não passou, talvez, complexas tradições humanas. Ou seja, a atenção para com elas era mínima, o desrespeito absoluto, e todos estavam em Guerra não pelas práticas religiosas, mas por causa da supremacia maníaca de um povo. Até aqui não se nos afigurava nada do género que pudesse de novo fazer reviver a prática já ultrapassada do sangue, a morte tinha então contornos novos, tão novos, que ainda agora nos emudecem, mas eis senão quando, o mais antigo efeito se nos impõe: a guerra sangrenta, as matanças que jorram sangue, as religiões que sangram e fazem sangrar. Este estado recente das coisas é tão velho que julgáramos já esquecido. Recordo-me então de René Daumel e da sua «A Guerra Santa», um texto gnóstico, ele que começou por ser um poeta surrealista amigo de Breton e de toda uma herança de vanguarda, escreve este texto com a parcimónia dos que quase renegam a causa primeira, descrevendo áreas absolutamente iluminadas sobre o grau de transcendência de uma revolta (se tal possa ser assim descrito) pois que para alcançar o pleno aspecto da definição poética ele terá necessariamente de visitar o texto sagrado. É portanto avesso ao chamado código literário e às faíscas soporíferas das fantasias de cada um, abeirado na essência primeira, busca o ser, a nossa Humanidade, no vazio silencioso das coisas. É um superlativo anunciador que se intui no extremo de uma condição e que não tem medo das palavras e dos diversos códigos que elas transmitem. Procura a limpidez, austero, é no entanto sensível e raro, contido e forte, quer a brancura de um entendimento; «Falarei para me chamar a mim à guerra santa. Falarei para denunciar os traidores que eu próprio alimentei. Falarei para que, aquilo que eu disser, envergonhe as minhas ações, até que um dia, uma paz blindada de trovoada reinará nos aposentos do eterno vencedor. E porque empregarei a palavra de guerra, e esta palavra de guerra não passa hoje de um simples ruído que as pessoas instruídas fazem com as suas bocas, porque agora, ao empregá-la, é uma palavra séria e carregada de sentido, saber-se-á que falo a sério e que não são vãos ruídos que faço com a minha boca». Parece-nos uma demonstração demasiado críptica para um entendimento simples ou uma manifesta indignação por tudo o que sobra de bem estar perante os que a olham sentados nos seus delírios e que insistem em nada entender que os comprometa. Mas estamos talvez bem mais amuralhados do que alguma vez supuséramos. Nós, que não vamos aos Templos, morremos agora por causas desconhecidas às mãos dos motes de poemas fatais?! Em todo o caso são os homens que matam: e que temos nós todos a ver com a poesia? Também já nada. E qual? Também não sabemos. Entendemos vagamente que os interesses geram revoltas, mas, quem está já interessado em nós? Presumimos que muitos, mas pode não ser assim. Ignorámos todos na nossa marcha vitoriosa de forma vária e há um dia em que um deus ou um demónio, surge para nos falar, e neste caso as respostas ainda não estão prontas porque sem nos darmos conta fomos ficando sem elementos de versificação. Há sempre um lado morto que ressuscita, uma antecâmara fechada que vem pedir resgate, e a nossa culpa continua a ser, nenhuma, pois que os que agora caem em nada contribuíram para tais fins. A expressão contra, é agora arbitrária, Mesquitas, Igrejas, Sinagogas, uma demonstração de insanidade talvez só comparada às invasões de Tito, são atacadas como peça única. Por incrível que nos possa parecer é mais ou menos aqui que estamos, e, o que os últimos séculos lutaram para desviar a rota do sangue, atribuindo novos ciclos de conquistas não menos mortais é certo, aqui, rejuvenesce o espectro da velha “santidade” mote e acção para a chacina. Seja o que for, ninguém está preparado para isto, para um discurso entendível, uma compenetração capaz. – O quê, Deus outra vez? – Talvez. Convém não nos desvincularmos do circuito da Civilização que fomos sendo, não havendo no entanto Civilizações profanas, quanto muito, mais animistas. Ainda a abstracção para nos alongar o espectro da memória e da lembrança, já que no ponto incognoscível ainda arde em nós palavras que dizem ter gerado o Homem, ou caminharemos para uma incomunicação plausível tornando-nos o mais conseguido dos paradoxos. E ainda diz Daumal: «Das outras guerras não falarei – as que se suportam- não falarei. Fala de sacrifício quem, por motivo nenhum cortaria o dedo mínimo, fala de conhecimento quem, se disfarça perante si próprio, tal como a grande doença é tapar de palavras para não ver». Muito deixámos de ver por força das «Luzes» e das iluminações a vapor que fez a cegueira avançar como uma conquista que todos tinham de seguir, porém, aqui chegados, é bom lembrar que há aspectos que nos acordam para ver. «Porque num verdadeiro poema as palavras transportam as suas coisas». É duro lembrar. É duro esquecer.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA antologia do esquecimento [dropcap]M[/dropcap]omento existe na vida dos poetas em que desejam ser antologiadores, o que se compreende muito bem dado o conhecimento da matéria e as vastas horas dos dias debruçados na leitura da causa. Mas alguns que da poesia têm quanto muito uma analogia com o fado, anunciando-se com vários graus de entendimento por designado interesse na expressão, não raro o desejam também, sendo por isso mesmo que há antologias para todos os gostos, que é sempre o tal gosto de gostar de muita coisa e de procurar entender o que corre nos veios delas. Há mesmo antologiadores que em parceria com outros se obrigam, reunidos, em fazer parte do conjunto do seu antologiado. Defendem um princípio de natureza barroca e cada espaço vazio é dado como fórmula desconhecida, se insurgindo então sempre e com mais matéria do que a noção poetizante pode supor ou suportar. Daí que, se todo o cuidado é pouco em juntar, mais cuidado teremos de ter em subtrair. Nas antologias escatológicas existe então um consenso total, uma irreprimível vontade que subjaz à força de uma subversão qualquer e nivela todo o dejecto em causa comum, partilhada, e de todos bem-dita. O que cobre a vasta gama do sermão, entre as virilhas do verbo e o desmando da aleivosia de cada um, é a audácia, que tende para a norma vassala que é o engordar do dislate soberano. Uma grande esteira climatérica, os chamados «Jardins de Inverno», se adensa por entre a floresta tropical dos ensejos onde o léxico coloquial reverbera, e onde as capas das antologias começam por ser duras, para logo afrouxarem lá para as edições seguintes. Sejamos então um pouco mais claros – quem Antologia quem? Geralmente os do mesmo género literário, pois que devem unir assim as peças soltas e separar da curiosidade o destino que lhes é inerente e todo o impulso para a amálgama não será benéfico na expressão que um género traz. Após as reformas e as lutas laborais, metem-se então alguns pelas páginas, adentrando-se numa malha prolífica de “poetas” mas aqui, como em tudo, é preciso começar cedo, estar presente, pois a centelha só brilha em cada um na proporção de um estranho abandono. Quando os não obreiros se manifestam costumam dar nós cegos e estranguladores na linguagem, a pandemia do ofendido empurra para o lixo o próprio termo poético. O talento dos outros começa a ser, não raro, uma arritmia, e se em ousada abnegação de sinais se sabe inquestionável, não sabe contudo o porquê de quererem ocupar um lugar tão difícil quanto o seu. Cuidando dos afetos de proximidade matamos a lira das nossas esferas mais distantes. As Antologias de Eugénio de Andrade e Jorge de Sena são tratados alquímicos elementares, porém, nem sempre se nos apresentam como tal, subjugados que andamos por recentes, novos, novíssimos e interessantíssimas edições descontroladas. […] mera circunstância de igualdade/ infeliz neve que a si própria deve o esforço de pousar… vir corromper o Sol da primavera/ que não esqueça logo o projectar da Esfera – e, só depois, a Sombra essencial.[…] Jorge de Sena. Não raro também assoma aquela frase de Carlos Queiroz «não só com sentimentos se faz poesia, mas também o poema se nega aos ressentidos». A negação que quer provar abnegação também existe, e todas as volúpias mantidas para a chegada à lira de Orpheu do canto antologiador. «Os que vão morrer te saúdam», assim cumprimentavam César! As Antologias de autor são, curiosamente, muito mais elucidativas para o interesse público, que deve reflectir na construção de uma obra e no tratamento de uma linguagem que urge ser reabilitada para que não fique perdido um certo som que educará mais e melhor que todas as narrativas dos muitos enunciados. A língua é uma matéria que se faz na correspondente do vocabulário poético, que ao separar-se dela vai moldando uma arquitetura deficiente na zona da linguagem cerebral. E nunca será com transferes de sangue contaminado que a percepção arranjará espaço para tão demarcada área cuja função mecânica por incrível que pareça se conhece bem menos do que era espectável. Ainda andamos intrigados, foneticamente falando. Antologiamos os profetas, e deles só havia som. Quando a insurgência face aos livros sagrados se dá, gritam então as vozes antológicas da natureza humana, que foi quem as compilou no que pensa ter sido dito, é que ao nomear adquirimos a força precisa para combater mas, na longa matéria dos signos escritos, a Humanidade é um Verbo só. Porém, raros são os que lhes acrescentam mais tempos. Outros tempos. Mais amplexo verbal. Mais realidade, e mais sonhos, portanto. Escutar os Cancioneiros antologiados da voz colectiva, que quando o mutismo vier depois da perda de sinal, os nossos gestos valerão pouco para salvar da ruína todas as coisas reunidas.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasÂngelo de Lima [dropcap]O[/dropcap] poeta Ângelo de Lima, nascido na segunda metade do século dezanove, ainda de cariz vagamente simbolista entrando no Modernismo português pela Revista «Orpheu», não merecia o veredicto de um homem como o doutor Egas Moniz! Mas, enfim, a ciência em princípio sabe, ou sabia tudo, e dava e dá pareceres da sua verdade que longe parece andar de naturezas e casos especiais. Sem qualquer sensibilidade para os factos, a leviana demonstração dos ditames analisados põem-nos de sobreaviso perante aquilo que é definido por diagnóstico. Já então a Nobilidade não era prova de mais distinta compreensão, pois que se o fosse seria um desprimor analisada por tais factos. E diz assim daquele que foi um poeta de fina e inventiva interpretação linguística e altíssima qualidade poética: «O fundo mental deste doente é de um formidável desequilíbrio. (até aqui nada de mau, pois adjectiva tal natureza, a uma talvez, quem sabe, excepção) Ao lado de qualidades artísticas, que os seus amigos talvez exagerem um pouco, mas que em todo o caso são incontestáveis, apresentando no mesmo caso coisas lamentáveis (riso). Assim, com o lápis, é um emérito desenhista; um pouco académico, não perdoa a nitidez dos contornos, sendo talvez um pouco duro. … é uma lástima e não chega a ter consciência do seu nulo valor». Muitas vezes o que parece não é e o que é de facto pode até nem se parecer com nada. Mas, na grande erudição de pareceres pátrios, quem disser a primeira asneira parece muitas vezes coroado de um momentâneo sucesso, que é tanto maior, quanto maior as insígnias, e assim ficou retratado o poeta, onde lhe seriam acrescentadas ainda as toscas descrições de Miguel Bombarda, descrições essas, mais anatómicas, no âmbito de um auto-retrato Bocagiano. Haviam de dar certas as rigorosas demonstrações para descanso das mentes, e os pareceres, para efeitos curriculares, para que o levassem depressa a desistir de qualquer ideia estouvada de se manifestar. Em clausura no Júlio de Matos, assim passa grande parte da sua insanável vida, ele que foi até um ilustre membro da Revolta Republicana do 31 de Janeiro. O auto-apelidado país poético “esquizofreniza” cada vez que um lhe sai ao caminho, que será sempre alguém de características suspeitas e não longe da armadilha do ditame. É que tal sociedade, de uma loucura enfadonha, procura resolver tal dilema pela anulação da diferença, criando a sua norma, que é também ela suspeita de alarvidades várias sem método legítimo. Quando lemos Ângelo de Lima sabemos que a inovação é um lado verdadeiramente apaixonante, não interessando para nada qualquer juízo de valor, e que a moldura de uma assinatura daquelas é um mérito tal que talvez até haja espaço para dar graças a certas doenças ou amenizar suspeitas que recaiam perante pacientes assim. Em último, um pedido de desculpa pela vilania do tratamento que lhes deu o coro dos pareceres colectivos, pois creio que a desculpa não está outra vez na moda e quando esteve seria também esta a última a ser lembrada. Por isso, creio que ele nos merece a nossa atenção genuína e neste instante que escrevo em português estas simples linhas, lhe presto o meu louvor, e em português lhe peço desculpa. A sua alma saberá entender que sou apenas uma porta-voz que ameniza uma grosseira injustiça. – Devemos virar-nos para o Sol querido poeta – não este que por aí anda em goelas disfarçadas, mas para a deidade do dom das coisas que difíceis de manobrar são a vida e a morte, e também o que sobra de Humanidade nos interstícios de tudo. É esse dever sagrado que foi dado como único vínculo nesta situação, que as vozes, são alucinações dos que ao perpetrarem-nas não chegam a ser escutadas no vitral das provas. Cada vez que te vejo a tristeza vem, e vem pura, sem drama – a dramaticidade não chega até aqui – nem a consciência de que mesmo a grande dor da mãe morta possa ser do feto um filho recusado, explica quase nada perante a tua grande ausência de fixação. As estrelas brilham em outras vibrações bem longe dos úteros, como daqueles que à força desejam sanar o insanável. É contigo que agora me conecto em simples melodia, talvez em voz primeira e factos renovados. Nenhum parecer é definitivo, nem os anátemas nos tomam para sempre, só o tempo estranho e longo de uma caminhada toda de imponderáveis efeitos, nos aproxima da situação mais provável de uma harmonia. E cada vez que me doem as palavras todas conjugadas para efeitos óbvios, eu desisto de escutá-las, lê-las, ou continuar cerrando as filas das suas amplas armadilhas, e só tu apareces no cimo de um esplendor qualquer resgatado à maravilha: «- Mia Soave … – Ave?!…- Alméa?!… Maripoza Azulal….-Transe!… Que d’Alado Lidar, Canse… – Dorta em Paz…. – Trespasse Idéa! …. Não Doe Por Ti Meu Peito….- Não Choro no Orar Cicio… – Em Profano… – Edd´ora… Eleito!…. Balsame- a Campa… o Rocío. Que Cahe sobre o Último Leito!… – Mi´ Soave!…. Edd´ora Addio!… “
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasAbril [dropcap]T[/dropcap]odas a definições extremadas que o associam estão certas: as águas, a porta, o boi, o bode, o abrupto, a entrada, o ponto vernal do viril instante não nos sossega e também inquieta o mais estável de um ponto imóvel. Há um temor de que os ventos se alonguem levando cabeças, ideias, projectos, segredos, e erupções de génio passam intrépidas pelo corredor dos dias. Os telhados de vidro estilhaçam e somos nós nesta sempre imprevista arquitectura simiesca as Capelas imperfeitas. Chove-nos por cima. Tudo isto reunido, tem, claro está, o grande capricho dos elementos que se entendem para assim nos fustigar – intermitências da vida – que as da morte não parecem reunidas neste consenso. Andar tem segredos e não faltam situações de quebra de ritmo energético que toca nos mais frágeis, abalroando-os, sem vantagens aparentes, pois que a força quando actua nem sempre é direccionada. Vai andado até embater e depois desliza para os que estando de boa saúde também cambaleiam ao ritmo da Estação. Abril charneiro requer coragens olímpicas! As Páscoas tosquiam-se pois que vem aí calor- há-de vir – que em muitos momentos chega intenso para logo ir, e vem depois o frio que logo se vai, e todos, numa insanável desdita marcham à frente sem capacidade de retaliação. O que vem e o que vai é uma dança. É o instante sacrificial para nos sustermos de pé. Andar de pé, é ainda um doce mistério articular, e por isso a coluna parece doer a tantos sem sentido, também ele, muito aparente. O que dói é a projecção para o alto, a verticalidade, pudéssemos nós ter mais pés e nada destas dores aconteciam. O Boi Ápis veio do Egipto que na fuga Primaveril dos hebreus se juntou a eles e passou assim infiltrado entre as gentes que fugiam. Ora, depois de uma ausência prolongada do líder, eles mesmos reergueram a sua divindade e fizeram um bezerro. Apís-Abril. Estes infiltrados ainda vinham com bois mas, e dado que a pastorícia fazia parte integrante da vida dos fugitivos, o Carneiro estava assim mais apropriados à moldura do enfático mês. O carneiro morto com sangue pintado nas portas ajudou a salvar inocentes, mas matou outros tão inocentes quanto os primeiros, que não tendo a mancha do seu sangue, morreram no infanticídio. O sangue de Boi não opera milagres. E foi passando que a passagem se deu mesmo que fosse perto o destino dos que empreenderam tão rápida empreendimento. Abril, traz para mais perto o rebanho e deixa as gigantescas carnes bovinas em outras pastagens. Não são precisas metáforas vindouras. Abril, em todo o caso, presenteia-nos com os cornos dos ciclos começados. Avança pelo chifre! A noção do coelho é uma delonga exasperante dado que caçar não é muito Primaveril. Ainda não estão crescidas as crias e não se matam os pais, alusão ao ciclo de fertilidade que se dá quase por raspão e fontes de propagação desmesurada. Os ovos, só os de codorniz, que caíram no deserto em forma de Maná, se fosse de avestruz ou de galinha não eram coincidentes com a época em que tudo o que é pequeno se agiganta. As Páscoas tecem agora a argola dos seus princípios ritualísticos de Abril. Começar, passar, atravessar. Ficar parado agora é bem pior que nos pormos ao caminho mesmo que não se saiba para onde se vai. Vai-se! A experiência dita que o pontapé de saída é o mais difícil e também o melhor. Incrustado ficou no zodíaco como o mês chifrudo. Pois se é Carneiro, passa a Touro. O 25 de Abril é bem uma festa litúrgica mais associada ao Boi. Bela, florescente, ímpar na franqueza direcional, sensitiva do grupo que festeja o ímpeto inquebrantável de uma liberdade que molda a primeira consciência dos grupos humanos. A Festa da vida com o rubro escarlate do animal. Se não fosse assim, a volúpia não tinha alinhado com o melhor, no Inverno, por exemplo, não se fazem Revoluções, as do Outono são muito maduras, invocam princípios de civilizada análise social que não presenteia a alegria. Por isso, e na vasta tendência do nivelamento colectivo, convém não descurar esta zona de impacto que se dá nas entranhas mesmo do cadáver morto que ao ressuscitar lá para mais tarde funda ainda uma religião. O 25 de Abril é bem uma festa litúrgica mais associada ao Boi. Bela, florescente, ímpar na franqueza direcional, sensitiva do grupo que festeja o ímpeto inquebrantável de uma liberdade que molda a primeira consciência dos grupos humanos Convocar as nossas forças e ter à cintura um ramo de flores, saber que tudo passa rápido e que em muitos casos só passa uma vez, embora o que nos sele seja ímpar, e o que nos abençoa uma casualidade. Abril já quase a meio prestes a formar a saída… do Brexit? Ou de todos nós no local amargo em que nos fomos deixando estar? O que nos planteia a fúria temporal ? Mesmo assim e com tantas alterações há ainda componentes imutáveis quando o transbordo se faz por aqui. O cérebro do universo deu ao nosso essa capacidade de se repetir, e não vai ser pela desorbitada aceleração do impacto neuroidal que se muda em nosso tempo físico. Há muito por fazer, e ainda mais para recomeçar, mesmo às voltas, nada volta como já foi, é esse o sentido da construção.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA matilha dos afectos [dropcap]H[/dropcap]einrich von Kleist, o patriota prussiano, poeta e dramaturgo, escreve entre algumas obras de referência aquela que viria a ser a obra-prima do teatro romântico, «Pentesileia». É uma obra monumental! Não tanto pela opulência ou pelo vírus exacerbado da representação, mas pela temática e virtuosismo em delinear o impossível sem quase nenhum recurso ao comprometimento dos méritos da união, e um fôlego pulverizante que nos coloca diante da tensão máxima dos arquétipos masculino e feminino. Este vigor é uma oferenda sagrada, embora se leia nele desde o início o mítico desfecho da morte anunciada. Aqui as delícias da aproximação não existem e a junção é banida pela representação da força de cada um, Aquiles e Pentesileia. Depois, há todas as vozes sacerdotais que representam a missão em coro grego e a consciência dos que acarretam as linhas de acção de um empreendimento. Nada de domesticável, até civilizado, do modo como o concebemos, toma as rédeas destes cavalos que ambos fazem relinchar com seus cascos ferozes. É a causa de cada um, que indomável, nos acelera a vontade de ser um deus, mesmo cegando com o brilho das espadas. Esta peça foi talvez buscar a orientação para a sua liberdade e pujança à derrota prussiana, o que exerceu no autor uma desvinculação nacionalista – ou melhor- uma outra orientação da força, já sem efeitos propagandísticos e saído assim dos círculos daqueles que se barricam nas hostes. Os heróis, são gregos, com observância para uma era matriarcal, essa civilização amazónica que levou à agricultura o quadro de uma ginecocracia com a sua componente dionisíaca que é o da apropriação do macho como servil emblema de combustão, que a obra urge suplantar, pela afirmação da condição apolínea. Parte então: “para este combate amoroso assente no «ódio mortal entre os sexos» a dilacerante ambivalência de um campo de batalha, que bem poderia ser «um leito revolvido».” Avançamos efectivamente pelas superfícies tectónicas que vacilam e se tocam para delinearem a supremacia de uma nova crosta terrestre, e acrescenta: «Pentesileia ferida de morte por ele, surge aos olhos de Aquiles, duplamente bela, e só aqui descobre a plenitude do sortilégio amoroso». Mas, e também, para cumprir a nova ordem cósmica se revela que a morte de Aquiles não foi um assassinato trágico, apenas uma paixão exemplar de que a terra comunga e sobre a qual baixam naturalmente as trevas – um imenso pôr-do-sol sangrento. Estas esferas simbólicas vêm do fundo dos tempos e congregam-se numa faísca de metal em fusão num ventre titânico e original, quase neolítico, que imprime moderações e metamorfoses a eras que se vão fazendo com mais ou menos resistência. Nós, que em pleno século vinte e um escutamos estupefactos as histórias de terror dos casais, devemos cingir-nos aos mitos fundadores ou estaremos condenados a uma saga imprópria para a posteridade. Também o tempo do amor paixão se desmoronou e nem por isso deixámos de nos apaixonar, a lenda da felicidade é mais uma fábula, e por vezes carregamos um couro que não sabemos que estamos a ouvir, e as vozes que gritam sem que as oiçamos, atiram-nos para vastas superfícies de infortúnio onde se esgota, por isso mesmo, a sua razão de existir. – E é claro – querer moderar abismos assim calcinados por descaso e desconhecimento, cria hiatos, e vicia-nos também nos nossos próprios embustes de consequências estranguladoras. Goethe (estamos pois no fim do século dezoito) foi um opositor a esta manifestação, se é que se pode assim apelidar a reacção em face desta abordagem indómita, e foi-o, na sua moderada frequência de homem em busca de uma «educação sentimental» em tudo antagónica a este Kleist -este- seria então a expressão dos obscuros movimentos dos afectos. E não apenas! Kleist demonstra que se pode ser escandaloso a partir na nossa própria natureza. Quem não é escandaloso, é doloso, malsão e até rude, configurando um caso de hábitos adquiridos que lhes empresta naturezas várias, não sendo no entanto cada um praticamente ninguém, face ao sistema vibratório de uma obra tal. “O tal inumano, onde os afectos perderam o seu véu pudico e trespassam os corpos como flechas, nus, crus e incalculáveis”. Para além de um brilhante tratamento de linguagem, é uma recuperação mitológica trabalhando dentro de nós a remota, longínqua, área adormecida, ou mesmo extinta; a linguagem vai então servindo o propósito acelerativo de uma hipnose, e, um homem surge-nos subitamente um ser diferente daquilo que geralmente nomeamos. Estou certa que uma mulher também. Ainda, e voltando às Amazonas, cujo impulso as projecta para o combate e a captura dos seus vencidos, não lhe poderemos chamar sedução, pois que o Amor está-lhes negado. É mais a continuidade biológica que prepara um terreno cujo domínio é exercitar as armas e propagar a espécie: nenhum homem, mesmo filho, tem qualquer sentido na sua estrutura interna, na medida, em que assentes no mito dionisíaco, o homem é ente utilizável, festim para fruição, onde se vai aqui pressentido já o terror face a esse deus que faltava e que assinala o fim de uma estirpe. O homem que se usa, nunca será igual aquele que comanda: e é este instante que marca as raízes que podem muito bem estar escondidas, até, quem sabe, em algum de nós. Já Marguerite Yourcenar tem, no seu livro «Fogos», esta passagem clássica e definitiva, em conto, e embora bem mais refinada diz isso mesmo: «A viseira levantada descobriu, no lugar de um rosto, uma máscara de olhos cegos que os beijos jamais alcançariam. Aquiles soluçava, segurando a cabeça desta vítima digna de ser um amigo.» Uma emboscada foi lançada. A força que nos destrói é a mesma que nos constrói, saiba agora do Amor a matilha, que a predação o conduzirá a outra História.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTrevos e trevas [dropcap]D[/dropcap]e ora em diante deponho os trevos e quero as trevas, género perfeito. O plural da escuridão é mais que breu, e, ao afirmá-lo, ainda o faço num dia esplêndido de quase Primavera. Thomas Bernhard «Trevas» precisamente. Tão difícil mencioná-lo! Ele anda no entanto por todas as Instituições de Ensino, em palestras, colóquios, debates, e parece a cada abordagem, sempre e mais inacessível. As leituras, essas, são como os feitiços, podem subjugar-nos e por isso temos de ser vigilantes, ao revelar (velar pela segunda vez) tomamos consciência que a forte probabilidade de uma paralisação mundial possa ser feita pela leitura, feita por mentes audazes que testam a frágil inteligência humana tão repleta de anseios que pode muito bem constituir um vasto plasma para testes radicais. Na vasta gama dos estilos o poeta escapa ileso à urdidura do ditirâmbico manancial de hipnotização colectiva, dado que obedece a leis muito estranhas, cujo objectivo não domina – nem lhe interessa- porém, não raro pode ser o mais agreste dos artesãos feiticeiros, e devolver intactas as leis que todos se amarfanham por esconder. É o irrealista resoluto na marcha da escrita, que lhe escapa, como tudo aquilo que lhe foge. Assim sendo, trabalha num bem, que ao averiguar-se perigoso, será sempre fora da sua estricta vontade de fabricante de alguma calamidade. Já os narradores, os novelistas, os ensaístas, são mais atentos na imodéstia de algum incisivo desnorteio, e alguns, tomam mesmo as rédeas do mais indómito dos poetas na saga de uma obra, que afinal, é a vida e as sociedades que as imploram. Mas que tem Bernhard a ver com isto? Quase tudo, já que para romances temos a vida de cada um e as descrições quase sempre enfadonhas dos seus méritos, onde cada qual fala de si a partir da urdidura ilusória das múltiplas tentativas, e, é tanta a praga, que devemos ver coragem em desconhecermos tais investidas. Cada coisa destas cresce por dentro de tal forma que precisará de um assassino para que o circuito fechado abra por fim em golfada, esguicho, abertura sanguinária para fora. Por fim, a liberdade que qualquer nado morto desconhece, e muitos acordam nesse instante, exangues e lúcidos, e talvez até quem sabe, mais serenos. Quanto a mim, tocou-me sempre a vida deste homem e a sua natureza. A marca de um nascimento onde existe uma maldição que demonstra a beleza de alguns, saídos de vínculos danados e proibitivos, ao seu avô escritor, a irreverência, o trauma que carregou sublimado em brilho, a superação inigualável de um bem que durará pela vasta obra deixada aos vindouros. Bernhard teve uma longa prática nos jornais, sabendo como assinalar para o conjunto de uma obra narrativas breves, levando-as para as novelas e peças de teatro. O seu tempo de renome chegou e culminou num grande desassossego ambiental, agreste polémica com Elias Canetti que o faz renunciar à Academia Alemã, e as obras proibidas no seu país, a Áustria, ainda que provisoriamente. «Trevas » têm dentro o seu paradoxismo pela claridade, essa superfície fria que encherá o mundo de terror, o mundo científico, visionariamente entendido nessa lâmina de aço onde a hostilidade será infinitamente mais alta que toda a imaginação: ele fala afinal da brancura que inundará os cegos e de frios muito maiores que o próprio gelo. Não parando jamais de nos interpelar durante o seu instante cósmico face a tudo aquilo que tínhamos por seguro, não foi em definitivo um contador de histórias: “as relações com o próximo? Melhor rompê-las bruscamente.” Não creio que se possa no entanto fugir ao raio de acção da sua força. Subitamente, e só para o fim, se congela em fragmentos nos seus estratos de breu e nada nos aquece mais que a pira da sua alma a arder. Os nossos dons agonizantes que brilham timidamente no asfalto das Nações, precisam destas manobras sem freio saídas de um homem com rosto de menino a quem o nazismo tanto incomodou, prostrou e enraiveceu. Devem os escritores reacender este tumulto? Devem, sim. Ateá-lo e continuar atentos. Os ciclos laudatórios, as imagens de bastidor, a fornalha acesa para o nazismo vindouro, a orfandade protelada em cada bocejo, o virtualismo, o virtual, precisam destas Trevas nas consciências para ultimar o propósito a haver. Por qual, ele sempre haverá mais inconsciente que consciente. Colectivo. A consciência é um marco, esse, absolutamente individual. «e seria então necessário que, por si mesmo, tudo se separasse de nós e desaparecesse sem ruído. Seria necessário sair destas trevas que é impossível, que se tornou no fim de contas impossível dominar durante a vida… precipitar a chegada das trevas, fechando os olhos para só os reabrir quando se tiver a certeza de estar absolutamente nas trevas, nas trevas definitivas». A Europa ainda é uma assinatura de autor.