Do Nobel e outros

DR

9/10/22

Ao ler as reacções de muita gente quando se anunciou o Prémio Nobel da Literatura deste ano, não pude deixar de me lembrar deste reparo de Jean-Pierre Siméon, em relação a um outro Prémio Nobel: «Um editor de um grande jornal diário nacional escreveu cinco linhas de indignação por ter sido atribuído o Prémio Nobel de Literatura a Thomas Traströmer, um completo desconhecido. Mas desconhecido para quem? Como é que não ocorreu a este colunista literário, patenteado e pago para fazer o seu trabalho, que a sua aparente ignorância era uma questão de conduta profissional incorrecta? Tranströmer fora traduzido em muitas línguas, estava disponível em francês.»

Há sempre o coro dos que esperam pelo anúncio do Prémio para reclamarem por não terem sido convidados para o júri do mesmo, há um subgrupo de irados que professa “nunca li e nem me vou dar ao trabalho de ler”; é uma fauna pouco humilde, a que habita as redes sociais.

Eu nem sempre conheço todos os premiados – desconhecia a existência da Louise Glück, que acho uma grande poeta, ou da Olga Tokarczuk, por exemplo – mas isso só me traz o conforto de saber que o mundo não é uma telenovela onde toda a gente se conhece e a alegria de reconhecer que a bitola do mundo não se mede com a minha medida curta e que pelo contrário dá-me uma nova oportunidade para enfrentar o desconhecido e aprender com ele.

E talvez a mais cretina das reacções tenha sido a daquele inteligente que escreveu, Mas ainda há quem leia francês?; confirmando apenas que hoje há um novo tipo de ignorância que se arvora com desplante: o daqueles que só lêem inglês.

Também eu preferia que, em francês, fossem premiados o Pascal Quignard, a Linda Lê ou mesmo o Sollers, ou, de entre os novos, o Mathias Énard, mas isso não tira dignidade à obra de Annie Ernaux (e bastaria ter escrito o “Les Années”). Há livros dela de que gosto menos, como o vulgar “Uma Paixão Simples”, mas isso acontece com quase todos os autores, têm livros-charneira e outros que são como intervalos no seu itinerário. Aconselho a leitura de um belíssimo livro de entrevistas com ela, “L’écriture comme un couteau”.

11/10/22

Ontem saiu um artigo no matutino “Notícias”, de Maputo, a dar conta de que fora atribuído o Prémio Pen Club de Narrativa à minha mulher, a Teresa Noronha, pela sua novela “Tornado”, que já havia tido o Prémio Maria Velho da Costa.

O resumo que fizeram do livro nem merece comentários, por patético, mas o que interessa realçar é a nota de desqualificação quanto à sua «moçambicanidade» ao chamarem-lhe luso-moçambicana. Não é que seja inexacto, mas, para quem conhece o contexto, é um toque sacana.

Porque enfim, seguindo a mesma lógica, ao Adelino Timóteo devia chamar-se tsonga-moçambicano, ao Álvaro Taruma ronga-moçambicano, e macua-moçambicano aos escritores que forem do norte, etc., etc. O que não consta que aconteça.

A dado momento, na novela, escreve ela:

«A nossa cor nunca foi a dominante. No tempo colonial não éramos brancos, éramos arraçados de monhés, canecos de cú la¬vado, o termo pejorativo para falar de um filho de goês e portu¬guesa. No período pós-colonial, eu não era negra e se, em Lisboa, me tomavam por brasileira ou por cabo-verdiana, já em França perdiam-se em cogitações sobre de onde seria e espantavam-se quando descobriam que era africana. Lá tinha de explicar as deambulações do meu ADN antes de assentar arraiais em Mo¬çambique. Levei muito tempo a aceitar que era assim porque sim, e que não era nenhuma maldição que assim fosse; ao contrário, podia até descobrir padrões intensos de fantasia e liberdade neste manto de arlequim que é a nossa genealogia…»

No Moçambique actual passa por ser branca… e isso sobrepõe-se logo ao que faz ou ao que é.
É triste, mas como advertia o Naipaul, por estas paragens a raça é tudo e vive-se encharcado nela tão profundamente como, em outros lugares, na religião.

12/10/22

Morreu o Bruno Latour, um antropólogo que estudou as ciências e os seus procedimentos e legitimações, o direito, a técnica e as religiões e que se entreteve a virar as tripas aos dogmas dos “modernos”. Para ele o lugar, a função do especialista, definia-se mais pela perplexidade que encarnava do que pela suposta verdade que o sustentaria.

Propunha, por alternativa às bondades do multiculturalismo e à sua equívoca senha chavão «todos diferentes todos iguais», o regresso à «diplomacia», dado esta, precisamente, não partir do pressuposto de que «somos unificados porque partícipes da mesma natureza» mas relevar simplesmente que nós «ainda não partilhamos um mundo comum»; sendo necessário lidarmos frontalmente com o «abismo de desacordo» que nos separa, em vez de querer iludi-lo.

E sobre a política dizia, desassombradamente:

«Se se exige transparência ao político, matamo-lo; se alguém exige fidelidade ao que o outro era ou ao que diz, mata-o; se se exige uma relação mimética entre o que a multidão quer e o que diz o seu representante, mata-se a representação. Estes devem, portanto, por definição, trair, enganar, modificar, distorcer a palavra. Sem essa capacidade de dobrar a palavra e de trair, a linguagem política não existiria. Ponho a hipótese perfeitamente plausível de que o vocabulário político se tornará tão inacessível quanto a linguagem religiosa dos últimos vinte, três ou cinquenta anos.» (em “Un Monde Pluriel mais Commun”). Creio que nos fará falta para decifrar este mundo freneticamente complexo que nos coube.

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