Celebrar o extraordinário

O ano velho foi atípico. Forçou mudanças, restringiu a liberdade, o toque e o contacto foram desaconselhados e até proibidos. Recordar os primeiros momentos do surto é recordar a incerteza de tudo o que estava a acontecer – e agora chegámos aqui.

Aqui estamos no ano novo (do calendário gregoriano) e muitos foram os votos pela normalidade que conhecíamos. A esperança de um regresso às viagens, prazeres e liberdades têm invadido os discursos. Não admira. A pandemia trouxe tempos difíceis onde os problemas do mundo só se exaltaram. Muita gente não tinha uma casa onde se abrigar, apesar do confinamento obrigatório. As desigualdades sociais tornaram-se mais óbvias. A “casa” tornou-se o refúgio de muitos e o pesadelo de outros, que não se sentiam seguros e protegidos. O confinamento foi romantizado pelos que podiam, os outros tiveram que se aguentar. As âncoras deixaram de estar visíveis. A bem ou a mal foi o tempo de parar.

Na viragem do ano também vieram as resoluções de sempre. Algumas delas focadas na transformação do corpo e na futilidade da imagem (que as redes sociais pioram sempre). Vários estudos mostram que só 10 por cento das pessoas conseguem cumprir as suas resoluções de ano novo. E isso é simples de explicar – para a mudança acontecer é preciso preparação, e essa é escassa. Tanto a nível individual como colectivo. A pandemia que o diga: no momento em que a prioridade foi a saúde e a vida humana, tudo se baralhou. Parecíamos umas baratas tontas. Novas prioridades exigiram novas normas: a custo de quê?

Agora volta-se ao normal não-normal, que só afunda o que nos separa. Artificia-se um colectivismo nacional/regional para garantir economias e formas de vida. Prevalecem soluções e perspectivas tecnocráticas do funcionamento social onde só há espaço para o que interessa (a alguns). Em tempos de crise discrimina-se o essencial de um suposto acessório. Os gestores são mais importantes que os artistas, dizem eles. A obrigação é necessária e o prazer é um luxo, dizem eles. Sonha-se com a normalidade antiga sem grande consciência que era ela o problema também. Um 2020 marcado pela pandemia só foi disruptivo porque não o vimos como sintomático do estilo de vida contemporâneo. As coisas estavam más, mas eram finamente toleradas. A normalidade contribuiu para a desflorestação, a crescente invasão de ecossistemas e para a transmissão zoonótica do vírus – de onde outros vírus virão. Foi dos vícios e artifícios do antigamente que se agravaram as dificuldades sociais violentamente sentidas, e que vão continuar.

Pelo menos parou-se. Podia ter sido uma oportunidade para re-imaginar um mundo diferente, um espaço para o recomeço. Foi extraordinário assistir ao sentido de comunidade que se desenvolveu a vários níveis – ainda que não tenha durado muito. Ajudavam-se os vizinhos e o “essencial” parecia ser importante. A humanidade estava latente no trato, ainda que cumprindo distanciamento social e protegido de máscaras. Provou-se a resiliência e a criatividade com serenatas e concertos à janela, entre muitas outras coisas. O vislumbre de um mundo radicalmente diferente poderia prometer um ano 2021 radicalmente diferente. O ordinário só é familiar, não é imutável. O extraordinário é o trunfo dos tempos e pode ser que 2021 assim o seja.

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