Massagem nos genitais

[dropcap]O[/dropcap] sexo tântrico está mais na moda do nunca. Talvez porque as pessoas precisem de encontrar a sua criatividade sexual em algum lugar, e a tradição do sexo tântrico é tão boa como qualquer outra. Uma das actividades desta tradição milenar são as massagens nos genitais. A técnica é tão simples que se torna complexa. Ao contrário do que muitos acreditam, estas massagens não são uma nova forma de nomear a masturbação. A massagem na yoni e no lingam – os nomes em sânscrito para vagina e pénis – são formas de ligação sensual, sensorial, física e espiritual. A massagem não deve ser sexualizada, mas não é de admirar se assim se transformar.

Os ensinamentos do sexo tântrico exploram o relaxamento com o objectivo de criar uma ligação com o corpo. Por isso é que é importante ter a mesma atitude mental tal como se fosse uma massagem às costas. Só que esta é uma massagem centrada nos genitais, e em outras zonas circundantes e erógenas. A barriga, as coxas ou as ancas fazem parte do pacote. Estas podem ser auto-administradas ou administradas por outros.

Ambas as formas permitem a sensualidade do toque – despindo-se das expectativas clássicas e heteronormativas da masturbação ou do sexo, de algum tipo de penetração ou de um ‘final feliz’ com o orgasmo. A forma como a enfase está no processo da massagem e não na sexualidade, pode, na verdade, resultar em imenso prazer e num dos orgasmos mais intensos de sempre. É uma lógica complicada de prioridades, mas é assim que o nosso sexo funciona. A pressão para a performance assim ou assada não existe nestas massagens. A ligação com o corpo, com as sensações, e com o deixar-se levar pelo toque é que cria a disponibilidade para o orgasmo.

Estas massagens podem fazer parte do ritual de bem-estar individual e até colectivo – trabalhando na relação de seres e de corpos. Apesar de não existirem estudos que confirmem muitas das assumpções desta tradição, esta diz-se ter muitas vantagens para a saúde física dos genitais e para a saúde emocional. Da mesma forma que acumulamos tensão nos ombros, também se acumulam tensões, problemas e desafios nos genitais, e que se estendem pelo corpo todo. Diz quem pratica, que as massagens ajudam a manter a saúde do pavilhão pélvico, a compreender melhor a libido de cada um, a tratar casos de ejaculação precoce ou de impotência. Apesar de não existir evidência científica, não vejo que mal faria em experimentar e, quiçá, incluir estas massagens na rotina.

A recomendação é que as pessoas explorem à vontade, e que puxem pela criatividade nas formas de estimulação, fricção e toque (acompanhado por algumas técnicas de respiração). Cada um poderá explorar de acordo com o que lhe mais agradar, e também encontrarão inspiração nos artigos e vídeos alusivos ao tema. A inovação vem da re-interpretação dos genitais, não só como órgãos de sexo, mas como órgãos de sensibilidade. Fujam da tendência de massajar o clitóris de forma circular, ou de estimular o pénis para cima e para baixo. Lubrificantes ou óleos de massagem são extremamente importantes, e convém procurar os produtos com os quais se sintam confortáveis. Não ter medo de guardar um momento para explorar estas massagens quando se está sozinho, com o ambiente preparado para o efeito – velas, óleos ou música. E quando a dois, deixar massajar e ser massajado nestas outras formas de toque, permitindo uma nova relação de confiança e prazer.

5 Fev 2020

Amor em tempos de epidemia

[dropcap]F[/dropcap]ace uma epidemia ninguém deve ter muita vontade de trocar fluidos. Numa altura em que até o ar não deve ser demasiado partilhado, partilhar a intimidade dos fluidos corporais torna-se num risco. Estive estes dias em Nova Iorque onde vi uma peça que explorava extensivamente o fellatio, e esperei que me oferecesse material suficiente para escrever sobre o sexo oral. Mas o coronavírus começou a assombrar-nos e não consigo parar de pensar no assunto. Obsessivamente. Nova Iorque é fabulosa, mas o coronavírus é assustador.

Encontrar o amor ou simplesmente mantê-lo vai ser difícil durante estes tempos, que nem sabemos quão longos serão. Tempos de muita vulnerabilidade que esperariam que o toque e o conforto dos outros nos salvassem de alguma coisa, mas é, na verdade, só mais um facilitador. Um perigo que continua desconhecido nas suas formas e feitios. Este mal tem como único propósito sobreviver de corpo em corpo. Corpos que estarão mais preparados para lidar com o choque que este vírus provoca do que outros. Corpos que poderão estar mais em contacto com o exterior do que outros.

Uma forma de lidar com esta crise é o isolamento, isolar pessoas para isolar o vírus. E assim a epidemia obriga a contrariar aquilo que nos é mais humano: estar com os outros. Milhares de pessoas estão presas nas suas casas sem saber o que esperar, ora por obrigação ora por preocupação. Só que o isolamento não nos é natural. Não contribui para o conforto, como o toque de alguém que nos é próximo. Será preciso amar à distância, manter os metros e até os quilómetros para fugir das tosses e dos ares que contaminam. Andar por ruas vazias, ou andar com medo das ruas cheias de gente. As pessoas tornaram-se num inimigo sem nome.

Os inerentes problemas sociais e políticos dos nossos sistemas vêm à tona, com estas crises. Nota-se que ainda estamos longe de perceber a forma como entendemos as pessoas, a medicina, as liberdades individuais e colectivas, o pânico e o medo – e de como se entende o poder. Em contextos de relações interpessoais (amorosas) por várias vezes explorei a comunicação na resolução de desencontros de intimidades. Sem surpresas, a solução de problemas a nível macro-social precisa de comunicação. As estruturas de poder só serão capacitadoras e eficazes se houver comunicação humilde, transparente e clara – que não seja alarmante nem fantasiosa. Parece fácil, mas é tão difícil. Neste processo de aprendizagem, que tem ocorrido ao longo dos séculos, por muitos continentes de várias epidemias, tenho sempre a sensação que esta aprendizagem dura o seu tempo, à custa de muitas vidas. Não consigo desligar dos micro-cosmos de emoções de quem se sente obrigado a afastar-se da vida normal por um vírus que ataca ainda no seu estado silencioso – e da desconfiança pelas estruturas que deveriam salvar as pessoas de situações de medo e incerteza.

Pelo menos já vi que se faz uso do humor negro pelas redes sociais chinesas. As pessoas que se protegem de formas criativas para não se perder o que nos é mais humano, os jogos, a diversão, a interação com os outros. As tecnologias que nos aproximam e que oferecem algum conforto. O medo que talvez nos faça ainda mais sedentos por toque e atenção, como se o amanhã pudesse ser a nossa sentença de doença (ou de morte). O assunto é tão sério que aparvalhar é só mais um mecanismo de defesa. ‘Talvez daqui a 9 meses haja um baby boom!’, gozava uma amiga. Entretanto, tenta-se esperar, e agir, para que tudo corra bem.

3 Fev 2020

14 Orgasmos

[dropcap]A[/dropcap]s formas como as vaginas podem atingir o orgasmo são das questões mais discutidas nas revistas cor-de-rosa. Na pornografia continua a ser mal representada, na educação sexual continua a não ser explicada, e ninguém parece insistir numa conversa bem-informada de orgasmos, e das vaginas, em particular.

Acontece que os orgasmos para os detentores de pénis são bem mais alcançáveis do que para os quem têm vaginas. Enquanto que a penetração é o caminho preferencial para o orgasmo do pénis, o mesmo não se aplica para as vaginas. A hegemonia cultural do sexo obcecado com a penetração é problemática porque também contribui para as desigualdades no prazer. Ao contrário do que as revistas cor-de-rosa sugerem – a heteronormatividade da penetração não traz, necessariamente, o orgasmo. Ele não vai acontecer só porque ainda não se achou a posição correcta. Na verdade, a penetração é só uma entre catorze formas possíveis para chegar ao orgasmo e as nossas crenças contemporâneas limitam esta descoberta. Parece que nos diz que o prazer do orgasmo é um direito para certos corpos e não para outros, e os outros treze tipos de orgasmos permanecem invisíveis. Há vaginas que se resignaram a estas falsas limitações porque nunca se aperceberam deste cardápio tão variado.

Tudo começa no clítoris, o único órgão no corpo humano que se dedica exclusivamente ao prazer. Um órgão muito maior do que o botãozinho que se consegue observar pela vulva. O seu formato assemelha-se a um meio arco interior, onde só uma pequena parte é que se encontra à descoberta. Para a teoria do orgasmo é importante perceber que não existem dicotomias claras entre orgasmos clitorianos e todos os outros. O clítoris pode ser estimulado através da fricção da sua parte descoberta e não só (o mito do ponto G existe porque há certos tipos de penetração que o conseguem envolver). Depois há o corpo e as suas partes erotizadas que ajudam neste processo. Há quem tenha tido um orgasmo pelos mamilos, pela boca ou pelo ânus. Há quem até se venha com o poder da mente. O que só prova que o orgasmo precisa de corpo, mas também precisa de estados mentais particulares para se alcançar. Se, durante uma actividade sexualizada, se estiver a pensar no que é preciso fazer no dia seguinte, não há dica, posição, ou estimulação que salve o orgasmo. O sexo é tão complexo quanto as suas muitas camadas de (des)entendimento. Os factores facilitadores para as vaginas se virem é tanto sociocultural como corporal. A obsessão com corpos magros, bonitos ou perfeitos, complicam o estado de disponibilidade que é necessária para o prazer. Para se ter um orgasmo é preciso sentir-se merecedor de um. É preciso sentir o conforto do corpo que se apresenta nu a outros e aceitar que também é uma fonte de desejo – independentemente das estórias que se ouvem e da repressão sexual que ainda hoje se sente.

A conclusão que existe um menu de catorze orgasmos por onde escolher (apesar de alguns deles também se aplicarem ao pénis) foi feita pela Lucy-Anne Holmes, no seu recente livro Don’t hold my head down. Não sou grande crente de que todas as vaginas consigam concretizar todos estes tipos. Para cada vagina será necessário explorar as suas formas de conforto e expressão. Pelo menos é um bom número para convencê-las que a exploração vale a pena. São catorze formas que incentivam a masturbação, a penetração, o toque de boca, de mãos e de todo o corpo. Discutir o orgasmo torna-o numa possibilidade real de auto- e alter- descoberta no sexo – que também põe em causa a visão orgasmo-cêntrica na partilha de intimidades, quando ainda é causa para pressão na sua performance. O orgasmo pode não ser o mais importante no sexo, mas para chegar aí precisa que todos os genitais consigam ter acesso a ele de igual forma.

22 Jan 2020

O sexo gosta do oculto

[dropcap]O[/dropcap] lado inocente e puro desta humanidade mostrou-se não ter espaço para o sexo. O sexo é diabólico e veste-se de vermelho, a cor do pecado, e o inferno está cheio de fornicadores que se regozijam com os corpos nus de prazeres incompreensíveis. A dicotomia do bem e do mal – de uma história já muito antiga – reforça a ligação íntima entre o sexo, o oculto e as suas bruxas diabólicas. Mulheres que sabiam demais para o seu próprio bem – da cura, do cuidado e do prazer. Ainda que a bíblia não fale explicitamente sobre a sexualidade, o sexo ainda perpetua uma rigidez estupidamente simples com anos de tradição religiosa. Foram estas as ideias que levaram a queimar mulheres vivas na fogueira. E o sexo alimentou-se da premissa de que há algo de errado em saber mais sobre sexo.

As bruxas mantiveram-se, até de forma bem literal. Em tempos em que o sexo já é mais banal e menos demoníaco, o sexo continua a adorar ultrapassar os limites do razoável – dentro e fora de subjectividades.

Há, por exemplo, a ‘magia sexual’ que é a arte de utilizar a energia sexual para lançar feitiços durante a lua cheia, ou noutras luas que achem relevantes. A prática passa por ouvir a música que desperta erotismo necessário, acender uma vela, masturbar com o auxílio de um dildo de cristal (ou qualquer outro dildo), lançar um feitiço com o poder do orgasmo e esperar os resultados. As bruxas contemporâneas são versadas nestas práticas e partilham a sua sabedoria pelos canais de informação comuns – para os curiosos que queiram saber mais sobre sexual magic ou magick.

Eu diria até que no lado oculto do sexo explora-se bem mais do que a magia. Vejo-o como a plataforma onde se desafia a vergonha e a humilhação do prazer. Os fetiches, e tantas outras fantasias, vivem do oculto, do desconhecido e do incompreensível. Vão além do sexo heterossexual de fazer bebés (a única forma aceitável de fazer sexo, aos olhos de muitos) e encontram-se na criatividade, no inexplorado. Aliás, não é por acaso que os fetiches e as práticas mais kinky fazem uso de apetrechos que poderiam ser de bruxas ou de agentes do mal. O látex preto, o chicote, as botas altas e os corpetes completam a representação do lado ‘negro’. O sexo adora o imaginário do dominador e do dominado, e para muitos, até da vergonha e da humilhação. Estas dinâmicas existem para contestar quem diz que o sexo deve ser assim ou assado, para contestar os mecanismos de opressão do sexo, fazendo uso deles mesmos.

O sexo que gosta do oculto poderia ser só mais uma confirmação que que é no oculto que ele deve permanecer. Mas a proposta é de que haja reinterpretação de conceitos e práticas. O sexo no oculto e a magia do sexo é só mais uma desculpa, como tantas outras, para forçarmo-nos a olhar o sexo dentro e fora das nossas relações, das nossas subjectividades e das nossas expectativas. O voyeur e o exibicionista gozam com a possibilidade de fazer o que é errado. O senso comum de que o fruto proibido é o mais apetecido é uma explicação limitada, mas ainda importante, para algum dos padrões do sexo – os limites existem para serem quebrados e contestados. O oculto nasce da forma como se vê o passado e a nossa contemporaneidade e do que, deliberadamente ou não, deixámos por explorar e escondido. Os persistentes tabus do sexo são o combustível para a reinvenção e exploração. Se o sexo gosta do oculto, nós também vamos gostar.

15 Jan 2020

A vagina precisa de um museu

[dropcap]N[/dropcap]esta nova década, a vagina precisa de um museu. As vaginas sempre foram muito mal compreendidas, e é preciso esclarecer as estórias mal contadas pelas quais as vaginas vivem e, infelizmente, ainda sobrevivem. Os museus têm o dever pedagógico de preencher os espaços do imaginário histórico-social que estão mal preenchidos. Em Londres, aparentemente, tal museu existe. Um espaço de inspiração, pensei eu. Um espaço de verdadeira compreensão, pensei eu.

Só que o museu da vagina não é o museu da vagina como se quer. Grandioso, extenso, artístico, sensorial e de grande profundidade. É um pequeníssimo espaço na zona mais comercial da cidade, com uns painéis informativos – engraçados e úteis, mas simples – e uma loja anexada estilo ode da vagina: com brincos, colares ou decorações de natal inspirados no formato da vulva. Se numa cidade como Londres – que se diz sexualmente progressiva – não encontramos o museu da vagina como deve ser, não sei onde poderemos encontrá-lo. A esperança é de que este projecto se estenda para outras formas maiores – e que este seja só um começo.

Se perguntarem a quem anda com uma vagina por aí, não faltam ideias para a expressar uma história de repressão vaginal de séculos, ainda actual e ainda pertinente. O museu da vagina mostraria as várias realidades da vagina. Os mitos que persistem porque existiram décadas anteriores que os justificassem. Uma história de violência ginecológica, de abortos realizados em casas duvidosas por enfermeiras que talvez soubessem o que estavam a fazer. Uma história onde o prazer nunca foi entendido como legítimo ou verdadeiro – o prazer da vagina, claro está. A contracepção como a rainha da emancipação das vaginas, da libertação da gravidez que o prazer por vezes implica. Mostrar-se-ia como a vagina se tornou detentora de direitos ao prazer. Como se lhe soltassem as amarras da religião, do casamento, ou dos ideais conservadores de uma maneira geral. Mas não quer dizer que tivessem deixado de existir por completo. O museu serviria esse propósito de reflexão, de onde as vaginas vieram e para onde querem ir. Para além da educação básica: que a coca-cola não é, nem nunca foi, um espermicida (não a ponham dentro da vagina!); que é normal as cuecas ficaram manchadas com corrimento; que os produtos de higiene íntima proliferam da pouca consciência dos cheiros e lubrificações vaginais. Um lugar onde se pusesse em causa os conceitos de virgindade e do que é o sexo. Mostraria as vítimas e as heroínas das vaginas guerreiras.

No museu da vagina encontraríamos desejos para a vagina da nova década. Faz tanto sentido como o museu do sexo, o museu do pénis ou o museu queer. Precisamos é de museus que falem do sexo, e da história do sexo para desconstruir a tendência essencialista de que o sexo tem dicotomias redutoras. A heterogeneidade do sexo e dos seus prazeres terá que ser celebrada de alguma forma. Com uma parede de vulvas e as suas múltiplas formas e assim mostrar vaginas felizes, bem-informadas e capazes de se entenderem – com os seus ciclos, as suas menstruações; a naturalidade do sangue que ainda é complicada e incompreendida.

Desejos de prazer que implicam tantas formas de sexo, na nova década que é para as vaginas e para um sexo que é simples e complexo, nestas coreografias de género, desejo, educação, intimidade e possibilidade para abertura.

8 Jan 2020

Disponível para amar

[dropcap]O[/dropcap] amor, numa perspectiva mais madura e complexa, depende de pessoas disponíveis para amar. Há quem esteja mais ou menos disponível para mergulhar nesta confusão. O amor como lugar de encontro de fragilidades – confuso e de difícil gestão.

Aprender a vincular desta forma será, certamente, um processo individual, mas as estruturas culturais parecem não ajudar a oferecer uma visão realista da complexidade deste processo. Como em tudo, na verdade. Há a tendência de julgar que o amor simplesmente ‘acontece’ como uma seta de cupido que nos ataca sem aviso; ou que o amor é para sempre e incondicional, independentemente de quem somos, de como estamos e de como interagimos. O amor está cheio de mitos que dificultam a consciência do seu potencial disruptivo.

O mito do amor como acontecimento mágico tende a gerar muita desilusão. Isto porque existem confusões conceptuais das quais o amor, a paixão, o sexo e o tesão fazem parte. Não que seja necessário definir cada um destes domínios ao milímetro, mas é importante perceber que as sensações que o corpo e a mente sentem vêm de muitos lugares e estão em constante sobreposição. Perceber o amor como um acto de partilha e de ligação é quase um trabalho a tempo inteiro. Este não aparece (somente) como uma reacção fisiológica às circunstâncias à nossa volta. Necessita de trabalho amoroso – e reflexividade – que nem todos têm disponibilidade para fazê-lo.

O mito do amor incondicional é daqueles também bem persistentes. Quando assentamos com um parceiro romântico esperamos que o amor seja uma ligação duradoura e incontestável. Tenta-se usar essa relação como uma rede de segurança caso tenhamos uma queda. Uma queda de qualquer tipo, emocional ou física – porque sabe-se o quanto precisamos dos outros para a nossa sobrevivência. A fantasia é de que as pessoas nos podem amar sem condições ou exigências. Simplesmente. O mais próximo que se está do amor incondicional acontece quando somos bebés ou crianças. Aí por muito (ou pouco) que façamos, os nossos pais amam-nos sem qualquer expectativa. Mesmo que o bebé suje tudo, não interaja muito, não fale ou satisfaça expectativas mais sofisticadas, o bebé simplesmente existe para ser cuidado e amado. Aliás, até mesmo nessas condições, o amor incondicional não é garantido, como se sabe na quantidade de traumas de infância que perseguem muitos até à idade adulta. É desse lugar que depois se procura outro tipo de vinculação. O outro, com os seus medos e desejos, nunca nos pode garantir disponibilidade total às necessidades (e vice-versa). O amor incondicional precisa de ser redefinido para permitir que existam momentos fortes de desencontro que podem não o pôr em causa. Mas para fazê-lo é preciso disponibilidade para lidar com muita confusão, e muita frustração também.

É difícil explicar o que a disponibilidade para amar pode querer dizer para além de que é a condição necessária para encontrar amor nos outros e conseguir mantê-lo ao longo do tempo. Mesmo que o amor se transforme em outras formas de expressão. A disponibilidade a que me refiro não se limita a uma decisão instrumental de que ‘agora estou pronta/o para uma relação’. Trata-se da disponibilidade de cuidar e permitir ser cuidado, e poder estar disponível para mexer com o que aflige e satisfaz. O amor é construído no espaço do desencontro entre humanos, através de pontes e formas de comunicação ao longo do tempo. Um trabalho emocional, por vezes, muito intenso. Daí que a disponibilidade seja muito importante, para garantir que não nos perdemos na intensidade de que o amor nem sempre é aquilo que esperamos.

18 Dez 2019

Guia dos sexos

[dropcap]N[/dropcap]inguém escapa ao sexo. Pensamos e agimos com a consciência que o sexo está por aí, pronto para gozar ou por ser gozado – tantos sexos. Essas fontes inesgotáveis de ideias, apetites e desejos. Não será surpresa que há lugares mais criativos do que outros. Nas grandes metrópoles por esse mundo fora, onde a diversidade fervilha por todas as direcções, o sexo floresce com esplendor. Uma cidade como Londres, por exemplo, tem a oferta mais impressionante de experiências sexuais. Até porque o sexo fora de casa não existe só em bordeis, são centenas de espaços de expressão criativa sexual.

Mas antes de explorar o mundo do sexo lá fora, primeiro temos que responder à pergunta do que é que realmente gostamos. Uma pergunta que muitos de nós não tem a paciência de se perguntar. As fantasias sexuais ou os apetites particulares não nos aparecem só como impulsos inexplicáveis. A disponibilidade para fantasiar e a masturbação produzem as condições necessárias para apanhar o barco da exploração sexual também. Essa exploração, que a maior parte das vezes acontece individualmente, pode ser acompanhada por imensos brinquedos sexuais. Dildos de vários tamanhos, para quem gosta de penetração, varinhas ‘mágicas’ para quem gosta de estimulação do clítoris ou uma tampinha anal para os iniciados e já praticantes na exploração anal.

Depois desta exploração se tornar hábito – a masturbação não produz epifanias sexuais instantâneas, é mais uma prática de auto-cuidado que deve ser estimulada ao longo da vida, com ou sem parceiro sexual (porque não são experiências mutuamente exclusivas) – é que a nossa cabeça começa a explodir de ideias. Ideias que podem exigir mais ou menos recursos porque, infelizmente, as experiências e acessórios sexuais não são para todas as carteiras. Abrimos assim a possibilidade de estarmos atentos para novas formas de sexo. Fetiches são um bom começo, por exemplo. Ao reconhecermo-los torna-se mais fácil encontrar outras mentes que partilhem dos mesmos prazeres, e a internet é uma óptima forma de os juntar. Depois, claro, de certeza que existirão eventos que estimulam a concretização de fantasias. O BDSM aglomera um conjunto de práticas e fetiches que torna mais fácil identificar uma comunidade de gentes que partilham o mesmo fascínio por jogos de submissão e dominação. Pelo que tenho visto, muitas actividades sexuais urbanas são desta natureza. Há festas e speed-dating para amantes do BDSM, há a possibilidade de contratar uma dominatrix na vossa cidade de residência para satisfazer os fetiches mais variados: chuvas douradas, para os que gostam de praticar desportos aquáticos (é mesmo esse o termo) até chuvas castanhas, que não é preciso especificar do que se trata.

Depois também há outras actividades que se cruzam com desejos de BDSM ou não. Por exemplo, um clube de sexo de pessoas anonimizadas com máscaras é, na verdade, uma possibilidade para o mundo real, e não é tão inatingível quanto isso. Aliás, foi com alguma satisfação que me apercebi que existem grupos de mulheres – e.g. Killing Kittens – que organizam festas mistas onde só as mulheres é que podem dar o primeiro passo. Escusado será dizer que este tipo de eventos e serviços vivem da exigência de que todo o sexo é consensual. O grande lema para o sexo verdadeiramente prazeroso.

Ao olhar para esta variedade de sexos não nos é possível cair no erro de que há o sexo normal e o anormal. A decisão é muito mais individual: há sexo que nos interessa e sexo que não nos interessa. Os guias dos sexos criam-se assim, pelos aborrecidos e pelos curiosos, explorando o sexo de forma criativa.

11 Dez 2019

Ausências

[dropcap]N[/dropcap]em todos precisam de sexo. Há quem seja sexual e há quem seja assexual. Cada um vive a sua sexualidade ausente ou presente. Num futuro utópico isto não precisará de ser explicado, mas no presente distópico em que vivemos ainda é preciso relembrarmo-nos que a auto-determinação sexual é o privilégio de quem pode pensar sobre o sexo e agir sobre ele.

Para os que estão habituados (e sedentos) da presença do sexo, a sua ausência pode ser problemática. A ausência da troca de corpos e vivências pode ser dolorosa, não porque enlouqueça ou torne testículos azuis, mas porque nos é entendida como essencialmente humana. A dor de não ter com quem partilhar um orgasmo é o reflexo de um entendimento sexual animal, na nossa sofisticação racional. Mas a recusa de adoptar visões simplistas do mundo, ou visões congruentes do mundo, é grande. O nosso ambiente sexual não é, nem nunca será assim. O sexo vive da polémica, do conflito e da tensão. A ausência e presença do (e no) sexo é só uma forma complicada de olhar para a coisa. O sexo, os genitais, os fluídos que se trocam, os gemidos e os prazeres da fisionomia e dos desejos. Como é que se vive sem sexo? Para os que já resolveram esta ausência e para os que acreditam que o sexo é um simples impulso. A conexão connosco próprios e com quem partilhamos os medos e as alegrias de existir, faz parte desta compreensão. E ela revela-se na relação longa e trabalhada, ou no miscrocosmos de partilha fugaz. Uma noite, uns dias ou uma vida. A ausência desses momentos traz-nos para o sofrimento e para além dele. Transporta-nos para descobertas inexistentes, incompreensíveis a olho nu.

Pior do que a total ausência de sexo é quando o sexo é vazio, sem sentido, direcção ou consciência. Às vezes acontece, mas quando se torna rotina, a sua total ausência começa a fazer mais sentido. O que nos impede de seguirmos sugestões pré-definidas do que é certo ou errado é a curiosidade que temos do mundo. É com sentido crítico ou apropriação do que achamos melhor para nós, para os nossos corpos indefinidos, estranhos e tantas vezes monstruosos que percebemos as múltiplas possibilidades de ser, fora da moralidade barata que nos incumbem. A ausência oferece um espaço para esse encontro que não é mediado pelo desejo com o outro, pelo seu conforto. O desconforto que a ausência nos causa torna-nos alienígenas ao que é suposto. A ausência pode ser assustadora quando tudo o que esperámos era a ligação sexual divina, simples e incontestável.

Muitas vezes carregamos esses desejos e raivas às normas – ao que é expectável – interligadas na nossa própria confusão. A confusão que reflecte a consciência da complexidade. Navegamos na flexibilidade e na inflexibilidade com o carinho de quem tem paciência de errar, as vezes que precisarmos. Vamos aprendendo com a vida que não é linear, mas uma montanha russa de uma feira popular, que deixou de existir e que passou a ser nostálgica. Vamos aprendendo nesta complexidade, como nos permitimos. Iludimo-nos se pensarmos que podemos abraçar a diferença e a dificuldade assim, facilmente. Mas o sexo ensina-nos como fazê-lo, se estivermos disponíveis. Nesta incerteza das emoções e dos desejos que nunca mais acabam.

Somos um poço sem fim de quereres incompreensíveis. Com ou sem sexo.

O sexo e o prazer são direitos que não estão escarrapachados na carta dos direitos humanos. Talvez precisassem de estar: o prazer que carrega estas tensões, dilemas e dificuldades. O sexo é um factor complicador à vida. Estas formas de ser ausentes e presentes de outros, de nós próprios, e de prazeres que pensámos não merecer sentir, são as cartas do nosso baralho. Já temos tanta coisa, e já nos falta tanta coisa também. Falta-nos tesão de bondade.

4 Dez 2019

Vagina de superpoderes

[dropcap]A[/dropcap]inda se fala pouco da vagina sem se corar um pouco, ou da vulva, porque são muitas vezes confundidas. Muito menos falar de uma vagina com superpoderes, daqueles que são super porque ainda nos são extraordinários. Em mundos paralelos pessoas detentoras de vaginas seriam veneradas como entidades maravilhosas de feitos maravilhosos, mundos paralelos que deixam para trás a mundanidade com que se encara a vagina hoje em dia. O primeiro erro é assumir que a vagina prevê a feminilidade – a vagina é tão mais inclusiva do que isso; e consegue concretizar coisas magníficas. Juro.

A vagina é só uma parte, a vulva é outra. Os elementos que compõem os órgãos internos e externos dos genitais foram cuidadosamente pensados para a procriação, o prazer e a necessidade última de urinar (porque a uretra também faz parte da vulva). Tantas coisas maravilhosas vêm destes genitais. Durante o sexo estes elementos transformam-se, o clítoris enche-se, incha e disponibiliza-se para o orgasmo, a lubrificação natural é abundante, e se não for, pode-se sempre utilizar uma ajuda extra. O potencial que esta fisionomia oferece pode ainda ser trabalhada – com a prática do pompoarismo que trabalha os músculos pélvicos para maior prazer e bem-estar (que não é só para quem quer atirar bolas de ping-pong por este canal do sexo, mas se quiserem, está tudo bem). O parto é a prova derradeira de que a vagina tem poderes fora deste mundo, é flexível e passível de transformações. Poderes que tomamos como garantidos, mas que precisam das suas celebrações e, quiçá, de investimento. Há imensos partos a acontecer neste momento de pessoas detentoras de vaginas que não sabem (se calhar sabem, mas nunca interiorizaram) o potencial elástico da vagina e do seu olhar atento para todo o processo. A sincronização é perfeita – confiar nas vaginas, elas sabem muito bem o que estão a fazer. Ao contrário do que a cultura popular assume, as vaginas são muito mais cooperantes no que toca a parir.

A hiper-higienização da vagina é outra tentativa de descredibilizá-la como não capaz de lidar com os seus problemas. A indústria dos produtos íntimos bem que tem utilizado a heurística de que o suposto estado natural da vagina é sem cheiro, sem muco, sem nada a acontecer-lhe. Frequentemente é negligenciado o sistema de autolimpeza que impulsiona várias dinâmicas de corrimentos. Estes movimentos são muitas vezes incompreendidos. Vive-se num contexto que tem perpetuado a ideia de que tudo o que é confusão e micróbios são maléficos. Assumimos que para o estado de saúde individual e global é necessário exterminá-los a todos, na vagina incluída. Só que cometer genocídio bacteriológico na vagina é desaconselhado para um estado vaginal saudável. A vagina desprovida de micróbios de boa espécie permite que se desenvolvam os fungos da pior espécie (como a toma de antibióticos parece despoletar). Aí é que aparecem os corrimentos menos desejáveis, comichões em partes chatas, e outros sintomas de uma candidíase. A vagina raramente consegue lidar com este caos sozinha (vai necessitar da ajuda de outros sistemas imunológicos).

Mas o superpoder de comunicar o seu estado de saúde só funciona se compreendermos estes maravilhosos ciclos e dinâmicas pelos quais as vaginas passam. Mais importante ainda – se entendermos o superpoder da sua homeostasia.

A vagina é parte de um complexo sistema fisiológico que afecta o bem-estar de quem a tem de várias formas. Perceber os seus superpoderes é só um caminho para maior consciência do corpo e maior compreensão da sua saúde. Parece mentira, mas a vagina não só é super-competente a lidar com as transformações do mundo, como é super-poderosa a contribuir para a diversidade do mundo. Diversidades no prazer, no bem-estar, e nas suas múltiplas formas de existir.

27 Nov 2019

Felizes para sempre

[dropcap]O[/dropcap] casamento sugere que encontrámos a pessoa perfeita para as nossas vidas, e que vamos viver felizes para sempre. Há quem queira ser romântico e veja o casamento como a prova última do amor. Tal como o tamanho do anel de noivado, ou o tamanho do gesto romântico que um pedido de casamento implica. Os preparativos, a festa, os convidados ou o dinheiro que se gasta, realça que não há nada mais romântico do que partilhar a vida com alguém para sempre. Mas também não há nada mais assustador do que partilhar a vida com alguém para sempre.

O casamento transforma-nos nesse alguém. Um peão numa díade de intimidade. Ganha-se um título que será vivido em função das expectativas monogâmicas vigentes. Todos os rituais maritais e pré-maritais são importantes para o luto dos amores que não se viverão. Não que a monogamia não exista no pré-casamento, mas a ligação torna-se mais rígida. Tornamo-nos fiéis àquela relação num contrato legal e religioso que é tido como um sinal de maturidade. Como os católicos dizem, um vínculo de estabilidade para lidar com o(s) pecado(s) do mundo.

A teorização religiosa do casamento é bastante complexa. O casamento serve um propósito. Mas para os não-religiosos o casamento parece ainda ser um ritual irreflectido, como o Natal para quem não acredita no menino Jesus. Um passo burocrático para os que querem poupar nos impostos, ou uma forma de garantir residência na instabilidade das geografias actuais. Um rito de passagem para um caminho prototípico.

Nascemos, crescemos, encontramos alguém para sexar para sempre, e morremos. A simplicidade da vida parece incluir este contrato e torna-se num objectivo de vida porque o contruímos como um objectivo de vida. Só que a naturalidade do processo revela a dificuldade do processo também. O casamento sobreviveu até aos dias de hoje com base em expectativas heteronormativas de família, e em muitos lugares do mundo, outras formas de família ainda não são vistas como legítimas para este vínculo. O casamento, apesar de necessitar de uma reinvenção, ainda não é um direito de todos. Talvez quando for, é que poderemos abalar o conceito.

A ideia de que a felicidade vem com o casamento, ou uma relação íntima estável, monogâmica e duradoura, precisa de ser mais flexível. Para fugir ao estigma que ser solteira implica, recentemente a Emma Watson autodenominou-se de self-partnered, i.e., parceira de si própria. A procura de legitimidade de estados solteiros saudáveis e felizes precisa de ser incluída no diálogo da vida adulta também. Uma vida madura e relacional não se pode limitar a um namoro estável ou ao casamento. Despirmo-nos destas expectativas é despirmo-nos de ideias pré-históricas de que estamos programados para um único curso de vida.

‘Supostamente’, as pessoas organizam-se em parelhas porque é melhor existirem duas pessoas de vinculação segura para a sobrevivência da espécie (neste momento, combater as alterações climáticas será mais eficaz à sobrevivência da espécie, mas essas são outras conversas). Da mesma forma: a parentalidade, que muitos acreditam ser essencial à existência, não precisa de ser.

As novas formas de vida, seja sozinho, com amigos, ou com os gatos, são formas legitimas de felicidade. É importante começar a reescrever narrativas para desconstruir a pressão social de certos rituais – ao entendermo-los à luz das expectativas individuais e colectivas. Cabe a cada um de nós perceber como é que o casamento faz parte de um plano de felicidade, ou como a ausência de casamento também pode fazer parte de uma vida completa e satisfatória.

20 Nov 2019

Lugar do Corpo no Sexo

[dropcap]T[/dropcap]emos pouca consciência do espaço que o nosso corpo ocupa. Diria, até, que são poucos aqueles que têm consciência de si próprios, da consciência plena dos seus limites. O sexo, se bem feito, pode criar uma ligação com esse lugar. O corpo que deambula sem pensar muito, anda para a frente para trás sem sabermos muito bem como. Prendemo-nos nos automatismos diários e não permitimos a redescoberta. Claro que há quem defenda que já nos focamos no corpo demasiado, no corpo médico e mecanizado. Nesse caso o sexo é frequentemente simplificado, tomando o corpo como garantido. Esta tese é a da complexificação do corpo como lugar de prazer sem automatismos ou expectativas. O prazer que não é o simples orgasmo, ‘o fim último’, mas um dos seus caminhos. O prazer que vem em estarmos presentes com o nosso corpo.

Em crianças o corpo é claramente o nosso veículo, e nós aprendemos a lidar com ele – através de movimentos cada vez mais sofisticados que o nosso corpo desenvolve. Depois desenvolvemos o pensamento abstracto e aí ficámos, na cabeça. O nosso desenvolvimento estagna a nossa possibilidade de descobrirmos além – dentro do corpo, mas para além da nossa imaginação. A naturalidade de nos reconectarmos com a nossa presença deixa de ser natural, ou fácil. Exige o esforço de encontrarmos aquilo que ignoramos: o lugar de corpo que julgámos conhecer. O sexo é o lugar onde nos poderíamos deslumbrar vezes sem conta com a subtileza do toque e com a coordenação dos nossos sentidos. Só que esta consciência plena do nosso corpo, até no sexo, é rara. Vivemos no passado e no futuro e esquecemo-nos do momento presente. O corpo está lá, muito mais do que nós.

A meditação também é uma forma de nos ligarmos com o presente – e está muito na moda. A sua eficácia na prevenção de mal-estares mentais já foi mais do que mostrada. Há quem diga que a nossa desadequação com o presente é o resultado de vidas contemporâneas de mil e uma distracções. Estamos sempre a pensar em alguma coisa. Tal como a meditação, o sexo poderia ser a nossa oportunidade de desligarmos das tormentas do passado e das ansiedades do futuro, mas mesmo assim, trazemo-las para a cama. Por isso há quem proponha trazer a meditação para a cama também, ainda que sexo viva do prazer da entrega dos sentidos. O toque, paladar, olfacto, visão e audição, tudo importa na entrega ao sexo ou, pelo menos, deveria importar.

Esta é uma ideia que está longe de ser inovadora. Já nos anos 50, quando a primeira investigação sobre o sexo começou a surgir e os primeiros terapeutas sexuais começaram a surgir também, esta ideia de ‘foco sensorial’ era chave para que as pessoas pudessem ter uma atitude mais saudável com o sexo. O sexo, que frequentemente se distorce de expectativas irreais e que enfatiza determinadas performances, deixa os seus praticantes muitas vezes perdidos, nervosos e insatisfeitos. Estes princípios sensoriais são utilizados para nos gentilmente afastarmos do que se passa na nossa cabeça, sem pressões e sem julgamentos. A investigação mostra a importância deste foco sensorial para nos tornarmos mais presentes. Mais do que uma simples técnica para melhor aproveitarmos o sexo, é uma forma de estar.

Se o sexo, de consciência plena, é uma forma de meditação que nos conecta com o corpo – e com o corpo de um outro, se for caso disso –, e se a meditação traz imensos benefícios para a saúde, o sexo tem o potencial de ser a cura para muitos males. Males que atormentam a nossa existência enquanto seres sexuais, e enquanto seres que têm que lidar com este mundo confuso, cheio de notificações, e sem espaço para redescobertas.

6 Nov 2019

Desencontros

[dropcap]M[/dropcap]uitas vezes não estamos alinhados com os outros. Não os encontramos e não os entendemos. Os limites que fazem o encontro afectam tudo: o sexo, os relacionamentos amorosos, os relacionamentos familiares e de amizade, as sociedades, as nações, e até, a mudança.

Assim percebemos, de forma mais ou menos sofisticada, o que justifica a esperança ou o pessimismo por um mundo melhor – esse cliché que irrita, mas que não deixa de ser a utopia dos tontos. Dos que acreditam na simplicidade do amor e do cuidado, ainda que saibamos pouco sobre as suas subtilezas e complexidade.

O desencontro pode ser fácil ou difícil, pode resultar numa resolução ou num conflito eterno, sem solução à vista. As identidades complexificam os processos de comunicação contribuindo para a natureza do conflito. As ideias que cuspimos vêm de um lugar de pensamento, de um posicionamento, de uma identidade e de várias experiências. Tanta investigação feita para desvendar os factos humanos e sociais e o desencontro continua lá. Desde o início dos tempos que tentamos dar-lhe sentido. Agora ficam por resolver as dores de ver um mundo a desfazer-se porque há conflito em todas as frentes. As alterações climáticas que nos afundam pela inacção, o conflito israelo-palestiniano que parece ser dor sem fim, o ódio que se espalha sem precedentes de discursos cada vez mais declarados de xenofobia, homofobia, racismo e preconceito. Será que as dores são minhas, ou do mundo?

As teorias para o desencontro são muitas. Os mais tolos andam a explorar mapas astrais onde o desencontro já estaria escrito nos astros. Em contraste, os mais cientistas agarram-se à razão positivista para dar sentido a uma moralidade aparentemente fácil, definida pela verdade e pela mentira. Nesta visão do mundo, os factos são a única ferramenta de empoderamento. Valoriza-se o saber como se o sentir não interessasse. Os sensíveis são acusados de ser emocionais, pouco racionais. O desencontro só se resolve com conhecimento não-emotivo, dizem eles, porque o desencontro é o resultado da tontice dos pouco esclarecidos.

O desencontro acontece quando a minha visão do mundo choca com a tua visão do mundo. Gosto sempre de voltar ao micro-cosmos das relações e percebê-las como pequenas arenas que poderiam explicar as maiores. Os tijolos que criam a nossa realidade estão lá, no nosso dia-a-dia.

Na pessoa que amamos, na pessoa que partiu o nosso coração, na pessoa com quem fomos para a cama uma vez em 2010. O desencontro é o resultado de tantos outros desencontros passados, nesta valsa a três tempos, ou talvez, numa cantiga de roda, infantil e vulnerável como os nossos desencontros muitas vezes são. E as emoções? Quando é que finalmente se legitimam as emoções? A zanga, o ódio, a raiva, o amor, o medo ou a ansiedade existem para explicar o inexplicável. Nunca foi fácil definir o ser humano ou o seu guião de acção e as dores sentidas só tornam mais clara a nossa dificuldade em fazê-lo.

Impressiono-me com esforço de separar águas inseparáveis de dor, desconforto e razão. Nem sempre conseguimos ver como os desencontros do mundo são desencontros de nós próprios.

Olhamos para a política internacional e não parece que possa ter que ver com o nosso sexo, ou com a nossa intimidade. É difícil engolir que o nosso ponto de partida possa estar em desencontro. Talvez porque o desencontro é o nosso estado mais natural e mais confortável. Não sei do que precisamos, se de amor, música ou arte para desvendar o maior segredo de todos – que o nosso propósito de vida é dar sentido àquilo que não tem sentido algum. O desencontro pode bem ser um estado perpétuo em si mesmo.

30 Out 2019

Dilemas da pílula

[dropcap]O[/dropcap] início da revolução sexual começou com a introdução da pílula na vida sexual – gravidezes indesejadas deixaram de ser um problema. Há quem, até, responsabilize a pílula pela crescente presença feminina no mercado de trabalho. Depois de 60 anos em que se deram como garantidas as vantagens deste contraceptivo hormonal, parece que há um declínio no seu uso, como se já não estivesse na moda. Os jovens detentores de útero estão cada vez menos interessados em utilizar esta forma de regulação hormonal, que ao longo do tempo foi sistematicamente prescrita não só para a prevenção da gravidez, mas para a eliminação do acne ou para regular ciclos menstruais mais incertos e dolorosos. A pílula imita a segunda fase do ciclo menstrual, pesado em progesterona, durante os 28 dias. O cérebro, ao entender os níveis de hormonas no corpo, assume que a ovulação não deve ocorrer e não envia os sinais necessários para ordenar a libertação do folículo. As menstruações tornam-se mais leves e menos dolorosas, e a pele mais limpa. A longo prazo a pílula também reduz o risco de cancro nos ovários e no endométrio.

A pílula também traz efeitos secundários indesejados – curioso que a pílula para os que têm um pénis viu uma saída tardia para o mercado, exactamente porque os efeitos secundários eram bastante explícitos (mas deixemos estas desigualdades de corpos). A biologia da pílula tem muito que se lhe diga. Há riscos claros de cancro da mama, criação de coágulos sanguíneos, ataque cardíaco e outras alterações no corpo mais visíveis. Recentemente uma psicóloga social debruçou-se sobre as alterações no cérebro sobre o efeito da pílula também. Algo que muito se havia especulado por que os efeitos secundários da pílula também incluem depressão, ansiedade e suicídio. O pior é que o cérebro, nestes estudos, é tido como uma máquina biológica. Há conclusões tão geniais quanto – a pílula enche os corpos de hormonas que podem participar na escolha de um parceiro não-viril (!), e por isso a investigadora alerta para o perigo de se parar a pílula durante um relacionamento com o parceiro que tenha sido ‘escolhido’ durante a enchente de progesterona – e assim a escolha pode deixar de fazer sentido. Estes estudos vêm reforçar uma perspectiva psicológica que simplifica em demasia os processos envolvidos no sexo. A psicologia evolutiva tenta perceber como é que o corpo pode participar nas nossas escolhas, neste caso, nas escolhas sexuais e românticas. Por isso é que há quem a entenda como adequada para perceber processos tão fisiológicos como o uso de pílulas hormonais. Mas é preciso olhar para o cérebro como co-criador da nossa realidade, e não uma máquina reactiva que se rege por impulsos que orientaram os pré-históricos a agir sobre o mundo. Felizmente que há neurocientistas que entendem o cérebro como dialógico com o que nos envolve.

Será necessária mais investigação para perceber, de facto, como é que a pílula afecta o nosso cérebro e a nossa sensação de ser. Também porque existem discursos contraditórios acerca da sua utilidade e segurança. Há quem esteja a tomar a pílula sem parar para não passar por menstruações que já não servem aos detentores de úteros que não têm interesse em parir.

Outros detentores de úteros estão a abandonar a pílula por completo. A prescrição indiscriminada de pílulas já começa a ser contestada e é importante perceber porquê. A hegemonia da pílula deixa por discutir as menstruações que ainda são tabu, as dores que ainda são normalizadas e que não lhes é dada a atenção devida, ou as depressões e as ansiedades.

Deixa por discutir a co-responsabilização que deveria existir por uma gravidez indesejada e a importância de dar prioridade (também) à prevenção de DST’s.

Para que os detentores de úteros possam tomar decisões informadas sobre os seus corpos, é preciso ver a pílula como um dilema também. Mesmo que a comunidade médica continue com uma postura de autoridade face aos nossos corpos e decisões, a investigação mostra as incertezas da área. Os detentores de úteros têm direito de perceber mais sobre os seus próprios corpos, sobre o seu funcionamento, e sobre os significados (contra a naturalização dos mesmos) que as sociedades propõem.

23 Out 2019

Comercialização da Intimidade

[dropcap]P[/dropcap]rimeiro, definimos a comercialização da intimidade de forma bastante abrangente. Hoje em dia podemos comprar tudo, desde o sexo à intimidade. O exemplo comum é o das pessoas que oferecem cuidados mais, digamos, sexuais – como as mulheres de conforto e outras que tais. Mas a literatura pede que olhemos para outros processos também – outras formas de comercialização das relações íntimas – como os cuidadores de crianças e idosos, empregados domésticos, ou serviços de fertilidade e de barriga de aluguer. Qual é a diferença entre uma bailarina exótica e alguém que cuida de idosos? Muita coisa, certamente, mas cada tipo de intimidade está a ser igualmente explorado no mercado (só que um é tido como menos decente do que o outro).

Segundo, assumimos que esta comercialização é global. A procura e a oferta tem feito uso dos movimentos transnacionais, tal como o sistema de produção coloca as fábricas em locais onde a mão-de-obra é mais barata. Os princípios que regem os custos e benefícios de uma transação aplicam-se à intimidade também. A busca por intimidade barata move as pessoas para lá das fronteiras, ora porque procuram, ou porque sabem que são procuradas. Nesta discrepância de poderes e possibilidades, a venda da intimidade traz à discussão temas que dão muito que falar.

Como a mobilidade, e o tipo de mobilidade que desejamos – quem é o bom ou mau migrante e o que vai fazer? Como olhar para o homem branco que vai a países em desenvolvimento à procura de intimidade e sexo, deixando filhos para trás? Como olhar para as mulheres que vêem a oportunidade de mobilidade ao vender o corpo, o cuidado ou o carinho? Ou, de que forma estas transacções tendem a reforçar as forças patriarcais que regem este nosso mundo, insistindo em papéis de género tradicionais? Como é que o neoliberalismo veio possibilitar a transformação dos nossos afectos? Num mundo que consegue estar ‘unido’ porque é muito desigual.

Terceiro, entendemos que as transacções de intimidade existem em detrimento de outras intimidades. Intimidades que se dividem porque uma é paga e a outra não é – como as famílias que se dividem para dar resposta a outras. Tal como as várias mulheres que deixam para trás os filhos para cuidar dos filhos dos outros. Uma espécie de hierarquização de intimidades em que a paga tem que ser mais valorizada se quisermos sobreviver neste mundo capitalista, e assim reforçar a desigualdade em que vivemos.

Quarto, também percebemos a importância de explorar o significado da intimidade para as pessoas, atravessando várias classes e estatutos. Particularmente, de como a intimidade pode ser utilizada como uma ferramenta de poder ou de subjugação, explorando fragilidades ou formas de empoderamento. Conceitos complexos para uma realidade que poderia ser simplesmente demoníaca, como a ideia de que aquilo que nos faz humanos sociais como o cuidado, o sexo ou a partilha podem ser comprados. Mas o foco nunca poderá ser a análise da sinceridade da ligação humana. Mesmo que a comercialização da intimidade nos ofereça o vislumbre do exagero que é a instrumentalização do conforto social, temos que ser mais analíticos que isso. A existência prática de objectivos capitalistas tornou-nos disponíveis para suprimir as necessidades afectivas e de cuidado ou de sexo com dinheiro.

Por último, se a intimidade não fosse comercializada neste estado económico actual, quem seríamos nós? Melhores ou piores?

17 Out 2019

Mulheres depois dos Setenta (anos da República Popular da China)

[dropcap]Q[/dropcap]ual o estado da igualdade de género na República Popular da China, depois de setenta anos? A revolução tirou as mulheres da cozinha e pô-las a carregar a bandeira do proletariado, longe do patriarcado feudal. Ainda há pouco tempo foi divulgado o white papers onde discutiam o desenvolvimento notável da expressão e participação das mulheres no domínio laboral e público, para além de melhores condições de vida. Os números mostram que tudo está a melhorar.

Mas nestes setenta anos o regime também tem assistido a algum descontentamento popular porque as medidas pela igualdade de género parecem precisar de uma actualização. Desde o movimento do coelho de arroz (que em mandarim se lê ‘mi tu’) para denunciar a normalização do assédio sexual em vários contextos, às feministas que foram presas por distribuir autocolantes a incentivar denúncias de assédio, à divulgação do problema sério que é violência doméstica (que só em 2015 viu leis a serem postas em prática), à pressão para rejuvenescer a população, contribuindo com dois filhos, que muitas não querem participar – em geral a situação não vai assim tão bem. O regime parece estar melindrado com a imposição de valores ocidentais hostis (mi tu = metoo) e assim evita discutir que igualdade de género é, afinal, esta. A preocupação com o envelhecimento da população e a queda da política do filho único em 2015, já levou o actual Presidente a insinuar que as mulheres devem voltar a dedicar-se a cuidar dos mais novos e dos mais velhos. A política do filho único que, de alguma forma, contribuiu para o investimento nas meninas (aos que, desgostosamente, não tinham um filho) fê-las mais letradas, e mais competitivas no mundo do trabalho. Só que agora parece que a mensagem é: ‘Já chega, já podes voltar a ser a mãe de família’. As universidades estão com tantos homens como mulheres só que a igualdade fica por ali. No mundo do trabalho a primazia do homem é evidente, que, aliás, sempre foi, com a quantidade de abortos e infanticídios ditados pela preferência que a criança tivesse um pénis em vez de uma vulva. E como uma socióloga referiu numa reportagem feita à Aljazeera sobre o tema, com o comunismo as mulheres podem ter saído da cozinha, mas os homens não entraram lá.

Já para não falar que a conversa, por este lado do mundo, continua binária e heterossexual (sempre com a feliz excepção de Taiwan). Os direitos LGBTQ+, que nem fizeram parte dos objectivos originais da revolução, precisam de ser incluídos depois de setenta anos a serem quase ignorados. Estes vêm acoplados com as preocupações de igualdade de género populares. Muitas activistas da área dizem ter esperança porque a contestação existe: nas redes sociais e em formas mais subtis do que manifestações públicas de reinvindicação. A visão exterior até pode ser de que a tradição está acima de tudo, mas na prática vemos uma flexibilidade não declarada, formas criativas de expressão de identidades de género e sexuais e até famílias (poucas) que aceitam a saída do armário sem grandes dramas – flexibilidade essa que esperamos um dia ver oficializada com políticas mais inclusivas, garantido mais direitos aos chineses que durante estes setenta anos se sentiram nas franjas do protagonismo nacional.

Vivem-se tempos curiosos para esta China globalizada que se mantém fiel à recusa dos valores tidos como ocidentais. Uma China septuagenária que diz que defende e preza a vontade das suas pessoas. Feliz aniversário pelos seus setenta anos de existência.

9 Out 2019

Coração Partido

[dropcap]C[/dropcap]oração partido – uma sensação de vazio no corpo de uma qualquer somatização e metáfora. O corpo fisiológico reage quando o amor, aquele conceito de pura abstracção, não era o que esperávamos. Diz a investigação que a dor de um desgosto amoroso activa a mesma área do cérebro da dor sentida, por exemplo, na pele. Por isso há quem recorra a analgésicos para aliviar dor do desamor (e parece que até resulta). Mas por mais que queiramos ter disponível uma resolução fácil para esta dor que tememos tanto, não é a solução ideal: os traumas sociais continuarão e o fígado ressentir-se-á se abusarmos desta medicação.

Terminar uma relação é difícil, mas acontece. O coração parte-se quando na nossa disponibilidade para a intimidade vemos que não há condições para (intimamente) nos relacionarmos. Quando a relação e a partilha deixam de fazer sentido (por tantas e variadas razões) teremos que passar por um processo de luto. O nosso ‘eu’ que era partilhado com aquela oxitocina e dopamina deixa de existir – há quem fale de abstinência, porque o amor é tão viciante como as drogas pesadas – e andamos a trepar paredes até que nos consigamos ‘refazer’.

Esta redescoberta de nós próprios na ausência do amor e de quem gostamos é dolorosa. O resultado deste processo de dor (que no pior dos cenários pode ser a depressão) depende de muita coisa. O mais importante é nunca subestimar a dor de um coração partido como dispensável ou fácil de gerir. A dor é essencial para que possamos renascer das cinzas como uma fénix. Simplesmente não é um processo fácil. Não será com um dia de analgésicos (aparentemente), álcool, gelado e séries sem parar que o coração conseguirá remendar-se.

Demora tempo e o tempo costuma ser sempre o nosso amigo quando precisamos de lidar com o desgosto. Temos que contar com a nossa capacidade reflexiva de nos permitirmos entristecer – para nos alegrarmos de novo.

O segredo também passa por reaprender a gostar de nós próprios e dos outros. Muitos convencem-se que nunca mais amarão, para evitar a intensidade deste desgosto (como se a intensidade da paixão e do amor não valessem a pena). Esquecemo-nos de como os outros nos trazem tanta alegria e prazer apesar de não parecer, no momento em que tudo termina. Não é por acaso que algumas criações artísticas são feitas em estado de coração partido, porque há muita dor e muita escuridão por resolver. A arte é uma de muitas formas de preencher os vazios que nos deixam. Importante reforçar, que do ponto de vista psicológico, é melhor resolver do que esconder: o que não quer dizer que a solução seja ruminar no assunto dias sem fim. A distância é importante para se arranjar espaço físico e emocional para lidar com a ausência. Mas é preciso aceitar o desconforto de um coração partido, aceitá-lo como normal para melhor geri-lo. A internet está cheia de sugestões para ultrapassar a dor de um coração partido, umas mais sensatas do que outras. A maioria das sugestões reforça o olhar cuidado para nós próprios, mesmo que não nos apeteça nada.

Claro que as sociedades não dão importância nenhuma à dor emocional, muito menos à amorosa. Parece que o amor é compreendido como uma característica dos fracos e os que se deixam sofrer pelo desconforto do desencontro amoroso mais fracos serão. Só que não. O amor não é a fragilidade da entrega, mas a coragem da entrega – e o desamor a coragem de nos reinventarmos quando o mundo parece não fazer sentido. O amor também não seria tão bom se não fosse, assim, arriscado.

25 Set 2019

O gene gay não existe

[dropcap]A[/dropcap] comunidade científica chegou à conclusão que o gene gay não existe. Depois de décadas a ponderar se tal ligação genética existia – inspirados por um trabalho desenvolvido nos anos 90 – chegaram à conclusão contrária. De quem gostamos e quem nos atrai não é definido por um gene. A conclusão detalhada do estudo recentemente publicado na Science e que tem sido amplamente discutido pela imprensa internacional é que não há um único gene que preveja a homossexualidade – mas sim um conjunto de genes em combinação com factores ambientais, dos quais a nossa socialização e experiência fazem parte. Para os mais ignorantes, a ausência de um gene particular e o facto da homossexualidade não ser um fenómeno totalmente genético pode ser erradamente assumido que a homossexualidade é, então, uma escolha.

A ausência de uma explicação totalmente genética – e, especialmente, a forma como foi noticiada – não poderá servir de suporte para os que acreditam que direitos LGBTQ+ são meras ‘ideologias’ e não factos naturais. Principalmente para os que acreditam que a homossexualidade é uma opção de vida que pode ser arrancada à força com regimes de ‘conversão’ ou campos de ‘reabilitação’. Nestes casos um argumento exclusivamente genético teria dado muito jeito para calar os que julgam que o sexo e a vida são obras da imaginação e não factos da naturalidade da vida. Como se as coisas naturais nos fossem boas, e as ‘criadas’, más. Desta notícia ficou por enfatizar o papel de possíveis combinações de genes e do ambiente externo, que apesar de não existir o gene gay, existem predisposições genéticas fortes que fazem com que a homossexualidade exista, naturalmente (tal como a heterossexualidade existe, naturalmente).

Com as recentes tentativas de reduzir os fenómenos comportamentais a meros factos biológicos (neurológicos, genéticos, fisiológicos) é com alívio que também vemos desmistificar que o que somos possa ser determinado por aquelas moléculas que determinam algumas coisas, mas não todas. As etimologias da sexualidade não podem ser simplificadas. Mas os argumentos complexos levam a discussões difíceis. Em tempos onde vemos o crescer do conceito de ‘ideologia de género’ para falar de direitos humanos básicos sugere que temos que ter algum cuidado com a forma que escolhemos falar destes temas e como queremos divulgar os avanços científicos na área. As tensões e os problemas que existem assentam na visão de como nos tornamos pessoas.

Somos o resultado de genes ou somos o resultado de vivências? Nenhum dos dois consegue explicar o complexo processo de ser, mas os dois em conjunto oferecem uma visão mais completa, mais holística, se quiserem.

Com a salvaguarda que o estudo não é perfeito, nem a conclusão irrefutável. A amostra de 470.000 participantes – a maior utilizada para estudos deste género – só inclui ‘ocidentais’. Já para não falar que a orientação sexual não é medida como identidade, mas como atracção – que, na minha opinião, oferece uma visão demasiado simplista (a fisiológica) para perceber a orientação sexual. Há também quem tivesse referido que este estudo genético provavelmente mostra melhor os preditores genéticos para participar em estudos, do que comportamento homossexual, já que – das grandes bases de dados – somente uma pequena percentagem se mostrou interessada em participar.

A ciência não é perfeita e a comunicação de ciência muito menos. Por isso é preciso oferecer plataformas onde estes temas possam ser discutidos – nesta complexidade que foge de respostas simplistas para os factos do mundo.

18 Set 2019

Modern Love

[dropcap]V[/dropcap]ivemos em tempos que privilegiam a vontade individual. Certamente já se confrontaram com o individualismo que co-existe com a tentativa de vivermos em paz e harmonia social. Somos egoístas, competitivos, invejosos (talvez porque nos é exigido) e ainda é suposto sabermos relacionarmo-nos com o(s) outro(s). Este individualismo exacerbado que coloca a meritocracia num pedestal (todos são capazes de tudo) peca em dar conta das fragilidades individuais e de como precisamos dos outros para ultrapassá-las. O grande segredo para a felicidade são os outros – e a partilha e conforto que nos possibilitamos nessas relações.

Nas relações amorosas em particular, que pressupõe uma partilha de fragilidades, um sobrepor de existências, de alegrias e de medos, vemos a fórmula 1+1=3 para dar conta da complexidade de uma relação íntima. O sucesso de uma relação depende de uma combinação entre eu, tu e nós como entidades que existem e co-existem, com limites às vezes mais claros, outras vezes menos. A complicação desta fórmula assenta precisamente na tensão entre ser individual e colectivo e de perceber que limites precisamos de estabelecer. Ninguém ainda definiu um equilíbrio saudável entre o que é a gestão emocional individual e dar conta das dificuldades em conjunto. Ao que damos prioridade? A nós próprios ou ao outro?

O amor como literatura bem que enfatiza a entrega completa. A entrega que nos faz dissolver com o outro e onde os limites do que nós somos e por onde vamos ficam completamente confusos. Ficamos à mercê das nossas emoções e dos nossos apetites, esquecemo-nos de nos individualizarmos e isso não precisa de ser mau. Mas não fica para sempre assim. Isso seria consumirmo-nos e deixarmos de existir por completo. A possibilidade de individualizarmo-nos nem aparece na literatura porque talvez não seja romântico. A gestão emocional que pressupõe continuar a ser quem somos, não totalmente como éramos, mas uma nova versão de nós próprios, é o grande segredo do amor. Um segredo que não é desvendado com uma solução perfeita. É daqueles segredos que é explorado por tentativa e erro, em todas as relações que temos, e com todas as partilhas que deixamos que aconteçam. Talvez os mais românticos sejam os que se atiram de cabeça sem olhar para os seus umbigos, talvez os mais práticos sejam mais exigentes com os seus limites. Há muitas formas de amar. Só que a coisa relacional funciona se o amor próprio e o amor pelo outro constituírem sistemas de alimentação interligados, mas não dependentes um do outro. Onde o cuidado é co-partilhado e co-responsabilizado e não é de exclusiva responsabilidade de qualquer das partes.

As sociedades ditas individualistas e colectivistas provavelmente apresentam expectativas muito distintas de amor romântico e do significado de ‘nós’. Como um jogo de necessidades, sociedades que pressupõem ligações mais próximas ou distantes devem alterar as expectativas do amor romântico também. Não saberemos bem como, porque a natureza do amor romântico continua a ser um segredo, um mistério que por mais reflexão literária e investigação científica continua a ser absurdamente incompreendido. Em tempos de exaltação do auto-cuidado, do mindfulness e da gestão individual das nossas emoções e dificuldades num ocidente neoliberal, corremos o risco de não ver para além de nós próprios. Podemos até chegar a extremos onde o outro deixa de existir por completo. Só que o amor não é uma seta de cupido num vácuo social.

O amor fazemo-lo sempre acompanhados.

11 Set 2019

Hong Kong e o Corpo do Protesto

[dropcap]H[/dropcap]ong Kong passa um Verão de profundo descontentamento. Para além dos argumentos pró-democracia e as tensões associadas a um plano (aparentemente simples) de um país, dois sistemas, outras tensões têm surgido. As tensões do sexo e do género são invariavelmente transversais a tudo. A 28 de Agosto dezenas de milhar de protestantes juntaram-se em Hong Kong para reivindicar direitos humanos básicos que o uso do corpo no protesto parece não pressupor. Dois casos de violência sexual foram divulgados no contexto do descontentamento popular pelo regime. A vulnerabilidade dos corpos tidos como femininos tem sido amplamente discutida num lugar onde as mulheres (jovens) são tidas como materialistas e dependentes, mas que agora têm mostrado novas formas de feminilidade.

Um dos acontecimentos que despoletou esta discussão foi a da alegada violência sexual pela polícia, por terem avançado com a busca completa a uma mulher que tinha sido detida.

Despiram-na e exigiram avaliar todos os seus recantos à procura de… não se sabe bem de quê. O caso veio a público por ela, que se quis esconder no anonimato. Este episódio tão particularizado mostra a humilhação a que os corpos e as mentes estão sujeitos quando nos vemos confrontados com a autoridade. Não se sabe se haverá outros casos assim – de abuso de poder e de completo desrespeito pela dignidade do corpo e do sexo do outro.

Momentos de crise, e este em particular, vêem o materializar de representações que subtilmente existiam, de ideias liberais, democráticas – e do género, de como este é performado e contestado.

Não é por acaso que este episódio tenha gerado tanta insatisfação. As protestantes estavam sedentas por pôr na agenda a preocupação que é a normalização da violência sexual contra as mulheres. Que não se cinge à arena do protesto citadino e policial, mas também nas redes sociais, onde mulheres têm sido atacadas pelos chamados ‘trolls pró-Beijing’. O nível de discussão digital atinge níveis patéticos, com a constante humilhação sobre o significado de mulher e uma total ausência de discussão ideológica (que as ideias pró-democracia em conflito com o socialismo com características chinesas poderiam supor).

O movimento global recente do #metoo serviu de inspiração para o novo movimento de igualdade de género em protesto – #protestoo. Tal como se estão a importar os valores democráticos, este é só mais um pacote de ideias. Mais um sintoma de como certos ideais se estão a universalizar e a serem homogeneizados. Só que exportar ideais liberais e até direitos humanos como máximas universais pode induzir à falsa crença que estes são de ‘um tamanho e que cabem a todos’. O que pode não ser verdade. Acho que a história do imperialismo americano tem sido muito esclarecedora de como a homogeneização ideológica global só pode acabar mal.

Talvez toda esta situação de Hong Kong seja demasiado complexa e não haja uma solução milagrosa para resolver o descontentamento popular – seja na luta do género ou no estabelecimento de ideais democráticos (que bem sabemos que pelo mundo fora, estão pela hora da morte). Receio que estejamos perante uma tentativa de exaltação de ideais (neo)liberais de forma acrítica e assimiladora, mesmo que mascarados por valores incontornáveis como os dos direitos humanos. A luta popular é sempre admirável e não acredito que o progresso possa existir sem discussão ou confronto. Fica para sempre a questão de como a revolução política e social pode ser eficaz em tempos de globalização e homogeneização.

5 Set 2019

Bi-invisibilidade

[dropcap]A[/dropcap] bissexualidade é invisível, mas muito presente nas formas de relacionamento romântico e sexual contemporâneos. A literatura parece concordar que isto se deve a um limbo algures entre o mundo heterossexual e o mundo homossexual, onde a bissexualidade se encontra. Estes mundos estão melhor limitados pela sua característica monossexual (ou só do mesmo sexo ou do sexo oposto) tornando-os muito mais fáceis de reconhecer e assumir. A bissexualidade, por sua vez, fica num não-lugar de identificação imediata. Durante muito tempo que se julgou que nem existia – era só uma fase de transição de um mundo para o outro.

Estes mundos apresentam-se numa espécie de sistema binário contrastante, em que a homossexualidade é o contrário da heterossexualidade. A necessidade de desconstruir a expectativa de que todos os relacionamentos são entre um homem e uma mulher, ou que a família se faz exclusivamente através desta relação, resulta nesta dicotomia que tem como intuito dar espaço a formas para além das heteronormativas. Este processo implica a constante politização de identidades e denúncia das dinâmicas de poder que definem o subalterno e o dominador. Mas a bissexualidade não é claramente uma nem outra e por isso fica perdida nesse jogo de poder e de legitimidade. Fica perdida entre o mundo do privilégio heterossexual e o mundo de reivindicação da homossexualidade. Navegar nestes dois mundos possibilita uma complexa posição de conforto e desconforto – e de muita dificuldade de reconhecimento – porque ‘normalmente’ ou se é uma coisa ou outra. A falta de reconhecimento pelo outro heterossexual ou homossexual faz com que sejam exigidas provas à não-monossexualidade.

Porque os bissexuais, se não forem poliamorosos (que podem ser), ou estão numa relação homossexual ou heterossexual – e aí espera-se que preencham os requisitos ou de um ou de outro.

Só que a bissexualidade não é só outra forma incompreendida de viver a sexualidade. Há quem a encaixe nas novas formas de heterossexualidade: é de algum modo expectável (graças à pornografia?) que as mulheres sejam bissexuais. Esta bissexualidade apresenta-se como comportamento sexual que deve ser visto/avaliado/admirado. Ao que a literatura chama de bissexualidade performativa – porque serve de performance ao outro-heterossexual. O que nos leva à questão – será que a bissexualidade está a romper com a perspectiva dicotómica do sexo ou está a dar mais força ao patriarcado? A resposta certa para ajudar a navegar este dilema da bissexualidade terá que partir da definição que lhe damos – só que ela continua invisível. Esta invisibilidade tem criado barreiras na maior congruência entre a identificação da orientação sexual e o comportamento sexual das pessoas. Pessoas tidas como heterossexuais que têm também parceiros do mesmo sexo não se identificam como bissexuais (e vice-versa) porque há dificuldade em mobilizar a bissexualidade para além dos mundos sexuais nossos conhecidos.

A bissexualidade está bastante alinhada com as expectativas de um contínuo sexual, onde as pessoas se poderiam posicionar entre mais heterossexual ou mais homossexual. A proposta inicial do Kinsey e a visão pós-estruturalista e mais sofisticada da teoria queer, tenta apresentar a identidade sexual e de género de forma fluída, contínua e em transformação. Num mundo ideal (um mundo muito mais justo do que o actual) esta fluidez talvez fosse menos complicada de ser entendida e os espaços deste contínuo seriam a única posição possível.

7 Ago 2019

Coisas de vulvas, o mito da virgindade e o verdadeiro sexo

[dropcap]A[/dropcap]s vulvas escondem-se e mostram-se de várias formas. A pluralidade de formas que ninguém discute já levou a que muito boa gente se sentisse obrigada a uma vulvoplastia. Um exemplo clássico de como a expectativa da vulva perfeita já foi aproveitada pela nossa sociedade de consumo. Com estas pressões de transformação começa a existir pouco espaço para a variabilidade e diversidade dos sexos e dos genitais femininos. O pouco conhecimento acerca dos cuidados a ter com as vulvas também é preocupante. Aliás, o pouco que se sabe sobre genitais tidos como femininos ou masculinos é preocupante de várias formas, até ao nível de saúde pública. A educação sexual continua a limitar-se a falar de vaginas e pénis e de DST’s e de preservativos de forma limitada, descontextualizada do prazer e sem descontruir os tabus do sexo que nos afectam física e psicologicamente. Porque ainda há quem queira uma vulva perfeita e há quem queira retrocede-la no tempo. Virginizá-la com auxílio da cirurgia plástica. Patetices.

O conceito de virgindade é problemático também – uma construção social ao invés de uma condição fisiológica clara que sempre nos quiseram vender. Construção essa que pressupõe que o hímen, quando quebrado por penetração vaginal, vá sangrar e que desaparece magicamente logo após a primeira relação sexual vaginal. A confusão anatómica pressupõe o hímen como um pedaço de película a tapar a entrada da vagina. Só que não – o hímen é mais uma orla membranar, bem elástica, com um círculo no meio. Até pode ter vários círculos/falhas, até franjas.

Não há nada de anatomicamente típico no estudo da virgindade – especialmente quando uma mulher de meia-idade, trabalhadora do sexo, já ter apresentado um hímen semelhante à de uma adolescente. Estas não são raras excepções à virgindade, mas a confirmação de que observação vaginal pouco nos diz sobre o seu estado sexual. O hímen pode ter muitas formas e feitios e pode parecer – como já vi descrito – um floco de neve com complexos rendilhados. Os testes de virgindade são inúteis. Vários contextos sócio-culturais é que nos tentam convencer que são fiéis e úteis no entendimento da sexualidade feminina – na perpetuação da dominação sobre a sexualidade feminina.

Com certos entendimentos vulvares acompanhados pelo mito do hímen e da virgindade vem outra concepção problemática: a de que o sexo de penetração entre uma vagina e um pénis é o único que existe. Supostamente, a iniciação faz-se pela primeira vez que o pénis entra, o hímen se parte, e toda a dignidade da mulher se perde. Só que o sexo é tão mais completo e complexo do que isso. Se se mudar a forma como se vê o sexo e retirar-se a primazia do sexo vaginal da equação, ficamos com uma visão muito mais igualitária e interessante. Uma visão em que o sexo é muito mais criativo e inclusivo. Uma visão que quebra com as visões binárias do género e do seu papel na sexualidade.

Gostava de encontrar um verbo simpático para descrever o sexo que fosse menos ofensivo do que a (fabulosa) gíria imprópria para menores de dezasseis anos – mas que fosse menos amorosamente carregado do que ‘fazer amor’. A utilização do verbo é importante para entender este processo que é o sexo, e deixarmos de essencializá-lo à sua forma redutora – a um simples substantivo. A vulva verdadeira não existe, o hímen como vulgarmente entendido, muito menos.

O sexo é tanto mais do que um pénis e uma vagina – porque também há vagina com boca, pénis com ânus, pénis com boca e tantas outras combinações possíveis (sim, ainda há mais). As vulvas e os sexos precisam desta abertura e crítica – para além do que nos é tido como óbvio.

24 Jul 2019

Caçando Unicórnios

[dropcap]O[/dropcap]s unicórnios são seres míticos (raros), que agora vêm a sua correspondência no mundo do sexo. Os casais que andam à procura de um unicórnio estão à procura ‘da’ mulher que se possa juntar à sua actividade sexual e fazer parte no tão desejado ménage à trois. Esta procura por unicórnios – que parece ocupar as plataformas na procura de parceiros sexuais/amorosos – é problemática de várias formas. Até começam a existir grupos no facebook para aquelas (unicórnias) que já sofreram com esta caça. E o que é, exatamente, um unicórnio? O unicórnio é uma mulher que gosta de homens e de mulheres. Um pré-requisito fundamental para que o ménage a trois corra na perfeição: alguém que goste de interagir com vulvas e pénis.

Nestas plataformas românticas, têm se visto formas muito sofisticadas de atrair estes unicórnios para o leito heterossexual – o que só demonstra a falta de ética que este processo de procura do unicórnio anda a sofrer. Os ditos unicórnios andam a ser atraídos por conversas que se julgavam íntimas e próximas, normalmente com uma mulher – normalmente a julgar que o jogo é a dois – que depois descambam para uma tentativa de empurrá-la não só para a cama, mas para a cama com um namorado que está pronto para apreciar o amor lésbico. Bem sabemos que a pornografia veio normalizar esta forma de amor homossexual – e que o mantém dentro dos limites da suposta normalidade sexual pornográfica.

Estes caçadores de unicórnios põem em evidência valores muito instrumentalistas do sexo. Como se as pessoas – os ditos unicórnios – estivessem ao dispor desta sexualidade que serve para acalmar os apetites dos casais que assim o querem. Também põem em evidência valores particularmente masculinos – ao enfatizar esta constelação de um homem com duas mulheres para a melhor orgia possível. Claro que a política do pénis único nestas formas de sexualidade costumam ser a regra e raramente a excepção. O que até parecia uma abertura progressiva à sexualidade – em casal heterossexual inovar a sua sexualidade ao incluir um terceiro elemento, é um mobilizar dos valores já vigentes de papéis de género e dar-lhe uma nova e confusa roupagem que afinal… vem redefinir pouco estes valores mais tradicionais.

Há unicórnios que se referem a esta prática de caça ao unicórnio como uma forma de bifobia, por não se compreender de facto o que é a bissexualidade. Assume-se que esta vontade por vulvas e pénis é plural. Quando se pensa na bissexualidade dá-se como garantida a disponibilidade por participar nestas formas de sexo colectivas quando pode nem ser o caso.

Mas por outro lado, há unicórnios que fazem uso desta identidade com orgulho. Transformam em verbo o acto de se unicornizar – e disponibilizam-se para serem os unicórnios que os casais heterossexuais andam à procura.

Nenhuma ideia de unicórnio ou caça ao unicórnio é problemática em si. Só que temos assistido a representações de bissexualidade que são problemáticas, pontos de partida conceptuais que exaltam o sexo como produto (quase comercializável) em vez de um processo de partilha constante. Pelo que tenho visto – e com razão – se é para tratar os unicórnios como objectos de prazer unilaterais, na sua procura e na sua interação, mais vale pagarem a prostitutas para fazerem ‘uso’ de unicórnios. Porque muitas vezes não se assume que os unicórnios se envolvam sem retribuição (que pode ser emocional, relacional e sexual) na dinâmica das relações. Para quem já anda nestas andanças à bastante tempo, e quem oferece aconselhamento a quem anda à procura de um terceiro elemento para satisfazer as suas fantasias, parece claro que os casais estão pouco preparados para perceber os seus limites de prazer e são invulgarmente protectivos em relação ao que eles querem (em vários domínios) e não consideram o unicórnio como um ser com vontade própria.

Como qualquer encontro sexual: esta procura e ‘caça’ ao unicórnio abertura à comunicação e à discussão/negociação dos limites do que é o respeito e o prazer nestas formas (ainda assim populares no imaginário) do sexo.

17 Jul 2019

Corpo de Praia

[dropcap]C[/dropcap]omo procuramos o corpo perfeito? Representações disto e daquilo que ditam o que é bonito e feio, ou aceitável. As formas como tentamos chegar a este corpo perfeito deixam imenso espaço para discussão. Devemos nós submetermo-nos à maravilha do controlo total do nosso corpo?

Quando chegam os meses mais quentes, a pressão publicitária para encontrarmos (em nós) o corpo perfeito parece que se intensifica. As pessoas despem-se com o calor e com isso podem estar a mostrar aquilo que não é aceitável. A celulite, a gordura ou as estrias. Note-se que esta é uma dificuldade particularmente ocidental, talvez particularmente mediterrânica onde as praias são um estilo de vida. De qualquer modo, mesmo que os padrões de beleza se alterem, não deixam de existir – aqui e ali. Há do belo idadismo no que toca a estes corpos. Parece que os corpos velhos já não devem ter direitos de exposição como se fosse uma ofensa, passíveis de censura. Só que os padrões de beleza são construídos – e podem ser reconstruídos também.

Não há nada de fundamental no corpo que envelhece, nós é que o essencializamos para algo que não convém a ninguém. ‘Basta’ transformamos a nossa forma de pensar para não nos chocarmos com a pouca perfeição e a velhice de cada um.

As pessoas detentoras de vaginas e que se regem pela heteronormatividade das relações parece que cedem mais a estas pressões. Não porque são (só) homens que ditam padrões de beleza – apesar de serem sobretudo os homens. Estas dinâmicas vêm de uma expectativa relacional de que os homens são visuais e as mulheres não, que os homens cedem à tentação dos corpos e as mulheres não, e mais outras coisas parvas que aparecem nos estudos – e representações diárias – que mostram que as diferenças de género são estáticas, biológica e fisiologicamente definidas.

Quando já deveríamos ter ultrapassado esta visão retrograda do género, do corpo e da beleza. A censura do corpo feminino leva a absurdos que continuam a prevalecer desde há décadas – provavelmente desde há séculos. Pêlos, mamilos, exposição a menos ou exposição a mais.

Parece que o corpo tido como feminino é frequentemente escrutinado ora por uma razão ou por outra. Os burkinis são repressivos, os fios dentais progressivos – caso se tenha um rabo em condições de ser mostrado. Perfeito.

O corpo é dissidente quando vai contra a corrente. Mas esta dissidência é só para os corajosos que ousam mostrar-se. Não é fácil submetermo-nos aos olhares de escrutínio constantes.

Produz-se saber à naturalidade do corpo que tantos outros querem artificial. Tal como também se produz a artificialidade no sexo. Se o futuro do sexo passa por robôs que podem ser comprados de acordo com as nossas preferências corporais – levamos ao extremo o controlo que queremos ter sobre tudo. Nada contra a criação (e a criatividade) mas dá muita vontade pôr limites quando esta produção implica uma anulação completa do corpo tal como ele é.

Estes corpos belos não são só os que têm feições bonitas ou que possuem características dignas de capas de revista actuais. Os corpos de variadas cores da pele, formas e cores de cabelo passam pelo crivo do ‘aceitável’ também. Num mundo onde ainda nos obcecamos pela beleza da pessoa caucasiana só demonstra o quão atrasados ainda estamos para abraçar a nossa beleza (essência?). Não é por acaso que certas gentes andam a criticar a nova pequena sereia da Disney – porque agora será negra. Como se já não estivéssemos demasiado cansados de (re)produzir o corpo aceitável, sem crítica, sem auto-reflexão, sem desejo de controlo.

O corpo de praia é o que vai à praia – estou farta de dizer. Tornando o corpo político é o que nos permite ir à praia quando o corpo não é ‘belíssimo’ – de acordo com os critérios que andam aí.

10 Jul 2019

Por que (não) precisamos de Chás Afrodisíacos

[dropcap]T[/dropcap]odos temos teorias do que é o desejo, o sexo e o amor. Atribuímos significados às nossas sensações e definimos cronologias do que vem primeiro ou depois.

Primeiro o desejo, depois o sexo e depois o amor, talvez. Pelo menos os psicólogos da evolução do comportamento parecem sugerir que o amor veio por último – um desenvolvimento natural para justificar a sobrevivência. Que não é bem a nossa sobrevivência, mas a dos genes que os nossos bebés carregam. E claro, lógica mais natural é de que os bebés irão sobreviver melhor se tiverem um pai e uma mãe a protegê-lo. Assim pensam uma facção de psicólogos que gostam de simplificar e normalizar aquilo que – talvez – não traz grande vantagem em ser assim simplificado.

Mecanizar o que somos resulta numa enorme ausência de significado nas nossas vidas. Parece que vivemos para racionalizar tudo e todos, somos ateus e descrentes. Queremos esmiuçar o que é complexo porque a fenomenologia do saber não basta. Não basta sentirmos, temos que pensar de forma a deslegitimar o que sentimos. Como se o nosso sistema sensório-motor estivesse a enganar-nos e precisássemos de esclarecer exatamente o que se passa connosco.

Na forma mais romântica de sermos, estas sensações que o desejo, o sexo e o amor trazem, poderão muito bem justificar o que somos. Como se fizesse parte da nossa procura de sentido. Só que biologia despe tudo de magia. Deixa-nos a sós com a ideia de que afinal somos só feitos de mecânicas e químicas que justificam o que sentimos. A investigação mostra que os caminhos neuronais para o desejo e para o amor são muito semelhantes. E o que é que isso nos interessa?

Precisamos mesmo de procurar os caminhos neuronais do amor? Há quem ache que sim, eu acho que não. Optar pelo modelo biomédico do sexo e do amor é assumir que a procura por quem somos, até nas formas mais esotéricas, não as incluem. Se tentamos reduzir a magia do amor à presença de oxitocina, estamos mal. Tiramos a possibilidade de sermos mais do que um conjunto de células que só reage quando tem que reagir. Por exemplo, julgar que chás afrodisíacos curam a falta de desejo é assumir que o corpo pode ser só um corpo. Nada mais. E quem fala de chás, fala de medicação ou outras técnicas que assumem que o sexo só precisa de um estímulo e não de uma história – complexa, rica, com vitórias e perdas que lhe fazem parte – para resultar em desejo, sexo e amor.

A solução é a estória ou a narrativa. As narrativas que contamos – melhor do que as áreas do cérebro que se activam numa ressonância magnética – mostram-nos melhor como o desejo cresce ou desaparece. Com o uso das palavras penetramos os símbolos, as emoções ou os comportamentos dos diferentes estados de enamoramento. Não presenciamos só aos significados, mas à mobilização de conteúdos que nos reinventam. Da forma como bebemos da imaginação para sobreviver à distância de quem mais gostamos ou para sobreviver a proximidade de muitos anos. Criamos estórias para contrariar a tendência mecânica e simplista. Estórias que podem ser criadas por muitos ou individualmente. As culturas tendem a definir as estórias amorosas dignas de serem vividas ou imaginadas. Só que nós somos uns rebeldes pelo prazer e pelo amor. Recriamos os contos de fada para sermos felizes – porque só contando e apropriando das nossas estórias é que podemos senti-las como nossas. Com as perspectivas vigentes, podemos ser princesas, príncipes e vilões ou animais que se regem por instintos e nada mais. A verdade é que num mundo de opções de como escolhemos viver o desejo, o sexo e o amor são sempre escolhas entre narrativas. Podemos optar por amor e sexos fantásticos ou do tipo aborrecidos que as narrativas biológicas nos tentam impingir.

3 Jul 2019