Tânia dos Santos Sexanálise VozesAs mamas As mamas são complicadas. Desde veículo de alimentação a objecto de desejo, as mamas são partes do corpo criticadas em praça pública. Os humanos são os únicos primatas com mamas proeminentes desde a adolescência à morte. Um claro sinal evolutivo que as mamas servem para muito, até para debates sociais. Amplamente discutidas nas revistas cor-de-rosa, as mamas entrelaçam discursos de aceitação (“body positivity”) e de escrutínio social. Uma combinação que tenta normalizar as diferentes mamas e mamilos, mas que ainda estabelecem definições entre “boas” e “más” mamas. Aos olhos da mulher moderna uma forma de resolver esta categorização está no discurso neoliberal pós-feminista, onde o consumismo é o único mecanismo para a mudança e empoderamento. Neste caso, através de soutiens e mamoplastias. Soutiens são a solução proposta para as mamas “problemáticas”, que ninguém sabe bem o que são, nem como se parecem, pois as mamas dependem das modas. A ausência de soutien também está sujeita a um tipo de aceitabilidade ditada pelos senhores e senhoras da indústria. Uma tendência pelo look natural que nem todas podem ter acesso, muito menos as mamas descaídas. Já lá vai o tempo em que se queimavam soutiens como forma de empoderamento, agora, compram-nos. A mamoplastia, uma cirurgia de alteração mamária, eleva este “empoderamento” a outro patamar. Referem-se a elas como formas de elevar a auto-estima. Assim dizem as revistas cor-de-rosa e os apresentadores de programas populares. Esse jargão clínico que já se incorporou na linguagem do dia-a-dia. As mulheres protegem-se do escrutínio público e vivem mais felizes, sem complexos para mostrar as mamas (aos outros). À medida que o tempo passa, e que o corpo se altera, as mamoplastias de revisão são obrigatórias para que as mamas se ergam firmes e hirtas, desafiando o tempo e a gravidade. O pragmatismo para lidar com mamas só mostra que estamos longe da sua total libertação. Há quem peça censura no acto, tão singelo (e natural), de mamar. Essa exposição (desnecessária!) precisa de ser dissimulada e discreta, enquanto a Playboy continua a lucrar com o mamilo exposto. Ao mesmo tempo, envergonham-se as mulheres que escolhem não amamentar. “As mamas não nos pertencem”, já alguém dizia. As mamas vivem uma tensão milenar entre aceitação e escrutínio que deixam marcas profundas na forma como as mulheres vivem os seus corpos. Até estudos científicos contribuem para a sua objectificação. Insinuam que mamas assimétricas (que são todas) revelam uma pobre composição genética de quem as carrega. Esses estudos defendem que os homens que preferem mamas simétricas estão, na verdade, a optar por mulheres com uma carga genética mais favorável, garantido uma linhagem mais saudável. As mamas são indicadores sexuais que precisam de ser urgentemente descomplicados. São necessários mais projectos sociais, educativos e artísticos que revelem de forma honesta a pluralidade de mamas existentes; projectos que revelem também que por detrás das mamas estão seres humanos de imensa complexidade. Há mulheres que odeiam as suas mamas porque lhes ensinaram a odiá-las. No pragmatismo dos dias que correm, é preciso tornar evidente que as mamas são uma pequena parte da complexidade da existência.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesViagra: a erecção milagrosa? O viagra está agora em todo o lado. Com o fim da patente pela Pfizer em 2019, alternativas genéricas ao fármaco multiplicaram-se. Muitos jovens com pénis e com alguma forma de disfunção eréctil têm recorrido a esta forma fácil de resolução do problema. A experiência de não conseguir manter uma erecção pode ser vivida como profundamente problemática, já que vai contra a perspectiva da virilidade da juventude. A primeira preocupação é a de resolver o mecanismo, e não procurar perceber porque é que não está a funcionar. A medicação é essencialmente utilizada para evitar o desconforto social e relacional que um pénis não-erecto provoca no sexo performativo – que se julga penetrativo. A ausência de erecção também pode ser entendida como desinteresse pelo/a outro/a, que aumenta ainda mais a pressão da performance. A medicação, nestes casos, ajuda a perpetuar uma narrativa que há muito se tenta desmantelar: que o envolvimento no sexo é de responsabilidade individual, exigindo-se uma espécie de configuração sexual perfeita. O aumento da (hétero- e auto-) prescrição deste tipo de medicamentos revela que há um constante evitamento em abordar outros factores que influenciam a disfunção eréctil e esta construção do “sexo perfeito”. São estes factores relacionais, psicológicos e sociais. Ainda assim, a forma como os jovens entendem a sua (auto-)prescrição de viagra trouxe-me laivos de esperança. O mais interessante dos testemunhos de um estudo realizado, foi a descrição do dilema que enfrentam. O viagra traz o empoderamento milagroso, mas também traz a frustração da sua dependência. Como pequenos espaços de consciência, estes jovens compreendem a complexidade dos outros factores na disfunção eréctil. Sabem que talvez se o sexo fosse mais comunicativo, em vez de performativo, não sentissem tanta pressão para resolver o problema desta forma. A expressão de vulnerabilidade, no sexo, paradoxalmente, pode ser mal acolhida e compreendida. Não tem de ser sempre assim. Na forma como os corpos se envolvem, abrem-se espaços mais ou menos susceptíveis à partilha. A responsabilidade estende-se para outros espaços e configurações. A forma como as sociedades e os sistemas de saúde funcionam também têm responsabilidade em normalizar e ajudar a resolver a insegurança e o desconforto da disfunção eréctil. Isso implicaria a existência de serviços cada vez mais integrativos, onde se cuida da sexualidade e das preocupações que se tem sobre ela. Com dados promissores sobre o efeito da psicoterapia nestes casos, e com a evidência da influência da ansiedade ou depressão na libido e a sexualidade, faz sentido que se priorize a saúde mental e o bem-estar em todas as áreas da vida. É importante reconhecer a capacidade do viagra de salvar, de forma momentânea, tantas situações de desconforto. Mas é preciso mais ambição. Querer transformar representações de uma masculinidade rígida que inundam tantas instituições formais e informais da sociedade, bloqueando espaços discursivos e físicos para a vulnerabilidade, é o desafio de agora. O verdadeiro milagre seria uma mudança na forma de pensar e agir em relação à disfunção eréctil, e, para isso, não há nenhum comprimido capaz de o concretizar.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesUm conto de sexo e cancro Há um cancro que é fácil de prevenir se as pessoas tiverem acesso a uma boa educação sexual e a um bom plano de vacinação. Este cancro é provocado por um vírus transmitido sexualmente, vírus do papiloma humano, conhecido pelo acrónimo inglês HPV. É um vírus tão comum que cerca de 90 por cento das pessoas terá tido contacto com ele durante a sua vida sexual. São 150 estirpes do vírus, muitos deles não perigosos, que o corpo descarta no espaço de dois anos. A infecção é considerada a constipação do sexo, uma inevitabilidade de quem tem sexo, independentemente do número de parceiros. Os preservativos ou oral dams até podem reduzir um pouco o risco de transmissão, mas não são muito eficazes. Basta o contacto de pele com pele. A infecção é normalmente assintomática, mas podem surgir verrugas genitais, ou condilomas genitais, um dos sintomas mais comuns de fácil tratamento. Contudo, existem duas estirpes do vírus que estão muito associadas ao desenvolvimento do cancro: o 16 e o 18. Embora associado ao cancro do colo do útero, este vírus pode ser também responsável pelo cancro da vulva, da vagina, do pénis, do ânus ou da garganta. Infelizmente, a vacina tem sido anunciada como a vacina do cancro do colo do útero, e por isso aconselhada a pessoas com um útero. Nas políticas ainda binárias, as meninas ainda jovens podem levar a vacina dentro do plano nacional de saúde de muitos países. Recentemente começaram a incluir a vacinação nos meninos. Esta (lenta) inclusão não tem sido muito eficaz na conscientização das tantas outras formas sexuais e cancros que podem surgir. Ao não vacinar homens, estamos a deixá-los mais vulneráveis. Isso incluiu homens que fazem sexo com homens e/ou com mulheres. Em 2013, numa entrevista ao The Guardian, Michael Douglas revelou que o seu cancro da garganta tinha sido provocado por cunnilingus. Para além da histeria inicial, foram poucos os que quiseram desdramatizar de forma informada. A verdade é que tem havido um crescimento de cancros da garganta provocados por HPV, mas também é verdade que são facilmente prevenidos com vacinação. A vacina é polémica, como devem calcular. A população em geral está resistente em tomá-la. Primeiro, porque protege as pessoas de uma infecção sexualmente transmitida e ninguém gosta de pensar que pode ser afectado por tal. O estigma das infeções sexualmente transmissíveis desabrocha do medo de uma suposta actividade sexual prolífica, que ninguém quer assumir. Segundo, a vacina protege de um cancro que ninguém sabe se vai desenvolver. E se é verdade que muita gente vai estar em contacto com o vírus sem nunca desenvolver cancro, como tantas as outras infecções na história, só através de uma vacinação em massa é possível erradicar completamente o risco. Na estória de sexo, infecção e cancro, uma vacina antes do início da vida sexual equivale a um acto heróico. E não só, a vacina é igualmente eficaz para quem já tenha iniciado a vida sexual e já tenha tido infecção por HPV. Para os adultos, infelizmente, é uma vacina dispendiosa se a tivermos de financiar. Mas se o vírus do HPV é praticamente inevitável, só com uma vacinação massiva o tornamos absolutamente inútil.
Tânia dos Santos SexanáliseOrgasmos não-genitais Um artigo científico de 2018 publicado no International Journal of Sexual Health analisou uma série de publicações online sobre orgasmos não-genitais que ocorrem em situações inesperadas. Foram analisados 919 comentários anónimos para identificar as circunstâncias não sexuais em que as pessoas experimentaram orgasmos que não exigiram estimulação directa dos genitais e que não ocorreram num contexto sexual habitual. Os exemplos mais comuns referiam-se a orgasmos durante exercícios físicos que envolvem as pernas ou a musculatura abdominal. Isso incluiu actividades como andar a cavalo ou de bicicleta. Algumas pessoas relataram ter orgasmos ao andar de bicicleta em pavimentos calcetados que produzia uma vibração prazerosa. Embora esses orgasmos sejam considerados não-genitais, uma vez que não há manipulação intencional dos genitais, parece evidente que eles surgem devido à sua fricção e estimulação. O mesmo ocorre com a subida aos postes, que alguns comentadores afirmaram ter sido uma fonte de prazer durante a infância ou juventude, embora só tenham compreendido a razão mais tarde. Outros mencionaram uma associação entre a vontade de urinar ou defecar e o orgasmo, especialmente quando essa vontade é suprimida. Novamente, mesmo que os genitais não sejam estimulados nesses casos, as conexões nervosas que envolvem toda a região pélvica parecem ser responsáveis. Algumas relataram ter orgasmos durante o parto, o que confirma essa associação. Existem também orgasmos mais inesperados, desafiando tudo o que sabemos sobre as vias neuronais do orgasmo. Algumas pessoas têm orgasmos com a estimulação de outras partes do corpo, sendo os mamilos uma das áreas mais comuns, inclusive durante a amamentação. Além disso, outras partes do corpo, como orelhas, ombros, pés, pescoço, cabeça, costas, tornozelos e boca, também podem levar algumas pessoas à loucura quando estimuladas. Li o relato de alguém que teve um orgasmo ao vibrar a ponta do nariz, áreas que não são especialmente erógenas. A associação entre orgasmo e dor ou desconforto também é sugerida. De facto, estudos com pessoas que sofreram lesões na coluna vertebral e perderam a capacidade de sentir dor mostram que também podem perder a capacidade de ter orgasmos. Há algo nessa ligação entre a dor e o prazer que também explica como algumas pessoas atingem o clímax ao fazer uma tatuagem. Além disso, o alívio após uma experiência dolorosa pode levar alguém a uma descarga prazerosa, como alguém descreveu após a extracção de um dente. Também foram relatados orgasmos em momentos de extrema ansiedade ou em estados meditativos. O nosso estado emocional pode contribuir para moldar este potencial. Estímulos visuais, como imagens, e alguns sons, como ouvir uma música especial, também foram relatados como desencadeadores do clímax. A experiência sensorial de comer também foi referida. Há quem tenha dito que o atum é a fórmula para o orgasmo, pois “há qualquer coisa na sua textura”. Cada pessoa conhecerá as comidas mais “orgásmicas” no seu repertório de experiências. Estes são exemplos relatados por pessoas comuns que sugerem muitos caminhos ainda a serem explorados no estudo do orgasmo. Ter uma visão sofisticada do orgasmo também contribui para uma compreensão mais refinada do prazer, que pode surgir nos momentos mais inconvenientes. Promove uma visão mais abrangente do sexo, que inclui todos os corpos e as muitas formas de desejo, para além do ato sexual em si. Saber que o orgasmo está associado a tantas dinâmicas diferentes também é um incentivo para o auto-conhecimento. Onde estão os nossos orgasmos? Até que ponto sabemos se nosso orgasmo está na ponta do nariz, atrás do joelho ou nos mamilos? Abrir espaço para criar oportunidades de descoberta é a lição a ser aprendida com a normalização de que o orgasmo pode estar em muitos lugares diferentes.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesMDMA na terapia de casal Leram bem. MDMA, como quem diz, a droga do amor, molly, ou ecstasy, a droga recreativa, pode ser uma poderosa aliada na terapia de casal. Não se trata de uma proposta sem fundamento de tendências new age, como os mais críticos e conservadores poderão julgar à primeira vista. É dentro das ciências psicológicas que se tem assistido ao renascimento dos psicadélicos. Um renovado interesse sobre o que alguns grupos de investigação já diziam há décadas, e que as comunidades indígenas já praticam há milhares de anos: as substâncias psicadélicas têm um grande potencial de transformação, e para os mais puristas da linguagem médica, um grande potencial para a cura. Neste renascimento, recupera-se a investigação realizada com psicadélicos, de onde fazem parte outras substâncias como o LSD, psilocibina ou ketamina. O que estes psicadélicos fazem é a dissolução do ser e a expansão da mente para que toque tudo o resto à nossa volta. Estas “trips” levam as pessoas para outros lugares mentais, lugares incomuns do cérebro. Como que um exercício de ginástica e flexibilidade cerebral, processam-se e recriam-se os padrões neuronais, resultando em novas formas de se estar. A ciência tem percebido o potencial transformador destas substâncias em stress pós-traumático e depressões resistentes. Na sociedade contemporânea que padece de doenças mentais e que força modelos (irrealistas) de se ser e estar, os psicadélicos – especialmente, se tomados em contextos terapêuticos – podem revolucionar a forma tradicional de experienciar. A investigação sugere, também, o potencial dessa revolução na terapia de casal. A droga do amor, que nos torna mais amorosos, ajudando na produção de hormonas de prazer e bem-estar, teoriza-se útil para os casais desencontrados. Digo teoriza-se por que não se tem testado o uso de MDMA nestes contextos por razões óbvias. Os poucos estudos que existem aplicaram MDMA em casos de stress pós-traumático que então mostrou resultados promissores na satisfação conjugal. Há quem foque a sua investigação no uso “naturalista” desta substância, ou seja, perceber as transformações nas pessoas que tomam MDMA de forma regular – muitas vezes em microdosing, ie., doses que não levam a viagens, mas ajudam a estarem mais ágeis mentalmente – e de como é que sentem que impacta a vida em casal ou a sua sexualidade. As vantagens reportadas são muitas. De acordo com os participantes ajuda a reduzir o stress e reduz também a ansiedade associada à performance sexual. Isto então ajuda no aumento do desejo, bem como a intensidade da exploração sensorial. Claro que o crepitar destas sensações ajuda na ligação emocional entre os envolvidos. O papel das substâncias psicadélicas nas relações amorosas e sexuais ainda é um terreno por desbravar, mas extremamente promissor. Se a investigação associada a doenças mentais mais graves ainda é insipiente, em relação a estas coisas do amor e do sexo ainda mais insipiente é. Não considerem, por isso, este um convite para tomar psicadélicos sem noção dos riscos, muito menos sem noção das condições necessárias para uma experiência terapêutica. Depois de muitos anos em que os psicadélicos foram demonizados, entramos agora numa fase promissora de desconstrução do seu significado. Um processo que será lento. Ainda assim, este palavreado tenta contribuir para esse processo. Urge olhar com nuance e complexidade a forma como os psicadélicos podem ser absorvidos pela sociedade – e refletir sobre os resultados maravilhosos, coloridos e psicadélicos que podem trazer.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesDa santidade ao abusivo vai uma língua Vou assumir que tiveram acesso a conteúdos da mesma forma que eu tive. Fui bombardeada pelo vídeo do Dalai Lama a querer beijar na boca uma criança onde depois lhe pede que chupe a língua. Ele, ou a sua equipa, pediram desculpa pelo incidente nas redes sociais. “A sua santidade” pede desculpa dizendo que gosta de brincar com as pessoas. No vídeo só se ouvem pessoas a rir, que confirma a tese de comédia que a sua santidade quer impingir. Também vos garanto que rir é o mecanismo mais natural para lidar com situações inesperadas. Muitos que assistiram ao vídeo pedem que seja avaliado como abuso sexual de menores, em vez de um incidente engraçado que não caiu muito bem. Ninguém deve estar isento destas críticas, nem a sua santidade, defendem os cidadãos por essa internet fora. Este vídeo caiu-me numa altura curiosa, quando andava a refletir sobre o abuso sexual de menores e a igreja católica. Tive uma incursão católica recente numa missa de Páscoa de duas horas – a minha primeira e última – onde passaram muitas coisas pela minha cabeça: umas boas e outras más. Pensei inevitavelmente no inquérito realizado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, e da forma como a igreja tem reagido a isso. A comissão publicou um relatório em Fevereiro deste ano que dá conta de 4415 menores vítimas de abuso ao longo de 70 anos. Ainda que com dados concretos, a igreja em Portugal não se comprometeu a afastar abusadores da sua prática paroquial. Disseram-me os frequentadores assíduos da paróquia onde assisti à missa que a publicação do relatório teve impacto na forma como alguns crentes vêem as suas práticas religiosas. Não é para menos. Tentei perceber um pouco melhor de que forma é que se fala da religião e do abuso sexual de menores, como a minha orientação construtivista me obriga. Reparei muito num discurso que justifica as causas dos abusos. Por um lado, incutem-nos a teoria da “maçã podre”, ou seja, os abusadores são pessoas que se desviam do normal, como casos isolados ou simples outliers. Por outro lado, há quem defenda uma teoria sistémica, olhando para a inevitável repressão sexual dos membros do clero com base nas visões católicas da sexualidade. Mas para além das possíveis causas, urge discutir como gerir abusos, de qualquer tipo, dentro de uma instituição milenar. Foi o Papa Francisco que em 2019 proibiu o sigilo em relação a estas temáticas. A igreja parecia querer controlar os abusos por meio de uma cura espiritual sem vir a público, e sem manchar a fé dos crentes. No fundo, como qualquer estratégia de marketing que se preze, quiseram defender o produto para o consumo não cair. Em tempos de grande descrença, escândalos como este fazem abalar a fé de qualquer um. Mas esta é a oportunidade de avaliar a honestidade dos espaços sagrados. Os membros e líderes espirituais não deixam de ser pessoas que cometem erros e podem ser abusadores. Devem ser julgados não só aos olhos da sua religião, mas aos olhos da justiça instituída. Ao invés, as religiões usam santidade para proteger a santidade. É dessa forma tautológica que nos obrigam a olhar para a incapacidade reflexiva de resolver e mitigar problemas sérios como o abuso sexual de menores. Como um mito que coloca uns quantos num pedestal e deixando os outros a obedecer a tal organização estratificada. É neste equilíbrio de forças, e na sua naturalização, que se vai da santidade a uma postura abusiva muito mais rápido do que se gostaria. Às vezes, basta uma língua.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesAs trabalhadoras do sexo e eu A propósito da divulgação de uma concentração sobre o direito à habitação em Portugal, vi-me no bairro mais sexual de uma cidade do interior. Nas grandes metrópoles, sei identificar algumas trabalhadoras do sexo. Elas costumam estar em certas ruas para que sejam vistas e interpeladas por quem quiser contratar os seus serviços. Neste lugar a disposição era bem diferente. Fazia lembrar um red light district de Amesterdão ou Hamburgo muito mais modesto. Demorei a entendê-lo, confesso. Quando as vi, pensei que eram mulheres à janela num dia solarengo. Só depois das duas primeiras janelas é que percebi o padrão. Eram quatro apartamentos do rés do chão, em dois blocos sucessivos de prédios. Elas, todas em linha, exibiam-se, tal como uma vitrine se tratasse. Algumas mais produzidas do que outras. Umas maquilhadas e com roupa de cores berrantes e decotes generosos, outras com um fato de treino justinho e curto. Para a divulgação de um evento pelo direito à habitação não me coibi de as interpelar com palavras de justiça social. Nós todas precisamos de um tecto e de rendas justas. Houve quem me pedisse esclarecimentos sobre panfleto: “isto é o quê, exactamente?”. Ela talvez tivesse ficado incrédula pela natureza do assunto. Eu expliquei o melhor que pude. E ela sorriu e concordou com as reivindicações. Fantasiei de como terão sido outras interações ao longo do seu tempo ali. Talvez grupos religiosos sugerindo um caminho para a redenção. Talvez outros com pena ou zanga. A maioria a querer pagar por um serviço sexual. Eu interpelei-as como cidadãs preocupadas. Algumas agradeceram o panfleto timidamente. Outras reagiam em concordância: “sim, sim, isto está péssimo para encontrar casa”. Senti uma admiração imensa por elas. Estavam ali, expostas e visíveis. Elas que estão entre a violência do sistema machista e a luta contra o sistema extrativista e capitalista. Elas que podem ser vistas como vítimas do sistema ou a força da resistência. O trabalho sexual está cheio de dilemas e tensões que poucos querem assumir. No coração está o sexo que naturalmente se cobre de moralismos irritantes e de pouca reflexão. Diria que é preciso disponibilidade para olhar para a complexidade do trabalho sexual. Uma atitude que exige tempo, compreensão, capacidade de escuta e, especialmente, a possibilidade destas trabalhadoras terem lugar de fala. Saí de lá com muita vontade de falar com elas, que partilhassem as suas experiências comigo. Queria aprender mais sobre essa complexidade que teoricamente compreendo, mas que de viva-voz ouvi pouco. Saí de lá também com medo de estar de algum modo a contribuir para o fetiche da prostituição. Há quem viva o fetiche sexual, outros o fetiche intelectual. Fantasiar sobre as possibilidades de desgraça e o possível empoderamento do trabalho sexual não deixa de ser fantasia. Estas são pré-concepções que nos ajudam a dar sentido às múltiplas opressões sociais, mas que em pouco ou nada podem refletir a realidade vivida. Essa realidade que me é distante do dia-a-dia de idas para o trabalho e regressos a casa. Elas provavelmente não querem ser vitimizadas, nem tidas como heroínas, ou se calhar até querem as duas coisas. A verdade é que eu não sei. Só soube que, aquelas trabalhadoras do sexo, concordam que as rendas estão muito caras.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesÁsia, Filmes & Amor A cerimónia de entrega dos Óscares tem um peso demasiado grande na avaliação de bom cinema. Aceitamo-lo como um barómetro de cinema popular, dos temas e cinematografia que interessam no ethos contemporâneo. Avalia-se o cinema das massas que, parecendo que não, influencia as culturas. Na última cerimónia assistiu-se a um momento atípico. Um filme de criação asiática, arrasou a maioria dos prémios. É um filme de ficção científica que faz uso de uma contestada ideia da física quântica: a possibilidade de existir o multiverso, vários universos paralelos. Mas mais que um exercício das muitas versões que podemos ser, o filme explora tradição, migração, família e o amor. Uma ficção científica cómica, certamente escrita durante uma viagem de ácidos, acompanhada por uma profunda reflexão sobre aquilo que é humano. As questões culturais e de género estão irremediavelmente presentes. O que é ser um homem, mulher e menina numa família asiática, num país como os Estados Unidos da América, sofrem uma desconstrução profunda. Muito mais do que utilizar estereótipos, o filme oferece uma visão dura da dificuldade em navegar a complexidade da família entre culturas. A representação do homem asiático em Hollywood tende a ser assexualizada, ingénua e frágil. Ao invés, o filme mostra que a bondade e a empatia, essa que parece mais uma vulnerabilidade do que uma virtude, consegue fazer face aos desafios do dia a dia. A popularidade do filme mostrou receptividade para olhar as personagens asiáticas com toda a complexidade que elas merecem, em vez dos sidekicks a que estavam frequentemente sujeitos. A personagem mais velha do filme, interpretada pelo actor James Hong com 94 anos, falou dos seus 70 anos de carreira na entrega dos (vários) prémios que o filme recebeu. Na altura, os actores asiáticos nem eram precisos, bastava pôr um tipo branco com fita cola nos olhos para uns olhos em bico. Num universo de produção cultural dominado pela cultura caucasiana, os asiáticos tiveram com este filme uma exposição e reconhecimento nunca vista. Michelle Yeoh foi a primeira mulher asiática a ganhar um Óscar de melhor actriz. Sonhos realizados que precisaram muito mais do que a capacidade de sonhar. São precisas oportunidades para gerar conquistas como estas. Os efeitos especiais, a produção estonteante, o amor e empatia foram o cocktail para o sucesso. Esse amor, um clichê que é atirado ao ar, não se mostrou completamente vazio ou superficial. Este filme mostrou o amor de uma forma mais ressonante ainda que num contexto absurdo de universos paralelos de dedos de salsicha. A ingenuidade e a simplicidade foram as armas secretas destes super-heróis que conseguiram conquistar o mal dentro e fora do ecrã. Pode ser que todo o processo não tenha sido tão bonito, empático e cooperante da forma como descrevo. Mas por hoje, fica-se com a alegria do triunfo de uma produção asiática numa indústria maioritariamente branca, que usou o amor como bastão de batalha.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA visibilidade trans As mulheres trans são continuamente excluídas e discriminadas. A probabilidade de um adolescente trans desenvolver ideação suicida, ou tentar o suicídio, é de 5 a 7 vezes maior ao de um adolescente heterossexual e cisgénero, isto é, que se identifica com o género designado à nascença. A discriminação está no acesso ao trabalho, na educação ou na saúde. Uma discriminação estrutural que retira espaço ao direito de se ser trans. No dia 19 de Janeiro, no Teatro São Luiz em Lisboa, uma mulher trans assaltou o palco. Em cena estava uma peça com duas personagens trans em que uma era representada por uma actriz trans, e a outra, a personagem principal, por um actor cis. A Keyla Brasil num acto de coragem saltou para o palco e conseguiu trazer ao holofote teatral uma tendência discriminatória e de exclusão, que ainda não tinha entrado no debate público: as histórias e narrativas trans precisam de ser contadas pelos corpos trans, até nas artes performativas. A produção da peça vai agora contratar uma actriz trans para ser a personagem principal. Uns aplaudiram a coragem. Foi uma batalha vencida pela representatividade e visibilidade que não descura a reforma necessária no processo de selecção de artistas. Outros mostraram indignação pela forma como esta batalha foi ganha. A Keyla apareceu no palco semi-nua, expondo toda a violência a que é diariamente submetida. Falou do sexo oral que faz em troco de dinheiro, pelas poucas oportunidades no mundo do trabalho, falou da arma que lhe apontaram à cabeça, falou dos assassinatos constantes, violentos, nas tentativas de apagamento que ela, e muitas outras, estão sujeitas. Apontou o dedo ao homem que foi escolhido para o papel e quis responsabilizá-lo pelo apagamento das vivências e narrativas trans. A forma poderosa como esta batalha foi ganha, ainda que falte travar uma guerra, foi alvo de intenso escrutínio público. Muitos queixaram-se que foi um método “violento”, apesar de concordarem com a premissa de base: se não é com a história de uma mulher trans que o corpo e a alma trans têm visibilidade, então quando? Muitas activistas trans já tinham contactado a companhia de teatro exigindo respostas e mudança. Sugeriram boicotes e nada aconteceu. A mudança só veio depois, com a acção “violenta” da Keyla, carregada de tensão, antagonismo e conflito daquele que provoca desconforto. Mas esta “violência” é só um sintoma, uma resposta à violência que é vivida. De um lugar onde a outra realidade mundana nada se assemelha porque se vive distante. A “violência” de ver uma peça de teatro abruptamente terminada é que parece mais importante para os proponentes desta discussão. Quando os actores cisgénero recebem papéis trans, eles encaram-nos como o desafio da sua carreira. Jared Leto ganhou um Óscar ao fazê-lo. Mas esta não é uma condição de desafio que possa ser apropriada pela indústria criativa sem uma reflexão profunda sobre o seu papel na contínua exclusão de artistas trans nos seus projectos. A condição trans não é um adereço, como activistas reclamam, para catapultar carreiras. Muitas vezes produtores optam por homens e vestem-nos de mulheres, porque as actrizes trans não reflectem os seus próprios estereótipos ou ideias pré-concebidas. A máquina de exclusão está oleada e em funcionamento, não é a responsabilidade de uma pessoa transfóbica. Desde os produtores, ao encenador e até ao actor que aceita fazer o papel, todos contribuem para isso. Recentemente Hale Berry e a Scarlet Johanson recusaram papeis de homens trans porque foram confrontadas com a pouca representatividade trans em diálogo com as pessoas que mais são afectadas por estas escolhas. Mas a minha voz não é a que mais interessa neste debate, ouçam as pessoas trans que tentam consciencializar sobre as muitas formas de como estão a ser invisibilizadas. Elas lutam de muitas outras formas também, fazem-no na discussão de ideias, na academia, nas manifestações na rua e no seu dia-a-dia. O confronto ou a violência é tão parte desta luta como a diplomacia. Neste caso, a suposta “violência” foi o resultado de uma não-escuta. Do outro lado onde nos situamos, pede-se reflexão. Se vos chocou, confrontem o desconforto e interroguem-se de onde vem. Reflictam sobre as oportunidades perdidas de fazer de forma diferente, e de dar espaço a outras pessoas ou realidades. Nós não vemos pessoas trans em posições de destaque, protagonizando séries, a serem pivots de telejornal ou a contracenarem em peças de teatro. Com os níveis de saúde mental desta minoria sexual absolutamente desastrosos (e vergonhosos nos olhos de qualquer profissional de saúde), as pessoas trans precisam de saber que o mundo deve ter – e tem – espaço para todas.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCongelar óvulos e o direito à fertilidade Em Dezembro 2022 a Jennifer Aniston, numa entrevista muito honesta, falou sobre a dificuldade em engravidar. O insucesso de todo o processo pô-la a pensar nos ‘ses’ da sua vida. Um desses ‘ses’ teria envolvido congelar os óvulos quando era mais nova. Um conselho que ela tentou passar à audiência da sua entrevista. “Façam o favor a si próprias: congelem os vossos óvulos.” Nas redes sociais começou-se a discutir isso. Imediatamente fui falar com uma amiga que estava a passar por um processo de inseminação artificial. Ela disse-me que aconselharia também a todas as mulheres que conhece. O procedimento exige a estimulação de produção de ovócitos, a sua remoção e o congelamento. O processo pode ser doloroso e ter alguns efeitos secundários, mas garante óvulos saudáveis numa fase posterior de vida. Há uns 10 anos só um grupo muito estrito de mulheres é que fazia este procedimento: mulheres a lutar contra doença oncológica. Mas os números são claros de outras motivações que se insurgem. Chama-se congelamento de óvulos social para aquelas pessoas que decidem fazê-lo por razões sociais. Que razões sociais são essas? As mulheres fazem-no porque prevêem que pode ser importante nos seus planos de vida. A mulher nasce com uma quantidade definida de óvulos. Inicialmente, de forma gradual, a reserva começa a reduzir. Mas a partir dos 35 anos há uma aceleração deste processo. Assim, bem informadas, as mulheres decidem congelar óvulos nos 20, ou no início dos 30. Para a mulher dita moderna esta é uma forma de planeamento e controlo da maternidade. A mulher moderna sabe que a estabilidade financeira e emocional só chegará depois dos 35. Também sabe que encontrar uma parceira ou parceiro ideal pode ser um processo lento e moroso. Mas a mulher moderna precisa de ter muito dinheiro para ser assim organizada – uns quantos milhares para assegurar a apólice de seguro da maternidade. Há custos associados à remoção, congelamento e armazenamento. Dado o seu caracter social, é um procedimento não comparticipado. Apesar de ser visto como uma ferramenta de empoderamento das mulheres, para investir nas suas carreiras e conseguir ser mães em diferentes fases de vida, o empoderamento só é acessível a algumas. Para além do mais, há quem discuta que o seguro não é tão seguro assim. O congelamento dos óvulos é uma oportunidade, não é um embrião. Por mais que as celebridades e as amigas aconselhem, há que pensar no grande esquema das coisas. Uma narrativa desta natureza assume que a fertilidade é um problema individual a necessitar de soluções individuais, que só um grupo da população consegue garantir. As condições de trabalho, de estabilidade profissional e financeira que possa garantir o bem-estar de uma criança, vem cada vez mais tarde, e isso não é da responsabilidade de cada uma. Este mecanismo de empoderamento precisa também de refletir sobre os ambientes propícios à fertilidade e à maternidade. Não vos custará muito verificar as fracas políticas de apoio à natalidade que não têm a consideração o tempo ou a exigência financeira que é ter uma criança. Se a decisão de ter uma criança é adiada, muitas vezes não é por capricho, é por necessidade. O direito à fertilidade precisa de ser amplamente considerado nas suas formas multi-facetadas. A possibilidade de escolha de uma maternidade tardia é, claro, maravilhosa. É possível manter essa possibilidade em aberto para quem tenha os recursos para fazê-lo. Mas não deixa de ser uma estratégia que é individual e elitista. O reconhecimento que este é um procedimento de empoderamento, também precisa de vir acompanhado de uma consciência dos contextos em que esse direito à fertilidade é continuamente retirado e descurado.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCliteracia Sophia Wallace, uma artista visual norte americana, desenvolveu a palavra cliteracia para definir o estado de se ser cliterado, ou seja, de saber identificar o clitóris e entender o seu papel na sexualidade feminina. Choquem-se: a anatomia do clitóris só foi descoberta em 1998. Desenvolveu-se a tecnologia para ir à lua, para realização de fertilização in vitro e clonou-se uma ovelha antes de se estudar a anatomia do clitóris. A etimologia do clitóris vem do grego, kleitoris, que significa pequeno monte. O que Helen O’Connell descobriu ao dissecar corpos e ao realizar ecografias a mulheres vivas nos anos 90 é que o clitóris é bem mais complexo do que um “pequeno monte”. O clitóris é como um icebergue, tem toda uma estrutura interior que está associada a vários tecidos pélvicos. Tem uma forma que pode fazer lembrar um pinguim ou uma nave espacial com braços que podem ter até 9 centímetros. Com 8.000 terminações nervosas, é o único órgão dedicado ao prazer e tem sido sistematicamente ignorado e desrespeitado pelas sociedades contemporâneas. Em certas zonas do planeta é objecto de mutilação física, em outros lugares, é objecto de mutilação psicológica e linguística. Foi Harriet Lerner, num artigo na Chicago Tribune em 2003, que alertou para essa dinâmica. A nossa linguagem tenta apagar a complexidade dos genitais de quem tem útero ao focar-se na vagina – o canal interior – ao invés de descrever um complexo genital que tem várias partes e funções. Vagina, significa “suporte de uma espada” e quão frequentemente ouvem esta como a única denominação do órgão sexual? Vulva é a descrição mais exacta para a genitália exterior, de onde faz parte o clitóris e os lábios. O clitóris nem faz parte dos livros de anatomia nem de aulas de educação sexual, pelo menos por enquanto. Cliteracia também implica saber que não é da vagina que vem o prazer. Aliás, se a vagina tivesse terminações nervosas o parto seria incrivelmente mais doloroso. A razão pela qual algumas mulheres – as estatísticas apontam para 18 por cento delas – conseguem ter um orgasmo com penetração é porque o clitóris estende-se por várias zonas. A investigadora Helen O’Connell propõe o termo “complexo clitoriano”, que ainda não pegou na linguagem comum. Uma proposta que melhor nos explica como é que a estimulação vaginal consegue reverberar nesse órgão: desvendando assim o mistério do ponto G. Cliteracia é entender que a ciência já sabia sobre o pénis, e nunca se preocupou com o clitóris – e entender as implicações disso. A cliteracia, de acordo com a artista e muitos educadores sexuais, é a chave principal para uma sociedade mais equitativa. O foco no prazer feminino é essencial para desfazer uma desigualdade milenar de herança cristã, essa de génese em forma de serpente que condenou Eva ao pecado. Cliteracia também é saber que o clitóris não é um simples botão de on-off que se esfrega para obter resultados orgásmicos. O clitóris é um símbolo de emancipação e empoderamento, facilmente reconhecível. A forma do clitóris é partilhada com orgulho e até é tatuada, usada em brincos, colares, usada como bibelot e colocada em altares para veneração. Cliteracia é não deixar que a vagina seja a única parte da anatomia conhecida – o tal suporte de espada – tanto na ciência, como no senso comum.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA naturalidade do sexo Sexus em Latim refere-se ao “estado de ser macho ou fêmea”. Estas categorias são, supostamente, características observáveis de um organismo ou de um grupo. Esta diferenciação não reflecte qualquer qualidade subjectiva relacionada com a identidade de género, mas uma descrição fenotípica que tem o seu quê de complexidade. As hipóteses anatómicas disponíveis a quem vem a este mundo sob a forma humana são bastante limitadas comparadas com a diversidade e fluidez com que se constitui a identidade de uma pessoa. Não obstante, discute-se o espectro intersexo para dar conta que nem sempre, fenotipicamente falando, o binarismo do sexo se aplica. Nos Estados Unidos, um bebé em cada 100, nasce com uma anatomia sexual que não é tipicamente masculina ou feminina. E isso assusta a comunidade médica ao ponto de se apressarem a alterar a sua genitália ou forçarem tratamentos hormonais para encaixarem numa ou noutra. Para um corpo que não “encaixa” na categorização clássica, o corpo é alterado, evitado a ou ignorado em detrimento de uma suposta forma “natural” – quando claramente não o é. Nestas coisas do sexo é comum analisar o mundo animal como um barómetro do que é natural. No mundo animal damos conta do sexo – do macho, da fêmea e de outras formas intermédias – e da capacidade maravilhosa de mudar o sexo, como por exemplo, nos anfíbios. Também damos conta da diversidade estonteante na escolha de parceiros sexuais, nos rituais de corte e acasalamento, nos papeis e funções sociais, nas formas comportamentais de como se relacionam com os pares da sua espécie. Nem a forma biológica ou a função reprodutiva, exclusivamente, determinam a sexualidade de um organismo de forma rígida. Até poderemos refletir se o movimento LGBTQIA+ não será uma amostra pálida da riqueza e diversidade que podemos encontrar no mundo vivo com que partilhamos este planeta. De forma crescente, reconhecemos as muitas formas de identidade, amor, sexo e de relacionamentos que se materializam naturalmente entre as pessoas. Também a vida animal se espraia numa panóplia de configurações e tipologias sexuais que são complexas – e muito naturais. Porque é que ainda existem tantos que moralmente implicam com a identidade de género, com a escolha de parceiros sexuais, com a diversidade de práticas e comportamentos sexuais? Porque é que se torna tão ameaçador reconhecer que existem diferenças agigantadas entre a forma com que uns e outros constroem a sua identidade e vivem a sexualidade? Como é que as pessoas ainda se defendem com crenças do que se considera natural ou não? Claramente que o que é natural só é passível de ser descoberto em pleno sentido de liberdade, esse que nos é negado em detrimento de categorias, expectativas e práticas que nos formatam. Serão estas questões realmente relevantes para dividir, afastar e polarizar as pessoas? Para quando a naturalidade do amor e da compreensão para as pessoas se expressarem exactamente como são? Para quando a naturalidade do sexo?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesTanto que queremos: um ensaio sobre o desejo O desejo é um fenómeno complexo, uma lição à nossa paciência. A experiência mostra-nos que a vida toma o seu rumo com vontade própria, sem grande consideração dos nossos desejos imediatos. Queremos ser alguém que não somos, vivemos num mundo onde não nos encaixamos. Nas sociedades liberais incutem-nos esta sensação de empoderamento. Podemos ser o que bem nos apetece. Só que queremos mais sem grande consciência que os desejos implicam a cuidadosa reflexão sobre o que perdemos: sobre o que nunca será. Não basta querer, é preciso aceitar que não se tem. Uma jovem do Curdistão iraniano foi brutalmente morta pela polícia da moralidade no Irão, porque o seu hijab estava mal posto. Tanto vos queremos que vos perdemos. Uma coisa simples como o cabelo, que mais sabe a um detalhe ridículo, pouco importante. As agências noticiosas também dão conta da brutalidade policial contra os protestantes e da consternação pública que esta morte suscitou. Deste confronto veio mais morte, não veio a transformação social ou política. Nestes anos complicados, de configurações geopolíticas dolorosas e difíceis, faz-se o luto pelo mundo que não existe e que julgámos existir. Fazer o luto implica acalmar a nossa angústia. Permite respirar antes do confronto, evita uma luta sem fôlego absolutamente nenhum e tenta dar alento à sensação de desespero. A eleição de uma mulher primeira-ministra em Itália soube a derrota também. Tanto queremos líderes justos e inclusivos que não os temos. Como é que se aceita uma possível perda do direito ao aborto, como é que se discute o retrocesso dos direitos lgbtqi+, como é que se legitima um discurso que não abraça os direitos de todos, mas só de alguns? Quando nos julgámos protegidos de uma ressurreição do fascismo, quando achámos que concordávamos – todos – em não querer acordar os maiores horrores fascistas da história. Afinal não era bem assim. Quando se deseja o que não se tem, a revolta ou o desconforto deviam ser suficientes. Poucos nos preparam para o sentido de impotência de nunca chegar àquilo que desejamos, nem de encontrar outros que queiram desejar contigo. No sexo não se chega ao orgasmo porque se deseja, mas porque acontece. Encara-se a configuração completa do acto e acredita-se no conforto percorrendo um caminho, sem expectativas. Quem já teve problemas em adormecer também o sabe. Querer dormir não basta para adormecer, só atrapalha. O desejo é uma dança complexa entre paciência, compaixão, guerrilha e vontade. Não basta querer, é preciso aceitar este momento particular da história individual e colectiva. Aceitar que não estamos cá para o orgasmo perfeito, nem para o mundo perfeito. Estamos cá para os desencontros constantes, e para as incessantes tentativas de os resolver. Estamos cá também para o encaixe, para o crescente sentido das coisas, e aceitar que pouco ou nada podemos controlar. O desejo pressupõe empoderamento e acção, mas também implica encontrar conforto nos lugares mais inóspitos, e nas situações mais absurdas, como as que se vivem neste momento. Tanto queremos e tanto aprendemos a perder, mas o desejo é mesmo assim.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA vergonha, o sexo e o riso Quem já tentou falar com jovens sobre sexo certamente se deparou com os risos tontos ou as bochechas rosadas de vergonha. Gostaria que fosse um fenómeno exclusivo dos jovens de hormonas aos saltos. A verdade é que o riso inusitadamente se infiltra nos temas que julgamos mais vergonhosos. Para os jovens, e para muitos adultos, o sexo continua a ser isso: um tema que envergonha. Para alguns teóricos, como o Goffman ou o Billig, a vergonha é útil para a organização social de uma forma geral. A vergonha que, inevitavelmente se associa ao gozo, serve de barómetro do que é aceitável ou não aceitável em contextos sociais. Tudo o que é corpóreo costuma cair nessa categoria: dar puns ou ter ranho no nariz. Da vergonha existe uma relação íntima com o riso, que não é o mesmo que o riso prazeroso que nos oferece todo um conjunto de boas hormonas e bem-estar. Frequentemente a vergonha é gerida pelo riso unilateral, por pessoas com menos empatia, com um grande à vontade para apontar o ridículo. Aí cria-se uma espiral de culpa que a vergonha alegremente atravessa. A ejaculação depois de 3 segundos de penetração pelo rapazinho de 14 anos durante a sua primeira relação sexual pode ser acompanhada do ridículo – do riso desnecessário do parceiro ou parceira. Um exemplo clássico onde a empatia teria sido muito mais produtiva. Mas não é por isso que desistimos do riso por completo. O riso pode ter outras funções bem mais interessantes, um riso que empodera em vez de castrar. Aquele que se faz em conjunto, de uma dinâmica capaz de carregar as nossas vergonhas por outros meios e caminhos. Transformar o condenável com a leveza de uma gargalhada compreendida é capaz de mover delicadamente a vergonha. Aquela gargalhada que não traumatizaria o rapazinho de 14 anos com pressão para a performance. Dessa forma o sexo pode ser tonto ou cómico. O riso como canal de descarga. As pessoas ficam nuas, as peles baloiçam, as pregas criam-se em locais estranhos, os pêlos que ninguém pediu que nascessem, os ruídos abdominais, puns vaginais e os gritos de orgasmo originais. A vergonha é inevitável. Aprendemos com os outros que há limites para aquilo que podemos mostrar. Mas também é com os outros que podemos re-alinhar esses limites, principalmente quando a ligação é feita com sinceridade. Um sexo cheio de tabus e de ensinamentos judaico-cristãos só vê transformação quando há à-vontade para nos rirmos à gargalhada com o que nos limitou no passado. Confiem no vosso acesso de riso porque caíram da cama ao tentar aquela posição difícil. Podem rir-se quando o sexo não é perfeito. Rir do desconforto é o antídoto – mas só e quando existe uma ligação. Atirar com o cliché da “ligação” é vago, reconheço. É demasiado inespecífico para descrever o que acontece entre duas pessoas. Mas nada tem que ver com um estado enamorado, porque o sexo nem sempre precisa de amor. Precisa, sim, da consciência da presença de dois (ou mais) seres, e da sua humanidade. Só com essa conjuntura relacional é que o sexo e o riso podem fazer algum sentido.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesAborto, outra vez Aconteceu o que muitos temiam. A terra dos livres tornou-se menos livre com a decisão do Supremo Tribunal ao reverter o direito constitucional do aborto. As implicações são muitas, e não são boas. Os ingénuos acreditam que é uma luta ganha pelos direitos dos bebés por nascer. A hipocrisia e incongruência é revoltante. Agora, muitas mulheres americanas não poderão tomar uma decisão consciente sobre os seus corpos. Ganham direitos as suas crias por nascer, que nem sempre têm direitos depois. Os mesmos que proclamam a procriação como sagrada são os mesmos que não quiseram garantir o acesso a fórmula para bebés quando houve uma falta grave no país. São os mesmos que se agarram ao liberalismo para deixar o apoio à natalidade à mercê da logica dos mercados. (In)congruências. Mas são todos pelos bebés e pela parentalidade. São os mesmos que assumem o conceito de família com base em repertórios performativos, sem reflexão, muito menos intimidade. Aqueles que se agarram ao conceito de mulher e homem e que os estancam na visão dicotómica do bem. A complexidade da vida humana não é contemplada uma única vez por estes decisores e os seus apoiantes, como se não fosse mais abrangente do que a existência de um embrião. Ignora-se que uma gravidez implica a vida das pessoas. Ignora-se que tirar o controlo das mulheres sobre os seus úteros é um atentado humano muito mais grave do que supostamente “devolver o direito aos bebés por nascer”. Ignora-se a violência sistemática a que as mulheres são sujeitas graças ao patriarcado que se infiltra no dia-a-dia e nas políticas. Ignora-se o trabalho de dissociar a representação da mulher da sua objectificação corpórea, sem a ver para além da sua função para copular, parir e tomar conta de filhos. Uma gravidez indesejada pode acontecer a qualquer uma, e ninguém acredite que o aborto é uma decisão simples e descomplicada. Mas ter acesso ao aborto seguro permite contemplar outras alternativas para além da maternidade naquele momento e naquelas circunstâncias. Vai abortar quem já tem filhos, quem está casada, quem ainda é adolescente, a trabalhadora do sexo, a trabalhadora do banco, a mulher ou a menina que foi violada. Uma escolha que a investigação mostra – e aliada com uma boa educação sexual – reduzir o número de gravidezes indesejadas e promover maior bem-estar em geral. O aborto é uma intervenção médica simples e a OMS defende o seu acesso seguro em qualquer lugar do mundo. Os abortos vão existir sempre, e quanto menos existirem condições para um aborto seguro, mais complicações virão daí. Desde trauma físico e psicológico à morte. Confesso que ando tão desiludida com o mundo que me foi difícil reagir ao que aconteceu recentemente nos Estados Unidos da América. Prefiro evitar ou não ouvir, ficar no conforto que há outros locais onde ainda está tudo bem. Sonhar que eles existem. Sem deixar de estar com medo que a ficção da “Handmaid’s Tale” se torne numa profecia. A vontade de Deus (ou da natureza) é estrategicamente mobilizada para defender umas parvoíces, e não outras. Resta desconstruir e revelar a violência que ainda existe sobre as mulheres. É o momento para acreditar na força popular mais do que nunca e não desvalorizar – e até acompanhar – as pessoas que gritam nas ruas.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO orgulho é a solução Nas primeiras horas de 28 de Junho de 1969 em Greenwich Village, na cidade de Nova Iorque, a polícia fez uma incursão ao bar gay Stonewall Inn. A polícia, ao contrário de outras vezes, encontrou resistência. Esta durou vários dias. O bairro mais gay da cidade de Nova Iorque estava farto que os tentassem invisibilizar. Os seus moradores não aceitavam as incursões de uma suposta polícia ‘da moralidade’ ou que lhes dissessem que não podiam ser como se sentiam ser. A série de eventos desse dia ajudou a impulsionar a luta dos direitos LGBTQI+ como a conhecemos hoje. No primeiro aniversário dos eventos de Stonewall em 1970 protagonizou-se uma marcha em várias cidades dos Estados Unidos, que em 1972 foi transportada para Londres. Anos mais tarde estenderam esta causa a todo o mês de Junho. Junho dedica-se ao tema do orgulho, dos direitos e das constantes lutas da comunidade LGBTQI+. É celebrado em tantos pontos do globo que nem eu, nem a internet, conseguimos precisar quantos. Tive a sorte de estar em Nova Iorque neste mês tão especial para a cidade – ainda que desolada por não ficar para a marcha. As conquistas eram visíveis. Por entre algumas casas de banho que não tinham uma categorização binária de género para maior inclusão, e por entre tantas pessoas que se sentiam verdadeiramente à vontade de serem elas próprias, vi bandeiras de orgulho LGBTQI+ por todo lado, na loja de instrumentos musicais e na loja de donuts. Também as vi pespegadas nas fachadas de igrejas de várias congregações, que tanto me surpreendeu. Poucos dias de observação fizeram-me crer que a aceitação, ali, podia ser sustentada e partilhada. Não me senti testemunha de ‘tolerância’ como muitos acreditam ser a única solução. Pareceu-me testemunhar a solidariedade que só pode vir do reconhecimento que a diversidade sexual e de género são parte integral da experiência humana. Neste caso, e não esquecendo esta particularidade, reconhecendo também que faz parte da história e experiência daquela cidade. Claro que também vi muitas empresas a apoiar a causa, desde a Google, à Starbucks ou a Levi’s. A bandeira do orgulho estava por todo o lado ainda que as políticas empresariais de certas marcas não reflictam os valores ou as preocupações do mês. Se tive a oportunidade de ver igrejas católicas a apoiar a causa, também pude testemunhar o mês de orgulho como parte de um repertório mercantil, circunscrito no tempo. Afinal, onde está a representatividade no resto do ano, nas empresas e nos seus anúncios? Há mais de 50 anos que o orgulho continua a importar. Estamos muito longe de conseguir criar sociedades que consigam resolver a violência sistémica e sucessiva pela qual a comunidade LGBTQI+ ainda passa. Uma em cada cinco pessoas transgénero já se viu sem abrigo nos Estados Unidos. A taxa de suicídio na comunidade LGBTQI+ é três vezes maior à dos heterossexuais. São muitos os dados que confirmam que é preciso marchar nas ruas e revindicar o direito de se estar alinhado com a natureza, desejo e fantasias de cada um. Mas ainda assim, em Nova Iorque há liberdade. Pelos corpos e vozes dos dissidentes que que se revoltaram contra a opressão numa madrugada de Junho de 1969, e de tudo o que veio a seguir, ganhou-se espaço e visibilidade. A história revela-se bem mais complexa e longa, mas na sua génese e sustento está o orgulho, que desafiando tudo e todos, consegue mudar pequenos mundos.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA varíola dos macacos não precisa de promiscuidade A promiscuidade ainda é falada e discutida como se fosse um facto quantificável e verificável. Supostamente: existem os promíscuos e os não promíscuos, dividindo o mundo entre aqueles que praticam muito o sexo e os outros que “respeitosamente” praticam menos. Se o conceito da promiscuidade teve o seu propósito histórico e social, muito por graças da tradição judaico-cristã, agora já não nos devia servir. O seu ressurgimento é infelizmente mais evidente quando se discutem situações médicas, como a da varíola dos macacos na Europa e nos Estados Unidos. Os métodos para a diminuição do contágio deste monkeypox, de acordo com o director de Doenças Infecciosas do Hospital de Coimbra, são simples. Sugere-se evitar o contacto com pessoas com “lesões cutâneas e com grau de promiscuidade sexual”, como se a promiscuidade fosse um indicador de diagnóstico. O dicionário define a promiscuidade como a característica do que é promíscuo. O promíscuo é aquele quem tem vários parceiros sexuais, associado a uma suposta degradação moral. Quantos parceiros, exactamente? Três? Quatro? Sessenta? Ao longo da vida? Numa semana? Ao mesmo tempo durante uma orgia? Não é claro. Só para verem o quão arbitrária a ideia de promiscuidade pode ser. A associação entre a varíola e a promiscuidade foi uma solução fácil para um tema ainda complexo e desconhecido. Tal como aconteceu no início do vírus de imunodeficiência humana. Como a doença tem sido identificada em homens homossexuais e bissexuais as recomendações têm ido pela moralização do sexo – e de tão “problemático” que ele pode ser. O que torna a situação ainda mais caricata é que a varíola dos macacos não é uma doença sexualmente transmissível – pelo que se sabe do comportamento do vírus. O contágio é feito pelo contacto directo com pessoas com lesões cutâneas. O contágio pode ser por interacção social, que é fabulosamente mundano. O contágio também pode ser feito pela partilha de roupa. O sexo, claro, proporciona mais toque comparado com outra situação qualquer. O sexo tem sempre risco, nem que seja o risco de partir o cóccix ou partilhar uma gripe. Mas no que toca a doenças sexualmente transmissíveis, não é a quantidade de parceiros, ou a “promiscuidade”, que prevê a incidência. Ter relações sexuais de risco é que contribui para maior incidência na transmissão, i.e., não utilizar métodos de protecção adequados, como preservativos masculinos e femininos. Foi com alguma surpresa que encontrei uma página no Wikipédia dedicada aos efeitos nefastos da promiscuidade. Efeitos físicos e mentais estão lá descritos para quem tem “muitos” parceiros – que vai contra toda a investigação já feita. Foi com menos surpresa que percebi que a página só existia em língua inglesa. A sexualidade ainda carece de um vocabulário inclusivo e de não-julgamento, e carece de espaços onde se discute a sexualidade de forma aberta, correcta e respeitadora. Esta necessidade torna-se ainda mais urgente quando se discutem doenças sexualmente transmissíveis, ou outras onde o sexo pode aumentar a probabilidade de contágio. Parece que a sociedade procura todas as oportunidades para demonizar o sexo. Só as guardiãs do sexo positivo é que se preocupam em desconstruir estas crenças: a promiscuidade não existe, e não existindo, não é a promiscuidade que faz a varíola dos macacos prosperar.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA maternidade e os vários tons de aborto Passado um fim de semana a celebrar as mães na maior parte do mundo, também veio a avalanche de medo trazido por um rascunho do supremo tribunal americano insinuando diminuir os direitos das mulheres no país. Claro que qualquer questão americana é mais instigadora de debate e consternação do que em qualquer outro local do mundo – reconheço a tendência. Mas retirar o direito constitucional ao aborto não deixa de ser um retrocesso atroz. Um retrocesso que muitos receiam que esteja a abrir precedentes para reverterem outras leis que se prestam à dignidade e bem-estar humanos. Ademais, Portugal também não está livre de certas ideias absurdas. Ainda esta semana se revelou uma proposta para penalizar equipas médicas que tenham utentes que interrompam voluntariamente a gravidez, ou que contraiam uma doença sexualmente transmissível. Este é um claro incentivo para que as equipas médicas não ofereçam apoio a quem realmente precisa. Ainda para mais, este é um contexto onde utentes já reclamaram a forma como os profissionais de saúde oferecem comentários de responsabilização e culpabilização no que toca a estes temas – que são absolutamente desnecessários. Tantas mulheres ao longo do tempo nos partilharam as histórias dos seus abortos ilegais: as celebridades, como agora publicamente relatam, bem como as mulheres da nossa família. Elas reiteram que o aborto é tão natural como o tempo. Sempre existiu, o reconhecimento da escolha das mulheres em relação ao seu corpo é que não. Mesmo que o aborto esteja constitucionalmente contemplado, como é o caso de certos países no mundo, o tema continua a ser fracturante, cheio de polémica e tensão. No cerne da questão está a procura por controlar os úteros das mulheres. Ora porque acham que a maternidade é uma fórmula sagrada – sem nunca reflectir sobre as sérias carências de boas condições para garanti-la por muitas mulheres no mundo. Ora porque querem negar o direito à maternidade por um bem maior, como se assistiu na China. Refiro-me especialmente aos abortos forçados às centenas de milhares de mulheres desde 1980. Uma filha ou filho que talvez fossem desejados, mas que tiveram que desaparecer sob o pretexto da política do filho único. São muitos os espectros sócio-políticos que usam o aborto como ferramenta para controlar as mulheres. Claro que para descomplicar a maternidade e para acomodar a liberdade individual, é preciso descomplicar a sexualidade também. O que impede um olhar reflexivo sobre o sexo e a maternidade são uns tais valores morais, que, honestamente, já nem percebo de onde vêm – certamente que não virão de direitos humanos. Por mais natural que a fisiologia da maternidade seja, um útero que se expande, um ser que cresce, o parto ou o aleitamento, as condições de vida das mulheres para a receber não são ‘naturais’ nem ‘óbvias’. Em casos mais extremos o sexo e a maternidade também fazem parte de relações abusivas, precoces, ou de violência. São tantas as situações que não vale a pena descrevê-las ao pormenor. Não há um perfil típico para quem queira interromper uma gravidez ou avançar com ela. O poder da decisão da maternidade não pode ser contaminado pela opinião e regulação dos outros – como se as mulheres não fossem capazes de gerir as suas próprias vidas.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCelulite e o ódio Quando coloco ‘celulite’ num motor de busca académico, aparecem-me centenas de artigos sobre causas e tratamentos. Não confundir com o termo cellulitis, em inglês, ou celulite infecciosa, em português. Essa é uma infecção bacteriana nas camadas interiores da pele, nomeadamente na camada de gordura subcutânea, provocando vermelhão. A celulite a que me refiro é a comum, a tal que se mostra na pele ‘casca de laranja’. Estes resultados no motor de busca sugerem-me que há imenso dinheiro investido no tratamento de um problema que, de facto, não existe. Leram bem, a celulite é um problema que não existe. A celulite é gordura que as mulheres pós-adolescência – entre 80 e 95por cento das mulheres – vão acumular nas coxas, glúteos e barriga. Um número demasiado grande para ser considerado anormal, ou exigir tamanha atenção dos investigadores. Mas há um irresistível factor que os motiva: é uma área de investigação rentável. Mesmo que a celulite não seja um problema de saúde, para a maioria mulheres é um problema de natureza estética. Há ainda investigação que quer fazer-nos convencer que o problema também é emocional e de qualidade de vida. As mulheres com celulite têm mais vergonha do seu corpo e isso vai afectá-las, até no sexo e em momentos de intimidade. Daí a urgência em procurar uma ‘cura’. O que a investigação talvez não seja tão clara a descrever é como a celulite se tornou num problema e como o lucro que tem gerado tem contribuído para perpetuá-lo. A única diferença entre esta gordura e outras é que a dita celulite está em regiões com estruturas fibrosas que a esmagam e moldam de determinada forma, criando aquilo que imaginamos ser bolhas de gordura debaixo da pele – que ao contrário do que muitos possam querer fazer parecer, não são gorduras diferentes, ou cheias de toxinas, ou sei lá eu. Está sim, a ser ‘moldada’ de forma diferente. Ainda assim, há dezenas de propostas para um mundo celulite-free. Estratégias que até as modelos da Victoria Secret, dizem ter que recorrer, visto que a celulite não é um problema exclusivo das obesas, gordas ou cheiinhas. A celulite é tão normal que até os bebés e as magrelas mais desejadas do mundo a têm. A celulite é tão normal que na verdade não tem tratamento. Criou-se um inimigo que nunca será derrotado. O ódio é por uma coisa que é tão nossa que só pode provocar dissociação e angústia. A vilificação da celulite tem uma história de mercantilização do desespero do corpo normal por detrás. Já que foi criada, a minha esperança é que possa ser destruída ou resignificada. Isso exigiria passos individuais e colectivos de reflexão. Vivemos em função de quê? Do bem-estar? Ou dos lucros? Para mim a resposta é extremamente fácil. Para além do mais, pensa-se que a celulite tem uma componente genética forte. Se a tua avó e mãe tiveram é provável que tenhas também. Os cremes anti-celulite até podem ajudar no efeito ‘casca de laranja’, ajudando que a pele fique mais uniforme, mas não elimina a gordura em si. Essa é uma guerra já perdida, que, com falsos moralismos e optimismo, ainda se acha que vale a pena travar. Em vez de uma entrega ao ódio pela celulite, é radicalmente libertador aceitá-la. É quase revolucionário mostrá-la na praia e com calções. Também é revolucionário mostrá-la em redes sociais, que tendem a apagar publicações por acharem irem contra as regras da comunidade e do bom senso. Encarar a celulite com normalidade é o tabu que precisa de ver a luz do dia. Porque a celulite não pode ser um problema.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesRomance, a obsessão Bridgerton e as mãos Eu nunca tinha realmente mergulhado no mundo dos romances do séc. XIX pelas mãos da Jane Austen, apesar da insistência de uma amiga minha em recomendá-los. Reconheço que ela sempre percebeu melhor do que eu o poder maravilhoso do romance silencioso e do seu lento desenvolvimento. Uma verdadeira fórmula para pôr qualquer coração a palpitar. Eu estou na onda do momento, absolutamente abismada com a forma tão delicada e colorida de mostrar tesão e tensão sexual no retrato da altura. Isto tudo porque uma versão modernizada destes romances – uma coleção de livros deste século a puxar o imaginário do outro – tem chegado a milhares de casas numa adaptação televisiva, diga-se, muito erotizada. Também não podia ficar mais consternada com os clichés românticos que evocam os valores patriarcais, por mais que a autora das obras se considere uma feminista. Existem umas pinceladas de pensamento crítico em alguns diálogos, mas pouco mais. A perspectiva feminina deve ser considerada como complexa e interseccional que é incapaz (e não pode) ser retratada num romance que acha que o casamento e o nascimento dos filhos são os elementos necessários para o final feliz. A característica ‘feminina’ da série reflete-se no espaço que dá ao escalar da tensão sexual, em vez de se focar no sexo puro e duro. Não quero destruir a série a ninguém, por isso não me vou alongar com detalhes do enredo. Mas a obsessão por um romance histórico que nada tem a ver com os nossos tempos parecia um enigma que precisava de desvendar. Sem grandes certezas, mas com alguma reflexão, acho que segredo está… nas mãos. Literalmente, as mãos tornam-se protagonistas com direito a múltiplos enquadramentos. Uma fórmula extensamente reproduzida, principalmente, na cinematografia que retrata essa época. A paixão vivia do toque das mãos nuas, quando era de bom senso usarem-se luvas. Este era o único contacto para todos os que viviam um amor impossível. O erotismo das mãos pode muito bem ser contemporâneo, seja porque crescemos com estas referências de romantismo, ou pura e simplesmente porque faz sentido. Existem imensos nervos nas mãos e nas pontas dos dedos, por isso não vejo porque não seria uma zona erógena como qualquer outra. Se há lição a retirar do erotismo da série e do poder erótico das mãos é que o erotismo pode ter muitas expressões e essa diversidade não está a ser devidamente trabalhada e retratada na cultura popular como um todo. O erotismo sensual, de antecipação ou kinky tendem a ser apagados pelo erotismo explícito. Quanto mais se criar espaço para explorar estas múltiplas valências em série televisivas mainstream, e em livros populares de leitura de bolso, mais espaço se cria para as alternativas. Só assim, em verdadeira diversidade, é que conteúdos poderão ressoar a todos os gostos e, idealmente, a todas as expressões de género e a todas as orientações sexuais.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO sexo e a guerra O sexo e a guerra não estão dissociados. Se há coisa que aprendemos com a vida é que tudo está relacionado com tudo, e qualquer tentativa de colocar os fenómenos humanos em caixinhas só simplifica o que não devia – nem precisa – de ser simplificado. A tese que eu e muitos outros partilham é que o sexo, o género e a guerra estão intimamente ligados. Começa logo com o simbolismo milenar ocidental: Marte é o deus romano da guerra e tradicionalmente está associado ao género masculino. Vénus está no polo oposto, associado à mulher, ao amor e à paz. Esta é uma dicotomia estereotipada que é utilizada ainda nos dias de hoje. A guerra como facto só a torna mais proeminente. A lei marcial ucraniana neste momento proíbe os homens entre os 18 e os 60 anos de saírem do país. Espera-se que eles se prepararem para o combate: como se os homens civis estivessem preparados para pegar numa arma só porque têm um pénis. A associação entre o sexo e a guerra não fica por aqui. A guerra produz o género ao mesmo tempo que o género produz a guerra. É um círculo vicioso em que o género é mobilizado de forma destrutiva, e onde o sexo é usado como uma arma de guerra, um acto de violência, controlo e posse. Se ainda vivemos em sociedades onde a desigualdade de género se expressa de tantas e criativas formas, não é de admirar que a guerra seja uma realidade no ano de 2022. Compreendo que pareça uma ideia rebuscada, mas peço que se foquem um pouco além do que se julga ser a guerra dos sexos. Refiro-me à representatividade feminina e ao espaço que se dá ao cuidado nas sociedades contemporâneas, ao mesmo tempo que se associa a masculinidade à violência. Os que acreditam na paz mundial, acreditam que um estado de igualdade é o preditor mais importante. Seria bom ver mais participação de mulheres nos diálogos de paz já que a investigação mostra que, quando negociado por mulheres, o acordo mantém-se estável durante mais tempo. O desejável é envolver as mulheres, ou se preferirem, a feminilidade e tudo o que representa, na resolução do problema da guerra. Isto porque a igualdade não passa em só incluir as mulheres na frente da batalha. As guerras sempre existiram por todo o lado e em todas as alturas. Há quem as considere uma inevitabilidade. Os mais idealistas, contudo, procuram e discutem soluções de paz que integram as peças do puzzle que se julgavam soltas. As preocupações com o género e o sexo parecem corriqueiras face às imagens de bombardeamentos e de rostos desesperados. Mas desenganem-se. Não se iludam em narrativas que tentam suportar a guerra e a paz de forma superficial. O problema tem sido a legitimação de certas configurações do mundo, um problema do qual o sexo e o género também sofrem. Perguntem-se: de onde vem a violência, como é que é entendida e para que serve? Como e por que é que a violência é masculina? Uma solução mais sustentável tem que passar por criticamente analisar as formas como o sexo e o género participam e contribuem para as dinâmicas da guerra e da paz. O objectivo último é o de compreender o nosso papel – como indivíduos e sociedades – a perpetuá-las no nosso quotidiano.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA desnecessária arte de fingir orgasmos Comecemos pela Meg Ryan e a sua icónica demonstração que os orgasmos podem ser fingidos, no rom-com clássico dos anos 80. Muitos filmes e sitcoms depois apropriaram-se desse facto inabalável que, tendencialmente em relações heterossexuais, as mulheres fingem os orgasmos e os homens parecem não notar. A percentagem, dizem alguns estudos mais alarmistas, é estrondosa. Cerca de 67 por cento a 74 por cento das mulheres já reportaram terem fingido um orgasmo pelo menos uma vez na vida. A pergunta que se impõe é: porquê? Ninguém anda a ensinar que se deve fingir orgasmos. Eu certamente nunca assisti que fosse uma dica a ser passada de geração em geração. É como se o orgasmo fingido fizesse parte de um repertório silencioso, uma estratégia para lidar com as coisas do sexo e da cama, sem ninguém perceber bem como, nem de onde veio. Resta-nos analisar o orgasmo fingido como o resultado de uma interacção que deve ter determinados contornos. Pode ser que o propósito seja despachar o sexo de forma inequívoca, simples, e sem palavras necessárias. Mas também pode ser que seja uma estratégia de lidar e cuidar do ego masculino que julga que a masculinidade é medida pela quantidade de orgasmos que se pode proporcionar à parceira romântica. Ora, como sabemos, o orgasmo feminino necessita de um alinhamento particular, uma profunda delicadeza e grande sentido de descoberta. Só tendo essa abertura e habilidade é que as mulheres atingem o clímax. O orgasmo feminino ainda continua envolto em muito mistério, que ajuda a perpetuar o famoso orgasm gap documentado na literatura. Esta refere-se ao fosso que existe entre a quantidade de orgasmos reportados pelos parceiros. Em encontros heterossexuais de uma noite – e especialmente nesses casos – os homens reportam muito mais orgasmos do que as mulheres. Elas tentam resolver esse problema da melhor forma que podem: fingindo o orgasmo. Isto porque as crenças patriarcais do orgasmo feminino continuam por aí, ideias pré-concebidas, algumas delas mirabolantes. Há quem ache que o orgasmo deveria ser simultâneo ou que depende de penetração profunda, unicamente. Estas e tantas outras crenças contribuem para a pouca flexibilidade e criatividade no sexo, e eventualmente, levando à sua desgraça. Podemos também culpar a pornografia, o educador sexual contemporâneo, para grande tristeza de muita gente. A recomendação é que parem imediatamente de fingir orgasmos. Para todo o sempre. Uma recomendação que se aplica aos homens que, em números muito menores, também fingem orgasmos de vez em quando. Não será por magia que desencantam parceiros que muito eficaz e habilidosamente saibam dos vossos caminhos para o orgasmo. Não vale a pena remediar com os dotes –ainda que impressionantes – de os fingir. Mais vale lidar com o desconforto, com a potencial ferida, com o desfazer de expectativas de uma noite perfeita, a tal digna de um filme pornográfico. Importa que se observe o que nasce do desconforto e que se consiga confrontar com aquilo que não aconteceu. Só assim é que se cria uma oportunidade fabulosa de se transformar, experimentar outra vez, conversar sobre expectativas. Se se achar importante ou necessário, explica-se o que se gosta e como se gosta. Pode-se até desconstruir o peso do orgasmo no sexo, e deixar que ele deixe de ser o eixo definidor de uma relação sexual satisfatória. Flexibilizar, re-criar, transformar, sentir o prazer em vez de o assistir, como se fosse um filme ou um romance – não é essa a mudança desejável? Fingir o orgasmo só atrapalha o sonho de um sexo diferente. Pensem nisso na próxima vez que sentirem que devem fingir o que quer que seja.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO corpo perfeito não existe: o mito que complica o sexo Há um determinado número de condições para que o sexo faça bem. Sexo é demasiado vago para ser esse poço de benefícios que eu tento apregoar. No caso das pessoas que foram socializadas e que se identificam como mulheres, a questão da imagem corporal é um importante factor que pode bloquear ou desbloquear todos os benefícios do sexo. Quanto mais te sentires confortável na tua pele, quanto mais te sentires confortável sem roupa, expondo a celulite, as estrias, as banhas e os outros supostos demónios que foram incutidos, mais confortável te sentirás com o sexo. Isto não sou eu a dizê-lo de forma gratuita, isto é o que a investigação confirma. Há investigação científica que sugere que é preciso resolver este problema – e obsessão – do corpo perfeito se queremos educar para uma sexualidade mais livre e prazerosa. Mas esta questão do corpo não vai lá só com livros e vídeos de auto-ajuda que de forma débil, e um tanto ou quanto incompleta, tentam ensinar as pessoas a aceitarem o seu corpo tal como é. Não quero soar pessimista, mas procurar uma solução milagrosa no trabalho individual e cognitivo – apesar de ajudar – é ingénuo. Vivemos desde sempre em sociedades que gostam de cristalizar um ideal de beleza. A indústria – e o tão poderoso marketing por detrás – suscita o consumo de produtos e serviços com um propósito absolutamente indigno: que não deveremos querer ser quem somos. Por isso é que parte deste processo de libertação tem que passar por escrutinar todas as mensagens que são transmitidas por várias vias, desde o seio familiar, até às narrativas mais gerais de como é que podemos apreciar o corpo. Por exemplo, os ginásios escolhem promover os seus serviços com uma ênfase desmesurada nas 300 maneiras de como se pode esculpir e tonificar o corpo: um objectivo que a maior parte das pessoas não irá conseguir alcançar. Desafio-vos a encontrar um espaço de exercício físico que o publicite como um importante promotor da saúde e bem-estar, em vez de focar-se no controlo do corpo. Se existem situações em que estas narrativas são óbvias e muito condenáveis – por exemplo, ao pensarmos que meninas de 8 anos já andam preocupadas com a gordura e com o seu visual – existem outras formas em que as narrativas operam de forma mais subtil. A associação entre excesso de peso e a saúde é um daqueles mitos que aos poucos começa a ser desconstruído. Não há evidência científica que o peso ou o índice de massa corporal seja um indicador de melhor ou pior saúde. O estigma que as pessoas com excesso de peso passam na sociedade e no acesso a serviços é que está associado a crescentes problemas de saúde. Aliás – e isto vai vos surpreender – a investigação parece mostrar que o défice de peso está mais associado a problemas de saúde do que o excesso. Disto ninguém fala, não é? O sexo só faz bem se nos sentirmos bem. A forma como nos relacionamos com o nosso corpo é importante para a sexualidade positiva. Não podemos, contudo, assumir que está nos nossos ombros a responsabilidade de resolver um problema que vai existir ainda por muito tempo. Os mitos e as histórias do corpo perfeito e sensual precisam de muita desconstrução ainda. No entretanto, tenta-se viver o maravilhoso mundo do sexo sabendo que o corpo perfeito nunca irá existir.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesComo escolher um vibrador? Para as que querem abraçar o novo ano a experimentar novas formas de obter prazer, os brinquedos sexuais são uma boa forma de o conseguir. Para quem já espreitou as lojas online ficará certamente assoberbada com a quantidade de artigos existentes no mercado. Há tudo para todos os gostos sexuais e todas as carteiras. Este é um pequeno guia para quem gostaria de comprar o primeiro brinquedo sexual, mas que nunca conseguiu decidir-se por qual. Por razões de natureza algo evidente, focar-me-ei nos brinquedos sexuais para as pessoas com vulva. A variedade é muita porque há apetites diversos, que reflectem as diferentes formas como nos relacionamos com o sexo, com o nosso corpo e de como ele se comporta. Focar-me-ei nos vibradores, esse feliz ícone da cultura pop, com a ressalva de que a variedade de brinquedos para pessoas com vulvas ou pénis – ou para diversão a dois – dão uma dissertação. Os vibradores têm a incrível capacidade de estimular toda a zona da vulva, incluindo o clitóris, o órgão do prazer, ajudando a atingir o orgasmo. Um dos mais populares estimuladores clitorianos é a magic wand. Apresentado como um massajador para o corpo no final dos anos 60, aumentou em popularidade desde que a Betty Dodson, a educadora mais fervorosa dos orgasmos para a libertação humana, publicitou o seu uso comum na zona da vulva. Ao contrário do que muita gente pensa, a wand – que tem a forma de uma varinha e acaba com uma ponta grande e arredondada – não serve a penetração. Várias marcas já puseram no mercado a sua versão da wand, apesar do original ser da marca Hitachi que se viu surpresa ao ver o massajador muscular transformado em brinquedo sexual. Quando foi mencionado num episódio d’O Sexo e a Cidade em 2003, as fãs esgotaram o stock. Os vibradores de forma fálica já servem a penetração. Um dos mais populares tem o formato que lhe chamam de ‘coelhinho’ (bunny) por ter uma dupla forma fálica e fazer lembrar as orelhas de um coelho. Esta serve para ajudar a estimular a vagina bem como o clitóris, simultaneamente. Há outras ainda mais complexas, que até estimulam a zona do períneo ou penetram o ânus. Dependendo da sofisticação do brinquedo, ele pode vibrar e mexer-se rotativamente para o prazer garantido. Uma inovação mais recente são os estimuladores de ar que de algum modo simulam sexo oral. Estes brinquedos terminam numa forma em donut, isto é, com um buraquinho no centro onde ‘encaixam’ o clitóris. Coloco-os na categoria de vibrador, porque a maior parte deles pode vibrar também. Estes podem ter dois motores, um de estimulação de ar, e outro de vibração e podem controlá-los como bem vos apetece. Para alguns destes brinquedos, este controlo pode ser tão mais sofisticado com a ajuda de uma aplicação – ao ponto de poder vibrar ao som da vossa música favorita. A marca que tem popularizado estes estimuladores de ar é a Satisfyer, com a melhor relação qualidade-preço. O seu sucesso é tão grande que a marca já descreve o objecto, tal como acontece com Chiclete, Gillette ou Tupperware. Para as que quiserem experimentar, existe a versão one night stand. É baratinha e tem a duração máxima de 90 minutos, sem possibilidade de trocar pilhas ou recarregar baterias. Uma proposta interessante para quem quer fazer o test-drive sem esgotar o orçamento mensal. Para as que se convertem, podem depois investir num brinquedo mais duradouro. A escolha, por isso, depende muito do que se gosta. Procuram algo para estimulação do clitóris e da zona da vulva? Querem um brinquedo para penetração? Querem um foco mais preciso no clitóris? Mantenho a ressalva que precisam de confirmar se as marcas e os fabricantes utilizam produtos seguros para as partes íntimas. Há muitas marcas com todas estas propostas que vos referi, e como devem calcular, brinquedos sexuais mais baratinhos podem não ter tanta qualidade. Felizmente que há quem se ocupe a experimentar e opinar sobre artigos sexuais, caso queiram dicas mais especificas. Estas são as sortudas que recebem nas suas caixas de correio muitos brinquedos para uma opinião honesta para mais tarde publicarem nas redes sociais. A Scarlet O’Hara é uma dessas pessoas, e recomendo o visionamento caso já tenham um brinquedo sexual em mente, e gostassem da opinião de alguém que já experimentou há volta de centenas brinquedos sexuais. É isto. Votos de Good Vibrations.