Arrancar os pêlos

Como é que se começou a arrancar os pêlos? Foi esta questão que a Rebecca Herzig se debruçou no seu livro Plucked: A History of Hair Removal. A autora, com rigor académico, explora história dos pêlos e as suas práticas ao longo do tempo, principalmente em contexto norte-americano.

O fascínio pelos pêlos começou mais ou menos assim: os europeus chegaram às Américas e deparam-se com comunidades nativas com poucos pêlos. Nessa altura fizeram questão de realçar a sua superioridade através dos seus pêlos faciais. Um suposto sinal de racionalidade e capacidade intelectual. Assim se estabeleceram indicadores para hierarquias sociais, justificações para a colonização e controlo. Contudo, depois dos americanos nativos estarem devidamente controlados e separados nas reservas, outra assumpção de pêlos surgiu, em consonância com a teoria da evolução do Darwin. Ele, por sinal, era obcecado pelo tema. Dedicou alguns capítulos do seu trabalho a conjecturar como é que nos separamos dos nossos parentes primatas a esse nível. Talvez porque haveria uma escolha preferencial pela pele macia dos menos peludos? Talvez porque haveria facilidade de aguentar temperaturas altas, possibilitado a caça em horas quentes do dia? As massas rapidamente abraçaram a ideia de que a falta de pêlos seria um sinal de distanciamento primata. Quem esteve particularmente vulnerável a esta retórica foram as mulheres.

As mulheres têm o poder de parir e amamentar. São funções que as aproximam do seu legado animal, um legado do qual o ser humano muito tenta se afastar. Os pêlos são por isso um lembrete dessa ligação evolutiva. Daí a importância de limpá-los, minimizá-los ao máximo. Durante o movimento sufragista os pêlos foram altamente escrutinados. Os pêlos, os responsáveis pelas tendências emancipatórias, eram tidos como demasiado masculinos, animalescos e pouco higiénicos.

Muitos objectos e técnicas para acabar com pêlos supérfluos foram desenvolvidos desde a segunda metade do séc. XIX. Muitos cremes depilatórios foram comercializados contendo substâncias tóxicas. Há quem tenha morrido com produtos que só as desenvencilhavam da penugem por três semanas. Claro que desde cedo que se tentou descobrir formas mais definitivas de remover pêlos, como a electrose ou raio-x, que não tiveram a devida supervisão e cuidado científico. Os efeitos secundários prejudicaram muitas mulheres na altura, no início do século XX.

Apesar de uma das conclusões do livro ser que os padrões sociais estão sempre em mutação, e que o status quo é frágil e precário, os pêlos continuam a ser alvo de muito desdém actualmente. A tecnologia, contudo, já é muito mais avançada. Quem tiver meninas na família terá assistido, certamente, como se torna numa questão importante do seu desenvolvimento e entrada na adolescência. Apesar de um tópico menos contencioso, não deixa de ser um rito de passagem: a primeira vez que arrancam os pêlos.

Eu nunca me esquecerei da minha primeira vez. Tinha uma tia que era esteticista e ela já tinha tornado muito claro que as minhas pernas teriam de ser depiladas o quanto antes. Eu anuí, quem quer ser a pré-adolescente peluda? A dor, o cheio da cera, as lições tricológicas de como não aumentar ainda mais a densidade de pêlos da minha situação já precária ficaram gravadas na minha memória. O que vale é que teria como resolver este meu estado decrépito: visitá-la de três em três semanas, passar por dores indiscritíveis e gastar dinheiro. Sem pêlos, tudo ficaria bem.

Várias antes de mim passaram pelo mesmo. Há mais de 150 anos que os pêlos supérfluos continuam a ser arrancados de muitas maneiras, e continuam a ser objecto de controlo. Já para não falar dos pêlos púbicos e das suas muitas possíveis apresentações. A verdade é que agora, nas tentativas de desmantelar binarismos de género, os pêlos têm sido altamente implicados. Em pleno século XIX, já é um acto político decidir não arrancar os pêlos. Ostentá-los é uma forma de contrariar a representação do pêlo que vive fora do couro cabeludo. Ainda que muitas pessoas continuem, e continuarão, a ser plucked.

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