Solipsismo

[dropcap]N[/dropcap]o tempo presente graduamos áreas vastas de condições que já foram amplamente debatidas quando este ser que hoje somos não existia em grande quantidade a um ritmo comum. Somos muitos, somos mais, somos tantos que nem sabemos para que serve tanta vida em vagas deambulatórias para todos os lados, e que numa visão mais aturada se parece a muitas outras nas circunstâncias em que estamos a ser.

Mas, e pensando melhor, o que somos entre tantos, entretanto, entre muitos e nós – que nós – somos um, e cada um é tão uno como nós, entre todos somos talvez uma violenta abstração. –

Sim, como bem viu Almada Negreiros, todas as soluções para mudar o mundo ao tempo em que nascemos já estavam tomadas, e cada um tem a sua esfera de razão inabalável para o desmentir, e o que acontece é que vivemos essa experiência como única – egoísmo pragmático – assim atirando o nosso eu para o palco das ideias redentoras, ficando quase sempre um vazio imenso ao redor que não é mais que a maravilha da projecção de pensadores, assim fornecido, para testar a pertinência das conclusões.

Sem focar a matéria filosófica inerente ao tema, há no entanto literariamente um princípio assaz solipsista na vertente poesia, sempre que mencionamos eu lírico versus eu poético, o autor. Ou seja, o poeta que escreve não é o que escreve a “coisa” de si, o recurso que o possibilita fazer não é a natureza do autor, e essa transformação em coisa outra torna um fazedor num bem-fazente de tais coisas amadas que ele apenas para os outros tem autoria mas nenhuma autoridade acerca da sua construção.

Quem faz se está fazendo pelo processo lírico inventado, e pode ser que nasça nele um ser novo, renascido, fruto da complementaridade desse exercício que sempre requer coragem pois que nada sabemos do que vem por aí talhado no grau da imaginação, e se se vai fazer dela a realidade única do centro de uma vida. Se para trás deixarmos o eu poético, é porque éramos poetas antes mesmo de começar.

A vida espreita a sua oportunidade para se tornar centro robusto, e quando aí chegados a nossa posição assenta na demonstração que mais nada de superior ou inferior importa. Porém ( e aqui se esbate de novo o tema) criar não é o mesmo que imaginar que o que não queremos não é ou não existe, pois que passando a ser a inventividade plataforma para outras realidades, o fazedor tem uma maior responsabilidade face ao elemento com que se debate. «Se penso, logo existo» posso mesmo assim não ser responsável por nada saber daquilo que os outros são: posso dizer: – sou um eremita – mas o mundo está cheio deles que pensam a solidão como reforma antecipada ao acto perigoso de viver e, no fundo, estamos todos reduzidos à circunstância individual de existir sem que tenhamos em muitas das vezes criado o tal movimento que vai para locais que não podemos ponderar.

Há verbas, isso nos faz solipsistas tamanhos que não conseguimos mais sair da continuada esfera de as contar, estar reduzido à contagem, sós nos labirintos das contas, mas também há verbos, que os verbos saem do solipsismo ambiental quando não arrancam para mais uma manifesta aragem de um eu encurralado. – Fazer, fazer, fazer… não importa o quê, onde, e a que preço, fazer o quê? – Contar a nossa história ímpar, tão única! Um reflexo gratuito se abate por todos os lados como um plasma irreflectido e a Criatura esqueceu-se do Criador, e sem que suspeite ficou louca e só no meio do martírio da sua galvanizadora manobra. Quando por momentos nos olhamos, queremos ver-nos nos outros como se fossem feitos para nos saciar do que somos, em grande parte já temos um plano para sermos, e uma predefinição daquilo que os outros são que nos atira para graus de solidão tamanha que julgamos que fizeram ou disseram aquilo que pensámos ter querido apenas escutar; no fundo, nem nunca olhámos para ninguém, ao acontecer, é cada vez mais por um ângulo esmagador que há-de fazer do outro um não existente. O que não queremos não existe. Mas o que queremos também muitas vezes não existe, de modo que o nada nos assola como um refúgio jamais imaginado.

Em muitos aspectos estamos perto da vertente dos tiranos e também da esquizofrenia que leva a generalizar os factos extra nós como violentas celebrações de vontades alheias, e, o tempo, essa medida estranha aos laboriosos de uma condição demarcada, parece fugir mais que qualquer outra coisa que tenham, mas não se lhes assiste propriamente um destino que implique uma fonte constante de suave satisfação. Falta isto, esta delicadeza que tem o infinito e a crença na vida como uma terna presença em que não se pode tocar. Bloqueio sem firmeza gera espectros. E se temos de lidar com a nossa verdade como centro indiscutível, sejamos mais céleres no combate à memória daquilo que não queremos lembrar. Que mesmo assim, nos havemos de lembrar por fim. Que seja então para agradecer o mal que nos fizeram que soube produzir algum sincero bem.

Para os que possuem o ónus da prova da sua existência, não adulterar os factos «que para ser grande, sê inteiro» e que ainda muitos não cabem dentro de si.

4 Jun 2019

Cantigas de Santa Maria

[dropcap]M[/dropcap]aio é aquele tempo que sabe a jogral pelo instante da gesta em flor que nos coloca nos cursos de água destes Cantares. Desfolhamos os de Amigo, tão nossos, tão primaveris, e sentimos uma alegria nova, um sentido de chão e cheiro a bailias, de amores, noites fecundas, e descemos até àquela Idade Média que nada tem das ditas trevas. Não devemos nomear assim tempo algum, pois que a todos subjaz a negritude, porém, nem todos nos dão esta forma sedutora. Mais treva do que a dos operários da primeira Revolução Industrial é difícil imaginar, sem recurso aos nichos da flora natural, nem aos campos em flor, morrendo jovens sem nunca ver o sol nos casebres das cidades onde jamais uma flor cresceu. E a Segunda Guerra? Jamais se vira também treva igual. As Primaveras não nasceram nesses anos, suplantadas que foram pelos gases da combustão dos cadáveres, e foi em Maio que findou.

Recuemos pois até ao título polémico «La grand clarté du Moyen Âge», que terá o seu zénite em pleno século XIII, onde se desfolham todas as artes e se unem diferenças mais tarde dissonantes. E é a Afonso X, o Sábio, a quem são atribuídas as Cantigas de Santa Maria desta época remota quem nos prende agora como os sonhos, avô de Dinis, tetravô de D.Pedro I, foi esse rei mecenas que quase poderíamos apelidar de rei da Península Ibérica nesse tempo de reconquistas e cujo extraordinário mérito foi o saber rodear-se de colaboradores muçulmanos, judeus e cristãos, uma forma laboral muito medieva, que só fez proporcionar a chegada deste legado.

Em galaico-português, a estrutura recobre várias temáticas para duas vertentes, a profana e a religiosa, a religiosa é predominante, reunida em quatrocentos poemas e transforma-se assim o rei no trovador mariânico. Escutado amiúde ao som de sinos, é nas noites de Maio que refulgem ainda em nós em ritmos de encantar, e quando despertos destes momentos, todos os sons ao redor nos parecem toscos, tristes, sem aquela infinita humidade cristalina; são os efeitos de uma trança muito bem orquestrada nas três religiões, e se os vários recitativos não são bem entendidos sabemos ouvir neles todas as emanações litúrgicas em seus sons.

Não raro estas Cantigas produzem pequenos milagres vibratórios como “a frescura de asa” que atribuímos sempre à manifestação, dado que as cantigas de milagre são mais expressivas que as de louvor na chamada proporção de nove para um, os milagres não são laudatórios, e em súmula sincrética e sintética, quase equivalem aos “haikus”. O narrador está na primeira pessoa e nada interfere nesta harmonia tão estranha para quem dela padece. Sempre a intertextualidade Bíblica será aqui uma menção honrosa com predomínio para o Velho Testamento, que os tradutores de Toledo, na sua maioria judeus, foram o elo imprescindível para a compilação de tais Cantigas, bem como a influência provençal tão presente e manifesta.

O bestiário da obra é um elemento de verosimilhança elementar na sua estrutura, assim como uma antiga flauta de Pã ou uma harpa de Orpheu encantasse os animais que sujeitos a melodias belas tivessem o ajuste anatómico a uma celebração, esta interação é por si um elemento de extrema delicadeza dado não excluir as criaturas, e foi a elas que por este tempo um outro foi composto «O Cântico das Criaturas», de Francisco de Assis.

O culto da Virgem é o tema dos trovadores que misturando lendas antigas, folclore e outros elementos contribuíram para uma enorme riqueza expressiva havendo em toda esta época a prática das romarias onde os romeiros edificaram os seus altares nas terras onde ainda hoje continuam presença viva estas tradições. As ermidas onde geralmente se tinham dado aparições foram por séculos lugares abençoados e ainda se mantêm transversais aos roteiros das viagens; o reportório de D. Afonso X é considerado o mais rico em termos de milagres narrados e daí a imensa disposição onírica dos cantares que envolve a soberania da manifesta presença a quem humildemente até um rei agradece com devoção e lealdade. A Dama. Ela está sempre presente ajudando um homem a livrar-se da sua natureza primária e dando-lhe o ensejo e a coragem de ser leal nas lutas que trava. É um tempo mariânico com toda a beleza que tal dote transporta, havendo a referência ao leite para testemunhar a divina substância da maternidade onde um seio é elevado a altar, outro dos elementos poéticos deste régio trovador.

E Maio aparece cantado e metaforicamente composto na «Rosa das Rosas» ….Rosa das rosas e Flor das flores Dona das donas “Senhor das senhores” e talvez um género híbrido apareça tomando o Paço de amores pelo pacto entre a Senhora e o monarca. A língua oral encontra-se aqui, a um tempo em que a escrita era reservada, e talvez seja esta a prestação mais humano destes Cantares. A língua é materna se fecundada por poetas. Foram glosadas as três línguas poéticas de então entre os trovadores, o galaico-português, a provençal e o toscano, e por louvor a D. Afonso, em terras distantes, era na língua em que este escrevia que firmavam os seus versos. Uma melodia que convém lembrar.

28 Mai 2019

Os cavaleiros do amor

Todos os pretextos são bons para lembrar autores tão escondidos como Sampaio Bruno, não pela matéria do entendimento (uma vez que o tempo actual não é condizente com a matéria tratada) mas por serem necessários e urgentes no combate ao pensamento único interpretado por milhares de vozes.

Falta tempo ao nosso tempo, e o tempo que sobra não tem tempo para aquilo que não foque temporariamente a raiz dos problemas comuns, que por acaso são cada vez mais incomuns, na medida em que se nos apresentam como irresolúveis. Mas há um tempo em que nada fala mais alto que os saberes não revelados – revelar – voltar a velar. Processos dialécticos de ínfima construção se abatem neste nosso real, e quando já cansados do asfalto das superfícies teremos então de entrar numa zona de «Encoberto» ou as muitas vozes plenas de justo raciocínio e objetividade podem enlouquecer-nos, ou fazer de um ser um parasita que se esforça para tirar de si o que de si mesmo desconhece.

Sampaio Bruno, de seu nome José Pereira de Sampaio, é considerado o fundador da Filosofia Portuguesa. A sua origem maçónica, a sua filiação republicana foram factores determinantes para a construção da sua moral cívica. Redactor do Manifesto Republicano do malogrado 31 de Janeiro de 1891, onde em conjunto com Antero de Quental também elabora os estatutos da Liga Patriótica do Norte, Sampaio Bruno é sem dúvida uma incontornável personalidade a quem o exílio em Paris fragilizou. O desvio dos princípios racionalistas da sua juventude destronam-se subitamente, ou não tanto, talvez até gradualmente, e Bruno ensimesmado, incansável, desiludido com a República, solitário e de saber tamanho, torna-se um esotérico, uma natureza religiosa, estruturando elementos que faltavam para a construção de uma Filosofia (independentemente do complexo conceito que neste caso convém ter em atenção). Os múltiplos aspectos de que se reveste talvez não sejam consentâneos com a Filosofia em si, mas a Ibéria reescreve um seu modelo filosófico onde esta voz foi importante para deixar abertas as portas deste diálogo.

É claro que Fernando Pessoa o seguiu e consultou durante toda a sua vida, chegando mesmo a enviar-lhe o primeiro original de «Orpheu» e, acaso os mistérios falem, nem as datas aqui devem ficar por contar: Sampaio Bruno nasceu no dia em que Pessoa morreu. Os Cavaleiros do Amor, o livro que se intitula também – Plano de um livro a fazer – é uma obra complexa e apaixonante, intrigante, talvez demasiado onírica e pejada de conhecimentos que necessitam um caminhar constante nos trilhos de outros saberes, mas é neste mês de Abril que ele ergue o seu dom de manifestação e cariz profético. Nas nossas vidas, vimo-los e saudámo-los, aconteceu esse belo acaso sem que soubéssemos que estava anunciado, e quem são e ao que vêm estes Cavaleiros?

Numa contemplação esotérica de enunciação remota eles são os Capitães de Abril e a sua mensagem é esta na voz do autor: os tais libertos libertadores, libertando-se a si, libertando os seus irmãos da espécie, contribuem para a libertação universal. É uma mensagem colectiva que ganhou na marcha o efeito sonhado. São as aspectos arquetípicos que possibilitaram a manifestação.

E é por isso que os ângulos de um acontecimento não se esgotam nos seus reais efeitos, pode-se festejar a forma rara deste anunciado por prismas outros e continuar a Festa muito para além do seu artefacto. Creio mesmo que faltou uma abordagem diferente desta etapa da vida portuguesa, e isso iria reflectir-se da pior maneira. Que seja Sampaio Bruno, o grande «Encoberto», a desvendar a marcha, talvez nem queira agora dizer nada pois que ela fala por si na fonte das coisas imperecíveis. E quando cansados do trilho das sociedades nos preparamos para andar à roda de nós mesmos no ciclo fechado que nos atavia de mortes póstumas pelo festejar rotativo de algo por interpretar, seria bom conhecer melhor os nossos Cavaleiros do Amor. Nada é de facto mais parecido; nem faltou a juventude, a beleza, o arrojo, e um Maia lembrando as festas da Primavera, as «Maias», os «Maias» … os Maios.

No entender de tudo isto e indo à essência pura do registo que aqui nos traz, e sabendo-o, ao autor, um conhecedor de todas as Ordens e um seu herdeiro, diz assim: «Todavia, – quero ter a coragem de dizê-lo, consoante ainda rapaz me atrevi a dizê-lo a meu próprio pai -, em regra, e como princípio geral superior, não simpatizo com associações secretas, e não simpatizo com associações secretas porque é força da sua essência que elas façam prevalecer sobre a ideia da justiça para todos, a ideia da protecção para alguns; e, assim, sacrificam o direito profano à iniquidade do iniciado, com cuja causa o laço da misteriosa solidariedade se aperta. »

Ficam assim os efeitos germinais que de longe vêm para um tempo comum agora aqui, e que olha para onde? Endogâmico, incapaz de estabelecer contacto com a frustrante derrocada da sua liberdade, conspirando por deficiência para o aniquilamento de si mesmo, pode no entanto abrir ainda todas as portas que Abril abriu! Tudo o que está escondido é protegido por um anjo que incólume andará por entre as gentes. É tempo de o encontrar.

21 Mai 2019

Guerra santa

[dropcap]D[/dropcap]epois de assistirmos incautos à “matança da Páscoa” em vários locais do mundo durante o tempo litúrgico desta, a nossa atenção volta-se também para o efeito do ciclo de terror que julgáramos sanado. A grande noite da História das Guerras Santas, voltou como um tecido híbrido, é certo, todo ele deslocado, mas suficientemente emblemático para não esquecermos o que lhe está subjacente. Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial foi questão que nunca colheu adeptos, o Governo alemão, laico, enaltecido com práticas mágicas que pareceu até retirar-lhe o efeito de culpa, gravitava em torno de uma brutalidade instintiva por onde não passou, talvez, complexas tradições humanas. Ou seja, a atenção para com elas era mínima, o desrespeito absoluto, e todos estavam em Guerra não pelas práticas religiosas, mas por causa da supremacia maníaca de um povo. Até aqui não se nos afigurava nada do género que pudesse de novo fazer reviver a prática já ultrapassada do sangue, a morte tinha então contornos novos, tão novos, que ainda agora nos emudecem, mas eis senão quando, o mais antigo efeito se nos impõe: a guerra sangrenta, as matanças que jorram sangue, as religiões que sangram e fazem sangrar.

Este estado recente das coisas é tão velho que julgáramos já esquecido.

Recordo-me então de René Daumel e da sua «A Guerra Santa», um texto gnóstico, ele que começou por ser um poeta surrealista amigo de Breton e de toda uma herança de vanguarda, escreve este texto com a parcimónia dos que quase renegam a causa primeira, descrevendo áreas absolutamente iluminadas sobre o grau de transcendência de uma revolta (se tal possa ser assim descrito) pois que para alcançar o pleno aspecto da definição poética ele terá necessariamente de visitar o texto sagrado. É portanto avesso ao chamado código literário e às faíscas soporíferas das fantasias de cada um, abeirado na essência primeira, busca o ser, a nossa Humanidade, no vazio silencioso das coisas. É um superlativo anunciador que se intui no extremo de uma condição e que não tem medo das palavras e dos diversos códigos que elas transmitem. Procura a limpidez, austero, é no entanto sensível e raro, contido e forte, quer a brancura de um entendimento;

«Falarei para me chamar a mim à guerra santa. Falarei para denunciar os traidores que eu próprio alimentei. Falarei para que, aquilo que eu disser, envergonhe as minhas ações, até que um dia, uma paz blindada de trovoada reinará nos aposentos do eterno vencedor. E porque empregarei a palavra de guerra, e esta palavra de guerra não passa hoje de um simples ruído que as pessoas instruídas fazem com as suas bocas, porque agora, ao empregá-la, é uma palavra séria e carregada de sentido, saber-se-á que falo a sério e que não são vãos ruídos que faço com a minha boca».

Parece-nos uma demonstração demasiado críptica para um entendimento simples ou uma manifesta indignação por tudo o que sobra de bem estar perante os que a olham sentados nos seus delírios e que insistem em nada entender que os comprometa. Mas estamos talvez bem mais amuralhados do que alguma vez supuséramos. Nós, que não vamos aos Templos, morremos agora por causas desconhecidas às mãos dos motes de poemas fatais?! Em todo o caso são os homens que matam: e que temos nós todos a ver com a poesia? Também já nada. E qual?

Também não sabemos. Entendemos vagamente que os interesses geram revoltas, mas, quem está já interessado em nós? Presumimos que muitos, mas pode não ser assim. Ignorámos todos na nossa marcha vitoriosa de forma vária e há um dia em que um deus ou um demónio, surge para nos falar, e neste caso as respostas ainda não estão prontas porque sem nos darmos conta fomos ficando sem elementos de versificação. Há sempre um lado morto que ressuscita, uma antecâmara fechada que vem pedir resgate, e a nossa culpa continua a ser, nenhuma, pois que os que agora caem em nada contribuíram para tais fins. A expressão contra, é agora arbitrária, Mesquitas, Igrejas, Sinagogas, uma demonstração de insanidade talvez só comparada às invasões de Tito, são atacadas como peça única. Por incrível que nos possa parecer é mais ou menos aqui que estamos, e, o que os últimos séculos lutaram para desviar a rota do sangue, atribuindo novos ciclos de conquistas não menos mortais é certo, aqui, rejuvenesce o espectro da velha “santidade” mote e acção para a chacina. Seja o que for, ninguém está preparado para isto, para um discurso entendível, uma compenetração capaz. – O quê, Deus outra vez? – Talvez. Convém não nos desvincularmos do circuito da Civilização que fomos sendo, não havendo no entanto Civilizações profanas, quanto muito, mais animistas. Ainda a abstracção para nos alongar o espectro da memória e da lembrança, já que no ponto incognoscível ainda arde em nós palavras que dizem ter gerado o Homem, ou caminharemos para uma incomunicação plausível tornando-nos o mais conseguido dos paradoxos.

E ainda diz Daumal: «Das outras guerras não falarei – as que se suportam- não falarei. Fala de sacrifício quem, por motivo nenhum cortaria o dedo mínimo, fala de conhecimento quem, se disfarça perante si próprio, tal como a grande doença é tapar de palavras para não ver».

Muito deixámos de ver por força das «Luzes» e das iluminações a vapor que fez a cegueira avançar como uma conquista que todos tinham de seguir, porém, aqui chegados, é bom lembrar que há aspectos que nos acordam para ver. «Porque num verdadeiro poema as palavras transportam as suas coisas». É duro lembrar. É duro esquecer.

14 Mai 2019

A antologia do esquecimento

[dropcap]M[/dropcap]omento existe na vida dos poetas em que desejam ser antologiadores, o que se compreende muito bem dado o conhecimento da matéria e as vastas horas dos dias debruçados na leitura da causa. Mas alguns que da poesia têm quanto muito uma analogia com o fado, anunciando-se com vários graus de entendimento por designado interesse na expressão, não raro o desejam também, sendo por isso mesmo que há antologias para todos os gostos, que é sempre o tal gosto de gostar de muita coisa e de procurar entender o que corre nos veios delas.

Há mesmo antologiadores que em parceria com outros se obrigam, reunidos, em fazer parte do conjunto do seu antologiado. Defendem um princípio de natureza barroca e cada espaço vazio é dado como fórmula desconhecida, se insurgindo então sempre e com mais matéria do que a noção poetizante pode supor ou suportar. Daí que, se todo o cuidado é pouco em juntar, mais cuidado teremos de ter em subtrair.

Nas antologias escatológicas existe então um consenso total, uma irreprimível vontade que subjaz à força de uma subversão qualquer e nivela todo o dejecto em causa comum, partilhada, e de todos bem-dita. O que cobre a vasta gama do sermão, entre as virilhas do verbo e o desmando da aleivosia de cada um, é a audácia, que tende para a norma vassala que é o engordar do dislate soberano. Uma grande esteira climatérica, os chamados «Jardins de Inverno», se adensa por entre a floresta tropical dos ensejos onde o léxico coloquial reverbera, e onde as capas das antologias começam por ser duras, para logo afrouxarem lá para as edições seguintes.

Sejamos então um pouco mais claros – quem Antologia quem? Geralmente os do mesmo género literário, pois que devem unir assim as peças soltas e separar da curiosidade o destino que lhes é inerente e todo o impulso para a amálgama não será benéfico na expressão que um género traz.

Após as reformas e as lutas laborais, metem-se então alguns pelas páginas, adentrando-se numa malha prolífica de “poetas” mas aqui, como em tudo, é preciso começar cedo, estar presente, pois a centelha só brilha em cada um na proporção de um estranho abandono. Quando os não obreiros se manifestam costumam dar nós cegos e estranguladores na linguagem, a pandemia do ofendido empurra para o lixo o próprio termo poético. O talento dos outros começa a ser, não raro, uma arritmia, e se em ousada abnegação de sinais se sabe inquestionável, não sabe contudo o porquê de quererem ocupar um lugar tão difícil quanto o seu. Cuidando dos afetos de proximidade matamos a lira das nossas esferas mais distantes.

As Antologias de Eugénio de Andrade e Jorge de Sena são tratados alquímicos elementares, porém, nem sempre se nos apresentam como tal, subjugados que andamos por recentes, novos, novíssimos e interessantíssimas edições descontroladas. […] mera circunstância de igualdade/ infeliz neve que a si própria deve o esforço de pousar… vir corromper o Sol da primavera/ que não esqueça logo o projectar da Esfera – e, só depois, a Sombra essencial.[…] Jorge de Sena. Não raro também assoma aquela frase de Carlos Queiroz «não só com sentimentos se faz poesia, mas também o poema se nega aos ressentidos». A negação que quer provar abnegação também existe, e todas as volúpias mantidas para a chegada à lira de Orpheu do canto antologiador. «Os que vão morrer te saúdam», assim cumprimentavam César!

As Antologias de autor são, curiosamente, muito mais elucidativas para o interesse público, que deve reflectir na construção de uma obra e no tratamento de uma linguagem que urge ser reabilitada para que não fique perdido um certo som que educará mais e melhor que todas as narrativas dos muitos enunciados. A língua é uma matéria que se faz na correspondente do vocabulário poético, que ao separar-se dela vai moldando uma arquitetura deficiente na zona da linguagem cerebral. E nunca será com transferes de sangue contaminado que a percepção arranjará espaço para tão demarcada área cuja função mecânica por incrível que pareça se conhece bem menos do que era espectável. Ainda andamos intrigados, foneticamente falando.

Antologiamos os profetas, e deles só havia som. Quando a insurgência face aos livros sagrados se dá, gritam então as vozes antológicas da natureza humana, que foi quem as compilou no que pensa ter sido dito, é que ao nomear adquirimos a força precisa para combater mas, na longa matéria dos signos escritos, a Humanidade é um Verbo só. Porém, raros são os que lhes acrescentam mais tempos. Outros tempos. Mais amplexo verbal. Mais realidade, e mais sonhos, portanto.

Escutar os Cancioneiros antologiados da voz colectiva, que quando o mutismo vier depois da perda de sinal, os nossos gestos valerão pouco para salvar da ruína todas as coisas reunidas.

30 Abr 2019

Ângelo de Lima

[dropcap]O[/dropcap] poeta Ângelo de Lima, nascido na segunda metade do século dezanove, ainda de cariz vagamente simbolista entrando no Modernismo português pela Revista «Orpheu», não merecia o veredicto de um homem como o doutor Egas Moniz! Mas, enfim, a ciência em princípio sabe, ou sabia tudo, e dava e dá pareceres da sua verdade que longe parece andar de naturezas e casos especiais.

Sem qualquer sensibilidade para os factos, a leviana demonstração dos ditames analisados põem-nos de sobreaviso perante aquilo que é definido por diagnóstico. Já então a Nobilidade não era prova de mais distinta compreensão, pois que se o fosse seria um desprimor analisada por tais factos. E diz assim daquele que foi um poeta de fina e inventiva interpretação linguística e altíssima qualidade poética: «O fundo mental deste doente é de um formidável desequilíbrio. (até aqui nada de mau, pois adjectiva tal natureza, a uma talvez, quem sabe, excepção) Ao lado de qualidades artísticas, que os seus amigos talvez exagerem um pouco, mas que em todo o caso são incontestáveis, apresentando no mesmo caso coisas lamentáveis (riso). Assim, com o lápis, é um emérito desenhista; um pouco académico, não perdoa a nitidez dos contornos, sendo talvez um pouco duro. … é uma lástima e não chega a ter consciência do seu nulo valor».

Muitas vezes o que parece não é e o que é de facto pode até nem se parecer com nada. Mas, na grande erudição de pareceres pátrios, quem disser a primeira asneira parece muitas vezes coroado de um momentâneo sucesso, que é tanto maior, quanto maior as insígnias, e assim ficou retratado o poeta, onde lhe seriam acrescentadas ainda as toscas descrições de Miguel Bombarda, descrições essas, mais anatómicas, no âmbito de um auto-retrato Bocagiano. Haviam de dar certas as rigorosas demonstrações para descanso das mentes, e os pareceres, para efeitos curriculares, para que o levassem depressa a desistir de qualquer ideia estouvada de se manifestar. Em clausura no Júlio de Matos, assim passa grande parte da sua insanável vida, ele que foi até um ilustre membro da Revolta Republicana do 31 de Janeiro.

O auto-apelidado país poético “esquizofreniza” cada vez que um lhe sai ao caminho, que será sempre alguém de características suspeitas e não longe da armadilha do ditame. É que tal sociedade, de uma loucura enfadonha, procura resolver tal dilema pela anulação da diferença, criando a sua norma, que é também ela suspeita de alarvidades várias sem método legítimo.

Quando lemos Ângelo de Lima sabemos que a inovação é um lado verdadeiramente apaixonante, não interessando para nada qualquer juízo de valor, e que a moldura de uma assinatura daquelas é um mérito tal que talvez até haja espaço para dar graças a certas doenças ou amenizar suspeitas que recaiam perante pacientes assim. Em último, um pedido de desculpa pela vilania do tratamento que lhes deu o coro dos pareceres colectivos, pois creio que a desculpa não está outra vez na moda e quando esteve seria também esta a última a ser lembrada. Por isso, creio que ele nos merece a nossa atenção genuína e neste instante que escrevo em português estas simples linhas, lhe presto o meu louvor, e em português lhe peço desculpa. A sua alma saberá entender que sou apenas uma porta-voz que ameniza uma grosseira injustiça.

– Devemos virar-nos para o Sol querido poeta – não este que por aí anda em goelas disfarçadas, mas para a deidade do dom das coisas que difíceis de manobrar são a vida e a morte, e também o que sobra de Humanidade nos interstícios de tudo. É esse dever sagrado que foi dado como único vínculo nesta situação, que as vozes, são alucinações dos que ao perpetrarem-nas não chegam a ser escutadas no vitral das provas. Cada vez que te vejo a tristeza vem, e vem pura, sem drama – a dramaticidade não chega até aqui – nem a consciência de que mesmo a grande dor da mãe morta possa ser do feto um filho recusado, explica quase nada perante a tua grande ausência de fixação.

As estrelas brilham em outras vibrações bem longe dos úteros, como daqueles que à força desejam sanar o insanável. É contigo que agora me conecto em simples melodia, talvez em voz primeira e factos renovados. Nenhum parecer é definitivo, nem os anátemas nos tomam para sempre, só o tempo estranho e longo de uma caminhada toda de imponderáveis efeitos, nos aproxima da situação mais provável de uma harmonia.

E cada vez que me doem as palavras todas conjugadas para efeitos óbvios, eu desisto de escutá-las, lê-las, ou continuar cerrando as filas das suas amplas armadilhas, e só tu apareces no cimo de um esplendor qualquer resgatado à maravilha: «- Mia Soave … – Ave?!…- Alméa?!… Maripoza Azulal….-Transe!… Que d’Alado Lidar, Canse… – Dorta em Paz…. – Trespasse Idéa! …. Não Doe Por Ti Meu Peito….- Não Choro no Orar Cicio… – Em Profano… – Edd´ora… Eleito!…. Balsame- a Campa… o Rocío. Que Cahe sobre o Último Leito!… – Mi´ Soave!…. Edd´ora Addio!… “

23 Abr 2019

Abril

[dropcap]T[/dropcap]odas a definições extremadas que o associam estão certas: as águas, a porta, o boi, o bode, o abrupto, a entrada, o ponto vernal do viril instante não nos sossega e também inquieta o mais estável de um ponto imóvel. Há um temor de que os ventos se alonguem levando cabeças, ideias, projectos, segredos, e erupções de génio passam intrépidas pelo corredor dos dias. Os telhados de vidro estilhaçam e somos nós nesta sempre imprevista arquitectura simiesca as Capelas imperfeitas. Chove-nos por cima. Tudo isto reunido, tem, claro está, o grande capricho dos elementos que se entendem para assim nos fustigar – intermitências da vida – que as da morte não parecem reunidas neste consenso.

Andar tem segredos e não faltam situações de quebra de ritmo energético que toca nos mais frágeis, abalroando-os, sem vantagens aparentes, pois que a força quando actua nem sempre é direccionada. Vai andado até embater e depois desliza para os que estando de boa saúde também cambaleiam ao ritmo da Estação. Abril charneiro requer coragens olímpicas! As Páscoas tosquiam-se pois que vem aí calor- há-de vir – que em muitos momentos chega intenso para logo ir, e vem depois o frio que logo se vai, e todos, numa insanável desdita marcham à frente sem capacidade de retaliação. O que vem e o que vai é uma dança. É o instante sacrificial para nos sustermos de pé. Andar de pé, é ainda um doce mistério articular, e por isso a coluna parece doer a tantos sem sentido, também ele, muito aparente. O que dói é a projecção para o alto, a verticalidade, pudéssemos nós ter mais pés e nada destas dores aconteciam.

O Boi Ápis veio do Egipto que na fuga Primaveril dos hebreus se juntou a eles e passou assim infiltrado entre as gentes que fugiam. Ora, depois de uma ausência prolongada do líder, eles mesmos reergueram a sua divindade e fizeram um bezerro. Apís-Abril. Estes infiltrados ainda vinham com bois mas, e dado que a pastorícia fazia parte integrante da vida dos fugitivos, o Carneiro estava assim mais apropriados à moldura do enfático mês. O carneiro morto com sangue pintado nas portas ajudou a salvar inocentes, mas matou outros tão inocentes quanto os primeiros, que não tendo a mancha do seu sangue, morreram no infanticídio. O sangue de Boi não opera milagres. E foi passando que a passagem se deu mesmo que fosse perto o destino dos que empreenderam tão rápida empreendimento. Abril, traz para mais perto o rebanho e deixa as gigantescas carnes bovinas em outras pastagens. Não são precisas metáforas vindouras. Abril, em todo o caso, presenteia-nos com os cornos dos ciclos começados. Avança pelo chifre!

A noção do coelho é uma delonga exasperante dado que caçar não é muito Primaveril. Ainda não estão crescidas as crias e não se matam os pais, alusão ao ciclo de fertilidade que se dá quase por raspão e fontes de propagação desmesurada. Os ovos, só os de codorniz, que caíram no deserto em forma de Maná, se fosse de avestruz ou de galinha não eram coincidentes com a época em que tudo o que é pequeno se agiganta. As Páscoas tecem agora a argola dos seus princípios ritualísticos de Abril. Começar, passar, atravessar. Ficar parado agora é bem pior que nos pormos ao caminho mesmo que não se saiba para onde se vai. Vai-se! A experiência dita que o pontapé de saída é o mais difícil e também o melhor. Incrustado ficou no zodíaco como o mês chifrudo. Pois se é Carneiro, passa a Touro.

O 25 de Abril é bem uma festa litúrgica mais associada ao Boi. Bela, florescente, ímpar na franqueza direcional, sensitiva do grupo que festeja o ímpeto inquebrantável de uma liberdade que molda a primeira consciência dos grupos humanos. A Festa da vida com o rubro escarlate do animal. Se não fosse assim, a volúpia não tinha alinhado com o melhor, no Inverno, por exemplo, não se fazem Revoluções, as do Outono são muito maduras, invocam princípios de civilizada análise social que não presenteia a alegria. Por isso, e na vasta tendência do nivelamento colectivo, convém não descurar esta zona de impacto que se dá nas entranhas mesmo do cadáver morto que ao ressuscitar lá para mais tarde funda ainda uma religião.

O 25 de Abril é bem uma festa litúrgica mais associada ao Boi. Bela, florescente, ímpar na franqueza direcional, sensitiva do grupo que festeja o ímpeto inquebrantável de uma liberdade que molda a primeira consciência dos grupos humanos

Convocar as nossas forças e ter à cintura um ramo de flores, saber que tudo passa rápido e que em muitos casos só passa uma vez, embora o que nos sele seja ímpar, e o que nos abençoa uma casualidade. Abril já quase a meio prestes a formar a saída… do Brexit? Ou de todos nós no local amargo em que nos fomos deixando estar? O que nos planteia a fúria temporal ? Mesmo assim e com tantas alterações há ainda componentes imutáveis quando o transbordo se faz por aqui. O cérebro do universo deu ao nosso essa capacidade de se repetir, e não vai ser pela desorbitada aceleração do impacto neuroidal que se muda em nosso tempo físico.

Há muito por fazer, e ainda mais para recomeçar, mesmo às voltas, nada volta como já foi, é esse o sentido da construção.

17 Abr 2019

A matilha dos afectos

[dropcap]H[/dropcap]einrich von Kleist, o patriota prussiano, poeta e dramaturgo, escreve entre algumas obras de referência aquela que viria a ser a obra-prima do teatro romântico, «Pentesileia». É uma obra monumental! Não tanto pela opulência ou pelo vírus exacerbado da representação, mas pela temática e virtuosismo em delinear o impossível sem quase nenhum recurso ao comprometimento dos méritos da união, e um fôlego pulverizante que nos coloca diante da tensão máxima dos arquétipos masculino e feminino.

Este vigor é uma oferenda sagrada, embora se leia nele desde o início o mítico desfecho da morte anunciada. Aqui as delícias da aproximação não existem e a junção é banida pela representação da força de cada um, Aquiles e Pentesileia. Depois, há todas as vozes sacerdotais que representam a missão em coro grego e a consciência dos que acarretam as linhas de acção de um empreendimento. Nada de domesticável, até civilizado, do modo como o concebemos, toma as rédeas destes cavalos que ambos fazem relinchar com seus cascos ferozes. É a causa de cada um, que indomável, nos acelera a vontade de ser um deus, mesmo cegando com o brilho das espadas.

Esta peça foi talvez buscar a orientação para a sua liberdade e pujança à derrota prussiana, o que exerceu no autor uma desvinculação nacionalista – ou melhor- uma outra orientação da força, já sem efeitos propagandísticos e saído assim dos círculos daqueles que se barricam nas hostes. Os heróis, são gregos, com observância para uma era matriarcal, essa civilização amazónica que levou à agricultura o quadro de uma ginecocracia com a sua componente dionisíaca que é o da apropriação do macho como servil emblema de combustão, que a obra urge suplantar, pela afirmação da condição apolínea. Parte então: “para este combate amoroso assente no «ódio mortal entre os sexos» a dilacerante ambivalência de um campo de batalha, que bem poderia ser «um leito revolvido».” Avançamos efectivamente pelas superfícies tectónicas que vacilam e se tocam para delinearem a supremacia de uma nova crosta terrestre, e acrescenta: «Pentesileia ferida de morte por ele, surge aos olhos de Aquiles, duplamente bela, e só aqui descobre a plenitude do sortilégio amoroso». Mas, e também, para cumprir a nova ordem cósmica se revela que a morte de Aquiles não foi um assassinato trágico, apenas uma paixão exemplar de que a terra comunga e sobre a qual baixam naturalmente as trevas – um imenso pôr-do-sol sangrento.

Estas esferas simbólicas vêm do fundo dos tempos e congregam-se numa faísca de metal em fusão num ventre titânico e original, quase neolítico, que imprime moderações e metamorfoses a eras que se vão fazendo com mais ou menos resistência. Nós, que em pleno século vinte e um escutamos estupefactos as histórias de terror dos casais, devemos cingir-nos aos mitos fundadores ou estaremos condenados a uma saga imprópria para a posteridade.

Também o tempo do amor paixão se desmoronou e nem por isso deixámos de nos apaixonar, a lenda da felicidade é mais uma fábula, e por vezes carregamos um couro que não sabemos que estamos a ouvir, e as vozes que gritam sem que as oiçamos, atiram-nos para vastas superfícies de infortúnio onde se esgota, por isso mesmo, a sua razão de existir. – E é claro – querer moderar abismos assim calcinados por descaso e desconhecimento, cria hiatos, e vicia-nos também nos nossos próprios embustes de consequências estranguladoras.

Goethe (estamos pois no fim do século dezoito) foi um opositor a esta manifestação, se é que se pode assim apelidar a reacção em face desta abordagem indómita, e foi-o, na sua moderada frequência de homem em busca de uma «educação sentimental» em tudo antagónica a este Kleist -este- seria então a expressão dos obscuros movimentos dos afectos. E não apenas! Kleist demonstra que se pode ser escandaloso a partir na nossa própria natureza. Quem não é escandaloso, é doloso, malsão e até rude, configurando um caso de hábitos adquiridos que lhes empresta naturezas várias, não sendo no entanto cada um praticamente ninguém, face ao sistema vibratório de uma obra tal. “O tal inumano, onde os afectos perderam o seu véu pudico e trespassam os corpos como flechas, nus, crus e incalculáveis”. Para além de um brilhante tratamento de linguagem, é uma recuperação mitológica trabalhando dentro de nós a remota, longínqua, área adormecida, ou mesmo extinta; a linguagem vai então servindo o propósito acelerativo de uma hipnose, e, um homem surge-nos subitamente um ser diferente daquilo que geralmente nomeamos. Estou certa que uma mulher também.

Ainda, e voltando às Amazonas, cujo impulso as projecta para o combate e a captura dos seus vencidos, não lhe poderemos chamar sedução, pois que o Amor está-lhes negado. É mais a continuidade biológica que prepara um terreno cujo domínio é exercitar as armas e propagar a espécie: nenhum homem, mesmo filho, tem qualquer sentido na sua estrutura interna, na medida, em que assentes no mito dionisíaco, o homem é ente utilizável, festim para fruição, onde se vai aqui pressentido já o terror face a esse deus que faltava e que assinala o fim de uma estirpe. O homem que se usa, nunca será igual aquele que comanda: e é este instante que marca as raízes que podem muito bem estar escondidas, até, quem sabe, em algum de nós. Já Marguerite Yourcenar tem, no seu livro «Fogos», esta passagem clássica e definitiva, em conto, e embora bem mais refinada diz isso mesmo: «A viseira levantada descobriu, no lugar de um rosto, uma máscara de olhos cegos que os beijos jamais alcançariam. Aquiles soluçava, segurando a cabeça desta vítima digna de ser um amigo.»

Uma emboscada foi lançada. A força que nos destrói é a mesma que nos constrói, saiba agora do Amor a matilha, que a predação o conduzirá a outra História.

26 Mar 2019

Trevos e trevas

[dropcap]D[/dropcap]e ora em diante deponho os trevos e quero as trevas, género perfeito. O plural da escuridão é mais que breu, e, ao afirmá-lo, ainda o faço num dia esplêndido de quase Primavera. Thomas Bernhard «Trevas» precisamente. Tão difícil mencioná-lo! Ele anda no entanto por todas as Instituições de Ensino, em palestras, colóquios, debates, e parece a cada abordagem, sempre e mais inacessível. As leituras, essas, são como os feitiços, podem subjugar-nos e por isso temos de ser vigilantes, ao revelar (velar pela segunda vez) tomamos consciência que a forte probabilidade de uma paralisação mundial possa ser feita pela leitura, feita por mentes audazes que testam a frágil inteligência humana tão repleta de anseios que pode muito bem constituir um vasto plasma para testes radicais.

Na vasta gama dos estilos o poeta escapa ileso à urdidura do ditirâmbico manancial de hipnotização colectiva, dado que obedece a leis muito estranhas, cujo objectivo não domina – nem lhe interessa- porém, não raro pode ser o mais agreste dos artesãos feiticeiros, e devolver intactas as leis que todos se amarfanham por esconder. É o irrealista resoluto na marcha da escrita, que lhe escapa, como tudo aquilo que lhe foge. Assim sendo, trabalha num bem, que ao averiguar-se perigoso, será sempre fora da sua estricta vontade de fabricante de alguma calamidade. Já os narradores, os novelistas, os ensaístas, são mais atentos na imodéstia de algum incisivo desnorteio, e alguns, tomam mesmo as rédeas do mais indómito dos poetas na saga de uma obra, que afinal, é a vida e as sociedades que as imploram.

Mas que tem Bernhard a ver com isto? Quase tudo, já que para romances temos a vida de cada um e as descrições quase sempre enfadonhas dos seus méritos, onde cada qual fala de si a partir da urdidura ilusória das múltiplas tentativas, e, é tanta a praga, que devemos ver coragem em desconhecermos tais investidas. Cada coisa destas cresce por dentro de tal forma que precisará de um assassino para que o circuito fechado abra por fim em golfada, esguicho, abertura sanguinária para fora. Por fim, a liberdade que qualquer nado morto desconhece, e muitos acordam nesse instante, exangues e lúcidos, e talvez até quem sabe, mais serenos. Quanto a mim, tocou-me sempre a vida deste homem e a sua natureza. A marca de um nascimento onde existe uma maldição que demonstra a beleza de alguns, saídos de vínculos danados e proibitivos, ao seu avô escritor, a irreverência, o trauma que carregou sublimado em brilho, a superação inigualável de um bem que durará pela vasta obra deixada aos vindouros.

Bernhard teve uma longa prática nos jornais, sabendo como assinalar para o conjunto de uma obra narrativas breves, levando-as para as novelas e peças de teatro. O seu tempo de renome chegou e culminou num grande desassossego ambiental, agreste polémica com Elias Canetti que o faz renunciar à Academia Alemã, e as obras proibidas no seu país, a Áustria, ainda que provisoriamente. «Trevas » têm dentro o seu paradoxismo pela claridade, essa superfície fria que encherá o mundo de terror, o mundo científico, visionariamente entendido nessa lâmina de aço onde a hostilidade será infinitamente mais alta que toda a imaginação: ele fala afinal da brancura que inundará os cegos e de frios muito maiores que o próprio gelo. Não parando jamais de nos interpelar durante o seu instante cósmico face a tudo aquilo que tínhamos por seguro, não foi em definitivo um contador de histórias: “as relações com o próximo? Melhor rompê-las bruscamente.” Não creio que se possa no entanto fugir ao raio de acção da sua força. Subitamente, e só para o fim, se congela em fragmentos nos seus estratos de breu e nada nos aquece mais que a pira da sua alma a arder.

Os nossos dons agonizantes que brilham timidamente no asfalto das Nações, precisam destas manobras sem freio saídas de um homem com rosto de menino a quem o nazismo tanto incomodou, prostrou e enraiveceu.

Devem os escritores reacender este tumulto? Devem, sim. Ateá-lo e continuar atentos. Os ciclos laudatórios, as imagens de bastidor, a fornalha acesa para o nazismo vindouro, a orfandade protelada em cada bocejo, o virtualismo, o virtual, precisam destas Trevas nas consciências para ultimar o propósito a haver. Por qual, ele sempre haverá mais inconsciente que consciente. Colectivo. A consciência é um marco, esse, absolutamente individual. «e seria então necessário que, por si mesmo, tudo se separasse de nós e desaparecesse sem ruído. Seria necessário sair destas trevas que é impossível, que se tornou no fim de contas impossível dominar durante a vida… precipitar a chegada das trevas, fechando os olhos para só os reabrir quando se tiver a certeza de estar absolutamente nas trevas, nas trevas definitivas».

A Europa ainda é uma assinatura de autor.

19 Mar 2019

Porca de Murça

[dropcap]E[/dropcap]ntrando na primeira Lua Nova de Fevereiro no Ano do Porco, associamos um ciclo de mealheiros recheados de moedas e um conforto doméstico qualquer. Não sendo propriamente o mais atraente no Bestiário oriental, nem por isso deixa de ser afável e de um acalentamento qualquer no nosso imaginário. Crescemos com as suas histórias, acompanhou-nos no ciclo da civilização, e ainda as gentes lhes são gratas pela utilidade gastronómica de acesso fácil e ciclos simples de tratamento. Não falemos do Médio Oriente cuja utilidade é nula e a sua ingestão interdita, isso, e talvez, por que o deserto não preserva bem as suas carnes, nem tão pouco obedece às prédicas fisiológicas e anatómicas da exigência da ingestão. Contornemos os obstáculos associados à sua natureza e vejamos neste animal, também, um cordeiro, a quem não lhe foi reconhecido o mérito sacrificial em prol da Humanidade.

A Porca de Murça é no entanto um dos símbolos mais fortes da Península Ibérica, e quase que limita a periferia entre uma agreste fronteira celta, lendária, cujos nomes de proximidade também reflectem uma aridez e truculência difíceis de pronunciar como Carrazeda de Ansiães: nestes paragens foram invadidas populações por javalis, cujas montarias não chegavam para afoitá-los, e outrora havia uma fêmea de tal corpulência e ferocidade que os povos consideram um monstro – mas não só era assim – como inteligente e estratégica na forma de fintar os inimigos sendo por isso uma força da natureza que aterrorizava ainda mais aquelas gentes.

Foi um cavaleiro no ano de 775 – Senhor de Murça – que agindo de espírito matreiro e habilidades várias consegue salvar as pessoas do terror. Matou a porca. O caçador ficou protegido pela comunidade que graças a tal reconhecimento, foros lhes foram dados junto à estátua. Podemos ver aqui a natureza germinativa e opulenta deste animal que excede no feminino todas as expectativas do seu género, de facto, ela é uma mãe pródiga e a sua prol uma abundância. Por outro lado, são extremamente inteligentes e encontram-se à frente dos cães em astúcia e atenção, são sociáveis e interagem muito bem a nível de diversões, há quem admita que são corajosos na defesa dos seres à sua volta em caso de ameaça e muito ao contrário do disfarce que lhe colocámos, a sujidade não faz parte das suas características. A característica é nossa projectada neles e, por tudo isto que tão cruelmente lhe fizemos, o Porco é um ser que deve ser reanimado do trauma de proximidade .

Existe por aí, fruto de uma consciência ainda de sinistralidade demográfica, e de sistemas errados de capitalismo: versus/anti, uma parafernália de discussões viscosas acerca dos pernis, das exportações , das consubstanciações, uma repugnante e maciça consumação da sua carne, os mais pobres são as áreas onde penetra a ingestão em peso, pois que ninguém pensa neles em matéria de longevidade. Como parar este tormento e como tornar mais proteica a necessidade dos povos? Devia ser uma urgência neste tempo de mudança um assunto assim. Mas não o é, e a exportação da sua carne para a China no ano em curso toma foros de genocídio da espécie e massacre de vidas. Gostaríamos de interromper este drama mas, nas contas dos Estados, as prioridades são outras e as soluções de fundo ainda não foram entendidas.

Mas cruzemos então situações: ainda não há muito tempo por terras do Norte, bem perto de Murça, um homem que resolveu fazer a matança sozinho, foi morto por uma porca, e esta abatida por equipas de socorro. Uma notícia que não escapa à atenção dos que sabem da lenda daquelas quase jurássicas regiões que continuam, milénios depois, a ser vítimas das mesmas coisas. Aquele homem não sabia que as porcas são animais perigosos, e na sua rude manifestação, escolhera-a pelo porte mais volumoso, são os agrários que desconhecem as lições de vida dos seus próprios «habita». Há um roteiro nas paragens das lendas que reproduz realidades iguais. A memória das coisas é mais forte que a Porca e quase se confunde com ela.

Não nos esqueçamos que existe sempre analogias às fêmeas lusitanas pela abundância e fertilidade, quem não conhece aquela frase que diz: « As éguas da Lusitânia emprenham pelo vento» verdadeiras ânforas de gestação e pródiga matéria orgânica….nas regiões rurais, o porco era levado à porca, ninguém leva a fêmea a parte alguma de forma simples, dirigista, e em caso de matança, os machos são mais fáceis de caçar e de matar. A célebre caçada à Porca tem a sua estátua na Praça 31 de Janeiro, em Murça, pois que se crê que foi por esta altura que se deu a emboscada, talvez um remoto culto a Fébrua (Fevereiro) mãe da guerra, onde as noites estavam habitadas de tochas e candeias para conceder vitória sobre os inimigos. Não sendo um animal teutónico (o encantamento pelos animais) era considerado temível e nada dado a manobras de sedução.

Desta Porca ficou-nos a título um belo Vinho, e nestas paragens já não há relatos de javalis. Do bloco granítico, e para agudizar a predominância do macho em período possivelmente mais tardio, fora-lhe colocados testículos. Mas as lendas andam e têm mutações imprevistas. Para nós, esse apetrecho não usurpará jamais a condição de uma imensa força feminina em acção, muito antes da retirada dos seus seios.

Bom Ano do Porco, seja lá o que isto signifique, e recheadas estejam as suas representações que são bons prognósticos de riqueza.

12 Mar 2019

Cândido

[dropcap style≠‘circle’]V[/dropcap]ivemos agora o instante de Voltaire um pouco de forma inconsciente mas muito próximo da natureza dos factos que lhe deram vida. Nos «Maias» já encontrámos esta personagem, afagada por longas e manifestas rupturas com a manifestação social da sua época, mas a candura era de certa forma um atavismo da opulência de classes sociais que vivendo de forma descontraída nem por isso se sentiram menos enfastiadas, e que no arrabalde a quando das convulsões dos regimes foram descobrindo prazeres novos e simples. Porém, hoje, no gritante estertor do mundo, muitos jovens das sociedades capitalistas experimentam pela primeira vez a derrocada do dogma da sua imperecibilidade e descobrem assim prazeres, também eles novos, e formas de vida para as quais jamais alguém os preparara. Mas também Garrett glosou na sua Joaninha – a dos olhos cândidos – uma pátria que mandava para os autos-de-fé aqueles que lhes apaziguariam os dias do poder das Fúrias. Ora, «Cândido» fora censurado em Portugal dez anos após a sua publicação em 1769 por não ter compreendido bem a necessidade sacrificial de tais práticas e ao ter ficado demonstrado que nem com isso se tivesse impedido um valente tremor de terra.

Mas os Cândidos de hoje não serão exactamente aqueles que na orla dos caprichos fechados das suas cidadelas trepavam pelas paredes acima à procura de situações romanescas para desviar o enfado de séculos, os nossos, são bastante menos “cândidos” são cultos, informados, versáteis e cosmopolitas: têm alucinogénios, viajam, transgridem (não se sabe já bem o quê) têm mais festins, cartões, botões, ladrões ao seu dispor e a natureza tornou-os eclécticos. Só que no meio de tudo isto se levanta agora uma alvorada de mau estar generalizado pois que em matéria de riqueza, o dinheiro, esse, seja nosso, ou de outrem, ou de aqueloutro, é agora bem mais volátil e fora dos abrigos das garantias domésticas, daí, a mudança súbita de atitude face a ele. Os nossos Cândidos surgem-nos despojados, grupais, solidários, vegetarianos, ambientalistas e prestes a fazer desmoronar a já insalubre educação burguesa recebida. Nós, educámo-los para outras coisas e ainda bem equipados nos nossos dogmas e desconhecemos agora tudo desta actual jornada. Penso que não perderam o sentido de humor nem a capacidade para nos alarmarmos perante o resultado que displicentemente fomos fabricando. E isso revela o lado impiedoso e programado das suas aparentes canduras: olharmos os factos por ângulos que nunca pensáramos ver, ampliando para níveis exorbitantes a nossa visão de derrocada.

Mas a Europa de então não via também com bons olhos uma tal obra fruto da desfaçatez do mundo, a mesma que se blinda hoje de “bem-pensantes” e vai escorregando na sua prática quotidiana para começar a não querer saber destas matérias intrusivas. Já lhe basta a alienação a que chegou e certamente a última coisa que não quer escutar é que uma aflição nuclear ou um efeito da tramóia do clima a desfaça em bocados. Não há signos inocentes, e muito menos olhares desassombrados acerca de realidades difíceis, também é certo que nem a sátira é matéria aguentável num mundo onde se encontram já todos os elementos de uma transfiguração brutal. É que o mal existe e ao segregá-lo pode vir a revelar-se bem pior. E também o pessimismo vai crescendo à medida que o herói se dá conta de tantas vidas para além daquelas do interior das suas muralhas. Por ora, estamos atravessando o rescaldo amplo de todas as teorias, estamos a testar que entre a ideia e a situação há matéria para desenvolver muitas outras.

No tempo do nosso herói havia ainda a fantasia de entrar numa Mesquita, talvez em busca do obituário das «Mil e uma Noites»: de que morrem afinal os felizes? E ainda se demoravam na contemplação das raparigas orando, e que os Imãs apenas se encolerizavam por isso, e as consequências da aventura que daí advinha; hoje, os nossos jovens Cândidos apenas sabem que os árabes têm uma religião que os força a eles a ter segurança, sem muito alarido, perante o também estado de terror das forças que os vão protegendo . Não dão importância aos Templos em si, mas, ao que dizem transportar nos casacos o ismaelita invasor. A contemplação da beleza uns dos outros é terra queimada e estranhamente todos capitulam na sua esfera de alienação. – Aos nossos pés dorme uma jiboia que suga impassível uns e outros numa espécie de emboscada olímpica e que insiste em não se mostrar.- Depois da desdita da facilidade, provada, provável, ainda há duas gerações, improvável, dissecam agora as mentes vindouras acerca dos seus destinos tão ameaçados, e se de aventura em aventura um sopro de existência lhes mantém um contínuo movimento, cedo perecerão na vacuidade das voltas restando-lhes apenas um magro e saudável ingrediente: o trabalho. Trabalhar de forma simples, sem grandes sonhos ou perspectivas dado a incerteza das estruturas. E assim começa um ciclo novo levando as mãos e a casa Holística onde cada um já suplantado o instinto territorial, esse atavismo dos velhos sonhadores, começará a nova construção. Cultivar cada um o seu canteiro (onde já vai o Jardim!) da sugestão comum para uma vida possível e simplificar o roteiro do mundo, agora em rede, para não se enlouquecer de vez com a “verdade” de todos.

Enquanto isto, espera-se que a ingenuidade não cubra de vez a velha fábula do Jardim do Éden e saibamos que poderemos ser ainda e novamente expulsos pela razão recentemente demonstrada ; que é a de não virmos mais a ser necessários.

Mas, e efectivamente, «tudo vai bem no melhor dos mundos possíveis» sabe-se lá o quão bem poderíamos estar se tudo se tivesse desenrolado ainda melhor, e do mal que deixámos de suportar por não ter corrido pior?! Do optimismo, resta a esperança que os nossos Cândidos nos desculpem por durante tanto tempo não termos notado tanta coisa! Eles vão desculpar. Somos umas das últimas espécies Humanas ainda herdeiros dos Filhos de Deus. Também nós neste momento não sabemos bem dos nossos próprios caminhos.

5 Mar 2019

Lojas dos trezentos

[dropcap]C[/dropcap]omeçou por ser no fim do século vinte a mais acessível fixação para o mercado oriental a Ocidente, não escudando – ainda em escudo – uma invasão há muito predestinada para o escoamento dos produtos mais baratos e descartáveis, a superabundância de uma estrutura capitalista vinda da China ascensional. As lojas têm topos fixáveis, as maçónicas, definem os graus pela iniciação, as origens, essas, são como as raízes, tornando-se por isso, invisíveis.

Os Trezentos! Quem são, onde moram? – Treze, o número daqueles que escolhem os membros, sentados em mesas nas ceias de Hotel. – Aqui chegados, o ensaio fortemente polémico de Pessoa esclarece numa cadência também ela repleta de fórmulas herméticas (umas mais do que outras) a não arbitrariedade da vida que nos fora afinal dada viver: há planos que seguram outros como fios de aranha cujas reuniões, foram, e continuam a ser, nos “castelos” dos Condes Drácula. Debruçado sempre no mito civilizacional da Europa constatamos do propósito de uma acção secreta que rompe paulatinamente com a herança grega e prepara terrenos móveis para aplicar medidas em todas as frentes da organização social. Dito assim, será mais explícita a frase profética: «perdido todo o sentimento de harmonia, o europeu, não sabe como agir sobre dois bandos de loucos, opondo-se furiosamente, mas falsamente, parecendo obscuramente combinados para a ruína da civilização». Estamos assim, perante uma noção de crises estipuladas e fabricadas, cujas razões ficam muito além da vociferação geral.

Das vagas de governos (não tantas quanto as marés) fica-nos a sensação da estratégica escolha, um teatro de marionetes que se suborna bem pela vaidade e através do culto do muito pagão bezerro de oiro, mas que em suas várias facetas também não passam de vítimas minoritárias. Em tudo isto devemos no entanto ser audazes, a «bússola» por onde nos norteamos deve no entanto estar limpa para não encorpar a demencial teoria da conspiração que é retábulo de insanidade, também ela programável, que tende a desintegrar de dentro para fora, de modo a ficar-se pouco reactivo frente a um momento de grande impacto. Creio, e não é nada de imponderável, que estamos neste instante a passar por aqui com a grande avalanche de informação que perdura nas consciências o módico tempo de vinte e quatro horas. Mas os Trezentos no primeiro impacto mercantil, quando a mercadoria era muita e a preços módicos, entreteve bem o mercado e fez do próprio lixo um motivo de prazer. A «estrutura e a resistência dos materiais» que são os povos, aguenta quase tudo, pois que sempre carregam fardos que equilibram as secretas reuniões que lhes ditam e lhes fornecem o apreço.

Aproximando a realidade ao conceito, ou a uma supra realidade, acorre perguntar sempre: quem são os Trezentos? E diz assim: «A nós e feita a pergunta, logo nos ocorre que a sua origem seja oriental, “nós” era um deles, Walther Rathenau (alemão, fim do século dezanove) acrescentando «A Europa é governada por trezentos homens». “Cozinhavam” já o fascismo, e acrescentaram: «o fascismo não vai ser de raiz espiritual, cairá com facilidade, deixando de si apenas um fermento revolucionário cuja desordem aproveita mais do que desconvém». Quem nos conversa com tanta certeza no meio do olho do vulcão tem diálogos amenos, consensos fáceis, pois que um mundo repartido por tão poucos fará naturalmente belas camaradagens. E diz que é comum a fila dos que se aprumam para entrar, sendo ao que parece “monitorizados” consoante a sua utilidade. Felizes, por irem até ao altar do Minotauro, muitos não passam das escadas e crêem estar ao colo da Organização. Deve ter escadas como as do sonho de Jacob! Entram descalços e saem ministros, coisas que bem pensadas, só com silêncio se sabem fazer, nada existindo aqui de aparente maleficio face à utilização de personagens com ambições ascensionais. Cairão no entanto, finda a sua utilidade, e muitos serão repasto ainda para as feras.

 

Este é o número de uma das Centúrias, e a descrevê-lo, é melhor então que entre subliminarmente pela tralha, que por jazidas de ouro, o que levantaria certamente suspeições. Diz servirem-se do baixo judaísmo mais do que dos degenerados europeus, dado que o judaísmo é uma organização universal e a candência da Europa um conjunto amorfo de sociedades, numa similitude: tal como o judaísmo se infiltrou na Maçonaria para operar na sombra, assim os Trezentos se servem do judaísmo de baixa natureza para operar na treva. Estamos talvez em presença de grandes universos paralelos que se entrosam muito bem, mas saibamos então clarificar um pouco este instante: as dores fantasmas de que sofre agora a Europa são naturais ou implantadas? Os membros arrancados querem crescer de novo… batráquios com memória aquática? Que preparam para breve, e agora sim; quais são para eles, e para nós, as consequências? As castas foram abolidas, mas os grupos são perenes.

Talvez tenhamos uma data-chave ao trecentésimo dia do Ano que incidirá a 28 de Outubro o que resumidamente foi sempre apelidada de data estranha: o nascimento de Adão! Muito bem mencionado, aliás, até num conto de Eça de Queiroz. Se as peças parecerem soltas, podemos invocar um alto dignitário, também ele invisível, que nos ajude a decifrar melhor o que sentimos estar para já a acontecer. Tardámos a recuperar lucidez mas não estamos ainda mortos, e muito longe de pedir audiência a um canal tão estreito, por ora basta-nos o sabermos que existe. Talvez seja a próxima função poética, o salvar da penumbra a sua deidade adormecida e colocar tão vilipendiado mérito a desocultar as inquietantes manobras de verdadeiros Estados insuspeitos para a cega marcha dos povos. A razão fabrica-se, não sendo uma condição natural.

26 Fev 2019

Ovídio – Uma arte de amar

[dropcap]O[/dropcap]tema eterno torna-se agora bastante desertificador. Até porque o amor enquanto ideia é o elo transformador mais profundo da consciência humana, aquele que proporcionou na espécie a estrutura do fenómeno da transcendência. Elevá-lo à categoria de arte foi sem dúvida a tarefa mais feliz da Humanidade e é preciso ir mais longe para buscar a sua excepção e uma maior mestria, igualdade e contemplação, dado que os séculos posteriores embora ricos da sua seiva não correspondem a uma linguagem entre pares na sua forma comum.

Heróides dá-nos sobejamente a ver que longe do amor épico pela voz do conquistador existe o diálogo amoroso do entendimento feminino que nunca ocultou o fracasso e a desdita da tormenta, num diálogo poético que faz do tema um estreitar entre pares. Ora estamos aqui na presença de mulheres que numa intervenção linguística se expressam com e para o amado, e onde se acrescenta formas literárias novas, participações sem as quais o amor na sua totalidade parece ferido no seu receptáculo. Elas estão na posse da chave do entendimento completo redobrando de efeitos perante as graduações de intensidade.

Ovídio conseguiu reunir todos os géneros e mostrar na sua base elegíaca um tema que se aperfeiçoa da sua própria matéria. O amor descarta assim o seu aspecto de função e passa a trilhar o caminho da busca espiritual, o que encaminha o ser para novos atractivos, numa busca sedutora e civilizada que contribuiu para “secar o pântano” do instinto como guia. E talvez não seja por demais lembrar a frase poética e enigmática do próprio Camões: “…vereis pois, que quanto mais amor tiverdes tereis o entendimento de meus versos”. O amor entendível não é o amor partilhado, mas aquele que se alcança por evolução da mente que busca na sua génese qualquer coisa muito para além daquilo com que se factualiza.

O nosso tempo é falho daquela memória onde nos leva o seu coro, a sua função semântica e o que nele pode, abastece em nós graus de entendimento e cruza agora na crueza dos suportes dos amantes terrenos bravios. Talvez que por descaso se afaste e busquemos então um efeito opulento sem resultados gratificantes, pois que é um tempo com um deficiente sentido amoroso que se permite glosar das suas múltiplas variações em derrocadas também elas civilizacionais.

Mas os nossos tempos não amorosos têm no entanto apelo amoroso: estamos receptivos e cremos crer. Como arte, falta-nos a via do meio para o defender dos aglomerados e do transtorno da fabricação de pares sem futuro e com presentes inférteis, falta-nos um caminho ou uma luz condutora e, enquanto sentimento, falta saber se a sua sombra nos enriquece na nossa estreita humanidade.

A voz que em Ovídio reclama transportam-nas essas mulheres cultas do seu tempo que se articulam com os conhecimentos e o mito para uma transfiguração face à grande força que sobra ao herói e dizer da grande força que existe no amar e se com ele os melhores se apaixonam. Não é improvável que os pares se saúdem na sua riqueza enquanto portadores de atributos admiráveis. Começa uma igualdade nunca vista entre aqueles que se dão na esfera comunicante.

Tudo isto, posteriormente, e por paradoxal que nos pareça, viria a ser posto em causa mas, neste percurso que nomeia a fábula e a cimenta como legado, é das paixões dos homens e das mulheres de que trata esta temática delicada. Desde a Arte de Amar, às Cartas de Amor, às Heróides, é provável que tudo se tenha encaminhado para a grande metamorfose que terá o seu epicentro na fusão dos amantes, o glorificar do deus adormecido.

Epistulae Heroidum (Cartas de heroínas) que deu Heróides, são vinte e um poemas em dísticos elegíacos que colocam a voz feminina no topo de uma construção bastante complexa e apaixonante como tema. Hoje, que se celebra o amor romântico, esse fruto de uma batalha pela cultura dos pares, nada encontrei de mais festivo que esta sugestão cuja noção ultrapassa em muito um melódico e divertido entendimento. Sem estas obras estamos condenados a ser o par de alguém, esse inimigo predestinado, mas com tais dádivas talvez possamos saber o mais importante daquilo que subjaz ao factor intrínseco da paixão.

Convém lembrar do esmagamento logístico em que o dito amor firmado se afunda, sem a consciência de que apenas amar é o propósito e, se aos bons sentimentos não faltam também motivos práticos, nem mesmo a prática deles nos absolve de uma usurpação. Em cada idade, cada era, as coisas mudam e os efeitos variantes se adaptam, mas negligenciar a sua natureza tem custos que a razão das boas práticas nunca poderá colmatar. Perder alguém é mais que um acontecimento, é uma tragédia interna que tem o tempo a seu favor para o curar das feridas e com feridas abertas podemos abrir crateras nas carnes inadvertidas em busca da sua deidade, que é o quê? Esse não entendimento compensado por fabrico de respostas científicas de lugar comum, não darão jamais a resposta. E antes que tarde na nossa memória de séculos o muito tempo que foi preciso para tão vasto diálogo, talvez que reaprendendo a amar a vida nos mostre por fim outros caminhos.

Estes tratados são do fim da era pagã, aquela em que parecemos agora entrar por outra porta, e se alguns apenas pegaram na forma da libertinagem e nos atavios que deviam presidiar à função (uma espécie de revista feminina para a obtenção de efeitos vários acerca do prazer e do espaço que ocupa nas situações mais lúdicas) em Heroídes há a diferenciação, a mulher amante com a voz que explora toda a sua complexa teia de emoções por ela transmitida e que fazem do amor um momento alto e grave, a mulher entra a ocupar o seu próprio mistério com toda essa voz que enriquece o ainda frágil modelo humano. «Estou ferida por minha própria beleza» nele se lê essa consciência de que não se entra na combustão desta força sem a lucidez de uma culpa qualquer que deve ser cultivada com a mestria de se saber fazer anunciar.

19 Fev 2019

Náusea

[dropcap]J[/dropcap]á fechámos o ciclo existencialista pelas cortinas douradas da luxúria do capitalismo e não conseguimos no entanto deixar de andar nauseados. Não sendo um diário íntimo de páginas à Sartre, inventámos o cripto-discurso novelístico das redes sociais, tornando o mundo tão intimista quanto cheio de vacuidade. – Dia 29 de Janeiro, 15 de Outubro, 30 de Junho, e estão lá as narrativas nauseabundas dos discursos de cada um infiltrados na diarística. – Pois que seja! – «O inferno são os outros» e a nossa fogueira tem muito de combustível para juntar às piras que se alastram em todos os roteiros. Pensando bem, nem o género confessional se repõe nesta atoarda que teima em prescindir do confessionário ou da psicanálise. O ciclo semântico alastra e a comunicação excede o seu princípio onde cada um recria o seu próprio discurso apologético.

A actualidade contemporânea excede e escusa também qualquer pensamento filosófico. Penetram na massa dos dias golfadas de acontecimentos tais, que não remete para um propósito de interpretação concreta, e depois, tudo é político, económico e derivadamente desportivo. Só de temas que nos afundam, todos os canais comunicantes estão repletos de descincrónicos discursos cavalares, liofilizados e mutantes. Se Sartre vivesse hoje, teria de nomear o seu diário de «O Vómito».

Mas possamos nós reflectir o que há de saudosamente nauseante nas linhas perfeitas do seu inventário, todo arquitectado de pequenas distâncias de interação com o mundo, e a nossa vã insubornação em legítimas revoltas nunca seriam partilhadas. Esgotam-se os efeitos das presentes indignações ao sobreporem-se logo outras no dia seguinte. E assim, de nenúfar em nenúfar, se vai aguçando a crítica que não extrai soluções.

Um livro tem páginas e uma sequência toda mental que define o tempo de leitura cujo ornamento não é necessário, pois que retiraria a própria atmosfera que cada leitor deve processar para que seja a leitura uma proposta também de releitura, que acrescente espaço onírico ao processo interior. Sem este contemplar não há possibilidade de reabilitar nada e a natureza dos sonhos que se desvanecem são de pesadelo quase imediato. Gastroenterites mentais a abarrotar de acidez e especulação delirante fruto da sensação do próprio impacto, produz agora a «Náusea» que se alastra. Sabemos que os dedos são projécteis em defesa da ideia e uma coisa é a mão que escreve e outra é escrever com duas mãos. Este trajecto que se foi criando intensificou a urgência do dizer: dizer a duas mãos – o que a natureza de uma apenas dita. Mas, pode ser que haja um aparelho para destros, e outra, para não destros, e ambidestros, e se possa sinalizar os acontecimentos com a mecânica de uma especificidade que reporá toda a temática destes suportes do pensamento.

Abre então este livro com o título «Folha sem data», o que deixa logo um espaço de liberdade pois que saída está da causa-efeito e se desdobra num tempo outro que requer nestas paragens também ele inventado ou estaremos diante de um escriba de costumes, esses raros seres que nos fizeram acreditar nos factos históricos, ou dos cronistas de serviço às Nações. Sem a força das suas narrativas interpretadas com mestria teríamos efeitos inaguentáveis onde a objetividade seria então um factor de imobilização para quem se adentrasse numa coisa assim. É ainda o talento criador que pode fazer interessar-nos por elas. Nenhum ser aguenta viver com o peso da realidade que é transversal a todas as épocas, sucumbiríamos ao difícil da vida e ao pragmatismo das intenções. Onde nos pode levar então este julgamento? A um momento terrível: ao fim do sonho como uma queda de saúde mental. Mas é aqui que perigosamente estamos sem articulação que dite o desmoronar de uma praga que foi corroendo as mais importantes reservas de entendimento.

Um existencialista pode ser bastante mais aborrecido que um universalista, e um intimista depressa se pode melindrar com vínculos extra si. Mas, lá estarão cumprindo uma gestação qualquer que trará alguma paz em seu redor, e quando bem entendidos, darão ainda cumprimento a uma missão transfiguradora dos problemas de cada um. Sem dúvida que o enfoque em nós mesmos produz vertigens, náuseas, vómitos, e depressa nos prostra num vazio existencial, isto, não falando dos vários graus de desassossego dos que querem originar uma originalidade tal, que se apoquentam com o facto tenebroso de outros não reconhecerem tal excepção.

Tudo isto é de uma atmosfera impenetrável e requer a um incauto medidas coercivas e justificações tais que provoca a ira de um qualquer expandido na órbita das forças verbais.

Nesta memória futura há vagas de repugnância que excedem as nossas capacidades de tolerância pois que ninguém se ajeita a descrever o dia sem uma bizarra reserva de enervamento. Nos dias bons, até se podem improvisar mais dias assim com ilustre contentamento, mas os dias bons são como os “amanhãs que cantam…” são esperanças lançadas ao futuro das coisas ordinárias. E vamos percorrendo o fluxo dos dias sem ver solução para isto. Se cá estivesse agora, Sartre, já teria tido a sua expurga sem recitativos contundentes, e ter-se-ia talvez que enfaixar na diarística do fluxo mundial e tolerado a sua imprópria matéria como uma reserva literária condensada em feitos virtualistas, o que desmontaria o martírio do pensamento dos seus dias, isto, se não houvesse mesmo um volte- face e começasse a falar de um tema moderníssimo- a felicidade- esse tema sombrio que tende para todos os desastres, e tirasse ainda de si mesmo a frase grave do absurdo: Dou alguns passos e paro. Saboreio este esquecimento total em que caí. Estou entre duas cidades: uma ignora-me, outra já não me conhece. Quem se lembra de mim?

Agora aqui nos lembramos.

12 Fev 2019

Algodão na lua

[dropcap]A[/dropcap] China inaugura com êxito a sua era espacial. O lado oculto da Lua, esse recanto galáctico que alude à sua própria redundância, é no entanto uma expressão inglesa que remonta a 1959 nos anais da expansão espacial e quando a nave Lune 3, “darque side”, uma sonda soviética transmitiu as primeiras imagens de um ângulo lunar nunca visto na Terra. A China chegou agora a esse local ainda não transmitido e levou já peculiares visitantes como sementes de algodão. É efectivamente um momento de relevo pela audácia de pensar um solo plantável, e pela analogia do algodão, algidez, brancura, maciez… É um convite a coisas idênticas e inaugurais estes primeiros flocos de branco lunar.

Vivemos hoje um tempo com vias de transporte desconcertantes, pois que é mais barato ir de avião ao norte da Europa em duas horas do que apanhar um comboio para o Porto, ou mesmo apanhar um táxi em Lisboa, ou ir de barco até Cacilhas. Como o dinheiro, e sobretudo o dos jovens, é sempre pouco, eles preferem, e bem, ir para longe. As redes de transporte são tentáculos maciços que dão já a volta ao mundo em modo subterrâneo e aéreo e dos excessos acolchoados tão do agrado de uma inativa meia idade, parece também agora esmorecerem neste labirinto onde entre céu e subsolo nos encontramos a preços módicos e até confortáveis.

São temas que devem ser concertados com a inaugural viagem da China ao lado oculto da Lua, e o seu talento rápido de colocar em marcha uma fonte produtiva. Ela, que sempre nos pareceu um gigantesco útero sem perfil expansionista, é sem dúvida neste instante o nosso mais formidável luar de Janeiro. «Minha pequenina décima oitava irmã tu és a chuva no meio do céu», canção popular chinesa; dezoito é mesmo número de Lua e parece-nos já daqui uma vasilha de água cristalina prateada com flocos de algodão no nosso céu de antanho tão parecido com o que está para vir.

Voltaremos à parábola do semeador, um roteiro previsto pela voz de Isaías (terceiro de Isaías 10-11): «a palavra do Senhor é semente». Vejo então hoje que a semente morreu. As condições não estão ainda preparadas para a nova seiva e é preciso uma nova componente que prepare estes chãos para lançarmos os bens da Arca. A China não tardará a recuperar a marcha destas descobertas com sucessos tão garantidos como as árvores trepadeiras, e a facultar uma aceleração de acordo com a urgência humana, pois que os desígnios terrenos a prepararam para nobres missões. Juntas, vão outras, para iniciar a do algodão que não resistiu ao frio da noite lunar. A algidez das suas sombras oculta desassossegos, e os seres vivos precisam da sua fonte de calor e alguma travessia nos levará de ora em diante a outros sóis.

Da lã, nem falar por enquanto. A natureza dela exige comunidades agrárias bem mais estruturadas e modelo animal em rebanhos, mas deixemos que se instalem outros frios para que um ovular bicho da seda se misture algures nas dobras planetárias de locais remotos. E que poderemos fazer então num corpo vazio de ocultos labirintos? Ainda não se sabe bem, e o que não se sabe só a ciência dirá como contornar. A Lua, essa, terá sempre no imaginário os dons dos feiticeiros e dos xamãs do mundo que reservam as suas fases para o equilíbrio dos campos energéticos. O país do Sol Nascente estará menos preparado para esta alba onde não nasce a alvorada? Não está. Penso que estará a transformar as condições de uma possível fonte de progresso onde imóvel perante críticas saberá desenvolver os campos futuros a desocultar. Talvez campos de arroz e enxertos de cerejeiras, o que levaria em trafego, anos luz de produção em série para a outrora faminta humanidade escravizada sob o peso da necessidade. As fomes neste estado são outras, e a capacidade de as governar, um trunfo sem igual. Peregrinaremos sempre em torno de qualquer coisa, ora inspecionando, ora tirando dividendos da conquista, e se a Terra já treme é muito bom que se preparem as bases da partida e da escalada mais larga pois que giramos em torno a nós como um mecanismo cego.

Sentada numa tartaruga, a China chegou bem mais longe que a Lebre que se vê agora a braços para dar sentido ao movimento de um novíssimo propósito. Enrolada no labirinto dos dogmas e pouco audaz em escalar etapas, começa a soçobrar a um excesso de diálogo de surdos em várias línguas espalhadas, que em coro, produz o ruído que afugentará os fazedores. O futebol é uma missão remissiva nos tempos vindouros, o jogo acabará breve, e os campos vazios falarão de nós bem mais que a política, bem mais que a saturada economia que numa ânsia de fome lunar desertificou o que havia de vida e de doce algodão também aqui na camada terrestre.

Por isso a Terra se cobre da sua seiva e nos convida agora a ir deixando de mansinho os seus beirais.
Para 2020, a China preparou um satélite de iluminação oito vezes superior ao brilho da Lua e ela sempre estará nestes anos conectada com o satélite que a fará desdobrar-se à sua quimérica natureza de multiplicadora de factos e de condições. Se as alcateias correrem para lá o seu escarlate terá efeitos mais sombrios pois que duas Luas progredirão para um coro demasiado bravio num presente onde se escuta já o ribombar dos tambores.

29 Jan 2019

Vasco de Lima Couto

[dropcap]L[/dropcap]embro-me dos desenhos à Cocteau com poemas em pratos brancos e recordo o quanto gostava deles, das frases, dos poemas, de tudo aquilo. Depois, olhei-o, e pareceu-me inesperadamente belo e associando temas musicais soube que era ele. Cocteau parecia-me muito menos interessante e infinitamente menos poético do que este Vasco, com seu perfil daquela portugalidade de homem do seu tempo, como Adriano, de belas cabeças imperiais que passaram entre nós para lembrar que uma cicatriz na beleza define os homens. Ele, que passou quase indelével no registo literário, tinha no entanto uma espécie de instinto admirável pela natureza do acto poético, sabia distinguir a qualidade, o sentimento trágico, e tinha uma disposição progressista num maravilhoso perfil romântico.

Foi actor, um actor exigente e prolífero, representou peças de Miller, António José da Silva, Steinbeck, Ionesco, e ainda teve o seu maior êxito no «Mercador de Veneza». Divulgador da poesia contemporânea num programa de rádio chamado «Cantar de Amigo» em Angola, creio que todas elas perdidas numa urdidura em que não achou uma defesa à altura das suas múltiplas capacidades . A sua obra poética deve-o muito ao retiro em Constância onde talvez usufruísse da calma necessária para o diálogo consigo mesmo, parecendo de sólidas amizades e de confiantes dias de camaradagem, é quase sempre um homem afável, porém distante de um centro de reconhecido e justo mérito, o que o deve ter sujeitado a uma tristeza qualquer que ao invés de o azedar adensou a sua rara sensibilidade.

A sua obra poética reparte-se por quase uma dezena de títulos, como « Canto de vida e morte» 1980, o «Silêncio quebrado» 1959, «Recado Invisível» 1950, «Bom dia meu amor» 1974, «Deixando discorrer os dias» 1991, já póstumo, e outros, mais antigos, uma vez que o poeta nascera em 1924 no Porto e dele se foi desamarrando aos entraves burgueses de um país severo e parado para a sua ânsia de viver e de expandir. «Um Pássaro contra as grades» ele – que precisava de espaço para ser feliz – um poema belíssimo que só uma alma larga, com asas, pode ter escrito, um legado de liberdade e de respeito por aquilo que são as relações humanas, esses contactos espaciais que por tão rotineiros quase não dão conta da invasão que provocam. E vale a pena transcrever alguns excertos:

ter palavras certas no sol do caminho e beber, a rir, o doirado vinho. Misturar a vida, misturar o vento… E, nas madrugadas quando o povo abraço, para estar contigo: PRECISO DE ESPAÇO!

Fluía nele também um lado quase religioso sentia-se que não estava deslocado dessa fina teia da indagação teológica que firma os efeitos de uma consciência poética, e são de grande beleza muitas das suas ora indagações, ora gratidão, ora silencioso desespero face ao enigma incognoscível da palavra quando o verso adeja, em Oração, encontramos esta inquietação sempre total:

«Senhor, eu não te peço felicidade…seria condenar a minha vida/ a uma inútil graça de ilusão/ nem te peço que faças dos meus versos desejos de cantigas para os outros/ …… O que te peço é que me dês o alento/ das frases que eu não sei se tu disseste! »

Coisas estas demasiado belas para esquecermos. Quase que por um trilho na percepção entende uma alegria nova, a Revolução dos Cravos, mantém-se entusiasta e envolvido, mas nem antes nem depois a sua situação de homem melhora, e acaba sempre por viver como pode aceitando os trabalhos que lhe dão, há na nova ordem um descaso que certamente o magoa e entende isso talvez com pesar, por isso morreu cedo, e por isso talvez não tivesse tido ensejo para a manutenção da vida que requer tantas concessões. Viveu como um poeta, pois são estes os poetas, os que correm o risco também de viver poeticamente. É sempre, quando dele nos acercamos, alguém com grande coerência e uma elegância quase desaparecida, aquela parte que faz dos poetas esses seres aristocráticos e estranhos, é um rejuvenescimento, de ternura, de despreendimento. Nós, vamos esquecendo, o tempo apaga, fulmina, estrategicamente encobre…mas o que é bom é sempre subitamente belo, bem o disse Safo. E neste súbito e inaugural renascer ele aparece tão novo como se fosse um propósito por vir:

minha mãe, eu canto a noite porque o dia me castiga; minha mãe eu grito a noite, neste amor em que me afundo, porque as palavras da vida minha mãe, já não têm outro mundo, minha mãe eu grito a noite neste amor em que me afundo.

Sabemo-lo boémio, amante das noites e dos cantos, sabê-lo por aí, o Fado, mas poucos sabem que passou por aqui, este homem tão especial que deu por concluído o seu testemunho antes mesmo de ter um florescente recomeço. Nestas vidas encontra-se o melhor. Não estão presas a si mesmas e tudo neles parece sempre novo, contemporâneo, quase eterno, agora mesmo o sinto tão próximo como um anjo de asas frescas sussurrando um canto protector:

Vive… que eu no pensamento viverei contigo/ Sonha, que no meu sentimento te darei alento/ Sofre… Que no meu sofrimento, terás toda a minha alma, a dizer-te um Poema/ – Mas não penses nunca neste meu dilema!

Hoje, estamos plenos de palavras, Vasco, e nenhumas são tão bonitas como aquelas que disseste para que eu as diga de ti neste momento. Não precisamos de muito. Mas temos saudades daquilo que no dizer se imortaliza. Sente-se uma imergência sadia de liberdade e uma zona sempre de espaço alargado no movimento de uma natureza que suporta mal o dirigismo das sociedades, e isso, é a sua marca mais conseguida de homem livre:

Outubro de 68

Que Povo é este, que Povo,
que é Poeta e se alimenta
de tanta maré vazia.
no mar que ele próprio inventa?

Que Povo é este, que Povo,
que tenta um sonho esmagado?
…É o Povo de onde venho
todo por dentro amarrado!

São de Amor todos os poemas.

22 Jan 2019

Ímpar

«Numero deus impare gaudet»

 

[dropcap]F[/dropcap]rase romana que diz que os deuses amam os números ímpares, crendo então na forte probabilidade do Ano inaugural vir a ser amado por eles e talvez por todos nós. Nós, que gostamos de coisas e pessoas ímpares, pois sem dúvida que essa particularidade nos encanta e perturba muito mais que ser par, mesmo que de paridades se viva e de tráfico comercial, também, dado que: “ao par é sempre mais barato”.

Mas o que é certo é que não há nada que resulte bem sem essa imponderabilidade dos ímpares, mesmo nas nossas comuns associações que não raro esbarram para sociedades aos pares, a par, e que param. O movimento. Esbarra com toda a orientação que inove a vida de modo a saber e poder ser vivida, impõe-nos funções que pouco se contornam, daí, o par explodir, ser de natureza destrutiva e de iguais desfechos.

O Ano abre então neste nosso calendário, fechando a década, com o luminoso dezanove, mas, como penúltimo, ímpar, único, como súmula do ciclo quase findo, nestes períodos contemplamos a veracidade desta matéria mesmo que uma década após tendemos a esquecer. «Yung e o Tarô uma viagem arquetípica» um plano de estudo que foi feito para alcançar o conhecimento dos arcanos menores do Tarot de Marselha, composto por vinte e duas cartas, falará da jornada do herói até ao número dezanove que é o que nos interessa agora analisar, o Sol! Remetendo-nos de início para os Contos da Inocência de Blake há uma luz que nos apazigua e convida ao retorno a uma zona pouco experienciada na esfera de evolução em que nos encontramos.

A noção apolínea do Ano agora em curso é um convite a todo esse diálogo de elementos não só apaziguadores como inversores a toda a ofensa severa face à natureza das coisas. Se todas as espécies de neuroses são as sombras agarrando-nos para sobreviverem a estranhas dimensões através dos nossos frágeis seres, este ano, talvez seja bom pensar nalguma providencial queda das suas influências, dado que o Sol atingindo o zénite as fulmina. Saídos das eras das molduras- de molduras penais, das molduras sociais, das molduras de ser, das molduras dos grupos, fomos saindo devagar das agrestes derivas de um processo duro e insano, e o nosso ser mais íntimo deixou de olhar de olhos abertos o grande espectro da intensa luz, feridos nos grandes cativeiros que a vida ganhara brilhos tremendos.

Pode ser de ora avante um convite ou apenas uma simples nota que convém registar, que o paradigma humano, esse, se transformou, e anos bons aconteceram, “annus horribilis” pares, ímpares, primos, mas poucos nos dão de facto a alegria de um número assim, e se falarmos de uma convenção, então poder-se-ia afirmar também que tudo o é, com a grave incerteza de não se saber se algumas nos repõem a alegria, só quando as convenções se ajustam ao hábito a natureza das coisas pode ser modificada. Solar, leva-nos para casa na ideia de habitat amplo e requintado- viver num solar- ao mesmo tempo existe neste nomear a ideia de jardim, e o jardim faz parte da estrutura simbólica do significado do arcano que nos despe dos restos mortais dos andrajos costumeiros e nos coloca livres e nus num espaço deleitoso.

Entrar num mundo cercado pode significar aqui, segurança, vimos como o desventrar dos espaços ameaçaram os nossos equilíbrios e nos fizeram sentir invadidos, como a transfusão de muitos corpos habitando os mesmos lugares transformou o chão em palcos de guerra, recolher ao instante feliz não será por isso um mal, nem ousar retirar dele todos os que o profanam na sua primeira dimensão psíquica de paraíso. De qualquer das formas há que a ele regressar. Há prerrogativas que se firmam como segredos, silenciosamente. Após toda a névoa de uma mente que não fixou um saber libertador entraremos na experiência directa com a recuperação de uma energia renovável, cuja vontade é olhar, ficar, e viver toda a alegria das coisas ao redor. Hoje mesmo havia a tal neblina fria que nos inunda de um mistério antigo, coisas de quando ainda gravitávamos na escuridão …nós, a quem nascem guelras nos momentos em que precisamos de processar a água atmosférica e que fomos criando lianas nos fundos da alma…!

Atravessemos o tempo com algumas reformas e mudanças na jornada do caminhante que somos, deixemos o dia lavado, as coisas ditas, as formas ser, e quando tudo for restaurado nos subtis equilíbrios, esperemos o Sol . Ele vai levar-nos para Casa. Fala o número, Jung, e este instante da Criança Eterna.

15 Jan 2019

O ano da vida de Ricardo Reis

[dropcap]C[/dropcap]ansados da morte que é sempre a mesma, vem em qualquer instante, é certa, e nunca consentida, queiramos numa vertical tendência inaugural recriar um ciclo de renascimentos sem par ( o par atrasa o crescimento) e refazer as coisas, projetar os cultos, fugir da rota, atravessar os mares.

Que de todas as matérias que trabalhamos haja uma super-matéria que nos trabalhe a nós, vítimas de corrompidas quedas e penosas dores em obscura forma. Que saibamos passar, pois que só passando se atravessa, que os caminhos tanto podem ser experiências como círculos fechados, os caminhos que vamos talhando são a geografia do nosso entendimento e, claro, serão entendíveis todas as marchas do processo, se com ele, formos de nós mesmos o Bode do deserto, por um lado, e o Expiatório, pelo outro.

A matéria legítima da vida é um sopro. Assim estabelecido o pacto todos os caminhos são possíveis, todas as direções destinos, todas as casas estalagens, pois nos guia a fluidez de imponderáveis razões. Uma vida nunca pode ser julgada e não seremos certamente nós a poder fazê-lo, apenas servimos de ajuda uns aos outros na marcha do tempo, e, protelamos a memória como a melhor fonte de recompensa. Nunca devemos ser rápidos a lembrar.

Pois que Ricardo Reis era um outro que em outro vivia, e cada “si” um outro sim que em si se sente, quem são, quem somos, todos nós em romagem decrescente para o nada, pois que mais Anos, mais vida descontada?! Coisa nova criada, somos outros, estamos numa rota galáctica e lá para baixo ficam as Nações.

Esta certeza faz vida! O instante protege os sonhos e quase tocamos nas suas caudas que olhos visionários trouxeram entre os escuros cinzentos das eras industriais; homens juntos por uma causa exalam ódios a que chamam política, homens livres exultam propostas e chamam-lhe poema, nestas curvaturas está agora o tempo que vem fechando postigos, cansados, inúteis.

Este Ano foi o Ano do Cão, o Ano que aí vem dar-nos-á o do Porco, que está sempre representado em forma de mealheiro o que denota que é Ano associado à riqueza, porém, nem Porcos nem Cães são um alter ego predileto, mas, reconheço a boa e leal colaboração do Cão que faz do sacrifício a sua vitória. Nós, resumimos tudo em quase nada: se não ritualizamos também não nos ocupamos de façanhas inexplicáveis, de modo, que condensamos no Natal todos os propósitos da vacuidade das Festas. E talvez não seja em vão fazer renascer o nosso tão querido latinista imaginário, que, bem vistas as coisas, não teve data de morte, sabendo-se apenas que nasceu a 19, e chegou ao Brasil em 1919. Por isso, neste Ano, ir-se-á provar que não só não morreu como continua vivo em 2019, o que dita uma atmosfera de esperança de vida para todos nós.

Mas, a criatura, suplanta está claro o criador, e só a criação da criatura de ora em diante será lembrada como uma outra natureza ( natureza outra). Por qual, dezanove simboliza o Sol, brilha agora bons augúrios para seres construídos nas cabeças de cada um, e assim, cada um terá à disposição várias delas que consubstanciarão a própria Hidra que os representará.

Proeminentes desígnios esperam dar vida aos condenados bem como animar a robótica de forma a deixar descansar este humano que já longe vai e grave anda na razão da sua natureza. Quanto a mim, propus-me ressuscitar os mortos, já que os vivos não se encontram em bom estado experimental para práticas futuras; e não é que logo encontro o nosso querido Ricardo? – Eu sentia que andava alguém aqui nos meus umbrais, mas até pensei que fosse de novo o Corvo, só quando vi o Ricardo é que disse: não morreu! – Ricardo, não deixes que te matem.

E assim foi, agora que partilho uma experiência paranormal e recupero um helenista algo estranho ao contacto direto com os deuses- nós, os Bodes do Deserto – aqueles que foram para lá durante mil anos escapando à morte, vos saudamos do cimo da nossa montanha. Quando nos encontrarmos de novo por aqui será um recomeço bem vindo pois que da morte, o da Expiação nos foi livrando, e sempre assim será enquanto houver em cada um de nós tal entendimento.

Recomendai-vos uns aos outros como epifenómenos em vias de extinção, e recuperai as oferendas de um Deus benigno que vos foi desconhecido até ao limiar do abandono. O Novo Ano transluz de coisas tais, que é preciso não ter evoluído para Ciclope e ver em todas as direções a «Grande Marcha». Prósperos os que encontrarem Ricardo Reis. O «Homem (lido)» e relido, encontrou-o e continua. Por que não fareis vós a mesma coisa?

Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo,
E as suas leis, o verso;
Que, quando é alto e régio o pensamento,
Súbdita a frase o busca
E o escravo ritmo o serve.

Um belo Ano então.

7 Jan 2019

Alerta Amarelo

[dropcap]F[/dropcap]uncionamos nós por estímulos subliminares muito mais que por qualquer representação racional de modelos definidos e a segunda metade do século XX foi toda ela um código que gerou factos novos, inconcebíveis, a partir da manipulação desses efeitos.

Como bem viu a semiótica, nunca há signos inocentes, sendo que possa haver uns mais inocentados que outros na vertente mágica das suas versões. O tempo que vivemos é sem dúvida uma esteira alarmante – há muitos alarmes – reais, imaginários, possíveis, em fabricação, outros, que nem chegamos a sentir os seus efeitos, mas, e dado que nos alarmam em dimensões nunca vistas poder-se-ia aplicar a formulação de uma atmosfera alarmista que se solta em todas as direcções.-

O «Alerta Amarelo» não é contudo uma vicissitude climatérica em si mesma mas, e muito inconscientemente, o efeito da onda de propagação do Império do Meio que resolvemos nomear através da cor dos nossos receios. Não é novo este medo, mas era dito de forma natural e com laivos de visionarismo, o que não acarretava nomenclaturas de desastres ambientais nem de perigos a chegar às nossas janelas. Eram grandes reflexões acerca da política geoestratégica do mundo. As visões peripatéticas que olhavam já para uma Europa arabizada com tribos entrando pela Andaluzia adentro até Lisboa, perderam subitamente força passando àquilo que apelidamos de tempestade tropical. O que vemos por fim é esse anátema predestinado a consolidar-se sem estrondos ou atentados, o que deixa sorridentes os povos europeus tão fustigados por ameaças fruto dos seus perigosos interesses.

Sejamos suficientemente razoáveis para entender que os perigos que nos ameaçam podem vir sempre de mais distante ou de um ângulo que não imagináramos. Só que, desta vez, cobriremos a estampa civilizacional com a paz amarela, que bem longe de um alarme, é uma marcha lenta do seu próprio sucesso. Quando nos dispomos a ver sabemos que o velho útero, o Império do Sol Nascente, está por todo o lado da nossa vida quotidiana e que as fontes energéticas já são do seu domínio. Não nos esqueçamos que findo o petróleo os países árabes que não desenvolveram uma sociedade científica, o que em termos de tempo, pode agora ser um tempo contado, e que estas diferenças são agora placas tectónicas que vão sem dúvida anunciar quem manobra a Barca dos destinos do mundo.

Para uma Europa sempre tão guerreira vai-lhe fazer bem este abeirar de uma cultura mítica que mais que trazer paz pode trazer formas de abordagem filosóficas e sociais muito interessantes. Talvez tenhamos que experienciar uma contenção desconhecida e formas de colaborar menos vincadas. A nossa supremacia desmorona-se a cada ano que passa, e até nas revoluções em marcha o símbolo delas é amarelo. Coisas que andam nos sinais, no éter carregado de pólvora, nas entranhas dos nossos antigos medos e que saltaram como evidências para as actuais realidades. Longe vão os Alertas Vermelhos! Em todo o caso estaremos no início de uma verdadeira metamorfose e a crer pela nossa frágil propagação demográfica o que se passa é que não é necessário ter nenhum tipo de vidência para o que se segue.

As fontes de produção que permitiram tais factos são tão distintas de tudo o que concebemos que olhamos para a não expansionista China milenar, ainda sem ver o que foi de grandioso uma tal marcha. E se a não ingerência nos seus assuntos internos abala a moral da periferia, isso não será um problema dela, mas nosso, que ao não reflectir numa epopeia humana, acha que tudo fica resolvido através da “linha de crédito” dos seus direitos civis. Seria bom! Mas não ficou. Temos uma herança de famintos às costas com problemas quase insolúveis, criámos as fontes paralisantes deste estertor e sabemos que estamos a dar as boas-vindas a quem nos pode aguentar com a quimérica noção de sermos Estados independentes. A bem dizer, já não somos nada. Pouco mais que a língua que cada um fala e todo o resto vem de todas as partes, e se a terra está gasta e mal gerida, nós também. Enquanto andamos nisto, tentamos que os dias não passem por cima das nossas cabeças ameaçadas até ao tutano, e, descrentes das reformas vamos vendo rebentar em todos os lados o grande princípio da insolvência. As leis sociais obedecem um pouco às leis físicas, a partir de um certo grau de obliquidade, não é em rigor possível que ele se reverta, a longa marcha para o fundo é estrondosa na sucção. Estamos à espera do quando, vendo deslizar pedaços com mais ou menos estrondo.

Derrama-se agora um sabor almíscar dos antigos poemas de Han Shan que tanto influenciaram a vanguarda americana com suas casas na falésia: antigas pedras; as falésias erguem-se abruptas/os livros sobre os imortais / um volume ou dois / sob uma árvore por entre dentes, leio/. Todos nós estamos na nossa civilização à borda da falésia onde abruptamente veremos passar o tempo da nossa desdita, mas, ao invés de se pensar que África ocuparia os lugares chaves, nada disso se deu, nem teria sentido. Manobras extemporâneas de alianças mal começadas e que nunca deram certo. O sentido mercantil mudou as formas e num país ainda movido a ouro nos olhos luzidios dos exploradores não há mais nada do que ir deixando para trás saudades vãs. O alerta é Amarelo e assim irá ficar enquanto for alerta, e toda a Terra se tornar de mansinho uma terna tempestade tropical.

Possamos nós ver os nossos saudosos poemas na versão do Meio e seguir perifericamente o sonho gentil dos vencidos numa visão de transcendência que lhes deu tanto brilho singular.

18 Dez 2018

Banqueiros anarquistas

[dropcap]S[/dropcap]em dúvida há títulos que são agentes directos de actividades laborais e que definem sempre mais umas profissões que outras. A um linguista ficar-lhe-á por vezes mal usurpar ou transgredir os cânones da sua técnica, já um banqueiro tem uma margem de espaço mais abrangente que o coloca muitas vezes como o fazedor da sua própria regra. Se se considerar que possa ser um bom artesão, difícil será contornar o laborioso esquema da sua competência podendo nem ser beliscado na liberdade e bom nome por práticas desmesuradas.

Incrementos vários dão permissão a uma total falta de limpidez àqueles que anarquicamente também se expõem à sua guarda sem desconfiarem de uma maior anarquia por parte da sua capacidade transgressiva. – Referindo-nos sempre ao título de Pessoa, o mais extraordinário está ainda no texto introdutório que abomina a prosa do poeta falho de elementos dialécticos na visão reformista de quem o considera um tributo obsoleto para o pensamento social. Nada disto será surpreendente num mundo de altas instâncias pensantes que por operantes tendências da vontade procuram rasurar tanta coisa, que nem sabem coisificar partes soltas das muitas outras que, e façamos justiça, são por vezes, inomináveis.

Os seres das “ferramentas pensantes” muito severos na marsupial descarga das suas forças criativas estão de ponteiro na mão, prontos a erguer muralhas contra o insólito, que não raro, destrona as suas seguranças fílmicas e ideológicas. A tirania do auxílio (expressão usada no livro) tirou no entanto aos anárquicos banqueiros uma certa e determinante tendência para a usura individual, e eis que, nos prostramos diante dos seus despojos como engolidos por crateras:« ora, qual a qualidade natural das nossas qualidades naturais?» sermos tão naturalmente nós que nada se nos pegue enquanto medida de grupo. Ser-se eminência parda da natural fonte do ser e aperfeiçoar a tirania de grupo para a linha da frente como efeito «Bode Expiatório».

Pois que se não só de grandes sensibilidades se forja um grande poeta, também, não só, de grande massa económica se constroem banqueiros. O distintivo da ambivalência tem de estar presente para que algo de verdadeiramente inesperado se possa dar.

As bombas rebentam não raro nas mãos revoltosas dos “guerrilheiros” que ardentemente munidos usam e abusam da descarga da sua legítima indignação pelo zelo das acções concretas, depois, o tempo que demoram a morrer, tira-lhes ainda aquela liberdade tão boa que é o saber rir-se de si mesmos, e por que não, de tudo o resto. Agonizantes e exaustos o mundo parece até girar na razão inversa dos seus propósitos, e sempre pelo lado que ninguém viu, dá-se então a explosão. As várias leituras de um texto dão-nos o hipertexto, tangente também ele à capacidade de recriação, não o deixando por isso arrumado na sua primeira “extração a frio” e ainda pode enlouquecer os laboriosos defensores da coerência. Por vezes, um qualquer detalhe pode fazer derrubar a causa mais convicta de estar ganha, mas para isso, digamos, será então necessário um imbatível detalhe. E quando tal se dá, caso as calças sejam muito compridas, é cortá-las para pano para mangas, que dos braços se fazem bandeiras para acenar a todas as coisas também elas improváveis. E o mais improvável na vida é o mais caro, o mais rico, o que se levanta como zona de desconforto para “atazanar” o conforto de todos.

Vejamos detalhes mimosos, minuciosos, da grande paródia deste Banqueiro: – Realmente, disse eu, é anarquista. Em todo o caso, dá vontade de rir, mesmo depois de o ter ouvido, comparar o que V. é com os anarquistas que pr ´aí há… : quando o orgão não conduz com a função há uma tendência para a desorganização, pois que, e também, órgão muito falado é orgão doente, e nestas tentativas perde-se a compostura para analisar em alguns, órgãos novos, por vir. Se não é identificável não será mantido, e combatido vai ser o seu destino, até que, todos de uma assentada guardem para si as funções impróprias, opostas àquelas por que tanto batalharam. E responde então o nosso Banqueiro: então é que vi com que bestas e com que cobardões estava metido. Desmascararam-se. Aquela corja tinha nascido para escravos.

Queriam ser anarquistas à custa alheia. Queriam a liberdade logo que fossem os outros que lha arranjassem, logo que lhes fosse dada como um rei dá um título! Quase todos eles são assim, os grandes lacaios! Eles não tinham força para combater senão encostados uns aos outros. Pois que o fizessem os parvos. Eu é que não ia ser burguês por tão pouco.

E quando aquelas coisas deliciosas nos agarrarem intempestivamente há então que não pensar no resultado e deleitosamente subirmos o rio pois que só essas marchas são boas. Nestas, toda a cautela é pouca, ou não fosse a qualidade de Banqueiro uma porta aberta para a tibieza de cada um. Ponham-nos como carcereiros que logo se dará o “pontapé” para dentro das prisões, que dizem estar transitada na lei para lá os meterem e nunca reverte em fechamento.

Retomemos a marcha de leitores imoderadamente anarquizantes colocando um fim às supostas intenções dos autores, pois que nem sempre eles se nos apresentam transversais ao panorama “construtivo” das tão prestimosas sociedades, que uns defendem, outros atacam, e que para eles, pode ser mais a laboriosa oferta de uma boa ficção. E uma brincadeira muito séria chamada lucidez.

11 Dez 2018

Sangue na estrada

[dropcap]E[/dropcap]ra este o nome de um programa televisivo dos longínquos anos sessenta apresentado com colisão estrondosa – o programa mais não era que um receituário para boas práticas automobilísticas que na altura já fazia correr bastante sangue e cujo desenvolvimento a preto e branco impunha uma maior dramatização. Com a gravidade do tempo se expunham então as condutas erradas e se mostrava exemplos derrapantes pretendendo assim ser útil para evitar o sangramento no asfalto.

Ora sem dúvida que o sangue que a todos atravessa em circuito fechado é o mais forte elemento que um ser vivo dispõe: os de sangue quente, está claro. Há quem admita que a terra lhe é hostil e que onde se sangra se gera uma área de esterilidade ambiente, e que seitas maniqueístas como os Cátaros das carnes se afastaram para impedir o pacto que consideravam diabólico, o que faz que ainda hoje os judeus desensanguentem as carnes numa prática ritualística para não incorporarem a estranha força nele contida.

O sangue marca assim um ciclo de funções culturais quase xamânicas e também perante ele existe a reverência e o pudor instintivos que fez a Igreja secular separar-se, renegando qualquer fluxo interno que se propaga-se e fosse visto; acariciaram o fogo como medida castigadora. O vinho litúrgico não é mais que a metáfora de um caudal de seiva e gratidão pelos bons produtos da terra, como o pão, os primeiros transformáveis logo que se dá a sedentarização.

Noé ao colocar pé em terra firme planta logo uma vinha. E se o sangue ainda apaziguava as Fúrias lá mais para trás, é certo que não foi com os homens dos rebanhos que o canibalismo tomou posse, pondo então fim ao infanticídio infantil com Isaac substituído por um cordeiro.- E as questões de sangue, e o sangue nas arenas que se inspiram nos dorsos gigantes, numa fartura sangrenta de fluído tal… o touro não quer matar, o homem não quer morrer, mas todos sangram e brincar com sangue é a irreflexão mais bravia que podemos conceber.

São espectáculos do tempo do «Sangue na Estrada» que os infortunados de natureza sensível viram entrar casa adentro numa atoarda de choques e cornetas, esses que, roeram as unhas até ao tutano e prometeram fazer feitiços para os homens morrerem na prática de coisas tais e desviaram os olhares das chapas retorcidas, que agora são expostos ao clamor indecente de serem radicais bem-pensantes; não sei se pensam bem…na certeza porém, que sentem diferente. Levanta-se uma névoa telúrica ou milenar que até pensávamos estar saldada, mas, olhamos e a estratégia instintiva é ainda a mesma. Até se dizia no tempo destas visitações nas casas de cada um que o chefe da Nação nem gostava de sangue e prometera levar para longe e para as funduras os seus opositores para não assistir a nenhum derrame, o que corrobora que um seminarista é avesso a fluídos internos que se manifestam numa qualquer vertente. Fogueiras do imaginário ainda ardiam quando todos estes sangues se soltaram.

Camilo Castelo Branco escreveu uma obra literária chamada «O sangue» onde afirma: estou escrevendo um romance chamado « O Sangue» mas não é bem um chouriço. É uma patacoada. Parece-me que vou queimar os livros para aquecer os quatro pés, os dois são vulgares, deu-nos o frio, e não obstante continuo a tiritar, o que não sucede a todos os burros que têm fogão»

Grande Camilo que metamorfoseava em paródia grotesca reais angústias! Veremos também que ao tempo de Camilo as estradas eram fustigadas por salteadores, sendo pouco provável o choque das quadrigas de cavalos, as vítimas que sangram ainda são na sua maioria as das estradas e das arenas. “Chocar” com um Touro é sem dúvida uma experiência incrível! Uma faena é um desdobramento inconsciente de brutalidade incurável tão ao gosto dos paleolíticos cultos de Mitra… que seja cultura… bom, a cultura impõe-se para bem ou para mal, quando se deixa de sangrar. Se tal acontecer são desastres. Espargindo o sangue nos terreiros também as Fúrias, outrora cultos (as) já não se manifestam tanto… e nós, os que tivemos de viver nestas “culturas” ainda somos abusados na cultíssima alma que transportamos. São caminhos de sangue, tudo isto, e olhamos os graus máximos dos bisturis futuros e toda esta seiva está estancada como se olhássemos um rio do outro lado da Galáxia. O Vermelho era tão imperativo que o chefe da Nação o passou até para Encarnado, e com isto, encarnaram formas vivas, troncos de culturas distantes que agora se manifestam de maneiras genuinamente imobilizadoras para estupefação dos demais (os demais, já estavam a mais, antes mesmo de lhes ser dado liberdade para tal).

E voltando a Camilo numa supervisão entre plasma e sentimento: «Aquele Manuel a cuja agonia V. Exª assistiu não era meu filho. Adoptei-o no coração extremoso de pai e senti então que o sangue nada é e a nada conclui» . São estas gentes das heranças genéticas, da voz do sangue, que gostam dessas coisas, uma certa fidalguia que à falta de melhores capacidades definitivamente mais culturais e humanas, se entretêm ainda a morrer nas estradas por falta de ocupação fixa, e se regozijam no dorso amigo de uma força, que não esquecemos, mas mantemos transmutada dentro de nós. Admitamos que na longa travessia eles tenham evoluído mais que aqueles que os desafiam nas arenas.

Sem dúvida que Camilo seria o primeiro a fazer hoje uma outra crónica de costumes com esse dom raro de provocar o riso e despertar as lágrimas que toda esta questão levanta, e cuja força extemporânea atrai ainda o sangue sem vital função.

27 Nov 2018

Sexo XXI

[dropcap]V[/dropcap]inte e um gramas é o que pesa eventualmente a alma, o que deixa um rastilho de dúvida que nos incita a tratar desta suposição com esperança. Ela está presente num momento muito belo e lancinante no Evangelho segundo São Mateus «depois, lançou um grande brado e entregou a alma», devolveu o sopro que o sagrou na hora de nascer, aos gritos, aos urros, chorando, aos brados. Esta ínfima substância não é fácil nem quando começa nem quando acaba. Entramos em choro, saímos em brado, e ainda somos o resultado dos suores gritantes de quem se dá.

O século vinte e um, tão jovem ainda, já tem o seu peso, nasceu com imagens de queda e de gritos, nasceu talvez com a alma aflita, e tocou pela primeira vez nas fontes naturais do circuito da transmissão: seremos provavelmente a última Humanidade sexualizante, o tempo que se desvia das naturais funções acaba por recriar os seus próprios órgãos, transmutando o fruto na marcha evolutiva face à essência primeira.

Parece estranho que digamos estas coisas numa esteira de desejos mundiais, mas não será difícil olhar a escalada híbrida, o hermafroditismo, o imenso mal-estar da função que talhou o órgão – órgão que faz a função – a ciência avança de forma apaixonante e quase atravessamos o nosso corpo como ilustres desconhecidos… Amor, ainda um eufemismo servidor da causa, não criado e sim gerado, e que consoante os méritos de cada um foi orientado e sublimado na construção árdua do mundo onde jamais se confundiu “amor profano” com grande amor, pois Deus parecia estar no homem como sémen propagador, era-lhe consubstancial na transmissão.

Atravessemos. Os séculos são estradas, têm alma, nascem e morrem e, claro, a dramatização desta matéria não se esgota, o pré-condicionamento não está apagado. Afinal ainda procuramos um arquétipo perdido… que em ninguém se encontra, mora, ou se repõem. O problema não está nas pessoas e nos seus níveis de conflitualidade ou de atracção, mas sim num certo “air du temps” que mutilou a outrora função cegamente programada. Tem gerado até pelo temor da sua força muitos neuropatas, mas esse imenso caudal será arrumado num grande “tubo de ensaio” como matéria atómica. Lixo radioactivo! Com quanto a transfiguração que nos daria uma experiência amorosa parece também ter sido rejeitada na fase alternativa do “beijo que liberta”. Beijos são sopros, talvez almas, tudo em que descremos como bem sabemos se afasta de nós. A sexualidade tomou um espaço anatómico que denunciava já a sua futura morte, demonstrando assim uma saúde moribunda.

Intelectualmente fomo-nos preparando para o século XXI e fizemo-lo com relativo êxito, mas biologicamente estamos atrasados. Somos uma plataforma de vestígios portadora de vínculos que não estão adaptados para a breve realidade de uma outra História do Tempo. Creio que esse tempo nos devore, esse mesmo tempo que gastámos a “comer-nos” uns aos outros com a prática canibal de uma sexualidade que na função se esgotou. O corpo foi brutalizado, o corpo «Glorioso» não é isto, e talvez nos peça agora o fim das provas antevendo nós agora o grau da sua luz numa outra projecção: «as fantasias do teu erotismo/ põe-nas, semi-ocultas/ em meio às tuas frases/ esforça-te, poeta, por guardá-las todas.» Kaváfis

Mais diz ainda: “Lembra corpo o quanto foste amado, e os desejos que brilharam em outros olhos claramente”, este corpo vamos com ele até festejarmos tudo tão claramente como um encontro sem par, que o par é um lado estagnado da função, e ela é outra, e tão nova, tão repentinamente nítida, que amá-la não pode ser um local narcísico, amando-a no lago frio das ilusões, tanto e tão, que caímos na armadilha mil vezes repetida de uma prova elementar que não transpusemos.

Amar outrem, muito, tudo, não é necessário, são conclusões morais que obrigam a um cansaço e muita vigília… Acontecer no tempo. O corpo continua e os vinte e um gramas implantados nos ditarão o caminho novo que se aproxima agora da meta anunciada. Nem o castigo, nem a libertação, nem a aceitação, nem o logro ou a luxúria, conseguiram restituir a grande causa escondida que brotará melhorada e porá fim a uma parte do processo evolutivo.

Os corpos subtis foram apelidados de “corpos aromáticos” e um mundo que cheire bem terá resultados telepáticos amorosos progredidos e ampliar-se-á na construção da alma vindoura, os fluídos da energia transformadora e formadora estarão próximos de um êxtase de vida que reconheceremos mais benigno para esse peso tão leve e definitivo.

Talvez mudando a escala da erotização mundial nos possamos então propor a reformar estes destinos grupais projectados num mito que agora encontramos sujeito a falência, mas longe, tão longe da castração por fluxo concentrado o qual não fez mais que precipitar a sua queda. A liberdade encontra-se sempre ligada ao propósito do bem e bom será então dar as boas vindas a este «Sexo XXI» sem o medo dos contágios.

13 Nov 2018

Feio

[dropcap]É[/dropcap] a componente estética aquela que mais define a vida como estrutura organizada da multiplicação pelo ciclo do acasalamento, qual lembrança perdida de uma harmonia. Se a vida, essa, sempre se refaz pelo invencível ciclo harmónico da regeneração, isso indica que dentro de cada coisa viva existe um pouco desta experiência incrível: um programa geométrico de um longínquo gérmen-memória de imortalidade.

Vivemos nós de estereótipos estetizantes que, quase sempre, e caso a atenção nos falhe, poderão contribuir para o martírio de uma conduta de comunicação, a partir das noções mais vastas desse mecanismo. Implantados no mapa ideológico, trajar as vestes do mito social, requer a flutuação de princípios para o ajustar a essa vertente, onde o poder é a causa mais interessante da luxúria do feio. Uma certa arquitectura segue no corpo da ideia…

Na medida em que a flutuação comportamental estética modela as ondas do espaço social, podemos nós, como nas batalhas, medir a tensão dos ritmos presentes, e há que salientar que todas as épocas trouxeram para o espaço público a sua estética do feio, como o mundo clássico no vasto diálogo moral entre tais princípios. Salientar que o fantástico disforme da cultura helénica foi um fenómeno absolutamente extraordinário. Percorrendo todas as deformidades elas acompanhar-nos-iam até ao seu extremar. Escatológica a força do destino!

O disforme pode ser uma urgência em acabar de vez com o insuportável sorriso dos incautos. «Não deveria, portanto, odiar quem me detesta? Não farei pactos com os meus inimigos. Sou um infeliz e eles partilharão comigo a minha infelicidade». Muito semelhante a uma frase de Rilke, que define a beleza como princípio do terrível. As vanguardas ocuparam-se, há mais de cem anos, a olhar para dentro das vísceras das belas imagens e a devolverem-nos o conjunto sem o qual a visão que rege a outra parte ficaria sempre inacabada, e muitos não conseguiram fazer a transição da decoração para a transgressão, ficando-se no efeito algo perverso das coisas bonitas – e é claro- bonito não quer dizer nada e, no entanto, será sempre bonito dizer-se do bonito que as coisas são.

A prodigalidade da desmesura pode em muito contribuir para desventrar pântanos onde muitos pensam ser Narcisos e esse espectro atroz da contemplação nas fétidas águas dos seus cânones será imprudentemente a maravilha, a forma de arte completa, vista por quem a observa em outras latitudes. Devolver o cenário de uma excrescência será esse o trabalho mais sério de um artista ou de todo aquele que perscruta os sinais do estranho horror que emana da vida. Podem os que escrevem aleijar todas as fontes verbais ao sair do labirinto de um ordeiro Minotauro que, doloso, segue a nossa sombra para se entreter no seu martírio de fera só. Tudo podemos experimentar na longa marcha que cria o insólito com que muitos olhos, mesmo abertos, ao contemplar, não vêem a liberdade total que será sempre a conquista definitiva do próprio mérito.

Não queremos poesia de género nenhum.
Queremos truques mágicos de saco,
Procurando tapar na existência um fatal buraco.
E apesar de esforço insano não tapamos nenhum.

Wilhelm Klemm – Expressionismo alemão

Há no entanto algo que escapou a uma filtragem atenta e se precipita agora na antecâmara provável dos horrores, esse algo que não tem código na nossa outrora e quase obscena arte do feio, um fenómeno que ultrapassou as torres de vigia de como olhávamos o esquartejamento das imagens… uma outra dimensão que a fealdade não alcança. Já muito alucinámos acerca da devastação dos medos, eles tornaram-se modelares, competitivos mas o que se avizinha não nos deve estarrecer nem surpreender, na medida em que não temos esses sentidos para os contemplar, mas onde certamente somos a via por onde uma repugnância qualquer se fará sentir. Acéfala e gregária, a nossa vida avança para o cume de um estertor que não há registo, pese embora a distância da quimera de cada um na felicidade ardilosa que teima em não chegar. O nosso repouso celular deixou entrar um festim de exterminadores implacáveis. Já não há braço, modelagem, ferocidade, génio, garbo, convicção para a metamorfose de um cerco em volta do mundo.

O “código criminal” do feio pode ser uma qualquer mágoa acelerada para anunciar desastres e também um local de exílio perante a falta de compaixão, foi Isaías que anunciou que um Messias sem beleza diante do qual se tapa o rosto, considerado como um leproso iria ajudar-nos a salvar-nos de males maiores. Há instantes mais cruéis que olharmos no olho de um Ciclope, e desventuradamente o grotesco se desfez para dar origem ao medonho.

Salientar que chegam até nós as trombetas de uma regressão – não fosse nada definitivamente andar para trás – avança de outra maneira com mais pujança que o antigo braço que vemos chegar quase tão repentinamente como os furacões.

30 Out 2018

O diabo

[dropcap]C[/dropcap]om os anos devemos à memória mais, muito mais do que a toda a informação obtida, dado que a informação não cultiva, e a memória cultivada regista outros parâmetros onde aquela com sede de novidade já não pode inovar. O alarido “diabólico” das mentes ofegantes que geram no éter as nossas informações parece montagem de maus demos no exercício das suas funcionalidades. Barricamo-nos na deriva de tanta presunção diabólica, coisas que na memória, tal como disse, não parecem funcionar assim. Recuar até Giovanni Papini, converso cristão, que de forma ilusionista lhe vestiu o manto e quase se santificou até ao mais improvável alibi, ao seu «Diabo» que em nada se parece com esta dimensão desconcertada de um mal aleatório. Que grandes páginas a ele dedicadas o mundo não padece «O Dicionário Infernal» de Collin de Plancy, que veio a ser, e muito justamente, designado por «género frenético» até a «Hora do Diabo» de um Fernando Pessoa. Há matéria para tais deletérios e, pasme-se, que podem ser louvados enquanto exercício de uma esfera fecunda, que o é.

Mas qual o efeito deste Demo, senhor das coisas impensáveis, que cavalgou as nossas vidas antes da lava larval dos novos conteúdos? Nenhum. O Diabo, a haver, já se foi, da mesma forma que Deus morreu. Só nós, no centro do labirinto da teomania, nos avantajamos para mostrar obra feita que reponha tais princípios, podendo bem dar-se o caso de ser agora uma lenda bem menos amarga que as nossas tão humanas interpretações. — Que Pessoa afirmou na sua Hora que ele era um cavalheiro e que deveria, por isso, uma senhora mostrar-se confortável na sua presença — o que não deixa de ser uma grande reabilitação face ao homúnculo que por este mundo anda, até ao seu Beijo, com a carga que selou um improvável encontro. Foi Deus que desceu à condição e teve como resolução final a Paixão, ela, não se encontra pendurada sangrando de humana barbárie – não – a isso chama-se assassinato. Um beijo assim tem mistérios tais que milénios de cânones não conseguem descortinar. Afinal, não se deve tocar em ninguém e, sobretudo, como bem viu um jovem professor, obrigar crianças a beijar avós ou quem quer que seja contra as suas vontades. Tocar é um mistério, ser tocado, também.

A venda não tapa os olhos dos vendidos, vender é fazer negócio, e que se saiba ninguém negociou beijos ou vendeu a resgate o ponto imóvel de um deles, que desse origem a esta arrasadora frase de Papini: «que resta a fazer quando nada mais é possível? Volver-se pois contra si mesmo…abocanhar-se, fazer-se em pedaços…e um dia? Um dia, abrasar. Mas nos seus membros lassos por entre os coágulos acres de sangue, há um pouco de carne intacta, onde ele com Judas beijou», o que pode bem responder à questão do Evangelho segundo Mateus – Amigo, que vieste aqui fazer? Sem mácula, a carne beijada. Mantivemos a luxúria como um elo da malignidade e, de certa forma assim é, mas o Beijo não tem escala percorrida na antecâmara das profanações, nem estas carnes que se tocam são de natureza profana a produzir simples desejos. Estamos na intimidade de uma grandeza.

Há muitos sortilégios em forma de códigos morais nas ideias alternativas e nas mentalidades modeladoras. São bocados de encantamento que lutam contra o desgoverno mundial mas, mal feitas e dirigidas a não se sabe quem, coisas de arrepiar se multiplicam sem que tenhamos capacidade de as reconduzir a uma forma de combate leal. Atravessamos a loucura como um estado de coisas naturais, gostamos da bruxa má, do inferno porque é giro, da resiliência soez, e andando nisto até parece que Satã nos fica a matar. Não. Não está aqui. Nada disto tem sentido infernal nenhum. A vacuidade produziu uma estranha importância cuja cauda não chega à de um crocodilo e bizarramente altiva-se de perfeccionismo serôdio para alinhar no esconderijo do pormenor. Regra de Demo, sem que se lhes reconheça sagacidade para juntar todas as peças de um acorde: o que ele gosta de violino!!!

Cada época recorrerá, criará a sua noção de malignidade, mas não creio que se possa recorrer já em todas as culturas aos arquétipos: as advertências são grandes e o próprio mal uma consequência e, na medida em que nos falta elementos valorizadores da natureza humana para que as tabelas oníricas se mantenham como suportes, é mais fácil um desventrar sem causa do que uma perseguição por culpa. Quem não entendeu um Beijo não pode querer saber mais do muito que ainda tem para lhe acontecer – e aconteça o que acontecer – já não há beijos que nos ressuscitem ou nos condenem. As nossas bocas fazem dieta e o nosso corpo deseja-se magro. «Encontrei-os cegos – ensinei-lhes a ver. Agora não me reconhecem nem me vêem» Blake, este Lúcifer tem mais potência que toda a industria energética que não deve ser cortada por subalternos de um deus menor, uma fonte que por cá, não raro, até prodigaliza incêndios ficando a terra um inferno sem brilho.

O físico Stephen Hawking acaba de deixar estranhos prognósticos dizendo mesmo que nos podemos extinguir em face de uma espécie melhorada… mas o pior é darmos de caras com o Demónio do Apocalipse, aquele que virá para julgar os vivos e os mortos, sendo os vivos horrorosamente nós: «Nesses tempos os homens procurarão a morte e não a encontrarão; desejarão morrer e a morte fugirá para longe deles» Não, não é contra a eutanásia. É a vingança do retorno do Diabo. As almas estarão num tubo de ensaio para não mais ser vendidas. E dos beijos que der, mais ninguém terá conhecimento.

23 Out 2018