Tânia dos Santos Sexanálise VozesFactos menstruais [dropcap]U[/dropcap]ma associação no Reino Unido estabeleceu que esta seria a semana da consciência ambienta-menstrual onde tentam incorporar vários temas que por aqui já vos trouxe ao longo do tempo: tabu, pobreza, inclusão e representação menstrual, e os seus efeitos no ambiente. A proposta é de que a menstruação, para além de sangue a sair por entre as pernas, seja uma questão de justiça social. Nós, humanos, perpetuamos práticas menstruais que não nos trazem muita saúde, nem física, emocional ou ambiental. As práticas desenvolvidas para ajudar a gerir a menstruação têm resultado em poluição. Os produtos como pensos e tampões descartáveis acabam no mar e em aterros sanitários. Não há praia com lixo que não tenha algum componente menstrual, e, dada a percentagem atroz de plástico na sua composição, estes objetos nunca vão desaparecer por completo. Um facto aleatório para o vosso conhecimento geral. Neste ano de 2020, em que sentimos tudo a mudar, a menstruação continua a ser uma preocupação de topo. O que devia ser tremendamente normal – os úteros sangram mensalmente -, continua a ser uma grande fonte de escárnio e nojo. Vi algures uma tira de BD que ilustrava a dificuldade em normalizar o sangue menstrual. Imaginem um tipo sentado no sofá a ver uma batalha sangrenta na televisão, está todo contente! Em outro momento, aparece um penso ensanguentado no ecrã, e com ele vem a expressão de horror do espectador. Padrões duplos, é o que é. Para umas situações o sangue é fixe, para outras é absolutamente intolerável. De quem é a culpa desta discriminação menstrual hedionda? Nossa, minha, tua, de todos. A educação menstrual está mais a cargo das empresas de comercialização de produtos do que de conversas familiares sem vieses comerciais. Empresas que retratam a menstruação como um líquido azul. Porque ainda hoje, ninguém diz que está com o período. Ensinou-me a minha mãe. Insinua-se que se está menstruada, com um código de morse, com olhares de “a ver se me faço entender”. Desconversa-se a menstruação porque o aceitamos como a norma, e há quem sinta a necessidade de se desculpar por sequer mencioná-la na comunicação social. Não se fala da menstruação como quem fala de queques, por exemplo. Se assim fosse estaríamos mais à vontade em trocar receitas (e factos!), ou discutir as melhores estratégias que nos trazem conforto durante dias de inchaço e dor, até aos produtos que usamos e queremos recomendar. Sabiam que a água ensanguentada, das lavagens dos pensos e cuecas menstruais reutilizáveis, resulta numa água tão incrivelmente rica que podem regar as vossas plantas com ela? Outro facto menstrual que provavelmente não sabiam, e este, muito benéfico para o ambiente. Até acho que, a incapacidade de falar de menstruações como quem fala de um bolo de arroz, e o uso massivo de produtos descartáveis, fizeram com que as pessoas menstruantes se desconectassem da sua menstruação. O que ela é e para onde vai? O plástico e a menstruação começaram a ter uma relação mais íntima, precisamente porque as pessoas queriam formas discretas de lidar com ela. Mas agora que vemos os pensos descartáveis (que podem ter 90% de plástico! Outro facto) a serem encontrados pelas praias do mundo, as pessoas mais ambientalmente conscientes ficaram com vontade de utilizar outros produtos: pensos reutilizáveis e copos menstruais. Com esta transformação vem outra transformação desejável: uma relação mais próxima com a menstruação, olhar o sangue de frente e aguentar todas as pressões que nos sinalizaram que podia ser nojento. Não vale a pena viver na pouca aceitação (social e individual) porque a menstruação é um facto inevitável da vida.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA saúde mental e o sexo [dropcap]D[/dropcap]ia 10 de Outubro celebrou-se o dia da saúde mental. Foram imensas as publicações que trouxeram alguma consciência para o tema. Até poderia parecer que o sexo não tem nada a ver com isso, mas tem bastante. Até 1973 a homossexualidade fazia parte do manual de doenças psiquiátricas, e até 1992 ainda se considerava uma doença pela organização mundial de saúde. A sexualidade humana está envolta em muitas amarras ideológicas, heteronormativas, que criam limites de um suposto normal e de um suposto desviante, ou psicopatológico. Uma vida de não-conformismo com uma visão do sexo e género tradicionais, exige uma luta constante por legitimidade, visibilidade e normalização. Não é por acaso que muitos estudos mostram a maior prevalência de ideação suicida em jovens LGBTQI. A forma como as sociedades ainda não acolhem a diversidade sexual traz consequências sérias à subjectividade. Um desajuste que ainda é fonte de conflito e de mau-estar. O problema não é o não-conformismo, o problema é que os outros não sabem ainda recebê-lo. Neste dia da saúde mental não basta pensar nas psicologias fora da norma, mas nas condições que fazem com que sejam entendidas como tal. Sou eu que estou mal? Ou são os outros que não conseguem receber-me? Alguns académicos defendem a inclusão da sexualidade nos modelos de saúde e bem-estar. Principalmente porque o sexo como prazer não é elaborado o suficiente. A literatura mostra os benefícios do sexo para a saúde mental, como por exemplo, no alívio do stress, na criação de auto-estima e no processo de vinculação com o outro. O sexo está no meio do que julgamos intimidade e relação. Mas raramente vemos esse tipo de discurso nos canais oficiais – normalmente vemos o foco no sexo, como procriação, e na prevenção de comportamentos de risco. Discursos oficiais também podiam explorar o sexo como potencial mecanismo para reestruturar as nossas emoções e vivências se existir aceitação identitária e sexual – que é tanto um processo individual como relacional. De novo, as psicologias dependem tanto do que acontece dentro de nós, como com o outro-macro-ecológico que perpetua significados do que é expectável ou não. O sexo está no centro destas dinâmicas. Queria, contudo, ressaltar que, ao fomentar um discurso em que o sexo é tudo de bom, e que as pessoas saudáveis se entregam ao prazer com mais regularidade, corremos o risco de excluir a assexualidade como uma forma, igualmente saudável, de se viver. Quando se tenta relacionar o sexo e o bem-estar é necessária uma gestão e análise cuidada dos limites que se criam e se re-criam do que deve ser normal ou não: e como se inclui ou se exclui certas vivências. O sexo como objecto social e como experiência vivida ajuda a propor uma visão integrada do bem-estar. A saúde mental ainda tenta dicotomizar o mundo entre normalidades e desvios, sem olhar para os espectros do bem-estar de forma contínua, tal como a sexualidade tenta propor. Só fazendo uso de uma visão integrada destas dinâmicas é que conseguimos dar resposta ao desafio de se estar neste mundo de diversidades e adversidades, onde a normalidade é continuamente, e felizmente, contestada.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO esguicho [dropcap]O[/dropcap] esguichar, ou a ejaculação de quem tem vulva, tem sido objecto de grande interesse. Não é por acaso que a procura por estes conceitos tem aumentado de ano para ano em sites de pornografia, sobretudo por mulheres. Isto é provavelmente sintomático da dúvida que teima em insistir. Será que existe? O que é que é? Como se identifica? Certamente que existem mulheres que ejaculam porque têm pénis. E essa ejaculação não deixa mistério algum por desvendar. A ejaculação da vulva, por outro lado, não está tão bem explicada. Certas vulvas vêem acontecer uma espécie de ejaculação, especialmente depois do orgasmo. Estima-se que isso pode acontecer em 10 por cento a 50 por cento das mulheres. Costumam descrevê-la como um libertar de líquido que pode molhar a superfície de contacto de forma mais ou menos intensa. Há quem o descreva como um esguicho (squirt), com alguma pressão, ou uma fonte, até 150 ml de líquido. A revisão histórica parece mostrar que há 2000 anos já se escrevia sobre esta possibilidade, tanto no ocidente como no oriente. Em textos taoistas já se falava no poder libertador e regenerador da ejaculação da vulva. A investigação aponta para várias teorias do que realmente se passa. Há quem diga que este esguicho é só urina – como um estudo mostrou que a bexiga estava vazia depois do orgasmo – ou que pode ser confundida com incontinência do coito, quando há perda de urina durante o sexo. Esta possibilidade, contudo, recebeu muita contestação e retaliação de quem esguicha. Não podia ser só isso. Uma análise mais cuidada mostrou que o liquido poderá ter uma percentagem de urina, sim, mas em pouquíssima quantidade. Na verdade, este líquido também terá quantidades variáveis de PSA, uma proteína comummente encontrada no sémen de quem tem pénis. Há mulheres que podem ter tecido de próstata na parede da frente da vagina que justifique a segregação desta proteína pela uretra. Chamam-se glândulas de Skene e nem toda a gente as tem. Contudo, no imaginário contemporâneo do sexo, colocou-se o ejacular da vulva num pedestal. Consideram-na numa espécie de meta última para provar a capacidade de sentir prazer e proporcionar prazer – como se todas as pessoas tivessem a mesma propensão para fazê-lo. Só que ao mesmo tempo, para as vulvas ejaculadoras, há vergonha e desconforto por todo o aparato inesperado de molhar tudo à volta. Enquanto que algumas pessoas se sentem empoderadas por ejacular e fazer ejacular, outras enchem-se de complexos. Isto tem chegado a um ponto que a indústria pornográfica tem procurado actrizes que consigam retratar o esguicho em filme. Há quem se veja forçada a encontrar formas criativas de compensar a dificuldade de ejacular com obrigatoriedade, o que torna o momento muito artificial e pouco fidedigno. Ao mesmo tempo, visto que é um suposto líquido com urina, os legisladores temem que se equipare com o urinar. Urinar, em contexto pornográfico já é demasiado “perverso”. Há países, como o Reino Unido, que censuram a ejaculação da vulva em vídeo por causa disso. Ainda que a ejaculação da vulva traga uma conversa de milénios, só agora é que se renovou um interesse mais científico e popular sobre o tema. Como qualquer objecto sexual está envolto em discursos de libertação e vergonha que levam ao dualismo nosso conhecido do sexo. Ora é a prova máxima da lógica competitiva do sexo, ora mais uma forma de repressão e desconforto com o outro. Mas como tantas outras coisas no sexo, não há nada mais saudável do que explorar estas particularidades do corpo, individualmente e em conjunto, para a normalização da sensação de prazer, intimidade e entrega.
Tânia dos Santos Sexanálise Vozes#paremdepartilhar [dropcap]C[/dropcap]omo dizem os distópicos das redes sociais, estas redes vieram explorar as fragilidades e dificuldades humanas. Nos vários problemas já identificados, como notícias falsas, polarização política, câmaras de eco, o crescimento do autoritarismo e conservadorismo, está o sexo no seu pior também. Há uma prática comum entre sei lá eu quem – porque felizmente, não é coisa que me chegue às caixas de entrada – onde se partilham vídeos, áudios e imagens sensacionalistas. A ânsia pelo escândalo é tão grande que carregar no botão para partilhar o choque é inevitável. Cria-se uma corrente de partilha sem fim. Nem sempre se sabe se os conteúdos partilhados são fidedignos ou se foram consentidos pelos autores ou protagonistas. O Zuckerberg bem tenta dicotomizar o público do privado com um pacote de aplicações sociais. O facebook é público, é como estar com os vizinhos e os amigos num bar, o whatsapp é privado, e é como estar em casa com a família. Esta dicotomia que nos tentam impingir desresponsabiliza muitas das coisas que acontecem na suposta esfera privada do whatsapp. Lugar esse onde são partilhados conteúdos sexuais mais à vontade. Nas redes sociais, supostamente, públicas, as políticas para controlar e denunciar conteúdos desadequados já é muito mais apertada. Pessoalmente não acho nada de errado em partilhar conteúdos sexuais, quando há consentimento na interacção. Querem enviar nudes? Querem enviar dick pics? Viva a sexualidade positiva e aberta. Mas as práticas que aqui vos trago não são bem essas. Muitos dos vídeos e imagens de sexo que andam a ser partilhadas não são consentidas. A história típica é a do ex-namorado que, raivoso, partilha os vídeos de sexo que foram gravados para uso pessoal do casal. A chamada pornografia de vingança, para além de ser crime, já levou muitas mulheres ao suicídio. Repito: mulheres já se suicidaram porque as suas imagens vieram a público. Os interesseiros e coscuvilheiros – que só prova que muita gente deve ter o seu ‘quê’ de voyeurismo – alimentam estas correntes, e esse é o outro factor problemático na equação. Quando estas correntes aumentam de proporção com reencaminhamentos constantes e exponenciais, são trazidas para as redes sociais, para os jornais e os cafés. O voyeurista plebeu intromete-se na esfera privada e íntima do sexo, de onde certas narrativas começam a surgir, e o discurso não vos surpreenderá. Dou-vos o exemplo do caso do vídeo de sexo no comboio da CP. O evento foi gravado por terceiros e partilhado por todo o lado. A identidade da participante foi divulgada, e claro, o que é que aconteceu? Bullying à séria. Os rapazes que participaram não foram escrutinados na praça pública da mesma forma. Este duplo critério não tem nada mais, nada menos, que laivos de machismo resistentes e persistentes nas sociedades liberais contemporâneas. As mulheres só podem ser um híbrido esquisito entre virgem e devassa, e são condenadas por serem uma e a outra. Movimentos como #cortaacorrente (muito melhor do que o hashtag que eu inventei) alertam para a responsabilização individual e colectiva de não alimentar toda esta parvoíce. Assim que se recebe um vídeo, pode-se denunciar, e não alimentar a corrente de partilhas de onde veio, e para onde tenderá a ir. Denunciem conteúdos que não sabem de onde vieram ou se são consentidos, não partilhem coisas a torto e a direito. As partilhas têm consequências: e para muitas raparigas, este pequeno contributo pode salvar-lhes a vida.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO ponto do marido, as episiotomias de rotina e as grávidas que ficam por ouvir [dropcap]O[/dropcap] ponto do marido é uma prática obstétrica que não consta nos manuais médicos. Há quem diga que é um mito: e de facto há qualquer coisa de misterioso à volta deste ponto. Não há uma narrativa científica de como veio ou de como se propagou, ou se existe exactamente como ‘ponto do marido’ que se insinua. No imaginário e na preocupação das grávidas existe de certeza. No imaginário público existe cada vez mais, já que se torna mais comum discuti-lo e analisá-lo. Antes da peça publicada pelo jornal Público no início do mês de Setembro, eu era uma ignorante do ponto. Mas o ponto precisa de um contexto, e o contexto é o da episiotomia de onde surge, supostamente, como consequência. No momento de parir, quando os profissionais médicos acham que o canal não está francamente aberto para possibilitar o nascimento, realizam um corte no períneo, que se chama episiotomia. Quando se sutura este corte, com vários pontos, diz-se que o ponto do marido é o ponto que está a mais. As motivações mais pessimistas para este ponto realçam a tendência de ver o corpo gestante ao serviço dos outros. O foco no prazer masculino numa altura como aquela é um claro exemplo. Mas há quem diga que este ponto serve para ajudar a criar mais estrutura no períneo, para que não fique laço e flácido. As boquinhas de que ‘aperta-se mais um bocadinho, porque ele vai gostar’ é, supostamente, gozo. Uma brincadeirinha. Ninguém faz pontos mais apertados a pensar nos homens, fazem-no porque traz vantagens a quem está a parir, supostamente. Mas ainda há mais conteúdo por digerir. Como qualquer assunto que envolva sexo, genitais, género e bebés. De acordo com a OMS, recomenda-se que a episiotomia seja feita em 20 por cento dos partos. Em Portugal – dados de Macau não são de fácil acesso – 70 por cento dos partos levam com esta prática. Os dados da China continental também apontam para a regularidade do procedimento. Em vez de usado quando estritamente necessário, é usado como rotina. Já é mau o suficiente que a episiotomia seja tão popular. Agora, sair disso, ainda, pontos que podem trazer mais complicações – dor na relação sexual, infecções, incontinência e desconforto geral – sinaliza um total desrespeito pelas pessoas que estão a parir. Mito ou não, há coisas que acontecem que não deviam acontecer. As associações pelos direitos da mulher na gravidez e no parto, como existe em Portugal, ajudam a esclarecer a desarmonia que existe entre o contexto hospitalar e médico e o que acontece no momento de parir. Tudo bem que os partos destes nossos homo sapiens sapiens não são particularmente fáceis. Parece que esta estrutura, ao evoluir para encaixar a nossa capacidade bípede, tornou os partos mais difíceis do que nos outros mamíferos. As ancas estreitaram-se para andarmos erectos e os problemas no parto começaram. Contudo, esta não deverá servir como desculpa para tornar o parto mais médico e menos natural. Uma coisa são doenças que o nosso corpo não sabe combater, outra coisa é parir, e para isso, o nosso corpo deve ter algum conhecimento. O suposto ‘ponto do marido’ e as episiotomias de rotina são sintomas da desvalorização da experiência da grávida em detrimento da prática médica. Só que estes domínios não devem ser incompatíveis. As associações, grupos e até partidos políticos andam a dar voz às experiências de parir que não são ouvidas, outras que nem conseguem falar. Pessoas com planos de partos que não os vêm respeitados, mulheres que nem foram avisadas que lhes fizeram uma episiotomia – só se apercebem quando o efeito da epidural passa e as dores dos pontos as ataca. Mulheres que desenvolvem complicações graves, e que poucos lhes dão ouvidos. O mais surpreendente nisto tudo, é que, na minha pesquisa (pela diagonal, veja-se) em bases de dados científicas, parece que está tudo bastante alinhado. Não há mesmo evidência de que as episiotomias de rotina tragam mais vantagens às mães, aos bebés ou aos pais. Parece ser consensual que a episiotomia, como prática de rotina, é desaconselhada por completo. A forma como este saber científico não chega à sala de partos é que nos deixa confusos. Deixa-nos a ponderar, que forças serão estas, as que moldam e desvalorizam a representação e voz da mulher grávida e parturiente?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO legado de Shere Hite [dropcap]M[/dropcap]orreu Shere Hite. Pode ser desconhecida por muitos, mas o seu legado não é. Foi a impulsionadora de um estudo à escala nacional para explorar o sexo no feminino. O que é que as mulheres querem? Como é que as mulheres se vêm? Publicou o que se popularizou como o Relatório Hite, – ao que o Hugh Hefner, da Playboy, alcunhou de relatório Hate. Nos anos 70, sugeriu, depois de uma análise de 3000 relatos escritos por mulheres de toda a América, que o que as mulheres querem na cama, não é necessariamente o que os homens querem. Os orgasmos não são facilmente alcançáveis com penetração, e que o clitóris é a rainha do orgasmo e do prazer. Todas as suas conclusões e ideias foram recebidas com muita contestação. Muitos assumiram que era uma ode ao ódio. Ódio contra os homens, claro. O sentido de ameaça era tal que a norte-americana renunciou à sua nacionalidade e passou a viver na Europa. As ameaças de morte não paravam, pelo correio e pelo telefone. A Europa foi o único lugar receptivo às suas ideias do sexo, da vagina, do clitóris e do orgasmo. Chegaram a acusá-la de destruidora de lares quando, numa outra obra, reflectiu acerca do papel desigual das mulheres na relação heterossexual. Ao reflectir sobre as desigualdades do sexo e do género, a sociedade em geral achou que ela estava a pedi-las. O mundo da investigação também não se acanhou em acusar todo o seu trabalho como não científico e inválido. A sua amostra podia ter limitações. Mas 3000 participantes é um número muito mais generoso do que as três mulheres Vienesas que serviram de exemplo e inspiração para a teorização de Freud – era a comparação que ela costumava usar. Para piorar tudo, era muito gira, e fazia uso disso. Tinha aquele ar de Marilyn Monroe, com cabelos loiros e lábios pintados de vermelho. Só que não era uma tonta, como a maioria das personagens da Marilyn, era uma intelectual. Uma combinação que poucos esperavam. Até para pagar as exuberantes propinas da Universidade de Columbia trabalhou como modelo para fazer face às despesas. Posou para a Playboy. Também foi fotografada para anunciar as famosas máquinas de escrever Olivetti, que se aproveitavam do machismo da altura para as publicitar. ‘A máquina é tão inteligente que elas não precisam de o ser’, era o slogan usual. A Shere, ao perceber que a sua imagem estava associada a tamanha parvoíce, juntou-se às manifestações que criticavam o anúncio em que ela própria aparecia. Foram esses encontros que moldaram a sua perspectiva intelectual ao assumir-se como feminista. Foi aí que começou a querer dar primazia às vozes e experiências das mulheres de baixo para cima, elevando a mundanidade do orgasmo e do prazer. Foi decisiva no desenvolvimento do pensamento feminista quando se quis preocupar com quando e como é que as mulheres têm um orgasmo. Li algures que o seu legado já nos está tão enraizado no pensamento que dificilmente conseguimos perceber o choque e a reverberação das suas ideias na altura. Os desafios agora até podem ser outros, mas lá no fundo continuam a ser os mesmos. No sexo há uma falta de legitimação naquilo que se sente – e tal como na história (e luta) do orgasmo feminino, a tentativa de elevar a arte da entrega, da sensação e do prazer é tão contemporânea como há 40 anos atrás.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesVibra, vibra, vibrador! [dropcap]A[/dropcap] controvérsia que normalmente gira em torno dos vibradores começa logo na história da sua génese. A assumpção comum – e que já está bem integrada na cultura popular (até em peças da Broadway) – é de que os vibradores terão sido criados pelos médicos vitorianos para o alívio da tão malfadada maleita da altura, a histeria. Estes médicos estariam carentes por um utensílio que os auxiliassem na intensa tarefa de massajar todas as detentoras de vulvas que precisavam do alívio de sintomas. Reza a lenda que os vibradores conheceram o seu grande propósito orgásmico porque os médicos precisavam de descansar os pulsos, de tanto trabalho que teriam. Acontece que esta versão da história não é assim tão precisa. Foi Hallie Lieberman que recentemente contestou esta suposta teoria com a sua mais recente obra Buzz: The Stimulating History of the Sex Toy. Não há qualquer evidência/relatos/factos que o início dos vibradores terá sido esse – não deixem que a internet ou a academia vos indique o contrário. Os vibradores terão sido um auxílio médico, sim, mas nada indica que terão sido usados nos tratamentos de histerias, muito menos usados nos genitais em contexto médico – por mais caricata e curiosa que esta imagem seja. Os primeiros vibradores terão sido usados no tratamento de problemas nos rins, surdez, ou dores de cabeça. Ninguém pode dizer com certeza que o uso nos genitais estivesse a acontecer de facto. A história da sexualidade tem destes problemas, ninguém sabe ao certo o que se fazia porque os relatos sobre tudo o que envolvia sexo ou genitais, não eram muitos. Foi só nos anos trinta que se começou a ver os vibradores a interagir com vulvas, nos vídeos pornográficos da altura. E a partir daí tornou-se mais fácil acompanhar a sua evolução. Nos anos 60 tornaram-se num ícone de empoderamento feminino, especialmente em contexto norte-americano, onde se viu o surgimento de empresas com uma abordagem diferente da tradicional sex-shop. Um vibrador à antiga – e às vezes nos dias de hoje – implicava a interacção com o senhor de meia idade da loja de produtos sexuais local, que, acompanhado por comentários pouco agradáveis, podia oferecer informação pouco útil sobre os produtos. Agora há consultoras capazes de informar as pessoas com vulvas das possibilidades do mercado. Até os estudos de marketing e design têm relatado e incentivado a proliferação de produtos sexuais, agora com ares mais modernos e apetecíveis e até com maior consciência ambiental sobre os materiais utilizados. Assim parece-se normalizar cada vez mais a utilização do vibrador como um utensílio comum à descoberta do prazer individual e/ou em companhia. O vibrador já não é um objecto para as solteironas desesperadas, como tantos filmes e séries quiseram vender. Re-significaram-se os vibradores para todas e todos, de qualquer sexo, género, orientação, idade e estado civil. Apesar da ideia ser recorrente, os vibradores não são uma ameaça à sexualidade saudável, ou um sinal de comportamento desviante, nem são um competidor direito ao pénis. Os defensores de uma educação sexual com foco no prazer sugerem que os brinquedos sexuais devem ser incluídos, explicados e contextualizados porque são poderosos complementos a uma consciência plena do corpo. Claro que os vibradores ainda têm um logo caminho a percorrer para uma aceitação mais tranquila. Ainda há desconforto, vergonha e mal-entendidos. Há pénis que, ingenuamente, ainda se sentem ameaçados por um pedaço de borracha que vibra, se estende e se manipula. Já para não falar no difícil acesso a produtos de qualidade (são caríssimos!), na generalidade. O vibrador pode ser um objecto de auto-conhecimento e de empoderamento, mas também se arrisca a tornar-se numa forma de comercialização do prazer sem uma narrativa coerente e contestadora das normatividades que atrapalham. Por isso é que vale a pena reflectir sobre o progresso do vibrador e para que lados caminha, e se as promessas de libertação sexual que o vibrador traz sempre se concretizam.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSobre o prazer e as suas dificuldades [dropcap]O[/dropcap] prazer – e vamos assumir o conceito de forma mais geral, onde cabe o sexo e muitas outras actividades – não é fácil de ser conquistado pelas mais variadas razões. Razões pragmáticas a conceptuais fazem parte do debate por quem luta pelo prazer. Inclusive, até por quem não assume posição nenhuma mas, com o seu silêncio, contribui para a complexidade do prazer na contemporaneidade. Passo a explicar como é que o prazer é afectado por três níveis de análise, para simplificar. Corpo. Muitas vezes olham-se para as barreiras mais palpáveis ao prazer procurando o nível de comprometimento do corpo. Existem várias patologias que comprometem o prazer, podem ser problemas anatómicos e até neurológicos. Só que utilizar esta classificação deixa o prazer abandonado num estado de incompreensão, onde é definido pela capacidade sensorial de um corpo que reage e espera por reagir, única e simplesmente. Mente. Depois vem uma visão mais psicológica do prazer, aquele em que o prazer não depende exclusivamente de um estado de corpo, mas de uma disponibilidade mental, cognitiva e emocional, para lhe dar forma. Falando assim parece vago, eu sei. Mas todos os estudos sobre o orgasmo, apontam para uma visão conjunta entre corpo e mente. Os estudos sobre disfunções sexuais também mostram a importância da terapia, o trabalho de desenvolvimento pessoal, em resolvê-los. Que estado mental é, então, desejado? É um estado de aceitação: do corpo que se tem, dos medos que se têm, das ansiedades, receios, desejos e prazeres. Mantenho a definição vaga para não cair em fórmulas rígidas, e mantendo a diversidade de escolas psicoterapêuticas e do entendimento de mente, o prazer depende de um corpo (que não tem que ser perfeito), e da aceitação e desenvolvimento de quem somos, para quê e como. Social. A seguir vem a visão social do prazer, que, como uma matryoshka, a boneca russa, se interpenetra no entendimento do prazer do corpo e da mente. Claro que somos bombardeados por imagens e representações sobre o que é o prazer, mas também somos afectados de forma mais profunda do que isso. O “social” contribui para a forma como podemos ou não assumir e aceitar o nosso corpo e a nossa individualidade dentro dos sistemas de privilégio e opressão vigentes. A interconexão do que se passa cá dentro com o que se passa lá fora não pode nunca ser negligenciada. Quem é que é merecedor de prazer e porquê? Só com esta interrogação é que se pode explorar de que forma é que as estruturas sociais moldam o acesso ao prazer e as formas como ele pode ser vivido. Estes três níveis, e a forma como estão ligados uns aos outros, reforça a necessidade de uma visão integrada (interdisciplinar!) do prazer. Onde o corpo, a mente e a sociedade estão em movimentos perpétuos de ligação. Esta conceptualização também mostra que a luta pelo prazer tem que ser feita por várias frentes. Perceber o nosso estado do corpo é importante, ter disponibilidade para estar em contacto com as nossas dificuldades, fragilidades e recursos é importante, estar pronto para lutar contra a injustiça social também é importante. Só assim é que poderemos libertarmo-nos do velho mito de que o prazer é de alguma forma pecaminoso. Pelo contrário, aceitar que podemos ter prazer é talvez a pré-condição para o bem-estar, não só com o sexo, mas nos pequenos momentos do dia-a-dia. Perceber o prazer e aceitá-lo, talvez seja a peça do puzzle que nos falta para outro tipo de consciência global. E para os que responderão com uma definição de prazer egoísta, tenho a acrescentar que o verdadeiro prazer resulta de uma dinâmica complexa, nada solitária, onde a responsabilidade é partilhada entre o próprio e os outros.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesGordofobia Persistente [dropcap]O[/dropcap] recente confinamento trouxe os mais variados discursos sobre o corpo e o aumento de peso. Desejos de dietas pós-covid estão ao rubro. O tempo de confinamento trouxe ansiedades, muitos desejos de comida e movimento de menos. O sedentarismo não é dos estados mais aconselháveis ao corpo, de facto. Mas é sempre intensa a forma como se teme ser-se gordo, ou engordar. E aqui surge a gordofobia. A construção da gordura como má pode alterar-se com os tempos. Houve épocas em que a gordura era boa de forma mais hegemónica. Agora é que fomos induzidos a pensar que a magreza é um estado último, e que todos estão em algum caminho para alcançá-la. Basta folhear as páginas das revistas e dos jornais para perceber que há pouco espaço para os corpos que não se encaixam nesta visão limitada de beleza. Quantas vezes é que os filmes utilizaram a narrativa da rapariga ‘cheiinha’ que sofre uma transformação e a sua vida muda por completo, e para melhor? Repreender o corpo com gordura, seja das mais variadas formas, só gera mais ansiedade, desconforto e sofrimento. E claro, a tendência de responsabilizar as pessoas pelas suas gorduras torna a conversa demasiado simples. Assumir que a gordura é um produto da vontade desresponsabiliza as dinâmicas socio-culturais que contribuem para o problema também. A gordofobia é uma delas. Já se documentou todo o tipo de discurso de ódio. Desde comentários nas redes sociais até um episódio, no mínimo, caricato, onde cartões foram distribuídos pelo metro de Londres por um grupo que odiava gordura, gordos e tudo o que isso representa. A gordofobia nem sempre é assim tão declarada. A discriminação mais silenciosa está na forma como os espaços foram criados para um tipo de corpo. As cadeiras dos espaços públicos são desenhadas para certas pessoas e as lojas de roupas não servem a todos. Não ajuda, também, que a OMS tenha definido a obesidade como uma epidemia – apesar da intenção ser boa. Esta nomenclatura perpetua a narrativa de que é necessário travar uma guerra química e médica contra tudo o que é gordura. A investigação mostra como esta classificação não incentiva atitudes e/ou comportamentos que ajudem a mitigá-la. Pelo contrário. Ler noticias sobre a epidemia da obesidade faz com que a discriminação contra a gordura aumente. Estas dinâmicas não se ficam pelos meios de comunicação social, ou no simples dia-a-dia. As comunidades profissionais e médicas têm sido acusadas de um viés anti-gordura, sob diagnosticando problemas sérios à conta disso. Os depoimentos são terroríficos. Cancros que não foram diagnosticados atempadamente porque os profissionais assumiram que a queixa apresentada seria resolvida se o paciente emagrecesse. Mesmo sabendo que o índice de massa corporal possa não ser um bom indicador de saúde, persiste a ideia de que as gorduras se associam à preguiça, gula e doença, e as magrezas à energia e saúde. Começou a ser necessário contestar estes estereótipos, e é o que vários activismos estão a tentar fazer; criando novas linguagens e formas de estar. Ainda assim, neste posicionamento onde a gordura é orgulhosamente apresentada, sem desculpas e justificações, percebemos a forma ainda deficiente que a sociedade tem em lidar com a diferença de corpos. É preciso contrair a surpresa e resistência sociais. A aceitação do corpo é importante a vários níveis, seja o corpo grande, pequeno, às bolinhas e nas gradações da diferença. Só com aceitação é que se pode atingir um estado necessário para o bem-estar individual e colectivo. O medo generalizado de que a aceitação da gordura cria mais gordura é despropositado. O mais importante neste momento é lutar contra a tentativa de invisibilizar os corpos – e não cometer a violência de fazer desaparecer as pessoas que neles habitam.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBondage japonês [dropcap]O[/dropcap]p Kinbaku e o Shibari costumam ser indiscriminadamente utilizados para se referir ao bondage de tradição e arte japonesas. Para os mais cuidadosos, existem diferenças entre os dois conceitos, Shibari refere-se à arte japonesa de amarrar alguém, enquanto que o Kinbaku se refere a esta mesma prática com ligação emocional associada. Tudo começou com uma forma particular de amarrar prisioneiros com complexos nós e posturas, para assegurar que os prisioneiros ficavam imóveis. Depois, reza a história, que esses oficiais levaram os nós, e as formas de amarrar, para outros contextos, digamos, mais sexuais. O bondage ocidental está longe de ser tão bonito como o japonês. Enquanto que o ocidental faz uso de apetrechos mais comuns, como por exemplo, algemas, o oriental usa as cordas e nós intrincados criando verdadeiras composições humanas de tensão e sensualidade. Rapidamente que o interesse pela prática disparou, tanto por aficcionados do BDSM como também por artistas. Mas esta é uma prática que precisa de mestria, não é para qualquer um. Como em muito do que se conhece da cultura japonesa, exige estudo, dedicação e sensibilidade para fazê-la acontecer. Muitos viajam até ao Japão para aprender com os mestres durante anos, e aos poucos começam a exportar os seus ensinamentos, seja para praticar no quarto ou em performance. Já existem livros, escolas, centros e grupos de estudo por este mundo fora. Mas muitos dos mestres nesta arte de amarrar queixam-se do perigo da apropriação ocidental superficial e rápida. Esta não é uma actividade que se aprenda num workshop de curiosos de fim-de-semana. O processo deve ser longo, moroso e dedicado, para quem quiser dominar esta arte de amarrar. Amarrar o outro, neste contexto, tem que ser de forma controlada e cuidada. Dizem os especialistas que são necessários cuidados para não magoar os amarrados – que depois serão pendurados nas mais incríveis posturas. As posturas depois dependerão das dinâmicas de poder que ali existam e do propósito último da prática. A maioria dos que escrevem sobre a experiência de serem amarrados concorda que há dor e prazer associados. A contenção e suporte que as cordas dão são qualquer coisa que nunca haviam sentido. Não só se entregam à pessoa que está a tratar do assunto, mas às cordas, deixando-as suster a fragilidade e vulnerabilidade pessoais. O risco de lesões está sempre lá. Dizem os especialistas que a comunicação tem que ser rápida e atenta para prevenir o pior. O diálogo e a negociação são muito importantes em qualquer prática BDSM, não só para garantir a segurança, mas para a total entrega e confiança na prática e entre os praticantes. Se o consentimento não existir, só fica a violência, e isso de kinky, não tem absolutamente nada. Apesar do bondage contemporâneo já incluir este shibari/kinbaku, esta foi uma recente aquisição pela cultura BDSM. Foi com a globalização e intercâmbio – onde as redes sociais contribuíram bastante para isso – que se começou a assistir a um diálogo intercultural do sexo e das práticas kinky mais fora da caixa, inspiradas nas mais variadas tradições culturais. Curiosamente, no Japão, o shibari/kinbaku é muito mal visto, porque, tudo o que é relacionado com o sexo, as gentes ainda têm muita dificuldade em encarar. Com sorte que os interessados nas práticas de bondage o trouxeram para uma nova visibilidade – o que outrora foi uma forma de tortura, e, agora, uma possível forma de dominação sexual e de arte.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesExteriorizando sexo [dropcap]S[/dropcap]exo em pé, no tapete, no lavatório ou na banca da cozinha. As pessoas na cama, não são as mesmas fora dela. Há vários factores que influenciam esta dinâmica. No mês do orgulho LGBTQI+, esta discrepância torna-se mais óbvia. Muita gente não consegue gozar de liberdades plenas para se entreter com os prazeres da cama, muito menos assumi-las fora das quatro paredes de um quarto. Ou até fora das paredes de uma casa: pode não haver espaço para as formas de expressão lá fora, para viver o sexo que nos faz mais sentido. Ainda se sabe e se sente a pouca aceitação da diversidade sexual, até em países liberais. Nota-se também a persistência em não se falar sobre sexo. A ideia que as pessoas têm do sexo e a forma como as pessoas fazem sexo e têm prazer com isso, continua a ser muito alienígena em muitos contextos. Nestes anos de escrita sobre o sexo tenho-me familiarizado com, e divulgado a literatura sexual que o mundo nem sempre acompanha. Porque perceber o estado da sexualidade fora da cama, e fora de casa, é ainda uma missão muito pertinente, se quisermos atacar as desigualdades associadas a ela. A educação sexual teria um papel muito importante em desmistificar as assumpções retrógradas que o sexo ainda tem. Mas a educação sexual é um produto socio-político e, por isso, pode estar revestido de ideologias partidárias. Não assumem uma posição humana, quiçá, universal, do prazer. Nestes programas, a enfase continua a ser na contracepção, ignorando por completo o prazer. A masturbação é tabu, o orgasmo é tabu. Puxando pela procriação, o prazer do sexo torna-se tabu. E essa tendência de deslegitimar o sexo continua a ser um tópico preocupante, mas deveras interessante, desde que entrou na esfera pública, com Freud. A psicanálise não foi bem recebida em muitos contextos, apesar do seu vocabulário ter sido apropriado pelo senso-comum. Muitas das ideias chave, para a época, e ainda agora, são difíceis de ser digeridas. Isso acontece porque nos afastámos do sexo desde há muito tempo, e tornámo-lo num artefacto exterior à vida, de forma utilitária e descartável. Deixámos de perceber o sexo e o corpo, que sabe de desejo, para trás. Reinam-se as vidas humanas no dualismo cartesiano persistente. Preza-se tudo o que acontece com a razão, inteligência e pragmatismo, mas nunca com o corpo. O corpo que talvez sinta de formas que não nos são inteligíveis de ser explicadas. As ideias que começaram com Freud ainda são polémicas e suscitam interesse porque o sexo ainda tem esse caracter incompreensível. Aliciando o comum mortal com ideias e sensações pelas quais nunca passámos antes. Este potencial do sexo raramente salta para o exterior. Porque ainda não soubemos como fazê-lo. Da mesma forma como criamos divisões entre o corpo e a mente, criámos divisões entre o sexo e tudo o resto, desvalorizando a forma como o sexo afecta as nossas identidades, as nossas formas de estar com a vida, a forma como encaramos o prazer num mundo progressivamente mais competitivo e rápido. Claro que podem existir algumas orientações de como contornar esta tendência, mas não devem ser confundidas com receitas de fácil aplicação. O caminho pode ser lento e longo guiado pela honestidade e simplicidade do prazer. Exteriorizar o sexo dentro dos nossos eixos de significado é um processo tão simples que se torna deveras complexo, com todas as forças que nos obrigam a contrariar aquilo que de mais puro o sexo tem para oferecer.
Tânia dos Santos Sexanálise Vozes365 dias [dropcap]O[/dropcap] filme mais visualizado na plataforma de streaming de eleição tem muito sexo. O 365 DNI (365 dias) está pelas bocas do mundo e popularidade não lhe falta. O filme é mauzinho. A banda sonora não podia ser pior. Os diálogos são fracos, a interpretação também. Comparam-no com o Fifty Shades of Grey, o filme que conseguiu fazer o erotismo popular e de fácil acesso, mas esse com algum BDSM e voyeurismo. A sinopse é simples, trata-se de uma versão erótica d’A Bela e o Monstro. O monstro é um chefe de família de uma máfia qualquer italiana, a bela é uma rapariga polaca que estava na Sicília de férias. Ele rapta-a e ela tem 365 dias para se apaixonar por ele. A tensão sexual amontoa-se até culminar em muito sexo. Não há grande carinho, só tesão, sedução e penetração forte para que os gritos dela se façam ouvir em Varsóvia: palavras do galã desta trama. Não podia deixar de comentar o estado deste sexo que se popularizou. O filme até começa bem, com masturbação e um dildo, que não é comum no pequeno e grande ecrã. Ganham pontos com isso. Mas depois de uma masturbação aplaudida, há três fellatios seguidos. Perderam pontos aí. As referências a penetração são inúmeras, como se fosse a única forma de sexo que existe. O sexo é violento e bruto – que não tem mal nenhum, só que é uma imagética tão utilizada, que já cansa. Todas as premissas e posições do sexo que lá vi pareciam inspirados numa pornografia corriqueira. Penetração e mais penetração, e o que é que podemos ter mais? Penetração. Não há uns preliminares jeitosos e sensuais, não se perde muito tempo em explorar outras partes do corpo. Há um pouco de cunnilingus, pronto. Nem foram muito por fetiches, como por momentos julguei que mergulhassem, quando se focaram nos pés da rapariga mais tempo do que eu esperava. Fetiche por pés teria sido uma inovação interessante para um filme popular como este. Fica a dica. Já para não falar que o enredo é discutível e problemático. O consentimento tem que lá estar – esse acordo explícito entre gentes que garante o sexo prazeroso a cada parte. Neste filme não há nada disso. Começa logo com o abuso que é um homem raptar uma mulher para que ela se apaixone por ele – e ela apaixona-se, como seria de prever. Para quem pensa a sério acerca das mensagens e representações que este tipo de filmes passa a reacção é de horror ao ver a romantização da síndrome de Estocolmo. O raptor até lhe garante que não lhe faz nada sem que ela lhe peça, mas ele fez muita coisa que ela não pediu. Como ficar presa na Sicília numa mansão com um mafioso, ou ser constantemente apalpada em supostos jogos de sedução. A vítima apaixona-se, assim, pelo raptor, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Nem precisou dos 365 dias, parece que só precisou de duas semanas a dois meses, nem dá para perceber bem. De representações românticas preocupantes e sexo limitado, o filme não traz nada de novo, só os clichés do costume que perpetuam os mitos do costume. Ainda assim, o raio do filme não deixa de ser uma sensação, e acho que sabemos porquê. O filme pode ser mau, mas trouxe um enredo fácil com muito sexo às nossas pobres almas que têm aturado este 2020 horrífico e cansativo. Estou convencida que se o filme fosse lançado noutra altura qualquer, não teria o mesmo impacto. Mas agora está a tornar-se num filme de culto, com críticos e apreciadores ansiosamente à espera da sequela (da trilogia!) – e de voltar a rever os protagonistas deste drama erótico.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesPansexualidade não é uma moda [dropcap]E[/dropcap]ste é o mês do orgulho de tudo aquilo que não é heterossexual. A heteronormatividade está demasiado presente no nosso dia-a-dia. As outras formas de sexualidade continuam escondidas, pouco discutidas, pouco visíveis. A supermodelo Cara Delevingne mostrou recentemente o seu orgulho pansexual numa daquelas revistas que até deve reforçar os sistemas binários e heterossexuais até ao tutano. Ainda bem que o mostrou lá. Não se pode continuar a dividir os espaços. É preciso tornar todos os espaços mais diversos e ricos em auto-definições dos confortos sexuais que existem – que são tantos e múltiplos, mas que ainda são vistos de forma limitada. Outros artistas e figuras públicas já se assumiram como pansexuais, a Janelle Monáe e a Miley Cyrus, são exemplos. Afirmaram-se no mundo binário que gosta de delimitar identidades, vivências e preferências. Um mundo que insiste que existe um “normal” e o resto. E a pansexualidade parece estar agora na boca do mundo. Pansexual é já um conceito antigo, em tempos denominou uma condição de disfunção, mas agora libertou-se das tontices que sempre amarraram o sexo e o género. Pansexualidade faz parte da conceito guarda-chuva queer e é bastante semelhante à bissexualidade, mas com diferenças. A etimologia da palavra ‘pan’, significa ‘tudo’. Enquanto que a bissexualidade refere-se à forma como se sente atracção sexual e romântica por mais do que um género (que normalmente fica-se pelo feminino e masculino), o pansexual não define o seu interesse romântico e sexual por géneros, isto é, interessa-se por todas as formas de expressão sexual e de género – homens, mulheres, não-binários e além. Assim alinha-se com a ideia de que o sexo de supostos pénis e vaginas não é limitado, nem binário. O género é fluido e múltiplo, tal como a sexualidade pode ser. Só que a discussão da pansexualidade entre as celebridades, não deve ser confundida com uma moda, da mesma forma como o lilás domina as cores da estação. Falará assim quem acredita na efemeridade de certas ideias, na sazonalidade das ideias, em detrimento de outras. Nunca ninguém julgou a heterossexualidade uma moda. Esta protege-se com a visão conservadora da biologia, da religião, e até da medicina. Poder ver e experienciar a fluidez do sexo e do género implica querer pôr em causa as caixas definidoras da sexualidade humana. Esta fluidez resulta do reconhecimento que o mundo não é imutável, estático ou incontestável. Não existem formas melhores do que outras de viver a sexualidade. A pansexualidade permite abraçar a diversidade, a quem lhe fizer sentido. A desvalorização diária que tira a legitimidade de se amar ou sentir tesão por quem se quer, não é uma moda, é um facto social demasiado comum. A afirmação categórica da pansexualidade, como outras categorias orientadoras, é um caminho para desconstruir o binarismo que ainda assola o mundo. A sexualidade da libertação deveria oferecer a oportunidade de estar em contacto com o desejo e a intimidade. Estes poderiam manter-se no conforto da casa, mas também precisam de viver na boca do mundo, e nas capas de revista. Há quem acredita que a intimidade deve ser de algum modo secreta, entre quatro paredes. Mas a discussão continua a ser imperativa. Até se normalizar a diversidade sexual, de género e de orientação, interessa, sim, de quem se gosta e como – no mês do orgulho LGBTQI, e sempre.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesPobreza menstrual [dropcap]A[/dropcap] propósito do dia da saúde feminina no final de Maio, discutiu-se a pobreza menstrual. As pessoas que menstruam (que já percebemos que não são só as mulheres) precisam de lidar com o sangramento mensal e fazer as contas à vida enquanto o fazem. Por este mundo fora há quem tenha que gerir as suas finanças de tal forma, que produtos menstruais não conseguem tornar-se numa prioridade. A inevitabilidade dos úteros traz custos acrescidos para quem quer continuar com a vida como normalmente, e com dignidade. No mercado existem muitos produtos para lidar com o período – felizmente. Uma média de gastos anual – ou de uma vida menstruante – já são números assustadores – infelizmente. Continua a ser chocante como é que estes produtos continuam a ser taxados como não-essenciais. A discussão da pobreza menstrual deve incluir e estender-se do ocasional pedido para a doação de produtos de higiene íntima para os sem-abrigo. A pobreza menstrual não só aflige os casos extremos de vulnerabilidade socio-económica. Muitas pessoas são obrigadas, no dia-a-dia menstrual, a improvisar com um pedaço de cartão e papel higiénico, ou até com uma meia. E depois, claro, o baixo poder de compra é influenciado pelo tabu que é a menstruação – e assim se afecta a vida de quem tem úteros. As pessoas que menstruam já têm stress suficiente. Têm medo de ter perdas de sangue, de cheirarem mal, do desconforto de tudo, a juntar o facto não terem dinheiro para comprar o produto que os poria mais confortáveis, é diabólico. O desconforto menstrual tende a ganhar pontos. Não só compromete a saúde, mas também o acesso à educação, formação e trabalho. Este é um problema global. Para os países desenvolvidos e em desenvolvimento há sempre níveis de pobreza menstrual aqui e ali. O país mais recente a tomar medidas concretas contra a pobreza menstrual foi a Nova Zelândia. Todos os menstruantes em idade escolar vão ter acesso a produtos menstruais gratuitos. Portugal também viu desenhada uma proposta em assembleia muito semelhante. Vários projectos em contextos de países em desenvolvimento, por exemplo, ajudam as comunidades a criar pensos de pano, ou tentam ensinar a usar o copo menstrual. Em todas estas situações, seja na Nova Zelândia, no Uganda ou em Portugal é preciso oferecer produtos e falar sobre os períodos também. Vezes sem conta a menstruação sofre deste mal comunicativo. Ninguém gosta de falar dele, e o desdém pelo sangue mensal cá continua, e perpetua-se. Só mais um factor complicador para sequer sonharmos em atingir a equidade menstrual; ter-se-ia que resolver um conjunto de vulnerabilidades que giram em torno do preço excessivo dos produtos, do baixo poder de compra das gentes e do pouco à vontade em discutir menstruações. Cada corpo menstruante deveria ter o espaço e o tempo para explorar as formas com as quais se sente mais confortável, seguro e limpo durante a menstruação. As vozes mais críticas apontam que não basta oferecer produtos. Temos que conversar sobre isso e, na medida do possível, dar a escolher a quem mais precisa. No mercado há pensos descartáveis ou reutilizáveis, tampões, copos, discos e cuecas menstruais. A utilização dos mesmos depende da relação que se tem com o corpo, com a menstruação e até mesmo com a relação que temos com o ambiente. Para resolver qualquer situação de pobreza, não basta oferecer dinheiro ou recursos (apesar de extremamente importante), é também necessário criar condições de empoderamento para que as pessoas menstruantes consigam tomar decisões que as façam sentir que a menstruação não é um obstáculo para ninguém.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO sexo importa-se com o apocalipse [dropcap]O[/dropcap] mundo está estranho e confuso. A minha tentativa de articular qualquer conteúdo esta semana virá da confusão dos sucessivos eventos da última semana, e dos últimos meses. O mês do orgulho LGBTQI+ começou agora em Junho. A celebração de uma história de reivindicação e resistência ecoa todos os anos, em muitas partes do planeta. Um lembrete que a transgressão e contestação dos limites das forças normativas são necessárias se queremos ver alguma mudança no mundo. Na mesma altura em que outras vozes dissidentes, contemporâneas, são ecoadas num país norte-americano em particular. Fala-se em racismo estrutural, ou formas de preconceito estrutural, como nunca se falou. O mal do mundo não acontece pelas mãos das pessoas más. A discriminação não é um acto único, psicopata ou desviante, mas o resultado de uma estrutura, de relações sociais e instituições que permitem que as pessoas façam muita parvoíce – como já estamos fartos de assistir. Somos também obrigados a reflectir sobre a globalização de uns problemas, e não de outros. As redes sociais estão cheias de conteúdos de uma particular geografia, e não de outras. Talvez uns contextos estejam mais preparados para discutir coisas difíceis, e outros ainda não. Ninguém ignora o que está a acontecer, mas não sei até que ponto se olha e se analisa o estado do mundo com cuidado, e à forma como contribuímos para isso. O sexo podia não estar metido nesta confusão de conceitos, mas é o lugar que melhor habita. Talvez porque o sexo desde cedo quebrou as amarras conservadoras e inflexíveis. A intimidade, o sexo e a auto-determinação não vivem num vácuo. O espaço das relações raciais dos diferentes tons de melanina não é um só nó por desembaraçar. É um nó de uma malha complexa, histórica, ligada a muitos outros nós de desigualdade. Uma terapeuta sexual, a Lauren Fogel Mersy, retoma o conceito de interseccionalidade, um conceito chave para perceber o emaranhado da malha, com a clareza que raramente consigo ter. Como ela diz na sua página social: “sabem o que faz decrescer a nossa líbido? Opressão sistémica, racismo, e trauma racial”. Não podemos perceber o que acontece à nossa volta sem tentar juntar várias peças de um puzzle, e perceber o seu encaixe e desencaixe. Esta é uma forma, como muitas, de mostrar que o sexo se importa com o apocalipse. O apocalipse é entendido aqui como um suposto estado de disrupção e de potencial transformador. Quem me conhece sabe que gosto de olhar para o sexo como centro gravitacional que integra o íntimo e o social. Não desperdiço a oportunidade de reforçar esse argumento em alturas de crise: em pandemia, que nos obriga a uma reorganização de vivências e rotinas, ou num qualquer outro estado de conflito socio-político. Viro-me sempre para a mesma questão: como vemos o sexo dentro e fora de tensões sociais? E como é que, através dele, podemos olhar as malhas indissociáveis de sistemas de opressão? Como é que através da lente analítica do sexo podemos pensar a mudança e a libertação? Raramente nos mostramos confusos como o mundo, mas é um estado legitimo. Frequentemente esquecemos de dar espaço à transição, e deixarmo-nos no meio de um antes e um depois que ainda não percebemos como é que se irá concretizar. Nesse processo de apocalipse, o sexo não pode ser um escape – como experiência sensorial, única – mas servir a consciencialização que aquilo que carregamos é tanto nosso como do mundo.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesNão ponham gelados na vagina [dropcap]N[/dropcap]ão encontro quem confirme que colocar gelados na vagina é um método eficaz para se refrescar num dia de calor, mas tenho visto muitas fontes a pedirem às vaginas que evitem encontros com natas geladas. Claro que com estes avisos vem um mar de explicações, por pessoas de grande autoridade no tema, reforçando que a ideia é péssima: e é. Os gelados têm açúcar, têm corantes, têm tanta coisa que destroem a fantástica homeostasia da saúde da vagina, com o seu pH e flora perfeitos. De onde virá tamanha parvoíce? Da desinformação ou de falhas graves de lógica? Comer um gelado faz-nos sentir mais refrescados, por isso, porque não experimentar inserir este pedaço de refresco em outro lugar? Não sei. A desinformação já é amplamente discutida desde 2016, quando um suposto candidato a presidente conseguiu chegar ao cargo presidencial. Tudo com a ajuda de notícias falsas que alimentavam câmaras de ressonância opinativa – onde aquilo em que se acreditava era mantido, repetido e disseminado. Em tempos de covid-19 tem-se visto por aí muita informação falsa que se faz passar por informação legitima de como mitigar esta pandemia. Até o dirigente da ONU já veio alertar que o problema não é só de um vírus, é o da infodemia de desinformação. Achar que colocar gelados na vagina pode refrescar ou achar que consumir desinfectante é uma forma eficaz de se proteger do coronavírus resultam de processos bastante semelhantes. A literatura é vasta no estudo da desinformação e na probabilidade em alguém acreditar e partilhar conteúdos falsos. A maior parte deles estuda o perfil das pessoas, se são mais liberais ou conservadores, educados, novos ou velhos e presença de alguns traços de personalidade. A resposta não é simples. Não há um perfil concreto, mas a investigação tem mostrado que a educação pode não influenciar, e que a ideologia política pode ajudar se combinada com outras características. Outros teóricos têm olhado para a forma como o descontentamento no mundo tem fomentado a desconfiança nas instituições e na ciência. Daí vem a dificuldade em olhar para informação de forma crítica, porque resulta num natural alinhamento de crenças já pré-existentes, agora reforçadas. Eu diria até, antes das redes sociais e das ideias parvas, a desinformação começou logo no sexo. Tanto secretismo e tabu deu azo a mitos ao longo dos tempos. Se as mulheres menstruadas entrassem numa adega estragavam o vinho, é um exemplo. A ciência provou-se útil para desmistificar estas crenças, que são parvas, claro. A ciência tornou-se num recurso importante para perceber o que é real e não é, uma bussola que nos orienta. Mas com isso veio outro perigo: a ciência como único mecanismo capaz de clarificar a realidade, deslegitimando os corpos da sua própria vivência. Temos que combater a desinformação sem nunca esquecer que os espaços de diálogo, discussão, partilha críticos continuam a ser necessários. Sem dogmas ou moralismos. Injectar desinfectante é uma tontice e é extremamente perigoso. Numa altura de pandemia em que há dúvidas, e uma ciência que vai evoluindo na sua imperfeição de perceber umas coisas e ainda não perceber outras, viu-se aqui um terreno fértil para ideias falsas e teorias da conspiração. São precisas soluções consertadas para repudiar esta tendência crescente de acreditar em que tudo o que se diz nas redes sociais nossas conhecidas. São também necessárias formas democráticas de participação no encontro entre a ciência e o nosso dia-a-dia, seja para lidar com uma pandemia, ou para lidar com a nossa sexualidade. De qualquer modo, não coloquem gelados na vagina.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO Sexo e a Maria-Joana [dropcap]A[/dropcap] investigação do efeito das drogas no sexo ainda está na sua infância. Há evidência clara de que as drogas psicoactivas afectam a sexualidade de forma negativa – tanto que é uma barreira para a aceitação da medicação psiquiátrica – mas pouco mais se sabe. A criminalização de outras drogas são uma barreira para a investigação e auto-descoberta, à excepção de umas vozes dissidentes que querem ver além. Pessoas, investigadores e terapeutas sexuais querem perceber a relação entre o sexo e a canábis, na sua totalidade de características de alteração de consciência, e o óleo CBD, que não é uma droga, mas que pode ser de aquisição difícil e de uso ainda bastante estigmatizado. A pouca investigação que existe mostra que o consumo continuado e excessivo da canábis pode levar a disfunção eréctil e a contagem de esperma diminuída (o que não quer dizer que possa ser usado como contraceptivo!). Mas outros efeitos ainda estão longe de ser explorados. Paralelamente, muito se tem questionado acerca do uso da canábis e do óleo CBD para o tratamento de situações de ansiedade e controlo da dor. Não é fácil separar a discussão do sexo e a canábis da discussão global de como esta planta pode ser usada para fins terapêuticos. Aqui falaremos do pouco que se sabe da sua relação com o sexo e as suas especificidades. No sexo há problemas que já nos são bem conhecidos, como a ansiedade em alcançar a performance perfeita, agradar o outro, ter um orgasmo assim ou assado ou querer apresentar-se da forma que se “julga” normal. A desigualdade do orgasmo também, discriminado por género, é um problema complexo de origens socio-culturais e biológicas. Todas estas dificuldades criam barreiras a uma boa conexão com o sexo, coisa que a canábis diz ajudar a resolver. Um estudo publicado em 2017 mostrou que muitas mulheres reportam um efeito positivo, de aumento de intensidade sexual e do orgasmo, consumindo canábis no pré-coito. Apesar de, para outras pessoas, o uso de drogas poder ter o efeito completamente contrário – de desconexão e retracção – para outros, parece intensificar a experiência. A teoria é que a canábis ajuda a baixar as resistências mentais e ter uma experiência mais conectada com o corpo, e com o outro. O óleo CBD, por sua vez, proveniente da canábis e do cânhamo, sem THC (a substância psicoactiva) pode trazer um estado de corpo e mente igualmente interessantes para o sexo e para a saúde sexual. Só que a investigação nessa área é mais escassa ainda. A indústria, contudo, não se retraiu de trazer cá para fora produtos inspirados no potencial deste óleo, que é discutido em teoria, mas que na prática não se sabe quase nada. Já existem lubrificantes sexuais com óleo CBD que dizem ajudar no relaxamento da zona pélvica e ajudar na minimização da dor sexual. Também já existem tampões com óleo CBD que dizem ajudar nas dores menstruais. Para quem sofre de endometriose, parece que o CBD tem um potencial enorme no tratamento dos sintomas. Há pessoas que têm deixado o seu testemunho por aí, mas pouco mais sabemos. O perigo de não existir investigação que nos ajude a navegar nas incríveis vantagens que estes produtos podem trazer, é que se sabe pouco sobre dosagens e, como todas as drogas, que outros efeitos podem trazer. O uso desta planta e dos seus derivados para efeitos sexuais deve ser ponderada e cuidadosamente analisada. Não deve demorar muito até começar a existir um corpo de literatura mais robusto que nos ajude a perceber as vantagens e desvantagens dos seus efeitos.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesVisibilidade lésbica – na pandemia [dropcap]O[/dropcap] dia 26 de Abril foi oficialmente adoptado para celebrar a visibilidade lésbica em Portugal. Há muitas estórias e histórias que levam a que o dia da visibilidade lésbica seja celebrado em diferentes dias em diferentes lugares do mundo (incluindo países asiáticos?). Dizem activistas e investigadoras que foi em 2008, por causa da ligação e união que a internet possibilitou, que se começou a homogeneizar uma data e a sua (ainda) importância. E agora, como é que se vive a visibilidade lésbica em pandemia? No mês que ainda se discute a liberdade discutem-se também os direitos e liberdades de amar quem se quer. Na figura da mulher, a assumpção heterossexual continua a ser imediata. Isto é verdade nos contextos interpessoais, e também institucionais, nos hospitais, nas escolas, e em geral, na esfera pública. Assume-se que as sexualidades não-heteronormativas são uma minoria e uma excepção. As mulheres que amam outras mulheres continuam apagadas do discurso e das narrativas. As mulheres solteiras do passado, que se calhar viviam com a amiga, continuam nos armários da história que se conta. Ainda hoje, a mulher continua a sofrer as consequências de obtenção tardia de direitos, de discriminação de género e de pouca representatividade política. Tornar as mulheres lésbicas visíveis ainda é muito necessário. Por este lado do planeta as lutas são outras, porque as formas de visibilidade são outras também. Na complexidade da globalização dos direitos sexuais e das suas formas de expressão em contextos de repressão política e social, a internet continua a ser um modo de partilha para comunidades re-imaginadas. No dia-a-dia, lá fora, continua a não se dar visibilidade a formas de afecto lésbicas. Mas, num artigo publicado em 2017 na revista científica Sexualities, relatam-se novas formas de apresentação a contribuir para a visibilidade lésbica em Taiwan. As mulheres que adoptam o estilo masculino coreano mainstream estabelecem uma nova subcultura que está intimamente ligada com as lutas LGBTQI; fazendo uso da sua popularidade, também na China, Hong Kong e Macau. Em tempo de pandemia esta visibilidade, na rua, nas interacções, e nos símbolos, está ameaçada. Para um lado do planeta, em que a luta toma formas mais expressivas, e em outros lados menos, vai ser preciso redefinir esta visibilidade para a nova esfera pública que a pandemia obriga. A distinção entre esfera pública e privada está cada vez mais comprometida quando somos obrigados a ficar em casa para ajudar a travar a evolução de uma doença infecciosa. Onde colocamos a nossa máscara social de afirmação identitária? Por baixo de uma máscara sanitária, a dois metros de distância? Vai sempre fazer sentido falar da visibilidade lésbica, até quando o conceito de visibilidade não nos é garantido nas formas que nos eram conhecidas. Ainda é cedo para perceber como é que a pandemia nos vai afectar globalmente e como é que afecta os direitos sexuais em particular – muita gente está obrigada a confinamento em lugares não-seguros onde estes direitos não lhes são garantidos. Os dias de visibilidade vão ser mais necessários do que nunca. Pode ser que neste contexto particular as esferas privadas e públicas consigam formar-se numa nova dicotomia menos contrastante. E assim tornar o conceito de cidadania íntima ainda mais relevante, onde o pessoal, o social e o político conseguem envolver-se para alimentar sociedades mais justas e igualitárias.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesFale-se de liberdade (sexual) [dropcap]A[/dropcap] liberdade é sempre muito citada em alturas de Abril. Numa altura em que temos menos liberdade de sair, de fazer o que queremos, a habitual conversa de Abril trouxe o sabor amargo da actual limitação das liberdades e dos prazeres. Na terra dos livres, os famosos Estados Unidos da América, fala-se da liberdade em ir ao cabeleireiro e de ignorar as medidas de prevenção de contágio que têm sido adoptadas um pouco por todo o mundo. Afinal o que é a liberdade em tempos de COVID-19? As liberdades são removidas para proteger os outros (e o sistema de saúde). Mas ‘sacrifiquem os mais fracos e os mais debilitados’, insistem os amantes de liberdades norte-americanas. Empatia e colaboração deve ser um exercício difícil para a senhora que quer ir cortar o cabelo. A premissa de que a liberdade termina quando perturba a liberdade do outro é mais contestada do que parece. A agressão física como uma ofensa à liberdade é um exemplo óbvio – tal como deveria ser o contágio. E quando são só palavras? Que limites à liberdade vemos reflectidas no pressuposto de que todos têm direito à liberdade de opinião e de expressão? Todos têm mais ou menos direito a dizer o que lhes vai na alma, até em confinamento domiciliário. Porque antes (e em muitos lugares ainda) falar das coisas erradas traria a polícia à porta. Fazia-se (e ainda se faz) amplo uso da censura como mecanismo limitador. Felizmente que essa liberdade foi conquistada em muitos locais do globo. Só que as pessoas com mais dificuldade em aceitar a redundância da (retrógrada) dicotomia heteronormativa, sentem-se na liberdade de opiniar a sua visão do mundo – porque têm a liberdade para fazê-lo. Quantos artistas gay, lésbicas, bi, trans vêem as suas páginas nas redes sociais saqueadas por opiniões que não precisavam de existir? Como raio é que a liberdade de ser um bully ainda é legitimada? Com o crescimento do populismo, e a legitimação de decisões políticas patéticas, a necessidade de afirmação individual tornou-se ainda mais premente. Recentemente, no Tribunal de Justiça da União Europeia exercitou-se sobre isso mesmo. Um advogado italiano numa entrevista radiofónica decidiu expor o seu escárnio pela ideia de algum dia trabalhar ou colaborar com alguém que não se insira na caixa heteronormativa. Um grupo pelos direitos LGBTQI faz alguma coisa sobre isso e leva o caso ao tribunal europeu. O veredicto: visto que a pessoa teria poder de contratação, o crime de discriminação sobrepõe-se ao da liberdade de expressão. Foi necessário provar que uma ‘opinião’ teria consequências práticas e criminais. Não foi bem um triunfo da criminalização da discriminação sobre a liberdade de expressão, mas um princípio. Há a assumpção de que o que se diz pode não resultar em comportamento. O que quer dizer que muitas pessoas dizem baboseiras demais: sem respeito pelo outro, sem grande visão de um mundo inclusivo e justo. Quero pôr no mesmo saco a senhora que quer cortar o cabelo e manifesta-se porque não pode, e o homofóbico que diz o que lhe apetece sem grande medo de represálias (mas que as teve!). As formas como eles exercem as suas liberdades poderiam ser uma forma de empoderamento incrível, mas neste caso só deu em micro-agressões na forma banal e dolorosa de descarte do outro. O que me leva a concluir que ainda precisamos de pensar e falar sobre a liberdade durante muito tempo.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesLiteratura erótica de quarentena [dropcap]E[/dropcap]screver histórias eróticas é o que está a dar nesta pandemia. Numa procura na secção erótica, de um site popular de ebooks, usando covid-19 como termo de busca, já existem 44 resultados. Em pouco menos de três meses já houve quem se sentasse, fantasiasse e escrevesse sobre como é que esta pandemia poderia criar cenários apropriados para o sexo. Quem disse que a pandemia não seria produtiva? Há quem já tenha começado colecções de livros eróticos da pandemia, só para perceberem como o negócio deve ser prolífero – ou simplesmente muito satisfatório. Claro que há erótica para todos os gostos, desde a amor incestuoso entre meios irmãos que estão presos em casa, até BDSM mais forte ou leve, heterossexual e homossexual e o covid69 – vocês apanham a ideia. Tudo contextualizado nesta contemporaneidade que ainda temos dificuldade em entender. O que me leva a uma peça fabulosa da literatura erótica que é objecto de um podcast de comédia. A literatura erótica a ser um adereço de comédia não deve ser o objectivo de nenhum escritor erótico. Mas no sexo, e na escrita, para os corpos e a forma como os entendemos, as palavras importam. Irei elaborar sobre isto mais à frente. Este podcast, my dad wrote a porno, tem sido o meu companheiro de pandemia para me introduzir à literatura erótica – e aos meandros do sexo cómico. O título diz tudo: um filho descobre que o pai, na sua velhice, decide escrever sobre sexo (sobre as suas fantasias?). O filho, com mais ou menos vergonha, decide ler um capítulo por cada episódio e comentá-lo com os amigos. Et voilá. Um êxito estrondoso no Reino Unido, e em muitos outros lugares por ouvintes que gostam de ouvir em inglês. Um fenómeno cultural, dizem os comentários. O enredo que sai do Rocky Flintstone, o pseudónimo para o criador desta colecção de livros eróticos, são fabulosos. Desde mamas que são comparadas com romãs, a algemas de plástico vermelhas (que se calhar não cumpririam o seu propósito?), a um pénis, que é tão pequeno que se perde na penugem púbica de quem o pertence. Tudo acontece à heroína desta trama, uma tal de Belinda que é a directora de vendas de uma empresa de panelas e frigideiras, e onde o sexo faz parte do dia-a-dia laboral. Claro que um olhar mais crítico iria horrorizar-se pela objectificação feminina e pela tendência por interacções lésbicas sem explicação prévia. Já a descrição da entrevista de trabalho, é um cenário de exposição absurda, em que a entrevistada tem que se despir totalmente e… abrir as tampas vaginais (em inglês soa melhor, mas juro que é assim que é descrito) como se de uma inspeção ginecológica se tratasse. Com toda a seriedade do sexo, esta possibilidade de rirmos dele, e destas descrições que poderiam ser melhor conseguidas, cria a possibilidade de o reinventar. Claro que o sexo é passível do gozo, muitas vezes bastante violento e de consequências nefastas, mas há qualquer coisa de maravilhoso quando este gozo não faz mal a ninguém. Quando o sexo não precisa de ser uma referência de seriedade e pode ser gozado de tantas outras formas, como a rebolar da cama, no chão, nos lugares estranhos que se quiserem. E ele pode existir nas palavras, neste exercício literário, entre o escritor, o leitor e até o ouvinte. O imaginário erótico, ainda assim, sobrevive nesta pandemia. Nem precisa de muito enredo, só mesmo de muito sexo.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesEm casa não há só conforto [dropcap]D[/dropcap]urante este período de isolamento todos nós lidamos com o estar em casa da melhor forma que podemos. A casa é um sítio seguro para muitos de nós, e para muitos não é. Venho aqui relembrar do que precisamos de ser relembrados – agora que nem podemos ver o mundo lá fora com os nossos próprios olhos. O isolamento é para quem tem as condições para fazê-lo. Claro que venho falar-vos do desconforto relacionado com o sexo, relacionamentos e família. Há várias formas como o desconforto do lar é o resultado de desigualdade sociais profundas e estruturais (como não existirem condições dignas de habitação). Mas dentro dos temas que interessam explorar aqui – de sexo e essas coisas – o caso mais alarmante de desconforto é o de violência doméstica. Ficar preso numa casa com um agressor é uma situação extremamente difícil de ser gerida. Há muitas instituições que estão sensíveis a este problema e têm desenvolvido formas de dar apoio, por telefone – e especialmente por mensagem. Quando uma situação de violência poderia ter momentos de pausa, e de privacidade, com a rotina que nos afastava do lugar dilemático que é uma casa, aqui está a pandemia para complicar estas estratégias. Quando nos dizem que para travar esta guerra basta ficar no sofá a ver séries, esquecem-se que esse sofá pode estar cheio de picos. Sentar-se relaxadamente pode não ser uma possibilidade. Depois claro que há outros problemas que podem surgir. Em Xi’an, assim que o confinamento imposto foi flexibilizado, houve um aumento considerável nos pedidos de divórcio. Depois de meses em confinamento os casais trouxeram as suas dificuldades e não conseguiram lidar com elas. Há quem diga que foram decisões apressadas e que muitos mudaram de ideias. Há quem diga que eram más relações à partida e que mais cedo ou mais tarde estes casais iriam divorciar-se. Não sabemos ao certo qual a resposta certa. De acordo com os depoimentos de casais em confinamento parece que a coisa pode dar para os dois lados: ou criar momentos de re-conexão, ou promover o afastamento, o desentendimento e a confusão. Desde discussões sobre as melhores formas de se protegerem ‘Não toques em maçanetas! Lava as mãos durante 20 segundos! Deixa a roupa suja fora de casa!’ em combinação com ‘Estás a ser paranoico’. Até à dificuldade de criar espaços de comunicação e conexão ao mesmo tempo que se mantêm espaços de privacidade (há quem se esconda no guarda-roupa). A vida ficou em suspenso independentemente das condições. Imaginem quem tinha acabado uma relação amorosa? Não há como mudar de casa, ou mudar de vida. Uma suspensão que até poderia ser boa se fosse noutra altura. Ficar preso em casa com o ex-companheiro soa-me a premissa tonta para uma daquelas comédias românticas que Hollywood já fez. As famílias, ainda assim, fazem malabarismos com a lida da casa, com os filhos, e com a produtividade que muitos ainda impõem, como se nada de especial estivesse a acontecer – é preciso manter a normalidade, é preciso manter a economia. Se, para alguns, este confinamento deu a oportunidade para respirar e repensar na vida, no sexo, nas relações, nos desejos e anseios, no mundo e no estado das coisas; para outros essa possibilidade não é assim tão óbvia. A casa e o isolamento podem não ser lugares de conforto, e estar ali suspenso, um pesadelo. Vale ficar de mau humor e espernear. Vale contar com a solidariedade dos outros para dar sentido ao desconforto. O isolamento é para quem pode, não consigo repetir vezes suficientes. Não consigo parar de pensar nos países onde a desigualdade é atroz e isto se mostra ainda com mais clareza. Esta pandemia traz o melhor e o pior de cada um de nós, ao mesmo tempo, sem dó nem piedade. Obriga-nos a uma adaptação a um contexto muito particular – finalmente percebendo que uma casa é tão complexa como tudo o resto.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA falta que os preservativos fazem [dropcap]A[/dropcap] infecção do momento está claramente a afectar várias indústrias. Na Malásia, a maior fábrica de preservativos fechou – onde 20% dos preservativos do mundo são produzidos. O Guardian já alertou para uma possível falta de preservativos, talvez numa altura de grande necessidade. Serão os preservativos importantes nesta pandemia? Uma pergunta muito pertinente para se falar de sexo, como sempre. Os preservativos parecem bastante descartáveis dado o cenário apocalíptico em que vivemos. Muitos dirão que há coisas mais importantes em que pensar. Talvez ajude se olharmos para o direito ao prazer como um direito humano para justificar o contrário. Os preservativos (masculinos e femininos) são o único tipo de contraceptivo que previne uma gravidez indesejável e a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis. Um bem com dupla função para casais heterossexuais em particular, mas igualmente importante para casais homossexuais que queiram sentir-se protegidos. Tudo bem que nesta altura de isolamento social haverá menos sexo casual ao vivo (deleitem-se com o sexo casual virtual, porque não?). E assim assume-se que os casais presos em casa poderão não precisar dos preservativos porque (1) para os casais heterossexuais existem também outras formas de contracepção e (2) o risco de IST’s já deve ter sido resolvido com testes para os casais que estão juntos há muito tempo. Também podemos imaginar muitos outros cenários onde os preservativos ainda são necessários. Julgar que se pode contar com outras formas de contracepção no mercado pode ser um erro. Os contraceptivos hormonais já mostraram trazer efeitos secundários às vezes até bastante graves e há pessoas que escolhem não os usar. Os preservativos são dos poucos contraceptivos não hormonais do qual imensa gente depende para evitar uma gravidez indesejada. Também posso imaginar cenários de relações ainda verdes ou do surgimento de novas relações românticas que ainda precisam de sexo seguro. Se sair da nossa tendência etnocêntrica então, nos lugares com grandes taxas de transmissão de HIV, o preservativo é quase um bem tão essencial como a comida. A falta de preservativos seria catastrófica. Mas de certeza que há gente que sugere a abstinência como a opção mais acertada, caso cheguemos a um cenário de falta de preservativos severa. Porque o sexo não é importante, dirão as vozes mais conservadoras. Mas o sexo nunca foi tão importante como agora. O sexo é uma ferramenta e um recurso (para quem consegue olhar para o sexo dessa forma). Em alturas de pandemia como esta, de incerteza e de medo, o sexo é uma forma de prazer e conexão – também podem chamar-lhe de meditação ou de exercício físico. O sexo é simples, barato (pode não sê-lo, mas é altura de reforçar esta opção) e promotor de bem-estar. A conclusão é simples: os preservativos são importantes até numa altura de pandemia e a sua escassez deve ser evitada. Claro que temos que dar prioridade a outros bens e objectos que nos ajudam a lutar contra o vírus. Mas o sexo deve continuar lá a manter a nossa sanidade e os preservativos fazem parte dessa sanidade também. Por isso é que a fábrica na Malásia, entretanto, já retomou produção a 50% e uma outra fábrica na Tailândia voltou a abrir as portas (espero eu, com as condições de segurança desejadas). Se não o fizessem, chegaríamos a um ponto de diminuição na produção, e de grande procura, levando à inflação deste objecto singelo – e a segurança do sexo tem que ser garantida a toda a gente.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesFicção do Sexo e do Vírus II [dropcap]J[/dropcap]á há novas estórias de amor – fictícias e verídicas – em tempos de covid-19. Esta é mista. Gentes que contemplam pelas janelas dos seus apartamentos e casas, sonhando com o nervoso miudinho que fica na barriga quando vemos quem nos excita. Há quem veja uma dança da janela, uma rapariga de cabelos escuros ondulados a dançar ao som de uma banda indie rock qualquer. A rapariga que dança começou agora um diário, o diário da pandemia. Também dança e canta, para espantar os males? Várias culturas ensinaram-lhe que cantar cura coisas, espanta outras. ‘Continuem com as vossas rotinas’, dizem uns, ‘aproveitem para descansar’, dizem outros. ‘É tempo de masturbação’, dizem todas as sexólogas na internet. Quanta confusão mental num espaço tão pequeno que é uma casa. Tantos problemas no mundo que se mostram nus em tão poucos metros quadrados. Se calhar o mundo nunca mais será o mesmo, ninguém sabe ao certo. Ela não é futuróloga e rapidamente deixa de pensar nisso. Ela pensa na redefinição do amor. Mudam-se as crenças, mudam-se as vontades, mudam-se os comportamentos. O isolamento é agora uma prova de amor. Ainda assim sente-se ligada a quem mais ama porque há modernices, e porque tem um caderno e uma caneta em casa. Escreve parvoíces e desenha infantilidades – um diário para se distrair com (e d)ela própria. Alguém a viu de uma outra janela e apaixonou-se pela dança, pelo cabelo, por qualquer coisa que não sabe. O amor não acontece assim, mas a atracção, sim. Ela não faz ideia a quem pertence a silhueta por detrás da janela. Vive naquela casa há anos e nunca reparou que tinha a vista perfeita para uma rapariga de cabelos escuros ondulados. A vida pré-isolamento era mais atarefada. Agora está parada, com mais tempo para contemplar vidas e janelas. Talvez o isolamento tenha atiçado o tesão, como as forças opostas que constroem os nossos dilemas internos. ‘Quando sou obrigada a estar sozinha, mais me apetece estar com alguém’. Ela deixa um recado na janela, e espera que só ela repare. ‘Rapariga de cabelo escuro e ondulado que gosta de dançar à janela, queres jantar comigo?’. Desenha um arco-íris também, para não destoar das outras janelas. O jantar teria que ser reinventado, depois pensaria nos pormenores. Ela não costuma ser tão extrovertida, mas a visão catastrófica do mundo obrigava-a a arriscar. Esperou que o objecto do seu desejo respondesse positivamente, com uma mensagem na janela, também? Esperou mais um pouco. Enquanto esperava, imaginava cenários de enamoramento em tempos de pandemia. Não tinha medo da rejeição, a solidão já a acompanhava de uma maneira ou de outra. Continuou à espera de um qualquer sinal. O amor é um alívio – tal como a esperança que nos motiva para pintar um arco-íris, colá-lo à janela e pedir que tudo fique bem. A incerteza é lixada, mas o amor ajuda a encará-la. O amor, que alimenta a solidariedade, empatia e esses clichés todos optimistas, precisa de um objecto, de uma concretização qualquer. Nesta invasão de medos activam-se formas de conexão virtual e mental. Não há formas certas ou erradas, há a redescoberta de uma forma diferente de se ser. Ainda não sei se a rapariga de cabelos escuros e ondulados reparou na mensagem, como é que irá responder, o que irá acontecer. A satisfação está na presença destas duas personagens que, sem uma pandemia, não seriam quem são.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesFicção do sexo e do vírus [dropcap]E[/dropcap]sta é altura de fazer ficção. A alienação fictícia é bem-vinda quando a realidade é dolorosa. Inventam-se estórias da história, tal como o Tarantino fez algumas vezes. Se se vivem dias difíceis temos a imaginação para torná-los diferentes. Se há alguém a gostar destes cenários onde vivemos e não anda com dificuldade em dar-lhes sentido, das duas uma: ou é um optimista ou é um sociopata. Há quem julgue que este tempo possa ser usado na criação de grandes obras literárias, grandes projectos que nunca foram concretizados. Sobem-se expectativas de quem não percebe nada de criatividade. A criatividade artística, aquela que cria coisas bonitas e rentáveis, não é a única resposta para lidar com os dissabores da vida. Mas um pouco de parvoíce é bem-vinda. Parvoíce que faz com que uma escrita semanal sobre sexo possa contribuir para estórias virulentas fantásticas. Estórias de heróis e heroínas onde o mal é aniquilado por completo com o acto do sexo. Era uma vez a corona que conhece a outra corona para fazer filhos e passarem o testemunho de destruição. O sexo é a arma da multiplicação, até com o vírus – que não fazem mesmo sexo, mas no mundo fictício tudo é possível. Depois há o sexo entre humanos, os fluidos que se trocam proporcionam as condições ideais para esta partilha virulenta também. O sexo não é uma arma de destruição, mas podia ser. E se o esperma fosse o melhor dos desinfetantes? E se a masturbação fosse a forma mais eficaz de fortalecer o sistema imunitário e combater o mal invisível? A masturbação que nos dizem fazer crescer pêlos nas mãos ou cegar, podia ser a solução para os problemas do mundo. Uma forma de produção de bem-estar, como já estou bem farta de pregar semanalmente e agora prego neste cenário de ficção. Nesta fantasia mirabolante, o sexo, dentro de certas condições, seria a solução para a situação que vivemos. O corpo seria passível de invasão, mas estaria apetrechado de formas de luta, de criar barreiras e de tornar a vida do vírus difícil. A capacidade de nos transformarmos seria real. Teríamos uma fonte inesgotável de desinfetante – não adoram a ideia do esperma ter mais do que uma função do que fecundar óvulos? Homens andarem a ejacular por motivos de higiene não seria um cenário bonito. Seria o pesadelo para a luta do patriarcado. Nesta fantasia igualitária os corpos com vulvas podiam contribuir de forma igualmente eficaz, com os seus fluidos protectores e desinfectantes. O orgasmo também seria uma forma de protecção. O orgasmo emitiria radiações capazes de destruir as gotículas transmissoras do vírus, como um morcego com a sua capacidade ultra-sónica. Já que foi um morcego que trouxe o vírus de corona para o mundo humano, nós também contribuímos com a nossa capacidade quasi-morcega para nos desfazermos da praga que nos assola. A forma como sentimos o corpo e o mexemos também seria passível de todo o tipo de inovação. Pálpebras e membranas estariam disponíveis para tapar aquilo que não devia estar exposto. O sexo desafiaria a tendência isolacionista que este vírus nos obrigou. Só é preciso criatividade para tornar o que nos desconforta em algo menos desconfortável. Criatividade que não precisa de se transformar numa grande peça de dramaturgia como insinuam que o Shakespeare fez. Usemo-la para a re-invenção nestes tempos que nos atiram ora para a preocupação, ora para o aborrecimento.