O Buda Dourado de Camilo Pessanha

[dropcap]D[/dropcap]izem que foi o primeiro funcionário público português a pedir transferência para um território onde ninguém queria viver. Mas Alberto Osório de Castro vivia há já largos anos em Timor, para onde se havia trasladado de Moçâmedes. Era primo direito e amigo de Camilo Pessanha e, tal como este, juiz e poeta, além de arqueólogo e botânico amador.

No verão de 1912, Osório de Castro passou por Macau e assistiu ao ritual matinal do despertar do poeta, como deixou escrito na página de memórias «Camilo Pessanha em Macau», publicada em 1942 na revista Atlântico. Aí descreve uma visita ao confrade na sua tebaida, isto é, a casa de Camilo à Praia Grande, onde hoje se acha um insípido hotel chinês, mais ou menos frente à chuchumeca da Solmar. Fechado no seu quarto, Camilo demorava a despertar, numa descrição do opiómano que se tornou famosa: “Diante da janela toda aberta, um Buda doirado de bronze, cujo rosto extático vagamente sorria, numa expressão de transcendente serenidade. Dois pivetes ardiam devagar ante a luz, em homenagem da terra e das almas, como depois me disse Camilo, ao Desconhecido. […] O Camilo fumava a longos haustos caladamente, e reanimava-se pouco a pouco como se o tocara vara de condão”. Por conta da legenda, é fácil prestar atenção ao ópio, e ficar por aí. Mas mais do que o causador de tantos dissabores para China, parecem-me bem mais interessantes as referências religiosas: a São Paulo e sobretudo ao curioso Buda doirado, a modos que a evidência de uma suposta adesão ao budismo. Na verdade, é uma «citação» indireta e até jocosa de Arthur Schopenhauer, que também era proprietário de uma estátua doirada de Buda, e que, de modo a alimentar o seu pensamento pessimista, fez amplo uso da versão distorcida e europeizada do Budismo que circulava à época. Junto com os pivetes ardendo em homenagem «ao [Deus] Desconhecido», são apropriações distanciadas, irónicas (tristes até, na sua descrença desolada), de elementos chineses e budistas, junto com o Deus Desconhecido, de que Paulo se fizera emissário em Atenas (Atos dos Apóstolos, 17.23). Houve quem, iludido por estes sinais inequívocos de descrença, quisesse ver em Pessanha um budista. Não entendendo a ironia, ignorando a China e ainda mais o Budismo, enredaram-se no folclore. E há mais deste budismo irónico em Camilo. Veja-se uma carta enviada a um amigo, de 1896, escrita de Mirandela após breve regresso a Portugal: “Continuo fatigadíssimo desta série de deslocações em que ando há dois meses — e que só virá a terminar daqui por cinco ou seis, outra vez no mesmo cabo do mundo. Um horror para quem está acostumado a dois anos e meio de quietação búdica.” Ironia, mais uma vez, e por vezes dolorosa, como nestoutra, de março de 1912: “Não sei se eu disse alguma vez ao Carlos Amaro que há no inferno chinês um terraço, — a torre da Amargura, — onde o condenado é levado ao cabo de cada ciclo de tormentos e de onde vê tudo o que se está passando no mundo distante e pode interessar-lhe o coração”. Para quem muito entendia da China e dos seus mundos, quer a quietação búdica quer a Torre da Amargura, às quais junto o Buda doirado, são pequenos e amargos jogos, não tanto com a China em sim, mas com uma certa visão dela.

Por um lado, Camilo Pessanha sabia que o buda schopenhauriano ou o budismo quietista-niilista eram distorções europeias de realidades asiáticas; por outro, sabia também que o seu olhar seria sempre o de um europeu descrente, de algum modo e por isso mesmo, sempre condenado às distorções.

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