Perante o teu rosto 2

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Desde o princípio, instala-se no filme uma impressão de latência: um sonho que é aludido mas não contado; um regresso cuja causa fica silenciada; o que se declara ter ficado por dizer, pela irmã da protagonista e em casa de quem esta se hospeda, nas suas visitas anteriores e cujo teor volta a não ser esmiuçado… como se a relação entre ambas não tivesse por esteio qualquer intencionalidade declarada e antes fosse feita de intervalos, do que, estando ainda invisível, engendra o movimento da vida.

Aliás, o filme começa com o despertar da protagonista e acaba com ela a velar o sono da irmã. Terá tudo sido um sonho? Será a vida um sonho?

A estrutura da trama conta-se numa linha – ao retorno da filha pródiga sucede-se o desfazer das ilusões – e resume-se a quatro movimentos: as irmãs tomam o pequeno-almoço, passeiam um pouco nas imediações (fazendo tempo), a visita solitária da protagonista à casa de infância, o seu encontro com o realizador. Como há um prelúdio e um epílogo, o filme poderia chamar-se Entre Sonhos.

Nada do que habitualmente denominamos acção, intriga, permeia este filme, pura música de câmara, ensaiada à medida que se apresenta à nossa frente, ao jeito de uma conversa em surdina entre “ressonâncias”.
E, no entanto, não despegamos do filme e comove-nos.

Primeiro, um espantoso “efeito de presença” compensa-nos da escassez das incidências: de hábito, nos filmes, seguimos uma história que as personagens ilustram, melhor ou pior. Aqui prendem-nos as microtonalidades da expressão que desponta do jogo das personagens, como se em vez de um propósito, de um engatar da acção no mecanismo do seu “plot”, nada mais houvesse para além daquele presente nascido à nossa frente.

Há tensão, mas fomos dispensados de um suspense expectável. O que é comum aos filmes é colocarem-nos num estado de ansiedade. Hong Sang-Soo subtrai-nos isso; no seu lugar impõe-nos um estado de imanência, sendo esse, de antemão, um conseguimento.

Chega então o encontro com o realizador. Aí ficamos a saber algo mais da protagonista: que foi uma actriz de relevo e a sua aura marcou a memória desse espectador que é agora um realizador experimentado. E o espantoso é que quando emerge o nó que constituirá o verdadeiro “atractor” da fita, já aceitáramos à narrativa o seu fluir-“desinteressado” (onde aquilo que emerge “espontâneo” nos dispensa de ansiar por um fio causal para o ethos das motivações); o assombroso, nesta narrativa, é que, no momento em que a revelação que muda tudo é feita, esta é mais um bónus que o factor determinante para iluminar a motivação das personagens; já nos acomodáramos a que criaturas simples mas soberbas transpirassem à nossa frente, sem mais.

Portanto, esse “segredo” de repente exposto consegue ser, à vez, ou uma “certa” verdade sobre a personagem ou uma segunda história que surge sob a primeira: ela não pode participar no filme para que ele a convida, diz-lhe, porque vai morrer. Está condenada, diz. Regressou dos EUA (a “terra dos sonhos”) à Coreia para morrer.

É uma regra: em grande parte das melhores narrativas acabará por emergir uma segunda história, até aí invisível, do subsolo da primeira. Mas, neste caso, outras ambivalências se desatam, de imediato. Será verdade o que ela conta, ou provoca o realizador, mede-lhe o pulso e à sua declarada máxima ambição em fazer um filme com ela.

Afinal, não há prova quanto ao que ela diz, não sabemos se é uma rábula para, pelo extremo da razão emocional que a sua revelação coloca em cena, mais facilmente arrancar ao realizador a confissão da secreta intenção em dormir com ela.

Ademais, num contraste vivo, ela conta-lhe uma história espantosa: a de como a proximidade da morte carrega de brilho e intensidade os rostos que a rodeiam e como isso a deixa grata; por uma vez como “espectadora”, sente-se, face à realidade, num estado de unicidade. Repare-se: ela conta-lhe que “está a morrer e como se sente mais viva”.

Nunca saberemos se não estará a ser irónica em relação às cenas de filme que ele citara como os momentos dela que o haviam marcado – evocando na relação com tais rostos iluminados o transe de identidade que caracteriza o espectador no escuro da sala de cinema -, posto que as cenas do filme que ele referia eram afinal planos mais icónicos e atmosféricos do que propriamente exemplos do seu particular talento para a representação.
Esta ambivalência nunca nos abandona, subjaz à tensão do filme.

Ela diz-se em ars moriendi mas há uma grandeza no comportamento dela que simetricamente só pode ter uma resposta deceptiva, o realizador não tem, como ela, a vida para apostar; ele recua, desejava apenas a fugaz vantagem do sexo e não o compromisso com a efervescência do espírito que se apazigua com a beleza. Será então a matéria do conflito do filme o rosto verdadeiro da actriz perante o da mentira do realizador?

É verdade o que ela conta, o que vimos, ou tudo não passou de um sonho, visto que no princípio e no fim ela está com a mesma roupa de dormir? Uma das qualidades do filme é que podemos lê-lo das duas maneiras.

Outra razão porque “Perante o Teu Rosto” é, para mim, uma obra-prima está em que, como detectou Marc-Mathieu Münch em estudos comparados sobre obras de arte de todo o mundo, se encontra nele uma das invariantes que atestam uma qualidade superlativa nas obras artísticas: o “efeito de vida”.

O que este seja (a começar pela “poética” que funda) explicá-lo-ei noutra crónica, mas talvez se comece a elucidar neste pronunciamento do Livro do Desassossego: «A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade.”

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José Gomes
José Gomes
7 Jul 2022 10:21

Ficou uma grande vontade dessa experiência cinéfila.