O legado de Shere Hite

[dropcap]M[/dropcap]orreu Shere Hite. Pode ser desconhecida por muitos, mas o seu legado não é. Foi a impulsionadora de um estudo à escala nacional para explorar o sexo no feminino. O que é que as mulheres querem? Como é que as mulheres se vêm? Publicou o que se popularizou como o Relatório Hite, – ao que o Hugh Hefner, da Playboy, alcunhou de relatório Hate. Nos anos 70, sugeriu, depois de uma análise de 3000 relatos escritos por mulheres de toda a América, que o que as mulheres querem na cama, não é necessariamente o que os homens querem. Os orgasmos não são facilmente alcançáveis com penetração, e que o clitóris é a rainha do orgasmo e do prazer.

Todas as suas conclusões e ideias foram recebidas com muita contestação. Muitos assumiram que era uma ode ao ódio. Ódio contra os homens, claro. O sentido de ameaça era tal que a norte-americana renunciou à sua nacionalidade e passou a viver na Europa. As ameaças de morte não paravam, pelo correio e pelo telefone. A Europa foi o único lugar receptivo às suas ideias do sexo, da vagina, do clitóris e do orgasmo.

Chegaram a acusá-la de destruidora de lares quando, numa outra obra, reflectiu acerca do papel desigual das mulheres na relação heterossexual. Ao reflectir sobre as desigualdades do sexo e do género, a sociedade em geral achou que ela estava a pedi-las. O mundo da investigação também não se acanhou em acusar todo o seu trabalho como não científico e inválido. A sua amostra podia ter limitações. Mas 3000 participantes é um número muito mais generoso do que as três mulheres Vienesas que serviram de exemplo e inspiração para a teorização de Freud – era a comparação que ela costumava usar.

Para piorar tudo, era muito gira, e fazia uso disso. Tinha aquele ar de Marilyn Monroe, com cabelos loiros e lábios pintados de vermelho. Só que não era uma tonta, como a maioria das personagens da Marilyn, era uma intelectual. Uma combinação que poucos esperavam. Até para pagar as exuberantes propinas da Universidade de Columbia trabalhou como modelo para fazer face às despesas. Posou para a Playboy.

Também foi fotografada para anunciar as famosas máquinas de escrever Olivetti, que se aproveitavam do machismo da altura para as publicitar. ‘A máquina é tão inteligente que elas não precisam de o ser’, era o slogan usual. A Shere, ao perceber que a sua imagem estava associada a tamanha parvoíce, juntou-se às manifestações que criticavam o anúncio em que ela própria aparecia. Foram esses encontros que moldaram a sua perspectiva intelectual ao assumir-se como feminista. Foi aí que começou a querer dar primazia às vozes e experiências das mulheres de baixo para cima, elevando a mundanidade do orgasmo e do prazer. Foi decisiva no desenvolvimento do pensamento feminista quando se quis preocupar com quando e como é que as mulheres têm um orgasmo.

Li algures que o seu legado já nos está tão enraizado no pensamento que dificilmente conseguimos perceber o choque e a reverberação das suas ideias na altura. Os desafios agora até podem ser outros, mas lá no fundo continuam a ser os mesmos. No sexo há uma falta de legitimação naquilo que se sente – e tal como na história (e luta) do orgasmo feminino, a tentativa de elevar a arte da entrega, da sensação e do prazer é tão contemporânea como há 40 anos atrás.

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