Da santidade ao abusivo vai uma língua

Vou assumir que tiveram acesso a conteúdos da mesma forma que eu tive. Fui bombardeada pelo vídeo do Dalai Lama a querer beijar na boca uma criança onde depois lhe pede que chupe a língua. Ele, ou a sua equipa, pediram desculpa pelo incidente nas redes sociais. “A sua santidade” pede desculpa dizendo que gosta de brincar com as pessoas.

No vídeo só se ouvem pessoas a rir, que confirma a tese de comédia que a sua santidade quer impingir. Também vos garanto que rir é o mecanismo mais natural para lidar com situações inesperadas. Muitos que assistiram ao vídeo pedem que seja avaliado como abuso sexual de menores, em vez de um incidente engraçado que não caiu muito bem. Ninguém deve estar isento destas críticas, nem a sua santidade, defendem os cidadãos por essa internet fora.

Este vídeo caiu-me numa altura curiosa, quando andava a refletir sobre o abuso sexual de menores e a igreja católica. Tive uma incursão católica recente numa missa de Páscoa de duas horas – a minha primeira e última – onde passaram muitas coisas pela minha cabeça: umas boas e outras más. Pensei inevitavelmente no inquérito realizado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, e da forma como a igreja tem reagido a isso.

A comissão publicou um relatório em Fevereiro deste ano que dá conta de 4415 menores vítimas de abuso ao longo de 70 anos. Ainda que com dados concretos, a igreja em Portugal não se comprometeu a afastar abusadores da sua prática paroquial. Disseram-me os frequentadores assíduos da paróquia onde assisti à missa que a publicação do relatório teve impacto na forma como alguns crentes vêem as suas práticas religiosas. Não é para menos.

Tentei perceber um pouco melhor de que forma é que se fala da religião e do abuso sexual de menores, como a minha orientação construtivista me obriga. Reparei muito num discurso que justifica as causas dos abusos. Por um lado, incutem-nos a teoria da “maçã podre”, ou seja, os abusadores são pessoas que se desviam do normal, como casos isolados ou simples outliers. Por outro lado, há quem defenda uma teoria sistémica, olhando para a inevitável repressão sexual dos membros do clero com base nas visões católicas da sexualidade. Mas para além das possíveis causas, urge discutir como gerir abusos, de qualquer tipo, dentro de uma instituição milenar.

Foi o Papa Francisco que em 2019 proibiu o sigilo em relação a estas temáticas. A igreja parecia querer controlar os abusos por meio de uma cura espiritual sem vir a público, e sem manchar a fé dos crentes. No fundo, como qualquer estratégia de marketing que se preze, quiseram defender o produto para o consumo não cair. Em tempos de grande descrença, escândalos como este fazem abalar a fé de qualquer um.

Mas esta é a oportunidade de avaliar a honestidade dos espaços sagrados. Os membros e líderes espirituais não deixam de ser pessoas que cometem erros e podem ser abusadores. Devem ser julgados não só aos olhos da sua religião, mas aos olhos da justiça instituída.

Ao invés, as religiões usam santidade para proteger a santidade. É dessa forma tautológica que nos obrigam a olhar para a incapacidade reflexiva de resolver e mitigar problemas sérios como o abuso sexual de menores. Como um mito que coloca uns quantos num pedestal e deixando os outros a obedecer a tal organização estratificada. É neste equilíbrio de forças, e na sua naturalização, que se vai da santidade a uma postura abusiva muito mais rápido do que se gostaria. Às vezes, basta uma língua.

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