Como se fazem os bebés

[dropcap]U[/dropcap]ma amiga comentou que fazer sexo e fazer bebés poderão ser encarados como actividades diferentes. Uma coisa é o sexo, outra coisa é fazer um filho. Uma coisa é ter prazer, outra coisa é criar uma família. Há momentos de intercepção também. Mas quem faz sexo porque quer um bom orgasmo, pode ser um depravado. Quem tem filhos é decente. Mas o sexo nunca desaparece dos nossos mundos de significado.

Os pais que procriam em decência, terão que encarar a dura realidade de uma criança que se tornará adolescente e adulto. É preciso falar de sexo em algum momento e de como se quer incluir o sexo na parentalidade. Falar da intimidade é um dever cívico que não se resume a uma conversa do que são pipis ou pilinhas. Nas nuances do sexo e do comportamento sexual existem conceitos confusos. Há necessidade de clarificar emoções e direitos para que certas situações deixem de ser assustadoras ou estranhas. Estes são conteúdos que vão muito além dos métodos contraceptivos que existem e de ‘como se fazem os bebés’. Os conteúdos programáticos das escolas são inflexíveis, simples e de contrastes distintos e limitados. Estes carregam também uma fraca noção do direito à auto-determinação pessoal das crianças e jovens. Como se eles não tivessem nada a dizer, como se eles não pudessem participar na conversa.

Devemos falar de intimidade, consentimento, contracepção e prazer. Mas não há fórmulas perfeitas. Só abrindo espaços seguros e sem julgamento é que é possível explorar a curiosidade natural do sexo. Julgar que se pode controlar os conteúdos sexualizados a que as crianças e jovens têm acesso é pateta. Mais vale oferecer-lhes ferramentas onde eles próprios possam dar sentido às imagens e aos conceitos. Falar sobre sexo pode ajudar, mas impõem-se certos desafios.

Primeiro porque pensar na sexualização infantil/juvenil é difícil. Há um medo premente que conversas sobre sexo motivem a iniciação sexual. Segundo, há demasiada imaturidade sexual por este mundo fora para pensar que a solução passa por simples conversas. Poucos relacionam a obrigatoriedade do sexo – para a propagação genética e perpetuação da vida familiar com o bem último da vida humana – ao prazer dos corpos nus. A parte dos bebés é pragmática, a parte do prazer é polémica. A tensão cai obrigatoriamente na premissa que o sexo fora da procriação é crime – um exemplo bem contemporâneo é o caso do Brunei onde agora o sexo homossexual e o adultério são punidos com pena de morte. Portanto – estamos preparados para falar sobre sexo?

Não. Podemos não falar sobre sexo com os mais jovens? Também não. Falamos como podemos disto de ‘como fazer bebés’ e de como não tê-los. Esticamos os conteúdos para uma conversa sobre sexo cada vez mais informativa para depois percebermos que falar sobre sexo (e género também) é agora visto pelos mais melindrados como uma escolha ideológica. Sexo não é ideologia, sexo é um facto. Este facto de consequências reais precisa de ser apresentado da forma que melhor inclui a diversidade. Porque o sexo não é só sobre fazer bebés, é sobre percebermo-nos a nós próprios e à nossa sexualidade.

10 Abr 2019

Tu não és frígida

[dropcap]F[/dropcap]rígida é a mulher que não assume a naturalidade do sexo. Se uma mulher não tem vontade de tocar o outro é porque é uma pedra de gelo. A possibilidade de ser frígida suscita-me qualquer coisa. Irritação, talvez. Um conceito datado tal qual a histeria, que se aguentou até aos dias de hoje.

Mas a frigidez nunca fez sentido – quando a dificuldade sexual não está condicionada a uma condição fisiológica bem identificada, muito menos. A frigidez também não é nada sem contexto ou relação. Um homem bêbado num bar chama de frígida a quem não reage aos seus avanços sexuais ou um recém-casado queixa-se da frigidez da sua esposa. Parece que é uma forma cruel de explicar aquilo que é complexo. Simone de Beauvoir bem dizia que a frigidez era uma forma de resistência também – a mulher não precisa de responder sempre que é sexualmente estimulada.

As frígidas têm livre arbítrio e não são as pessoas doentes que se julgavam na época vitoriana. O primeiro passo foi perceber que as mulheres nem sempre querem sexo.

Só que há imagens que persistem. Restos que se entranham naquilo que dizemos e fazemos.

Perceber que as mulheres podem não estar interessadas não é suficiente. Manteve-se a linguagem para perpetuar a responsabilidade individual de uma actividade que acontece entre duas pessoas – se não mais. O sexo faz-se de linguagens e comunicação e depois faz-se na cama com o outro.

Esta combinação gera um mundo de significados que só responsabilizar uma das partes pelo problema seria imoral. A frigidez é relacional como a ejaculação precoce ou a impotência o são.

Relacional porque há um contexto social em que frigidez existe. Mas por alguma razão ainda ficamos presos na fantasia de que o problema está em mim, em ti e no outro.

Uma rápida pesquisa nas bases de dados científicas leva-me a crer que as frígidas ainda são chamadas como tal. Nos motores de pesquisa populares ainda mais. As causas que aparecem são várias. Há frígidas que nunca tiveram tempo e disponibilidade de explorar a sua sexualidade. Há frígidas que vivem no terror do pecado do sexo. Há frígidas que têm problemas fisiológicos. Há frígidas que não conseguem manter uma relação de comunicação e partilha emocional com o/a parceiro/a. Nenhuma das sugestões me parece descabida. Só que é a palavra, com uma história tão pesada que me chateia. Irrita-me. Mesmo que não sintas tesão, tu não és frígida. Talvez o tesão precise de ser melhor entendido, melhor escutado. A solução pode ser uma sessão de masturbação para melhor entender de onde vem o prazer. Mas as dinâmicas de poder continuam lá e para isso serão necessários mais do que um orgasmo para as desconstruir. O problema da responsabilidade individual é que desresponsabiliza o trabalho colectivo que ainda tem de ser feito. Já para não falar da relação de casal que poderá precisar de uns ajustes. A frígida existe porque há expectativas unidirecionais do sexo e não há nada mais datado do que isso.

Este texto vai para aqueles que ainda recorrem à frigidez para descrever um estado de desinteresse sexual por parte das mulheres. Se é uma tentativa de se aproximarem do vernáculo português, esqueçam. Certamente encontrarão outras formas mais adequadas de nomeação. Já sabemos o suficiente para não cair neste erro – ou nesta forma de preconceito.

27 Mar 2019

Sexo e Casamento

[dropcap]A[/dropcap]investigação tem sido consistente de que há uma relação forte entre satisfação conjugal e satisfação sexual. A direcção desta relação é que tem sido bastante debatida. A relembrar-nos da eterna questão do ovo e da galinha há quem se interrogue: afinal o que é que vem primeiro? A satisfação com o sexo que depois influência a satisfação com a relação, ou será que a qualidade da relação faz com que o sexo fique melhor?

Ainda que provisória, a assumpção é de que vieram os dois alimentar-se um ao outro. Perceber quem veio primeiro já é de grande dificuldade conceptual e metodológica e, se me permitirem o acrescento, também de variabilidade inter-casal – ou seja, cada parelha viverá as suas satisfações na ordem que mais lhe convir. Não quer isto dizer que é uma escolha deliberada, as coisas acontecem naturalmente dependendo da forma como se vivem os desafios inerentes ao casamento. Também dependerá da forma como o sexo é concebido e entendido. Por mais que ande a pregar de que o sexo está intimamente ligado ao nosso bem-estar, em geral, continua a ser um desafio para muitos viver a sua vida sexual sem a instrumentalizar. O sexo não deixa de ser aquele bicho-papão do qual ninguém quer falar, mas que todos os casados são ‘obrigados’ a fazê-lo. Para ilustrar este facto é a quantidade impressionante de mulheres que são sexualmente activas mas que nunca se masturbaram. Nesta equação de satisfações dentro do casal é muito importante perceber o papel do sexo – que nem sempre é o mesmo. Muito menos na variabilidade social e cultural que vivemos neste planeta.

Há um estudo publicado em Maio do ano passado no Journal of Sex Research que explora a relação entre satisfação sexual e conjugal em jovens casais de Pequim. O foco em sociedades, geopoliticamente falando, não-ocidentais é o maior contributo deste estudo. A investigação tende ignorar partes do mundo onde o sexo ainda não é amplamente discutido e onde a intimidade relacional ainda não ganhou maior protagonismo. Mesmo que a ciência se esforce em encontrar relações concretas acerca das nossas vivências, a variabilidade cultural ainda é pouco reconhecida. Este estudo em concreto traz uma reflexão importante acerca dos primeiros três anos de casamento de casais chineses em contexto urbano. Parece que as diferenças de género destacaram-se: os homens percebiam a satisfação conjugal como resultado da satisfação sexual, enquanto que as mulheres percebiam o efeito contrário – o bom sexo só vem depois de uma boa relação – que depois com o tempo, esta relação desvanece-se, enquanto que se mantém para os homens.

Parece que a tentativa de esclarecer a relação universal entre o ovo da satisfação sexual e a galinha da qualidade da relação ainda está longe de ser conquistada – porque provavelmente não existe. Os autores parecem concluir que é difícil dissociar expectativas do sexo com as de género. A relação entre satisfação sexual e conjugal está intimamente ligada ao papel do homem e da mulher em casais heterossexuais. No caso das mulheres – a tendência de quebrar a ligação entre satisfação sexual e conjugal com o tempo – parece apontar, de acordo com os autores, a um descontentamento face ao papel da mulher. Visões mais tradicionais e patriarcais dirão que a mulher deve ter uma posição passiva no sexo e na relação. Refletindo, talvez, a dificuldade que será reivindicar uma procura activa do que as satisfazem na cama. Na verdade, não saberemos em concreto – outro estudo seria necessário. Mas pelo menos assim sabemos um pouco acerca da variabilidade relacional, da falta de fórmulas conjugais e de como o sexo – visto como uma construção conjunta de significados complexos – tem muito mais que se lhe diga do que originalmente pensado.

 

 

 

20 Mar 2019

8 de Março  

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]assou-se mais um dia das mulheres. Este ano não quis juntar-me à multidão manifestante e optei por ficar no conforto de casa. Claro que uma manifestação tem especiais poderes de reinvindicação com a voz, o grito, a raiva e a partilha. Mas à minha necessidade de ficar em casa dou-lhe um sentido introspectivo que pode ser igualmente transformador. Fiquei em casa a sofrer dos males menstruais de quem, como eu, tem um útero. Pensei na minha sorte de não ser nepalesa e não ser atirada para a reclusão menstrual dada a minha impureza – muito menos morrer disso como morreram uma mãe e dois filhos ainda há pouco tempo. Pensei na igualdade de direitos menstruais que este mundo anda a precisar desesperadamente. Pensei na minha condição de mulher e nos privilégios e obstáculos associados. Menos mal, ainda com dores incapacitantes tenho direito a uma voz porque tive sorte de ter nascido onde nasci. Há muitas vozes que ficam ainda perdidas na complexa malha de palavras que fazem este mundo maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. Não é novidade nenhuma que a desigualdade ainda está bem presente.

Só não sei se este dia 8 de Março ataca o problema da desigualdade de género. O problema é bem mais complexo do que estamos preparados para compreender e ninguém nos alerta para isso. A desigualdade não tem uma raiz clara de onde possamos cortar o mal, nem tem um arqui-inimigo a destruir. Vai parecer-vos um exagero mas problema está em todo o lado. Desde o nascimento que a nossa socialização cria expectativas de que a menina é a bonita e bem-comportada e o menino o esperto e rebelde. Depois é a escolarização, a sexualização, a empregabilidade, tudo isto tresanda a expectativas milenares de quem nós somos. Há coisas que se resolvem com uma boa legislação, há outras que precisam de uma luta diária em todas as frentes, em casa, na rua e para além do dia 8. O trabalho, a ser feito, é nos bons-dias mundanos e nas relações diárias. Podemos ir para a rua gritar e mostrar o nosso descontentamento pelo desaparecimento da Marielle, da parvoíce que foram os acórdãos do Neto de Moura ou chorar a morte das 12 mulheres que morreram às mãos da violência doméstica em Portugal só em 2019. Não chega. Precisamos de pensar e agir sobre o desconforto da desigualdade com todas as vozes que fazem as mulheres. Porque também já me irrita perpetuar-se o mito de que a mulher é uma: a tal de útero, cabelos longos e vestidos cor-de-rosa. As mulheres são muitas com diferentes narrativas e histórias. Mulheres que usam maquilhagem e que não usam. Mulheres que têm pêlos nos sovacos e que não se arranjam, e também aquelas que demoram duas horas antes de sair de casa para se porem bonitas. Mulheres com ou sem útero, mulheres daqui e de acolá, mulheres de todos os tipos e feitios. Existem tantas histórias por contar que ainda estamos por revelar de quantas gentes esta luta pertence. Pertence a muitas e a muitos também.

Na sexta-feira, se não soubesse que dia era, as flores que as mulheres trazem denunciariam a data. As flores são um lindo gesto que nem sei de onde veio, nem sei quem é que todos os anos continua a tradição. Mas as flores morrem rapidamente, não conseguem produzir mudança, nem conseguem sustentá-la. As flores são efémeras, mas o dia 8 de Março tem que ser para sempre.

13 Mar 2019

Leite de coco e mamas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s riscos da publicidade enganosa são vários. A publicidade oferece-nos imagens do que é bom, mau, adequado ou desejado, isto acrescido com dados falsos, torna os anúncios muito problemáticos. A China, por exemplo, já tem uma longa história de anúncios insensíveis. Ainda bem há pouco tempo, ao anunciar um detergente de roupa, meteu um negro dentro de uma máquina de lavar e ele saiu branco.

Agora a história foi diferente, tratou-se de um anúncio de uma popular marca de leite de coco de Hainan que jura que o consumo da sua bebida aumenta o tamanho das ditas redondas e voluptuosas mamas. O anúncio televisivo é qualquer coisa como mulheres a correr pela praia de t-shirts brancas e decotes generosos a balouçar o seu material e afirmando que beber leite de coco todos os dias ajuda a encher os lindos seios. Também afirmam que beber o tal leite torna as curvas excitantes. O que nos vale é que nos dias que correm este tipo de anúncios já é recebido com muita desconfiança e descontentamento. Primeiro, já foram confirmar que não há dados que defendam a tese de uma relação entre o leite de coco e o tamanho das mamas. Segundo, para uma marca tão antiga e popular, as pessoas perguntam-se se é preciso descer tão baixo. Há quem tivesse achado que o anúncio fossem um photoshop pobre e sarcástico. Mas não, este foi um exemplo de má publicidade a continuar a ser má. Para além de que não percebo bem se este esforço de se virar para o público feminino para o fortalecimento da marca foi totalmente irreflectido ou não. Porque duvido que os homens que consomem a bebida (que devem existir) vão querer alterar o tamanho das suas mamas, menos organicamente complexas, mas que não deixam de ser mamas também.

A forma como as mensagens são comunicadas importa. Importa porque nos apresentam imagens do que é a mulher. Isto não quer dizer que os meios de comunicação sirvam de prescrição social: com a simplicidade de que assim aparece, assim acontece – não é nada disso. O que vale a pena analisar nestes momentos polémicos e de discussão é de como o conhecimento comum – como por exemplo, ter mamas cada vez maiores é o que as mulheres querem, por isso nossa bebida vai vender disso – é utilizado. Já para não falar no barrete que esta companhia, que parece não ter um departamento de marketing bem organizado, quer meter. Haverão clientes que de facto querem ter mamas maiores e poderão passar meses a beber o leite de coco que nada lhes trará. Nem curvas mais redondas, nem mamas mais cheias, nem o sex-appeal de quem anda com um push-up nas praias de Hainan.

Sempre reforçarei a importância que é desconstruir a obsessão (já milenar) do corpo feminino porque é a original fonte de desigualdade. A forma como anúncios fazem uso da objectificação do corpo não é o problema, mas o sintoma. Os corpos femininos são lindos e os corpos masculinos também. Só que é comum levarmos ao extremo o dilema do pudor e libertinagem do corpo da mulher. ‘Parece’ aceitável andar a clamar a sete ventos o quão bom seria se as nossas mamas crescessem com uma vulgar bebida diária quando um decote generoso é ainda mal aceite na China. Quem viveu na China continental saberá que uns ombros e um decote que se querem mostrar encontrarão resistência. Por enquanto, não há leite de coco que nos valha, nem para o seu aumento, nem para mamas mais expostas e felizes.

6 Mar 2019

A política da violência doméstica

[dropcap]E[/dropcap]m Macau soubemos da triste história da Lao Mong Ieng e do seu estado de saúde grave. Em Portugal, desde Janeiro, já morreram 10 mulheres às mãos da violência doméstica. As agressões e mortes de mulheres, homens e crianças poderiam ser evitadas se as nossas políticas fossem um pouco mais progressivas. Parece-me claro reforçar que o problema ainda precisa de mais e melhores respostas sociais, políticas e judiciais.

O primeiro problema encontrado para resoluções felizes é o deste forçoso encontro entre a esfera privada e a pública. Em que a lei entra na nossa casa e mete-se no meio do que é um lugar de conforto e conflito. Um paradoxo como tantos outros que vivemos que torna a violência doméstica um assunto extremamente difícil de ser discutido fora de casa. Às vezes é necessário meter a colher, ou é necessário relembrar que não temos que seguir a pessoa que casámos, seja ele uma galinha ou um cão – de acordo com o chengyu chinês 嫁鸡随鸡,嫁狗随狗. Mas mesmo que seja possível ultrapassar esta dificuldade que muitas vezes está culturalmente prescrita na nossa maneira de ser, as coisas continuam a não correr bem.

As estatísticas mostram-nos que ainda falhamos às pessoas que são apanhadas nesta escalada de violência. Não é de todo incomum que as mulheres que morrem às mãos dos seus maridos-agressores terem já sido sinalizadas como vítimas, como aconteceu em Portugal. Este facto assustador mostra que o sistema pode falhar – e está a falhar. Claro que poderíamos focarmo-nos nas condições micro-ecológicas de onde a violência se desenvolve, como numa possível doença mental do agressor, por exemplo. Mas dada a complexidade do fenómeno, não podemos parar de exigir melhores soluções sociais também. Porque mesmo que exista um enquadramento legal para prevenir e combater a violência doméstica, uma primeira e recente abordagem legal, como é o caso de Macau com uma lei de 2016, nunca será perfeita. A lei precisa de ser constantemente analisada para que não contribua para aquilo que devia prevenir em primeiro lugar. A previsão dos legalistas é que a lei em Macau será alterada de três em três anos. Uma estimativa muito optimista e ingénua, como se assumisse simplicidade do problema.

Também podemos ir mais além e propor um exercício mais difícil: a conceptualização de uma política de maior envolvimento das comunidades que são mais afectadas. Nestas questões sensíveis como a violência doméstica ouvem-se poucos especialistas no terreno pela fraca crença de que agressores e vítimas são fáceis de identificar e de prever. Enganam-se ao criar uma política preta e branca que não tem em conta as gradações de cinzento que tão frequentemente caracteriza a violência. Esta seria uma política onde ouvíssemos atentamente as queixas, as dinâmicas e as representações da violência doméstica para que as leis se desenvolvessem ao ritmo das sociedades e dos novos desafios. Porque só assim é que podemos romper as amarras que o preconceito nos prende. Uma política que concedesse poderes críticos e de escrutínio institucional para melhor perceber como é que o sistema (e as pessoas que o constituem) falha.

Porque a violência doméstica não é só um produto de agressores, mas um produto de sociedades e sistemas que ainda não conseguem identificar, prevenir e resolver a violência que pode viver em casa.

27 Fev 2019

Mulheres de Conforto

[dropcap]F[/dropcap]aleceu Kim Bok-dong, uma das muitas mulheres de conforto do Exército Imperial Japonês, das poucas que viveu até aos 90 anos. Estima-se, com maior ou menor conservadorismo, que estas mulheres tenham existido às dezenas ou centenas de milhar naquilo a que chamavam ‘estações de conforto’ do exército japonês. Escusado será dizer que a expressão ‘mulheres de conforto’ é um infeliz eufemismo do tempo da II Guerra Mundial para nomear as mulheres que eram repetidamente violadas, violentadas e escravizadas.

As estações de conforto foram estabelecidas por todo o império com o propósito, dizem os historiadores, de confortar os soldados japoneses. Mas este é um conceito altamente contestado. A parte mais afectada afirma que os soldados japoneses raptaram raparigas e mulheres das colónias imperiais para fazer um trabalho que muitas prostitutas japonesas já se tinham voluntariado fazer, mas que, com o crescimento das tropas, sofriam de uma clara falta de pessoal, recorrendo, por isso, à escravatura sexual.

Os japoneses, por sua vez, discordam. Desde 1991 que as sobreviventes mulheres de conforto vieram a público com estes relatos de horror e desumanização para se confrontarem com muita resistência por parte do Japão em assumir a responsabilidade pelo que aconteceu – de para sempre afectar as vidas destas meninas e mulheres que julgavam ir trabalhar para fábricas de uniformes para ajudar nos esforços de guerra.

Não irei estender-me demasiado acerca do desenvolvimento deste conflito, parece-me, contudo, que o ponto mais importante desta tensão é que estas estações de conforto não são assumidas como uma política regulamentada pelo exército japonês – que tinham como intuito evitar o descontrolo total das tropas. Há quem afirme que depois do massacre de Nanjing às mãos dos japoneses, que levou à morte e violação em massa, que as estações de conforto seriam uma forma de controlar (1) a raiva militar, (2) a tensão sexual e (3) evitar espalhar doenças venéreas ao circunscrever o sexo violento a estes espaços onde – os homens punham-se em fila para repetidamente violar uma mulher.

Este esforço desmedido de desresponsabilizar os horrores de guerra japoneses faz-me lembrar algo: uma ideia verdadeiramente contemporânea que parece perseguir-nos cada vez que falamos de violência sexual.

As vozes que contestam um movimento de reparação pública a estas mulheres, tendem a proferir o que eu já estou bem farta de ouvir: que as vítimas não são vítimas. Tudo serve para justificar esta posição, ora porque as mulheres demoraram demasiado tempo para virem a público (demoraram 45 anos para verbalizar os horrores da guerra), ora porque as mulheres conforto, como prostitutas que eram, (supostamente) faziam dinheiro com isso. Parece-me que este cliché argumentativo está no meio de uma séria tensão diplomática que não só revela perspectivas ingénuas das formas da violência sexual em contexto de guerra, mas também revela os valores definidores de uma identidade colectiva e nacional. Um país como o Japão percebe o papel que teve no conflito armado, mas ainda existem realidades (verdades?) que ainda não foram integradas.
Kim Bok-dong morreu sem ouvir o que queria ouvir. Houve várias tentativas de reparações entre o Japão e a Coreia, mas Bok-dong não acreditou serem verdadeiramente honestas. Ela dedicou a vida a contar a sua história e a denunciar a violência sexual em contexto de guerra por este mundo fora – e certamente que, com alegria, percebeu que muitas e muitos ainda estão dispostos a lutar pela sua causa.

20 Fev 2019

Lube

[dropcap]A[/dropcap] lubrificação vaginal não recebe a atenção merecida – assim concorda a investigação social que se debruça sobre os seus significados e representações. Surpreendentemente ou não, muito já se estudou sobre a erecção masculina e as dificuldades, pressões e ansiedades que advêm do derradeiro momento em que a pessoa detentora de um pénis exige para o coito. A lubrificação, que é uma espécie de apresentação equivalente, mas para pessoas detentoras de uma vagina, continua escondida atrás da cortina e ainda não tomou a sua forma teatral e majestosa que precisa. Mas também seria demasiado redutor equipará-la com a erecção quando, na verdade, a lubrificação vaginal existe até fora do sexo. A lubrificação existe quando se quer e não quer.

A pouca investigação que existe, contudo, aponta para a complicada relação pessoa-vagina. A dificuldade desta ligação vaginal já não é novidade para ninguém. Se continua a não ser fácil lidar com a naturalidade dos pêlos púbicos ou com o aspecto natural das nossas vulvas, a lubrificação tende a ser mecanizada e instrumentalizada (e até ignorada) para (simplesmente) ser entendida como uma forma fisiológica de estar da vagina– supostamente, sem nenhuma ligação à nossa construção e imaginação da mesma. Mas agora sabemos que a lubrificação tem muito que se lhe diga, e todos nós podemos opinar sobre ela extensivamente, só que raramente o fazemos. Um estudo publicado na Feminism & Psychology mostrou que um grupo de mulheres que representava e discutia a lubrificação com múltiplas dimensões e tensões – sim, é uma forma fisiológica de se mostrar excitação -, concluiu que esta é uma forma de ligação amorosa e sexual com o outro, uma forma de prazer e de confiança, mas também é um factor de ansiedade: porque (na imaginação das entrevistadas) é possível estar-se lubrificada de menos ou de mais. Isto é interessante porque parece que a lubrificação – como muitas outras valências da sexualidade dita feminina – está na incessante procura de um equilíbrio perfeito. A lubrificação pode ser de menos e proporcionar uma penetração vaginal dolorosa, causar fricção e dor e ter consequências na relação com o parceiro, mas também pode ser demais e parecer uma assustadora torneira a esguichar secreções vaginais.
Para acrescentar a esta dinâmica, o mesmo estudo aponta para uma responsabilização individual da ‘potencial’ anormalidade na secreção e, por isso, sugere que julgamos o processo como unilateral. Não considerando, assim, a natureza da relação com o outro e de como pode afectar a vagina e a sua acção. Sem descurar, claro, que há situações particulares como a menopausa onde é característica uma diminuição da lubrificação natural, porque há um cocktail hormonal que assim o dita. De qualquer modo, julgo que esta tensão provoca alguma reflexão de como o corpo detentor de uma vagina é frequentemente representado e sentido como o responsável pelo bem-estar sexual do próprio e do outro. Independentemente da libertação sexual que já se conquistou até agora, teorias feministas parecem concordar que nestas questões do sexo é normal as mulheres responsabilizarem-se para atingir a perfeição. Ao ponto – também uma referência deste artigo – de existir uma prática subsaariana em que mulheres propositadamente secam a sua vagina para que a penetração vaginal seja mais apertada, como a de uma virgem. Escusado será dizer que esta prática traz problemas de saúde sérios – mas é este é só um exemplo exagerado de como há um desejo de tomar controlo sobre os nossos corpos para atingir algo… que muitas vezes não se sabe muito bem o que é. A autora também reforça esta imagem (e medo) do exagero, e de como certas representações de objectos femininos são contaminados pelo medo do excesso: à gordura, à celulite, ao sangue menstrual, às expressões emocionais ou aos malfadados e supostos ‘histerismos’ de outrora. A lubrificação também não escapa a esta dinâmica. A solução é sempre comunicativa, de partilha e abertura para falar com o outro acerca de como sentimos o nosso corpo e, especialmente, de como queremos vê-lo representado.

13 Fev 2019

Gillette

[dropcap]O[/dropcap] objecto de uso comum virou polémica. Os agentes de marketing da grande marca multinacional – que em português nem é nome de marca, mas do objecto cortante em si, -resolveram dar que falar ao criar um anúncio que põe a masculinidade em causa. Não é a masculinidade de todos, mas a de um tipo em especial: a masculinidade tóxica.

Mas a contestação da masculinidade tóxica já nos é bem conhecida. Por isso duvido que tenha sido com surpresa que a empresa tenha visto o anúncio – que só tenta mostrar a possibilidade de uma outra masculinidade – a agradar, mas também a consternar o público ao ponto dos fiéis clientes ameaçarem boicotar a marca. As pessoas ventilaram o seu desgosto nas redes sociais ao pegar nas suas amorosas histórias de como a gillette entrou nas suas vidas de puberdade, a quem crescem pêlos faciais para, com desgosto, excluir a gillette da masculinidade hegemónica e normativa. Eu percebo que a toxicidade de um conjunto de características que está ligada, muito na generalidade, à comunidade masculina seja vista como ofensiva. Mas melhor ou pior, eu até verti uma lágrima neste tão emocional anúncio que propõe que os homens podem chorar ou mostrar-se frágeis. E que acima de tudo podem estar à frente na mudança de perspectivas retrógradas do que o homem pode ser. Se já poucos concordam que o papel da mulher é na cozinha, também concordarão, certamente, que o homem não é sempre o bully, o forte e o responsável. A masculinidade não pressupõe que uma criança de 4 anos, ao ficar sem pai se julgue o ‘homem da família’ como já vi acontecer. De alguma forma, a discussão tem tomado formas bastante polarizadas, das quais já extensivamente reflecti neste espaço. Mas eu sou daquelas que não achou o anúncio da gillette particularmente ofensivo a quem quer que seja. Achei-o bonito e motivador e uma forma interessante de pôr na esfera pública os motivos e os desejos de mudança para uma masculinidade diferente.

Mas nem tudo são rosas, senhores e senhoras. A gillette não deixa de ser uma marca a trabalhar em função de lucros e publicidade gratuita. Por isso, não querendo soar demasiado desconfiada acerca das boas intenções de uma campanha tão emocional e actual – para além da intenção de doar milhões para organizações para causas que desconstroem a masculinidade tóxica – má publicidade, é sempre publicidade. Porque é bem verdade, e não querendo soar ingrata, que a gillette ao longo dos anos contribuiu com a obsessão da (ausência de) pilosidade feminina também. Há quem tenha realçado o papel determinante da publicidade da gillette para que as mulheres sentissem os seus pêlos como pouco higiénicos e não estéticos.

Para além de toda a polémica da ‘taxa rosa’ que faz com que as lâminas com uma capa rosa, i.e., para as mulheres, sejam mais caras do que a simples lâmina masculina. Moral da história: se a gillette quer mesmo puxar os limites do género teria que fazer alguma coisa para contrariar a tendência que é produzir lâminas (que têm exactamente o mesmo propósito!) de forma estereotipicamente distinta para o mercado feminino e masculino. Até pode começar com os seus anúncios, colocando mulheres com pêlos (de verdade) a serem rapadas – e não a patetice que é vermos mulheres de pele sedosa a passarem uma lâmina pelo desnecessário. Como vêem ainda há tanto que deve e pode ser feito, que nem um anúncio polémico vem resolver metade dos problemas que a gillette em si poderá produzir.

Só que as empresas são espertas. Hoje em dia o consumo vem agora pautado de preocupações ambientais, conceptuais e éticas e com ele vem o desejo que se produza algum tipo de mudança. Mas, parece-me, que esta lógica não deixa de ser a da atracção para o consumo. Podia ser pior, sempre se provoca alguma discussão. Agora… se produz mudança social de facto – isso é que já é outra história.

23 Jan 2019

Sobre o trabalho sexual

[dropcap]O[/dropcap] trabalho sexual continua a ser um tema demasiado sensível e difícil de ser discutido, afinal, como é que se discute a sexualidade (que é difícil por si só) nos tempos neoliberais e dependentes da produção e crescimento económico? Qual é o valor do sexo, e mais importante de tudo, porque é que tudo precisa de ter um valor? Em Macau, o paraíso dos vícios, a prostituição sempre fez parte da sua história e imagética. Lembro-me bem andar pelo Hotel Lisboa e explicarem-me quem eram aquelas pessoas e o que faziam. Com desdém na voz, claro. Porque é raro falarmos sobre a prostituição sem tomar uma posição moralizadora. Não é por ser o posicionamento mais adequado, mas simplesmente – e infelizmente – porque nos é demasiado natural.

Num outro momento explorei a importância de distinguir o trabalho sexual com o abuso e exploração sexual – que de bem verdade, em muitos casos co-existem. Esta confusão é legítima em certos contextos, mas não o é em muitos outros. A análise do trabalho sexual tem que ser sensível que este ramo de negócio pode ser uma escolha. Há quem queira vender a sua sexualidade para fazer dinheiro – no mundo em que o dinheiro é a única coisa que nos vale para vivermos uma vida digna. A lógica mercantil que está enraizada nas nossas vontades, espíritos e comportamentos é tão profunda que moralizamos a suposta falta de dignidade que é vender o sexo ou o corpo – mas nunca moralizamos a falta de dignidade que o pouco dinheiro proporciona. Porque aí já entra a lógica meritocrática de que ‘quem não tem dinheiro é porque não fez o suficiente para o ter’. Se se vende sexo ou outros serviços sexuais é porque a comercialização de quem somos é uma pré-condição para sobrevivermos no mundo contemporâneo. Por isso é que me parece hipócrita que os moralizantes do trabalho sexual usem a falta dignidade como justificação última para censura e criminalização deste, mas não o façam para criticarem quem, ou os mecanismos, que perpetuam a lógica económica da vida humana.

Agora – eu também acho que é preciso muito cuidado com esta linha argumentativa. Porque apresentando o mundo comercializado e opressor em que vivemos, o único em que faz sentido vender o sexo, o trabalho sexual pode ser visto como a inevitabilidade de uma escrava condição deste sistema. E isto parece-me ser uma visão demasiado simplista do que é o trabalho sexual, porque também o vitimiza. Lá pelo trabalho sexual ser sintomático de um sistema neoliberal que nos obriga a vender o corpo para pagar, por exemplo, as propinas da universidade (como já aconteceu com muito boa gente), talvez seja melhor vermos para além disso. O trabalho sexual não pode ser sinónimo de exploração sexual, nem quando o sistema é o opressor. É necessário proporcionar um espaço de emancipação para que mulheres e homens escolham a carreira que lhes faça sentido. E que estas escolhas laborais tenham condições dignas de trabalho.

Na era da comunicação e partilha, em que as redes sociais dão voz a quem pode tê-la, estive há dias a passar pela conta de instagram de uma stripper que é bastante honesta acerca das tensões que existem à volta do tema. Fiquei seriamente incomodada pela forma como até os seus clientes se posicionam desta forma moralizadora – vitimizando-a ou repreendendo-a. Uma conversa séria e activa envolvendo quem de facto é trabalhador sexual faz falta. Acho que passamos muito tempo a discutir de formas demasiado exclusivas, não envolvendo as pessoas a quem estes temas dizem directamente respeito. Parece-me natural que se pense nos direitos e protecção que este trabalho – que gera imenso dinheiro – precisa e exige.

Se em Macau foram registados 21 crimes de exploração de prostituição até Outubro de 2018 – um crescimento que veio contrariar a tendência decrescente dos últimos anos – é necessário reflectir sobre o que estes números querem dizer. Afinal, como é que o sexo é vendido em Macau, e em que condições? Qual é a expressão de outro trabalho sexual no território? Existirão formas de contornar esta lógica de criminalização – para melhor compreender as experiências do trabalho sexual em Macau?

16 Jan 2019

Bom Sexo Novo

[dropcap]O[/dropcap] bom sexo novo não precisa de ser diferente. Só precisa de ter uns laivos de ambição de que este ano ser-lhe-á dada uma prioridade diferente. Com isto não quero dizer que se deva continuar com o mau hábito de criar resoluções de ano novo generalistas e vagas que não nos levam a lado nenhum. As resoluções – ou melhor – os objectivos do novo ano (que devem ser o mais directivos possível se quisermos ver alguma mudança) devem ser acompanhados de uma reflexão sobre o significado das coisas, e do sexo também. Para além dos objectivos de ano novo que podem ser, por exemplo, ter sexo de satisfação plena, que tal pensarmos sobre o sexo? Da mesma forma que o sentimos, inteiros e coerentes com os nossos desejos.

Digamos que o sexo de 2018 nos desiludiu. Falo por mim como se falasse por todos porque secretamente espero que partilhem da minha opinião. A luta crescente por mais e melhores direitos sexuais mostrou-se não ser uma função exponencial de sucesso, mas uma batalha constante entre conservadorismos e libertinagem.

Culparei a constante confusão de conceitos que fazem com que a família continue a ser um oásis de perfeição que nunca existiu – nem nunca existirá – de homem, mulher, filhos e total honestidade e bom carácter. O pluralismo familiar e sexual ainda é extensivamente contestado, e o sexo também. Nem com o constante lembrete de que os bebés são fruto do devaneio dos genitais por um encontro. O sexo continua a ser difícil até para os mais progressistas. E assim 2018 testemunhou retrocessos incríveis, daqueles que não julguei testemunhar na minha geração.

Talvez 2019 seja diferente. Talvez porque para nos levantarmos precisamos de bater no fundo. Esse fundo pode ser a crescente consciencialização de que o mundo não é nada daquilo que julgávamos. As ditas ‘maiorias’ afinal ainda têm características e desejos menos simpáticos ao sexo. Pior: espalha-se a narrativa de que o sexo é uma escolha ideológica – que contrasta com as decisões de carácter prático e racional. E assim, se o sexo é tido como ideológico facilmente se legitimiza a pouca conversa do mesmo. Mas o sexo não deve ser – nem é – uma contingência de um sistema político. O sexo é uma possibilidade de discussão honesta. Com todos os macaquinhos e medos que possa acarretar.

Mas como não quero andar com este tom pessimista – para não começar o ano com a atitude errada – nem tudo foi mau. Houve algumas conquistas sexuais também no ano de 2018. A Índia descriminalizou a homossexualidade, um passo importante para a possível aceitação da homossexualidade como um facto natural da vida. Na Austrália o casamento homossexual é uma realidade para satisfação de muitos aqueles que já viviam uma vida em união de facto. Enfim, existem alguns avanços palpáveis por esse mundo fora mas tenho a sensação que a conversa do sexo ainda está muito além do que seria desejável. Um bom sexo novo podia ser comprar aquele brinquedo sexual que as reviews garantem não desiludir, ou dar asas à imaginação e concretizar as fantasias mais loucas. Objectivos importantíssimos, de facto. Mas um bom sexo novo precisa de muito mais, já nem sei bem do quê. Precisa de irreverência e revolução, mas também precisa de carinho, afecto e compreensão. Se 2019 nos trouxer um pouco mais de espaço para pensarmos nestes desafios – e tantos outros – que o sexo nos propõe, não seria um mau ano.

9 Jan 2019

Porque precisamos de educadores menstruais?

[dropcap]S[/dropcap]e só há uma educadora menstrual no mundo, deviam existir mais. As razões vão na mesma linha de que deveria existir mais e melhor educação sexual. Educadoras menstruais são simplesmente um pouco mais específicas à aflição mensal de quem possui um útero e que sangra entre quatro a seis dias. Digamos que é uma especialidade necessária para desconstruir certos mitos e tabus. Aqui ficam algumas preocupações que deviam fazer com que as educadoras menstruais se multiplicassem no mundo:

1. Ninguém fala abertamente sobre a menstruação, assim como quem tranquilamente comenta o estado de saúde ou do corpo. Tenho tentado trazer essa temática aos contextos mais esquisitos – com o risco de ter a vergonha a ruborizar a face– porque sei que é necessário para mim e para os outros. O que acontece é que a menstruação = (é igual a) pretexto para humilhação, particularmente nas camadas mais jovens. Por isso não ajuda a inexistente discussão da dita na esfera pública. Porque quando é discutida (lembram-se da Fu Yuanhui que nos Jogos Olímpicos falou das suas dores menstruais?) a surpresa da discussão continua a ser demasiada.

2. Ninguém sabe na verdade o que é a menstruação. Afinal, quem é que percebe o ciclo menstrual e de como este funciona? As pessoas que menstruam passam por fases particulares que lhes definem os 28 dias mensais e, por isso, todo o ciclo terá que ser o foco de conhecimento. É preciso entendê-lo nas formas que transformam o corpo e a mente. Este é daqueles casos que ignorance is not a bliss.

3. Ninguém fala verdadeiramente sobre as dores e confortos da menstruação. Além dos queixumes típicos de dores abdominais, e da caricatura popular que a mulher está ‘nos seus dias’, a verdade é que casos graves de TPM ou de endometriose não são diagnosticados como tal. Há muita investigação feita acerca da forma como o desconforto menstrual é, digamos, normalizado. A suposição é de que todo o mau-estar menstrual é normal e por isso não há nada a fazer se não tomar analgésicos para o aliviar. Só que assim não é dada devida atenção à gravidade de certas menstruações difíceis – e não me refiro à negligência do ‘nível mundano’ mas à negligência institucional e académica também, que tende a pôr de lado estes tópicos e deixam pessoas que menstruam com as suas dores terríveis por diagnosticar.

4. Ninguém percebe de que forma o lixo menstrual (pensos e tampões descartáveis) poluem irreversivelmente o ambiente, e muito provavelmente, a nós próprios. A isto vou chamar a desigualdade social da menstruação. Se numa ponta do mundo começa-se a falar de formas ecológicas para lidarmos com a nossa menstruação, a outra ponta ainda luta por um acesso pleno a produtos de higiene feminina dignos. Apesar de não existirem estatísticas claras, os pensos e tampões comerciais poluem o solo e as águas subterrâneas de forma considerável. O que será, portanto, uma boa saúde menstrual? Como é que equacionamos as questões práticas de poluição quando – apesar de questões extremamente relevantes – há quem nem sequer tenha acesso a produtos – mesmo que os mais rascas e poluentes do mercado? Parece-me que a menstruação tem que ser vista à luz do mundo complicado e desigual onde vivemos mas que pode muito bem ser usada como ferramenta de empoderamento. Principalmente quando estas dinâmicas de poder e desigualdade se tornam claras.

Ainda que tenha perfeita consciência da minha hipérbole ao julgar que ninguém pensa nestas questões da menstruação, tenho cá para mim que muita gente não pensa, muito menos fala, sobre estas coisas. Estes são quatro pontos muito simples e muito pouco desenvolvidos para mostrar que a menstruação atravessa domínios importantes para pensarmos sociedades felizes, como a educação, saúde e até a ecologia. Não vos parece claro que ainda teremos que trabalhar bastante para um mundo feliz e menstruado?

12 Dez 2018

Foge ao Corpete

[dropcap]L[/dropcap]i há dias a história de uma rapariga na Coreia do Sul que começou a planear uma cirurgia plástica ao queixo a partir dos 7 anos de idade. Cirurgia essa realizada posteriormente, e que implicava partirem-lhe o queixo para alinhá-lo de novo. A mesma rapariga teve um momento de epifania e juntou-se ao movimento libertário que foge do corpete – e deixou de gastar 1600 patacas em maquilhagem todos os meses. Não desfez a cirurgia plástica, obviamente, mas agora apresenta-se de forma muito natural, sem os típicos apetrechos e auxiliadores de beleza. Se quiserem outra história mais caricata: na Coreia também, uma apresentadora de telejornal apareceu um dia de óculos na televisão e isso valeu-lhe atenção mediática. Por usar óculos… O simples gesto valeu-lhe um escrutínio feroz de como não estava perfeita ao mostrar-se como a pessoa míope que é.

Sempre existiram expectativas de beleza às quais as sociedades tendem a seguir. A força dessa pressão e a agência individual para seguir ou não estas tendências é que pode diferir. A pressão que existe na Coreia, contudo, é absolutamente aterrorizadora. Daí que o movimento esteja a tomar contornos de uma rebelião – com gloriosas imagens de conjuntos de maquilhagem totalmente destruídos a serem partilhadas redes sociais. Nada contra em querermos sentirmo-nos bonitas/os mas chegar a demorar duas horas para fazer os 20 passos pré-maquilhagem e depois a maquilhagem em si, parece-me um pouco demais. Para quem gosta e consegue, óptimo, mas tornar-se na norma… A intensa propaganda pró-cirurgia plástica, também tem ajudado a normalizar que ‘ninguém nasce bonita, mas que pode tornar-se bonita’. Partindo ossos e sei lá mais o quê. Isto não acontece só dentro da Coreia e com os Coreanos, acho que quase toma proporções asiáticas (em 2017 três mulheres chinesas foram lá fazer cirurgias plásticas e ficaram detidas na fronteira por estarem irreconhecíveis…).

Claro que a pressão ridícula que estas (especialmente jovens) mulheres têm que passar não é fácil de ser resolvida. Primeiro porque se tornou numa norma, uma norma que dita as relações sociais e de apresentação – e estas são difíceis de desconstruir. Segundo, porque há muita gente interessada que a norma permaneça intocável. Como toda a indústria de beleza, por exemplo. Apesar de não existirem estatísticas que o confirmem, parece que os senhores das marcas de maquilhagem estão um pouco receosos desta suposta rebelião. Seria uma chatice deixar de ter a renda mensal que o medo de mostrar caras com imperfeições motiva.

Mas esta fuga do corpete não fica só por aqui… não é só uma luta pela pressão de não apresentar poros na cara, ou de mudar o formato da pálpebra, o problema é que tem havido uma objectificação extrema do corpo feminino ao ponto de se colocar câmaras de filmar em casas de banho públicas. Continua-se na temática do terror, portanto. E isto está a ser tão problemático que na Coreia andam a contratar pessoal para monotorizá-las. O problema é que estas maquininhas são postas e re-postas por breves períodos de tempo, e nem os honrados monitores conseguem ser audazes para conseguirem apanhá-los. A situação é tão extrema que já legitimou manifestações nas ruas. ‘A minha vida não é a tua pornografia’.

Vejo como uma atitude bastante saudável pôr em causa estas dinâmicas. Pelo menos dá a oportunidade discutir aquilo que se julga ‘normalizado’ e poder renunciar certos exageros e a denunciar abusos. Agora as rebeldes só gastam uns tostões para comprar um creme hidratante facial mensalmente. Da supremacia dos cremes branqueadores… isso é que parece que não falam. Ainda.

5 Dez 2018

O não-consentimento

[dropcap]C[/dropcap]uecas sensuais não são sinal de consentimento. Eu sei, a cultura popular faz-nos acreditar que as mulheres só usam um par de cuecas rendilhado e sensual quando estão interessadas em envolver-se com alguém. Mas também sabemos que as mulheres podem bem usar uma cueca rendilhada e acetinada porque lhes apetece. O problema é que as instituições de justiça podem ser um poço acrítico do que as séries de comédia têm a dizer sobre relações humanas e sexuais – como aconteceu recentemente na Irlanda. Digo isto porque é bastante caricaturado na cultura popular – assim de repente vem-me à cabeça a Bridget Jones – o facto de nós, mulheres, querermos estar bem apresentadas antes de um potencial encontro sexual. Por isso não tenho outra forma de julgar as escolhas do tribunal irlandês como caricatas também. ‘Supostamente’ nós temos muito em que pensar antes do sexo. Assim se aplica aos pêlos que devemos arrancar, às roupas sensuais e à roupa interior á là victoria secret que devemos utilizar. E isso inclui uma tanga rendilhada.

O meu coração morre um bocadinho sempre que vejo a acontecer certas e determinadas barbaridades. Primeiro, porque o mundo ocidental é presunçoso ao achar-se um poço de sensibilidade progressista e, segundo, porque a tentativa de mostrar que certas relações de poder estão a favorecer opressores e não os oprimidos parece que continua a não ser óbvia. A clássica culpabilização da vítima sempre me irritou, mas usarem como prova um par de cuecas é absolutamente escandaloso. Sociedades ditas desenvolvidas, o tanas. Perdoem-me o pessimismo, mas lá por se ter taxas de mortalidade baixas, boas condições de higiene e de saúde e um nível de educação mais alto salva-nos parcialmente de um regime patriarcal e opressor. Porque digamos – ao que que querem chamar ter-se usado um par de cuecas como prova para ilibar um violador e, pior, o facto de ter resultado?

Mas eu percebo, sou uma pessoa extraordinariamente compreensiva. E eis a minha explicação para que estas coisas continuem a acontecer: cada um de nós tende a interiorizar certas dinâmicas de relação (sejam quais forem, de raça, género, etnia, idade), ou estereótipos, se quiserem. E há uma representação silenciosa que de alguma forma dita que os homens são os dominadores do sexo e as mulheres as dominadas. Não é por acaso que a violação demorou muito tempo para ser considerada um crime, porque infelizmente era normalizada, e de alguma forma, ainda o é. Por isso algumas pessoas ainda têm dificuldade em perceber como é que alguém pode ser violado se, por exemplo, se encontra numa relação amorosa com essa pessoa.

Eu percebo. Mas é extremamente frustrante a luta contra estas expectativas medievais de como um homem, uma mulher e o sexo funcionam. Porque também não é por acaso que um caso de violação onde a mulher é a violadora e o homem o violado seja muito difícil de encontrar. Não é porque não aconteça – porque acontece. Mas já é pedir muito à imaginação do comum mortal pensar que um homem – o suposto dominador – possa ser uma vítima também.

Quando comecei a ver posts nas redes sociais com cuecas de renda e a dizer ‘não é consentimento’ fiquei seriamente confusa sobre o que se tratava. Talvez porque mesmo que tente compreender as (nossas) mentes ainda envenenadas com expectativas enviesadas, ainda seja ingénua – e ainda me deixo escandalizar. Se o facto de usar cuecas de renda faz com que eu possa ser culpabilizada por uma violação, mais vale não usarmos esse tipo de cuecas de todo. Aliás, o melhor será taparmos os nossos corpos para que o pénis masculino não sinta a tentação da carne. Como se fosse um objecto de mecânica simples – reacção e acção. Simples. Mais vale usarmos o que nos tape da cabeça aos pés? Ou, talvez seja melhor nem sair de casa.

28 Nov 2018

Gino-fobia

[dropcap]U[/dropcap]ma tentativa falhada de neologismo, ou talvez nem tanto.
Estou na sala de espera do hospital, à espera de uma consulta. Estou à espera há imensas horas, porque aconteceu eu ter uma vida e atrasar-me. Se calhar atrasei-me de propósito. O que interessa é que puseram-me no final da fila e agora tenho, quantas, uma dezena de vaginas à minha frente? Não sei, estou à espera há duas horas para a minha ser ‘inspeccionada’ ou verificada, nem sei que verbo é o mais adequado. Não sei porque é que as pessoas à minha volta têm um ar tão relaxado – serei só eu a irradiar tensão e desconforto?

Quem é que no seu perfeito juízo quer tirar as cuecas, deitar-se de costas, abrir as pernas e deixar um estranho mexer-lhe nas parte íntimas? Mesmo que seja um estranho de bata branca, continua a ser um estranho. A verdade que esta é a segunda vez na minha vida que estou numa sala de espera para ver um ginecologista. A primeira foi há dez anos atrás e a coisa correu muito mal. Prometi a mim mesma que não voltaria. O raio da Gineco era bruta como tudo, e por isso acho que… traumatizei. Daí o pobre neologismo no título, que, na verdade, quer dizer ‘fobia de mulheres’. Não é bem o caso, tenho é medo da Ginecologista.
Esta não é a minha história, tenho outra(s). Mas o medo não é incomum: pessoas detentoras de vaginas que tomam calmantes, pessoas que têm que respirar fundo e outras que estão absolutamente tranquilas com toda a experiência. Há imensos factores que podem moldar esta ida – extremamente importante à saúde feminina – à Gineco. Primeiro, a relação paciente e profissional de saúde é uma relação que pode ser complicada. Uma das razões é que nós temos um corpo que o sentimos, mas o outro é que percebe mais sobre o nosso corpo, apesar de não o sentir. Digamos que é uma experiência muito pouco participativa.

Há quem tenha problemas com essa dinâmica e há outros que não. O cerne da questão é que temos que ter a sorte em arranjar um bom médico que nos ouça com atenção – daí as pessoas detentoras de vaginas procurarem recomendações. Segundo, continuamos a anos luz de perceber bem a saúde feminina, aqui no reino do conhecimento diário e mundano. Há coisas do conhecimento técnico que não passam para o reino dos comuns mortais. Vivemos com a sombra do cancro que nos assola frequentemente – e por isso a insistência em campanhas de sensibilização para se tomarem medidas e rastreios como mamografias e citologias. Mas há tantas outras condições que podiam ser mais discutidas. Como por exemplo HPV (e as suas verrugas vulvares), herpes genital, cândida, vaginites e vaginoses.

Ir ao médico ginecologista regularmente é extremamente importante porque o nosso corpo detentor de vagina – cíclico – passa por muitas transformações e desafios ao longo do tempo. Mas para quem tem medo de ir, há vários dilemas que se criam. O que é que é melhor? Eu não encarar a condição da minha vagina ou submeter-me a uma carga de nervos aterrorizadora? Parece uma decisão simples, mas percebo perfeitamente que não seja.

Acho que o primeiro passo é compreender este terror. Há imensa gente que tem medo de ir ao dentista. Mas por alguma razão, fala-se mais disso do que do medo da Gineco. Uma pesquisa rápida em bases de dados em artigos científicos mostra-me que há mais literatura desenvolvida sobre o medo do dentista, do que o medo do Ginecologista – que sugeriu zero resultados. O medo do urologista também sugeriu zero resultados – apesar de ser a especialidade mais odiada pelos homens. Parece-me bastante natural que estas idas a especialistas do órgão sexual reproductor não sejam fáceis pelo simplesmente facto de já ser difícil falar sobre o sexo, educação sexual, direitos sexuais e reprodutivos no espaço público. Tenho cá para mim que talvez deva ser um tópico mais discutido, se não for na academia, que seja entre amigos ou com profissionais de saúde. A ‘ginecologio-fobia’ será real?

22 Nov 2018

Pra lá do sexo

[dropcap]S[/dropcap]exo é sexo. E há alturas que o sexo não é só sexo. Isto claramente reflecte a minha posição não binária de que a cabeça e o corpo não são duas entidades separadas. A verdade é que tudo afecta tudo, para ser assustadoramente generalista. O sexo leva com os nossos desejos, anseios, capacidades íntimas, medos e terrores. Se há gente que não vê isso talvez seja porque não lhe presta a devida atenção, porque gosto de acreditar que isto faz sentido para alguns, ou talvez para muitos.

O corpo que carregamos não deve ser visto como um simples organismo biológico. A vida tem-me ensinado que corpo reage às ameaças do corpo e às da mente também. Apesar de alguma investigação apontar para a complicada relação corpo e mente, há outra que diz que não está cientificamente provado que o stress, por exemplo, afecte negativamente a saúde física. Com as dificuldades pela libertação do sexo das amarras de (tantas) sociedades até ditas progressivas, apercebo-me que a libertação sexual – como uma actividade não demonizada e de satisfação e prazer pessoal e/ou colectivo – põe em causa o que as sociedades modernas muito forçosamente querem manter: a exaltação do físico, biológico, mensurável e real em detrimento da mente, do pensamento, da sensação ou da emoção. Parece que estou a colocar isto de forma simplista para insinuar uma resposta simplista também, mas não é esse o objectivo. Não estou a defender a recusa total da procura do que é real. Se tento simplificar certas ideias é só porque quero torná-las inteligíveis.

Já aqui referi como há estudos que mostram que a disfunção sexual masculina pode ser tratada com terapia, e este é só um exemplo. Esta ideia de que a mente precisa de atenção também, é de alguma forma polémica, mesmo que não seja visível. Isto porque o legado do iluminismo e da era da razão arrasou com qualquer forma mais experiencial dos fenómenos. Virámos a atenção para aquilo que é cientificamente relevante para a nossa existência – como se nos regêssemos por forças e vectores energéticos como os da Física (não sei se estarão cientes que há quem diga que a psicologia é ciência e há quem diga que não). Contudo, esta não é uma atenção descabida, principalmente nos dias que correm de ‘pós-verdade’, em que não há nada que nos valha senão a procura incessante pelos factos e pelas medições objectivas. Só que essa obsessão traz outros problemas: como é que medimos, resolvemos e compreendemos aquilo que não vemos? Será que a invisibilidade reduz-se à pura inexistência? Claro que me farto de falar do sexo e do prazer sem limites que só é atingido quando alinhamos o nosso corpo, a nossa mente, e o nosso espírito, se quiserem. Porque o sexo serve de metáfora para tudo, o sexo como produção biológica, cultural e social é uma dimensão entre muitas que nos torna absolutamente humanos. A humanidade que pressupõe aceitação, amor e tolerância, características essas impossíveis de medir com régua e esquadro.

Estou a usar o sexo como pretexto para falar da saúde mental porque, na verdade, vejo mais incentivos à não-aceitação do que à aceitação. Quando queremos carregar um corpo sexual ele não precisa de ser só um corpo, precisa de disponibilidade para aceitar tudo aquilo que o sexo quer ensinar-nos. E frequentemente esbarramos com as caixinhas definidoras do que é aceitável. Ai os pêlos, ai as celulites, ai as vulvas, ai os pénis, ai as expectativas heteronormativas. Não precisamos só de um corpo – precisamos de coragem para mostrar um corpo. Precisamos de coragem para abrir a possibilidade de criar e ser intimidade. Já que foi o dia da saúde mental e eu não opinei atempadamente, aqui vai tardiamente. O sexo já foi a cura dos males neuróticos mas também pode ser a causa e processo dos mesmos males. Já que o sexo nos despe, literal e simbolicamente, só espero que comece a ser óbvia a ligação que o nosso corpo precisa de prazer, e a nossa profundidade psicológica também.

O sexo é só mais um pretexto, entre muitos, para escrever e reflectir acerca da saúde mental e do bem que nos fazia se tivéssemos mais espaço para cuidar do nosso íntimo ser.

14 Nov 2018

Bruxas

[dropcap]J[/dropcap]á que foi Halloween – isto é, em belo português, o dia das bruxas – não há nada como falar destas criaturas (míticas?) do imaginário ocidental. Quem são elas, onde estão e o que fazem? Teorias não faltam. A teoria feminista tem sido particularmente prolífica na compreensão do desenvolvimento desta imagem da bruxa, que é feia, tem uma verruga no nariz, e usa um chapéu pontiagudo. Como é que se diz? ‘A chover e a fazer sol, estão as bruxas no farol a comer pão mole’?

Dei de caras com esta imagem da bruxa, primeiro, porque o dia das bruxas foi na semana passada e, segundo, porque há quem defenda que a bruxa tem muito que se lhe diga ao feminismo e ao sexo. É possível que caça às bruxas tenha acontecido pela não aceitação da emancipação feminina naqueles tempos sombrios. Parece confuso, até porque ninguém falava de emancipação das mulheres nessa altura, mas há quem ache, as ditas feministas ‘radicais’ de hoje em dia, que a bruxa representava a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que se atrevia a viver sozinha, a mulher que envenenava o patrão e incitava a revolta, que era parteira, que percebia dos meandros do sexo. Nada disto era desejável à figura feminina da época (também não acho que seja agora). Na altura muitas mulheres (e homens também) foram queimados na fogueira acusados de bruxaria. Não se sabe ao certo quantas pessoas poderão ter morrido durante três séculos, mas há várias estimativas: há quem diga 40.000, há quem diga 200.000. Vem-me automaticamente à cabeça a imagem de pessoas enfurecidas com tochas em fogo na calada da noite à procura de quem culpabilizar os males do mundo. A ‘caça às bruxas’ é sempre utilizada como o exemplo perfeito de histeria em massa. O movimento #metoo já foi acusado de ser uma caça às bruxas, neste caso, aos bruxos da misoginia – mas isso não interessa nada para aqui.

Naqueles tempos sombrios as mulheres era consideradas mais fracas e susceptíveis à persuasão diabólica. Muitas das mulheres acusadas de bruxaria eram pobres, velhas e viúvas, na menopausa ou no pós-menopausa. Contudo, as bruxas surgem e surgiram de muitas formas e feitios, e por mais que se considere ‘radical’ o feminismo que tenta perceber que contornos esta caça as bruxas teve, as bruxas não deixam de ser uma questão bastante feminina. E parece que todos nós, uns mais do que outros, temos que lidar com a bruxa que existe. A psicologia do Jung analisa extensivamente o arquétipo da bruxa como a necessidade intrínseca de transgressão – que é socialmente vista como perigosa, malévola e indesejável. A bruxa, que é equiparada com a puta interior, vive à margem da sociedade, e – em vez de ser fruto do que quer seja que vivemos ou possuímos na nossa genética – é um produto civilizacional.

Conseguiremos ir além da dicotomia da princesa e da bruxa das histórias de encantar e das mitologias? Como é que nos faz bem, a homens e mulheres de igual forma, incorporar os valores e fantasias das bruxinhas que outrora, e hoje, tememos tanto? A nossa bruxa, embora difícil de entender, é bastante normal. O problema é que a sexualidade, a perversão, e a diabolização do sexo que compete à bruxa incorporar, precisa de um espaço de compreensão. Mas quem é que tem coragem de dançar com a bruxa, e com o seu lado destrutivo e negro? Só aquelas e aqueles que têm a coragem de aceitar o maior desafio humano. Aprender a tocar, e a ritmicamente mexer com aquilo que mais nos aflige e nos assusta porque sabemos (ou pelo menos devíamos saber) que a bruxa não é nada mais do que um bocadinho de nós próprios.

7 Nov 2018

Beijinhos aos avós

[dropcap]O[/dropcap] que se torna viral, torna-se viral, não há muito a fazer. Agora, porque é que certas coisas ‘viralizam’ ou porque são escrutinadas até ao tutano é que pode ser obra de algoritmos, ou talvez de pura sorte ou de puro azar. Falo-vos do que aconteceu na semana passada na televisão portuguesa: alguém proferiu uma ideia que nem achei assim tão polémica ou problemática quanto isso. A questão da obrigatoriedade na infância tem muito que se lhe diga, no exemplo em questão, o intuito era o de alertar para estarmos atentos à auto-determinação e agência infantil. O que poderia ter surgido como uma discussão interessante acerca de como ensinar desde cedo acerca da consciência do corpo e dos limites que lhe damos, ‘viralizou’ para uma conversa que confundia educação com obrigação – e de como comer legumes, ir à escola, ser-se boa gente ou ter-se bons modos e dar beijinhos de cumprimento a quem achamos por bem, é resultado directo de um pulso firme. O tal da obrigatoriedade que julgamos ser a única estratégia educativa. A discussão não foi muito para além disso, mas não deixa de ser uma discussão importante para se ter na esfera pública.

Contudo, se a ideia foi polémica não foi por ser particularmente chocante – valeu-lhe uma combinação de comunicador e comunicado que não caiu nas boas graças de muita gente. Como este alguém não cai nos moldes ideais do homem tradicionalmente português, e da família tradicional portuguesa, muito rapidamente se assistiu a uma sede de sangue e de insulto – e a uma forma de discutir ideias muito fechada, categórica e teimosa. Isto não aconteceu por acaso, foi tudo graças a um jornalismo de baixíssima qualidade que faz uso de formas sofisticadas de bullying (sim, tenho a certeza que esta é a palavra certa) e que se aproveita de uma moralidade barata, para descredibilizar alguém só porque está fora da norma. O que me chateou mais nisto tudo foi a avidez pela ofensa e pela ameaça – sim, o protagonista desta história viu a sua página na rede social a ser saqueada pela indignação popular, e não foi feito de forma simpática, muito menos construtiva.

Perguntei-me se, trocando o comunicador por alguém mais normativo, em todos os sentidos do sexo e do género, a reacção teria sido diferente? A pessoa em questão é poliamorosa, vive numa constelação familiar, usa eyeliner e é professor universitário. E esta combinação começa a ser perigosa e facilmente descredibilizada porque representa uma ‘elite’ de liberdades excepcionais. Já conhecemos bem o fantasma que o sexo e a dita ‘promiscuidade’ representa. Mas o que aprendi com esta história é que há quem nem queira saber de intelectualismos, muito menos quando a intelectualidade põe em causa aquilo que achamos que o mundo é. Aliás – porque é que ouviríamos um promíscuo falar sobre como educar uma criança?

Estamos repletos de vieses e a pouca consciência destes insiste em perpetuar uma forma de pensar muito pouco reflexiva. O mesmo processo que desqualifica a opinião de alguém que percebemos como diferente é o mesmo que vangloria quem julgamos um exemplo de valores contemporâneos de sucesso (sim, estou a referir-me ao menino de ouro do futebol). Na nossa inocência julgamo-nos imunes, julgamo-nos cegos à cor da pele, etnia, orientação sexual ou género. Mas a prova derradeira de que somos realmente afectados por tudo isto é de que frequentemente discutimos as pessoas em si e não as suas ideias (eu sei que parecem uma coisa só – mas uma coisa é discutir educação infantil e outra é falar das escolhas relacionais do interlocutor). Só para reiterar – eu percebo que seja difícil discutir sexualidade, ainda mais a sexualidade infantil. Mas crianças devem, sim, ter a oportunidade de serem ouvidas e compreendidas nos limites que querem definir para si mesmas. Nada disto invalida o amor, o carinho e a ligação que se estabelece entre netos e avós e outros familiares – absolutamente nada (caso duvidassem que isso estivesse em causa). Acho que este episódio foi informativo, não pelo objecto de discussão em si, mas pela indignação que gerou e todos os movimentos subsequentes. Só vos digo que ainda temos muito que caminhar para que as sexualidades e as gentes que falam abertamente sobre elas não sejam ameaçadoras – e é urgente repensar as nossas estratégias de comunicação e de disponibilidade para com o outro.

24 Out 2018

A estúpida Cistite

[dropcap]A[/dropcap]s mulheres sofrem de infecções urinárias, mais do que os homens. Isto não é porque as mulheres têm que pagar pelo pecado original, é um simples mau cálculo fisiológico. As mulheres têm uma uretra que podia estar numa posição e lugar mais conveniente para que não sofressem deste mal, mas pronto, o nosso corpo não pode ser perfeito em cada ângulo ou centímetro.

Apercebi-me que nunca utilizei este espaço para falar das estúpidas das cistites quando até é um tópico de importância para o sexo e para a saúde feminina. Acontece, também, que sou uma especialista no tema porque já tive à volta de 25 chatas (e muito dolorosas) infecções. Se não estão convencidos que a fenomenologia da coisa possa trazer alguma sabedoria a ser partilhada, tenho a dizer que também nunca li tantos artigos científicos de medicina – sou detentora de conhecimento de causa.

Pensei que era a única no mundo a padecer do mal das estúpidas e recorrentes cistites quando comecei a conhecer mais amigas que estavam na mesma situação, e de amigas passou a colegas ou vizinhas. Umas com situações piores que outras, umas com caixas de antibiótico nas carteiras, porque nunca se sabe quando uma estúpida cistite vai aparecer, – frequentemente dei por mim a pensar porque é que não se fala mais das infecções urinárias?

Aparentemente, dizem as estatísticas médicas, é normal uma mulher ter uma estúpida infecção por ano – se tiver três num ano, é melhor procurar um especialista – mas se tiver uma por ano, está dentro da normalidade. Ora, eu não acho normal ter uma infecção urinária por ano, da mesma forma que não é normal as mulheres sofrerem de dores menstruais – por vezes tão intensas quanto um ataque cardíaco – todos os meses. Não vou entrar na batalha que ainda tem que ser travada por mais respeito pela saúde feminina (tanta investigação que diz que os profissionais médicos desconsideram queixas das mulheres…) mas focar-me-ei nas estúpidas cistites. Surpreendentemente ou não, não há grandes veículos informativos que falem sobre estas coisas abertamente e de forma clara e fidedigna.

As gentes de outrora alcunharam de cistite da lua-de-mel as infecções urinárias que as mulheres frequentemente tinham depois da noite de núpcias. Isto porque a probabilidade de ter uma infecção 24 ou 48 horas depois de uma relação sexual com o (ou um novo) parceiro é significativa. Há alguma investigação (pouca) feita para perceber o que se pode fazer para evitá-la, mas primeiro uns esclarecimentos: uma cistite pós-coito não é uma IST. Esta acontece porque a fricção genital ajuda a que bactérias que temos naturalmente pelo corpo possam viajar pela uretra feminina, que é pequenina e que está perto de todo o movimento. Podia acontecer o mesmo com os homens, mas eles têm uma uretra de 15cm e as mulheres de 5cm, daí a facilidade da pequena viagem bacteriana. Para evitar a invasão indesejada, há quem diga que não há nada como ir fazer um xixi depois de toda a actividade – golden showers? Estejam à vontade. A melhor forma de prevenir uma infecção, no geral, é fazer muito xixi, porque assim não se criam as condições ideais para as bactérias se multiplicarem dentro da bexiga. Daí também ser problemático segurarmos a urina durante muito tempo – mas enfim, como eu tenho material para escrever uma tese de mestrado sobre isto, não vou prolongar-me.

Não é só o sexo que aumenta a probabilidade de uma infecção, espermicidas, por exemplo, podem despoletar uma crise, produtos de higiene feminina muito agressivos, também. As mulheres, principalmente, vão sofrer transformações naturais que as vão tornar mais susceptíveis a estas chatas cistites no pós-menopausa. É preciso ter em atenção também que muitas vezes as inflamações da bexiga têm uma sintomatologia muito semelhante à infecção, mas que não precisam de antibióticos para serem tratadas. E eis que entra em cena o arando vermelho – o cranberry – a baga melhor amiga do sistema urinário! Bastante eficaz no tratamento das inflamações (e não das infecções propriamente ditas, elas precisam sempre de antibiótico) e funcionam muito bem na prevenção de infecções recorrentes.

Há mais dicas, mas vou ficar por aqui. A todas as mulheres (e homens) que sofrem de infecções da bexiga, aqui me apresento em solidariedade.

18 Out 2018

Sobre o medo, a violação e o Nobel

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stou honestamente cansada. Estou cansada de ver o mundo nos meus olhos de mulher, que podiam ser uns olhos quaisquer. Cansada da forma leviana como se nomeiam putas. Cansada de tocar a cassete, rebobinar e tocar a cassete de novo. Cansada de ter medo que este mundo esteja a trnasformar-se de forma dramática e que a humanidade que outrora julgava garantida, é afinal altamente contestada. E este cansaço destrói o espírito, o desejo ou a esperança. Pelo menos destrói-me um pouquinho de cada vez. Nem o Nobel pela Paz me trouxe conforto.

Mas eu admito a culpa, como já admiti antes. Admito a minha pouca tolerância em perceber como é que as mulheres são sempre as culpadas e manipuladoras em casos de violação, como é que a cultura do estupro é banalizada, de como discursos machistas, homofóbicos e racistas são apoiados pelas massas. A culpa também é minha, mas não entendo se foi a minha inactividade política ou a minha rejeição ideológica. Não é uma dificuldade particularmente minha, leia-se, as comunidades intelectuais foram apanhadas de surpresa também. Aquelas elites que passam o tempo a pensar nestas coisas estão na dúvida sobre o que é que está a correr mal neste mundo.

A primeira assumpção é de que a ignorância impera. Ignorância face aos factos e a ausência de uma educação formal acerca de como funciona a sociedade, a política ou o sexo! – não estava a brincar quando escrevi na semana passada que o que falta é mais e melhor educação sexual e de género nas instituições formais de educação e não só – mas o problema do argumento ‘falta de educação’ é que é condescendente. E quem é que gosta de condescendência? Ninguém, porque assim que alguém assume a ignorância do outro, mais cedo ou mais tarde este outro levanta as garras de raiva e contestação. Porque as pessoas têm egos. Mesmo para aqueles que adoram discutir, discutem para quê? Para descobrir quem é que tem razão, e ninguém quer ser aquele que é o estúpido que não sabe nada. Isto é um problema que afecta todas as partes. Se há coisa que a bela da internet trouxe foi a possibilidade de ter acesso a informação – mas há quem tenha estragado isso também.

A segunda assumpção é de que as pessoas são machistas, violentas e isentas de um pingo de humanidade. Ninguém gosta de ser chamado uma coisa tão verdadeiramente feia. Cada um de nós protege-se da melhor forma que podemos, e se isso implica ter que reconstruir as nossas realidades colectivamente para que assim sejam, não vejo melhor justificação para o pensamento construtivista – e com isto eu não quero dizer que estamos deliberadamente a criar mundos paralelos. O que acontece é que cada um de nós vive nas nossas bolhas, vivemos na ilusão de que, por exemplo, a violação é categoricamente definida de vítimas e violadores de características particulares. Vivemos na ilusão que os conceitos são universalmente definidos mas não o são. Depois deparo-me com o choque que é um acordão judicial português de ‘sedução mútua’ num caso de violação, toda a história do ‘quarto de Las Vegas’ ou o candidato a Presidente que diz que os homossexuais são resultado de ‘falta de porrada’. Se calhar não sair da minha bolha é minha responsabilidade, se calhar não ter saído da bolha não me preparou para estas notícias destruidoras de espírito, não sair da bolha torna-me incapaz de perceber verdadeiramente o que se passa.

A Nadia Murad e o Denis Mukwege ganharam o nobel da paz pelo seu trabalho na sensibilização, prevenção e reparação da violência sexual em contexto de guerra. Por isso como vêem, nem tudo é terrível. Só é desafiante ser um idealista nos dias que correm.

10 Out 2018

#elenão

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]le – não. Não é um ele qualquer, é um ele muito particular do contexto brasileiro. Um tal de Bolsonaro candidato à presidência. Pois, ele não. Dia 29 de Setembro várias mulheres (e homens) juntaram-se para reclamar que não o querem. Porque segundo certas pessoas ele é homofóbico, machista e racista.

O movimento #elenão, liderado pelo grupo de mulheres contra Bolsonaro, ecoou pelas ruas no último sábado em, pelo menos, 18 capitais de estado, outras 65 cidades no Brasil, e também em Portugal. Mas existe uma oposição também, que não é de admirar. O #elenão tem um #elesim ou um #mulherescombolsonaro de resposta. A guerra política também é digital. Há ataques por hackers, há ondas de popularidade que tentam ser travadas, há trolls da internet a causar reboliço na secção de comentários, de posts, de videos, de artigos do jornal. Estão todos em pé de guerra porque uma secção da população o acha absolutamente desadequado para o papel de Presidente, e uma outra secção acho que aquilo que poderia ser desadequado, não o é de todo.

Até o Stephen Fry já veio à comunicação social pedir que os brasileiros ponderem muito bem os seus candidatos nas presidenciais que se avizinham. Entrevistou Bolsonaro em 2011 a propósito do esforço do dito em não permitir que passassem uma legislação referente à educação para o género e orientação sexual nas escolas. Este era um pacote, um ‘kit gay’ como eles lhe chamavam, para contribuir para a prevenção da homofobia e a violência associada, nas camadas mais jovens. O ‘gringo’ do Fry teve dos momentos mais estranhos de sempre porque não é fácil falar com um homofóbico que não se considera homofóbico. Sendo ele homossexual, ainda mais estranho ficou quando o Bolsorano diz que o que é preciso é uma marcha do orgulho heterossexual e que ele não seria convidado!

O que uma secção do Brasil julga é que este candidato traz resoluções simples para temas complicados, como o de tentar resolver o assustador aumento da criminalidade no país armando civis. E isso fá-lo popular, isso e não só, porque ele fala ‘francamente’ sobre temas que uma secção da população sempre quis discutir mas sentia que o ‘politicamente correcto’ esquerdista não lhes permitia. O pôr em causa um kit gay nas escolas, é um dos exemplos. Em vez de fornecer mais e melhor informação sobre a diversidade sexual, muitos julgavam que esta era uma estratégia de ‘recrutamento’ sexual para tornar as crianças tão naturalmente hetero e cisgénero em homossexuais. Essa secção do país encontrou o seu representante, que diz coisas polémicas e duvidosas, em plena esfera pública, e que acha que educação sexual inclusiva está a produzir homossexuais. Fantástico.

Há boas hipóteses que ele possa tornar-se no próximo Presidente do Brasil – e digam-me lá se tudo isto não vos faz sentir um grandessíssimo déjà vu? A pergunta que permanece sempre – sempre – é quem é que vota nestas criaturas que parece que só disparam um discurso de ódio, violência e exclusão? Como (e porquê) é que a democracia se torna perigosa para si própria? A pergunta mantém-se mais pertinente do que nunca.

E se a solução fosse uma boa educação para o sexo? Leram bem. Vou atirar agora com uma proposta fantasiosa a partir do testemunho de um ex-republicano norte-americano que agora virou democrata. Eu perguntei-lhe o que tinha acontecido para virar a moeda. Moeda esta bem delimitada nas suas caixinhas políticas – e ele disse-me que foi uma aula sobre género e sexualidade na faculdade. Isto não é fabuloso? O pessoal tem medo do sexo e das suas variâncias porque o sexo é transformador! Porque obriga a descobrirmos coisas sobre os nossos corpos, as nossas relações e sobre como vemos o mundo, e tudo isto é inerentemente político. Um ex-republicano que nos dias que correm poderia muito bem ter votado Trump não o fez porque aprendeu o sexo na Universidade. O sexo intelectual, o pensante, ou o reflexivo. Vou continuar a ter esperança de que o sexo saudável é o que vai mudar o nosso mundo.

#elenão

3 Out 2018

Riso do sexo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] comédia é um veículo informativo. Já em português se diz que ‘a brincar, a brincar é que se dizem as verdades’ e não deixa de ser aqueles dizeres populares que não são ridículos de todo. Há teses académicas que provam que os temas difíceis são acompanhados de gargalhadas.  Alguém se lembra da risota que era, dentro da sala de aula, quando se falava do aparelho reprodutor?

Não vou falar de qualquer tipo de riso, mas do riso profissional, e nem é da comédia na sua generalidade, mas gostaria de vos falar da Hannah Gadsby e do seu último espectáculo de stand-up comedy. Para quem está familiarizado com os recantos da internet com facilidade encontrará a gravação desta performance, que se chama Nanette. Neste exercício de comédia a única voz que se ouve é a de Hannah, uma mulher lésbica que não está muito preocupada em mostrar-se particularmente feminina. Esta é uma mulher que já sofreu na pele a homofobia generalizada e internalizada nas nossas sociedades contemporâneas e, através destas experiências de violência e de incompreensão dos outros à sua volta, faz comédia. Porque a brincar a brincar é que se confessam a pior das verdades sobre nós e os outros. Não quero destruir a experiência de quem tenciona ouvi-la de viva voz neste espectáculo – que se ainda não o disse, recomendo vivamente! -, mas ela vai mais longe do que gozar com ela própria e com a sua experiência, ela põe em causa a experiência da comédia: dos artistas às suas audiências. Se o riso serve para libertar a nossa tensão e dificuldades,  será que o faz de forma saudável? Será que uma mulher lésbica que conta as suas experiências (muitas delas traumáticas) num tom jocoso, revela que estão resolvidas? E a audiência, continuará a perceber a gravidade do preconceito diário de quem não se conforma com uma ‘dita’ norma?

Por isso este espectáculo não é só um desabafo de como as sociedades falham continuamente na tentativa de igualdade ou liberdade de expressão de género e de sexo. A comédia urge em ser repensada, na forma como os artistas e as suas audiências dão sentido às suas vidas sexuais, e à, infelizmente, violência que muitas destas gentes estão sujeitas. Qual é, afinal, o papel do riso? Uma forma fácil de lidarmos com o nosso desconforto? Uma forma de entretenimento? Sem dúvida que é uma arte, mas como em tudo o que nós, seres sociais, tocamos, será que é crítica e politicamente suficiente?

Este é um espectáculo de comédia, uma reflexão e uma zanga com o mundo. Todas as palavras proferidas são feitas com a maior honestidade, e isso é raro de se ver. Honestidade, humanidade, e uma pinta de humildade!  É por isso que este é um espetáculo estrondoso, porque é engraçado, intelectualmente bem construído, e brutalmente honesto. E não sei se isto tudo foi deliberado para ser um sucesso ou não, mas a verdade é que a conclusão da tão bem construída verborreia da Hannah, é de parar de fazer comédia.

Partilho com ela a preocupação do que fazemos com as palavras, e o que fazemos com o nosso gozo ou o riso. Não que ela tenha uma conclusão brilhante de como será a melhor forma de falar acerca dos homens que a violaram, ou da homofobia que lhe valeu bofetadas com negras e dores por todo o corpo. Mas ela, com toda a sua honestidade, sabe que gozar com isso não está a fazer-lhe bem, e também sabe que não é sua intenção, gerar um ciclo de ódio que junte as massas. O ódio (e dor) que sente são resultado da experiência pessoal nesta infeliz sociedade. O que é claro para ela é que quer ressoar a quem lhes faz sentido, e a quem não faz também, mas não quer ser um veículo para um movimento de ódio partilhado. Porque o ódio não precisa de mais ódio para ser resolvido, precisa de gargalhadas, claro. Mas no mundo complicado em que vivemos, nem sabemos o que uma ‘boa’ e inofensiva gargalhada poderá ser. A Hannah Gadsby, uma especialista do riso, deixou de o saber.

26 Set 2018

Até já, Amor

[dropcap style≠‘circle’]S[/dropcap] obre as discussões amorosas e os desencontros emocionais sabe-se demasiado e sabe-se pouco ao mesmo tempo. Como se fosse um mistério que, por mais que seja escrutinado publicamente, só mesmo o escrutínio íntimo e pessoal poderá contribuir para qualquer coisa à confusão da relação que tentamos manter. Isto porque desenvolver um projecto comum entre duas ou mais pessoas não é tarefa fácil.

Os momentos de verdadeiro encontro são muito especiais. Mas como todos nós sabemos, a magia é um instante e não um estado perpétuo de ilusão. Quando descobrimos o amor descobrimo-nos a nós também, por mais estranho que pareça. Como se os nossos apetites em conjunto com os do(s) outro(s) aflorasse os nossos medos e anseios – e tudo isto é normal, tudo isto é perfeitamente normal. Não fosse o amor e a paixão os temas mais discutidos pela humanidade, nas artes ou, simplesmente, no dia-a-dia, se quisermos ser mais mundanos. Contudo, felizmente ou infelizmente, há alturas em que o amor simplesmente não está lá. Perde-se no meio de uma discussão, vai dar uma volta e vemo-nos sem perceber exactamente o que é que isso faz da nossa relação, ou de nós próprios. Vemos o amor a ir a algum lado e não sabemos se é um ‘até já’ ou um ‘adeus’ definitivo. É uma dúvida legítima, especialmente para os mais inexperientes nas curvas e altitudes do amor. Porque como alguns de vós saberão, o amor é uma maratona sem fim, sem meta de chegada, uma corrida de prazer e de resistência – de persistência.

Iludimo-nos a julgar o amor, constantemente. Não é incomum encontrar amigas e amigos à espera do amor perfeito, aquele que acontece por pura magia. Sem esforço, sem nada. Mas digamos que esta é uma maratona com obstáculos, com as nossas dificuldades emocionais, intelectuais, sexuais ou culturais, com momentos de desencontro que exigem capacidades de comunicação e compreensão extraordinárias. Quais serão as habilidades incríveis que fazem com que um relacionamento perdure no tempo. Há quem recorra a terapia de casal como um recurso importante – e é. Mas em que condições?

Dizem os especialistas – e isto já circulou na imprensa portuguesa pela terapeuta de casal Rute Agulhas – que quando se procura um terapeuta de casal talvez já seja tarde demais. Vou-me dar a  liberdade de coagitar possíveis razões: por exemplo, a possível total incompreensão do que a terapia de casal possa ser ou  o estigma que pode acartar ir a um terapeuta.  Isto tudo combinado com a falsa expectativa que os casais (ou outras constelações familiares) estão em perfeita homeostasia e protegidos por qualquer alteração na sua dinâmica, faz com que possa não haver um meio termo saudável em que haja espaço para mudança e aprendizagem ao longo do tempo. É como se os problemas e as suas resoluções, fossem necessariamente vistos como patologizantes ou, ainda pior, a derradeira prova de que o amor eterno não existe.

Os casais recorrem à terapia de casal quando já é tarde demais porque apesar de isto lhes oferecer ferramentas que podem melhorar as formas de comunicação, o amor pode já lá não estar. O amor é resiliente mas delicado ao mesmo tempo, nas palavras de uma amiga, ‘não se está simplesmente num relacionamento, escolhe-se estar num relacionamento’. Pode soar a pouco romântico, mas o amor é assim mesmo, um estado ao qual se trabalha delicadamente. Não é como se a terapeuta fosse capaz de injectar doses de amor para um salvamento urgente. O amor é uma escolha mais ou menos deliberada. Quando o sentimos a perder-se o que fazemos? Corremos atrás dele ou deixamos a nossa inactividade afectar a nossa possibilidade de amar, e do outro, amar-nos de volta?

19 Set 2018

BDSM

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]DSM é a sigla oficial para a prática de bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo – sim, o acrónimo inclui todos estes princípios. Esta forma de expressão sexual está incluída na lista de parafilías da DSM, o manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais. O que (erradamente) pressupõe que quem pratica BDSM é doente mental.

Durante muito tempo a psicanálise tentou explicar as motivações que levam as pessoas a procurar prazer na dor e tudo apontaria para as experiências traumáticas nos indivíduos, na infância ou na adolescência. Mas têm existido algumas tentativas para desconstruir esta perspectiva patológica. A investigação tem mostrado que os praticantes da BDSM até nem são assim tão diferentes do resto da população (apesar de mais investigação ser necessária), em miúdos, o que é que isso quer dizer? Que na realização de testes psicométricos da personalidade, estes praticantes encontram-se na média populacional.

Então, se a BDSM não está tão fortemente associada com a psicopatologia e com as explicações da psicanálise, porque é que as pessoas sujeitam-se a ser dominantes ou submissas no jogo da dor e prazer? De acordo com a autora Pamela Connolly, ainda estão por explorar diferenças na fisiologia individual, i.e., de como as endorfinas conectam a dor e o prazer, e a sociologia que pode estar por detrás da psicologia do fenómeno, de como as normas culturais e as sanções sociais podem influenciar a procura de universos e personagens alternativas. Os interessados em BDSM ou os já praticantes que não se apoquentem, porque sentir prazer com beliscões nos mamilos não é sinal de um estado emocional e psíquico terrível per se. Há quem sugira que, na verdade, esta recriação é saudável e funciona como um mecanismo de coping para as nossas frustrações e dificuldades nos jogos de poder a que estamos frequentemente sujeitos, as do nosso dia-a-dia.

Não encontrei estatísticas para uma possível percentagem de praticantes, mas diria que não são poucos, todos com uma grande variabilidade de desejos e experiências. Não será surpreendente, contudo, que um sair do armário da BDSM seja difícil (e o consequente registo em algum tipo de estatística). Os estudos apontam para uma falta de sensibilidade por parte dos elementos da sociedade em geral, e dos médicos, enfermeiros e outros técnicos de saúde em particular, acerca destas práticas de dominação e submissão – e esta falta de sensibilidade contribuem para um loop marado de desentendimento, estigma e preconceito. Na cultura popular até que começam a existir referências ao tema, mas isso parece desconstruir pouco. Estive a ler a opinião de praticantes BDSM face ao grande filme que inseriu no imaginário colectivo sexual uma miúda virgem que se inicia no mundo do sexo e das amarras numa masmorra com um tipo jeitoso – sim, o fifty shades of grey – e eles não estavam contentes. Isto tem que ver com a recriação do processo de sedução no filme, que ficou muito longe da complexidade da experiência em si (mas desde quando o cinema popular retrata a complexidade da vida, anyway?).

Estas representações do sexo, e do BDSM em particular afectam as nossas realidades sociais. O problema é que é fácil assumir que só alguém muito maluquinho é que iria bater, e pior ainda, deixar que o batessem em contexto sexual. Daí ser um tópico polémico, sensível e problemático. Mas desenganem-se se julgam que se trata de uma prática de simples violência. O consentimento é um conceito chave para uma BDSM feliz porque só dá uma tareia marota e só leva com a tareia marota quem assim o quiser. Ninguém está ali sem ser de livre vontade, e se não estiverem, já é estupro e não uma prática sexual kinky. De bem verdade que quanto mais realista a prática parecer, melhor, mas dentro de certos limites. Não é por acaso que se decide uma palavra de segurança que costuma ser tão aleatória como ‘elefante cor-de-rosa’, porque coisas como ‘pára’, ‘estás a magoar-me’ são supostamente parte do role-play.

O potencial da prática está a olhos vistos, seja para o desenvolvimento psico-emocional ou sexual, ou até para desenvolvimento económico e profissional: uma fetichista profissional criou uma empresa que junta BDSM com outras terapias alternativas como o Reiki. Terapias alternativas com um kinky twist, como ela lhe chama. A melhor forma para desbloquear as energias e tensões localizadas com carinho, e uma palmadinha?

16 Ago 2018