Confúcio na cultura portuguesa – 3

Por António Aresta

(continuação do número anterior)

Em 1915 o professor Camilo Pessanha, poeta simbolista e sinólogo, profere uma conferência1 , em Macau, sobre a cultura chinesa e aborda inevitavelmente o legado de Confúcio deste modo : “Mas a verdade é que Foc-Sang salvando a obra de Confúcio, salvou, para transmitir à posteridade, todo o património intelectual do povo chinês. Confúcio foi principalmente um compilador. O conferente expôs, resumidamente, o objecto dos livros de Confúcio, um por um, mostrando como neles se encontram os antigos cantos, as antigas lendas, a velha história, as velhas leis, os velhos ritos e a velha moral do povo chinês.

A propósito do Livro das Transformações, anotado por Confúcio e já velho de mais de mil anos quando foi anotado, deu o conferente uma ideia da antiga concepção chinesa, dualista, do Universo, e dos dois símbolos pelos quais essa concepção é ordinariamente representada : o ma-li-u e os oito kua – de que o conferente fez o esboço no quadro preto e explicou o sentido. Concluindo esta parte da sua exposição, disse o conferente que da própria natureza da obra de Confúcio, do seu duplo carácter de enciclopédia e de monumento étnico colectivo, resulta em grande parte o alto prestígio que ela tem disfrutado sempre, e continuará a disfrutar através dos séculos, entre o povo chinês.

É e continuará a ser o livro sagrado da China, porque nela o povo chinês encontra, na sua expressão mais adequada, mais alta e mais pura, o seu próprio pensamento e o seu próprio sentimento – a própria alma chinesa”. Por estas palavras se infere o seu continuado estudo da cultura e da filosofia chinesas, que três anos antes já tinha confidenciado ao seu amigo Carlos Amaro2 : “E qual outro poderia ser aqui senão estudar a língua chinesa, os costumes chineses, a arte chinesa ? A solidão intelectual e moral nestes meios é absoluta”.

Abrindo um parêntesis para mostrar o atraso da nossa historiografia filosófica. Perto do fim dos anos trinta M. Gonçalves da Costa3 publica um estudo pioneiro em língua portuguesa sobre a filosofia chinesa antiga, lamentando “o ostracismo a que nas escolas do Ocidente se votavam as ricas fontes da sabedoria Oriental, procedendo-se como se a investigação filosófica se esgotasse nos sistemas gregos e seus comentadores escolásticos católicos”4. O autor considera Confúcio como o “mestre que se tem de ouvir para que a China volte à sua tradição e ao seu significado no mundo”5.

Mas, o confucionismo possui uma significação flutuante, vaga e imprecisa6, ora como sistema religioso, ora como padrão ético, num percurso paralelo que se confunde. Sebastião Rodolfo Dalgado7 nota que o “confucianismo é o nome que os europeus dão à religião ou, antes, ao naturalismo ético, estabelecido na China por Confúcio, Kung-fu-tze, no século VI antes de Cristo”. Essa ambiguidade, longe de se filiar numa ética da virtude, pode ser colocada ao serviço de poderosos argumentos conflituantes com as liberdades e com o sistema político de governação. Simon Leys8, que é o pseudónimo do sinólogo Pierre Rickmans, marcou o ponto fulcral dessa ambiguidade : “Com efeito, o confucionismo de Estado deformou o pensamento do Mestre para o adequar às necessidades do Príncipe ; nesta ortodoxia oficial, faz-se um uso selectivo de todas as suas afirmações que prescrevem o respeito das autoridades, ao passo que outras noções, não menos essenciais mas potencialmente subversivas, são largamente escamoteadas – é o caso da obrigação de justiça que deve moderar o exercício do poder e, sobretudo, do dever moral dos intelectuais de criticar os erros do soberano e de se oporem aos seus abusos, mesmo à custa da própria vida. Como consequência destas manipulações ideológicas, o nome de Confúcio acabou por se ver estreitamente associado ao exercício milenar da tirania feudal. No século XX, para a elite progressista, a sua doutrina tornou-se sinónimo de obscurantismo e de opressão”. Também Bertrand Russell9 no seu já clássico The Problem of China, apontava alguns desvios à antiga pureza doutrinária.

E durante a revolução cultural maoísta, outro dos extremos do totalitarismo ideológico, escreve Henry Kissinger10, os “estudantes universitários e professores revolucionários de Beijing desceram à aldeia natal de Confúcio, jurando pôr termo à influência do velho sábio na sociedade chinesa de uma vez por todas queimando livros antigos, esmagando placas comemorativas e arrasando os túmulos de Confúcio e dos seus descendentes”. Ana Cristina Alves11, sinóloga portuguesa contemporânea, actualiza essas perspectivas, advertindo que “o confucionismo perdeu força na China durante o século XX, com a implantação das primeira (1912) e segunda repúblicas (1949). Actualmente está de regresso à casa-mãe e veio incorporado no Socialismo Espiritual dos novos tempos reformistas”.

A contribuição do génio romanesco de Agustina Bessa-Luís proporciona-nos esta síntese admirável em A Quinta-Essência12 : “Ricci não podia ficar indiferente ao pensamento de Confúcio, um agnóstico desprendido de toda a metafísica, criador duma moral fundada na natureza do homem sem os recursos do mistério. Isto devia confundir Ricci, para quem as práticas religiosas pertencem ao lado secreto da mesma natureza humana.

Possivelmente há muito de verdade na aproximação jesuíta do Cristo e de Confúcio, patente na fachada da igreja de S. Paulo. Não foi um simples discurso habilidoso, mas alguma coisa mais séria. Kongzi, o Confúcio dos padres da Companhia, ensinava quatro coisas : a moral, as letras, a lealdade e a boa fé. Ele furtava-se ao erotismo que, no seu tempo, desfrutava dum prestígio poético que lhe conferia qualidade recreativa e encantadora. Era uma tertúlia de mestre e discípulos em que tanto um como os outros interrogam e respondem. A dialéctica da teoria e da praxis foi introduzida por Confúcio antes de Marx a ter introduzido como ideia nova. A técnica do mestre baseava-se na polidez, ou nos ritos ; a civilização chinesa resultou desse enorme quadro de maneiras a que Ricci acabou por anuir”.

Claro que os extremos se conciliam, como notava Benjamim Videira Pires SJ13 que também escreveu um interessante artigo, “A Face Oriental de Cristo”14 , onde observa que a “esperança que Confúcio pôs na bondade da natureza humana, encontramo-la cumprida no Deus que assumiu essa natureza humana e nos anunciou a paz como o bem essencial desta vida”.

Mas, fiquemo-nos apenas pelos anos vinte do século passado, com dois autores ainda pouco conhecidos, um em Macau, Manuel da Silva Mendes, e o outro em Portugal, o Visconde de Villa-Moura, que se debruçaram sobre a vida e o legado de Confúcio. De modos bem diferentes, é claro.

II

Em Macau, Manuel da Silva Mendes (1867-1931)15, um dos representantes mais notáveis da intelligentzia portuguesa, professor, jurista e sinólogo cujos interesses intelectuais se centravam no taoísmo filosófico e na estética , tinha uma visão larga dos problemas, “a vida, para ser vida, tem de ser activa, contrariada, inquieta, difícil, penosa, agra mais tempo do que doce, fértil em surpresas, encaminhada a um ideal de irrealização certa. Quietismo, neste mundo sub-lunar, é biologicamente falando, como dizia o outro, sonolência, não te rales, deixa correr o marfim ; moralmente, é resolução covarde de viver”16. Esta ressonância heideggeriana da vida inautêntica parece ser um caminho problemático ao conflituar com as possibilidades da liberdade, que no limite se posiciona como um ataque à formação do ethos.

Publicou no jornal ‘O Macaense’, de 10 de Outubro de 1920, um pequeno artigo sobre ‘Confúcio’17, sintético mas de grande densidade especulativa e cultural. Adverte-nos Manuel da Silva Mendes, “não se leiam, porém, as obras do Sábio sem suficiente preparação”18. Porquê, perguntará o leitor curioso. Exactamente porque, “os tempos são tão recuados, tão diferentes das antigas as modernas linhas do pensamento, os antigos costumes e instituições estão tão longe dos modernos, é tudo tão diferente hoje do que era sob as antigas dinastias chinesas, que correm risco, sem que o leitor saiba transportar-se em mente a tão distantes tempos, os seus escritos de ficarem incompreendidos. Foi por isto que o Sábio, na Europa, durante séculos passou por ser meramente fundador de uma religião, a que se chamou confucionismo ; religião que todavia, qua tali na China nunca existiu nem Confúcio jamais pregou”19.

Na opinião de Manuel da Silva Mendes, o segredo da longevidade do legado de Confúcio, registado e difundido pelos seus discípulos, residiu na simplicidade contida neste pormenor : “ora, quanto os antigos sábios chineses ensinaram, pela mudança dos tempos, dos costumes, das instituições, se foi perdendo ou tornando obsoleto e seus nomes no olvido pouco a pouco foram caindo : só o de Confúcio, porque falou do coração humano, dos mais lídimos sentimentos da alma humana, daquilo que na Natureza não tem poder os séculos de alterar, ficou. E ficará ”20. Manuel da Silva Mendes captou muito bem a essência21 da ética e da moral confucianas, mas afastou-se de uma praxis que subalternizava as liberdades.

(continua)

Notas e referências

Transcrita inicialmente no jornal O Progresso, 21.03.1915. Reproduzida em Monsenhor Manuel Teixeira, Liceu de Macau, ed. Direcção dos Serviços de Educação, Macau, 3ª edição, 1986, p. 389.

Carta enviada de Macau em 21 de Setembro de 1912, em Daniel Pires, Camilo Pessanha : Correspondência, dedicatórias e outros textos, ed. Biblioteca Nacional de Portugal\Editora Unicamp, Lisboa\Campinas, 2012, p. 186.

Filosofia Chinesa Antiga : da ética à metafísica, edição do autor, 51 pp. , 1980. Este estudo data de 1937 e foi apresentado no Instituto Beato Miguel de Carvalho como tese de licenciatura em Filosofia, tendo sido publicado na Revista Brotéria em 1939. O autor refere a amizade com Domingos Tang e o auxílio deste para elucidar algumas dúvidas. Sobre Domingos Tang, ver, Os Insondáveis Caminhos de Deus. Memórias de D. Domingos Tang SJ, Arcebispo de Cantão, 1951-1981 , Editorial A.O., Braga, 1990.

Idem, p. 5.

Idem, p. 11.

Mesmo nas línguas estrangeiras : Dicionário da Língua Galega de Isaac Alonso Estravís, Sotelo Blanco Edicións, 1995, p. 390 ; Dizionario Italiano Sabatini Coletti, Giunti, 1997, p. 557 ; Le Grand Robert de la Langue Française, Le Robert, Paris, 1992, Tome II, p. 816 ; The Oxford English Dictionary, Clarendon Press, Oxford, 1998, Vol. III, p. 719 ; The Collins Concise Dictionary of the English Language, Collins, 1989, p. 235 ; Diccionario de la Lengua Española, Real Academia Española, 1984, Tomo I, p. 358 ; Enciclopedia del Idioma de Martín Alonso, Aguilar, Madrid, 1958, Tomo I, p. 1175. Uma excepção, pode ser encontrada em Grand Usuel Larousse, Larousse-Bordas, 1997, Vol. 2, p. 1706.

Glossário Luso-Asiático, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1919, vol. I, p. 303.

Ensaios sobre a China, Livros Cotovia, 2005, p. 248.

“Apart from filial piety, confucianism was, in practice, mainly a code of civilized behavior, degenerating at times into an etiquette book”, London, George Allen & Unwin Ltd, 1922, p. 43

Da China, Quetzal Editores, 2011, pp. 216-217.

A Sabedoria Chinesa, Casa das Letras, 2005, p. 23.

Lisboa, Guimarães Editores, 1999, p. 347.

Os Extremos Conciliam-se (transculturação em Macau), Instituto Cultural de Macau, 1988.

O Clarim, Ano XXV, Nº 33, 24.08.1972.

A mais recente e completa edição da Obra Completa de Manuel da Silva Mendes : Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, organização de António Aresta e Rogério Beltrão Coelho,

Edição Livros do Oriente, 3 volumes [570 pp. + 539 pp. + 519 pp.], 2017\2018.

Sobre o autor, ver António Aresta, “Manuel da Silva Mendes : um intelectual português em Macau”, in Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, Vol. I , 2017, pp. 41-112 ; Amadeu Gonçalves, “Manuel da Silva Mendes : Entre Vila Nova de Famalicão e Macau”, idem, pp. 15-39 ; Tiago Quadros, “Do charme discreto do habitar. A Vila Primavera, locus amoenus de Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 113-121 ; Ana Cristina Alves, “O Tao de Manuel da Silva Mendes : do Tao Político ao Tao Poético”, in Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, Vol. II, 2018, pp. 21-34 ; António Graça de Abreu, “Manuel da Silva Mendes e Camilo Pessanha, a inimizade inteligente”, idem, pp. 49-60 ; Aureliano Barata, “Manuel da Silva Mendes : um olhar sobre Macau e o seu ensino”, idem, pp. 61-80 ; António Conceição Júnior, “O legado artístico de Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 83-100 ; Jorge Morbey, “Manuel da Silva Mendes, o homem e a sua circunstância”, in Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, Vol. III, 2018, pp. 15-21 ; Ana Cristina Alves, “Seis fotografias aéreas sobre a vida e obra de Silva Mendes”, idem, pp. 23-28 ; Maria dos Anjos da Silva Mendes, “Memória da Bisneta”, idem, pp. 31-44 ; Erasto Santos Cruz, “Excerptos de Filosofia Taoista & Questões de Tradução”, pp. 91-127 ; Carlos Botão Alves, “O Oriente na Literatura Portuguesa : Antero de Quental e Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 129-210 ; António Aresta, “Bibliografia de Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 489-499.

A Pátria, 27.07.1927. Republicado em Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, organização de António Aresta e Rogério Beltrão Coelho, Edição Livros do Oriente, 2018, Vol. III, pp. 330-331.

Utilizo a nova edição, Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, organização de António Aresta e Rogério Beltrão Coelho, Edição Livros do Oriente, 2017, Vol. I. , pp. 381-382.

Idem, p. 382.

Idem, p. 382.

Idem, p. 382.

Dentro desta abordagem, veja-se, Cheng-Tien-Hsi, China Moulded by Confucius. The chinese way in western light. Published under the áuspices of the London Institute of World Affairs, London, Stevens & Sons Limited, 1947 ; Guy S. Alitto, The Last Confucian : Liang Shu-ming and the Chinese dilemma of modernity, Berkeley, University of California Press, 1979.

16 Out 2023

Christopher Chu e Maggie Pui Man Hoi, autores de Camilo Pessanha’s Macau Stories: “Macau está no centro de muita acção”

Em pouco tempo, Christopher Chu e Maggie Pui Man Hoi escreveram dois livros, os seus primeiros. “Macau’s Historical Witnesses”, que conta a história da cidade através dos seus monumentos e “Camilo Pessanha’s Macau Stories”, que é apresentado hoje, às 15h, na sala Le Chinois do Hotel Sofitel. O HM falou com o casal que se viu “forçado” pelo tédio dos confinamentos e da paralisia pandémica a mergulhar na história da cidade

 

Como chegaram a este ponto, com dois livros editados em tão pouco tempo?

Christopher Chu (CC): Chegámos aqui por acidente, essa é a resposta rápida. Sou de Nova Iorque e trabalhei em Hong Kong e a Maggie é professora de ciências médicas tradicionais.

Maggie Pui Man Hoi (MPMH): A minha formação é em técnicas laboratoriais e investigação científica.

CC: E eu trabalhei como analista de equity research (pesquisa de investimentos) durante 10 anos. Fiz dois anos de jornalismo e depois voltei ao sector financeiro. O livro sobre o Pessanha começou onde acabou o primeiro livro, um projecto que começámos quando me mudei para Macau, no início de 2022. Sabia que não iríamos viajar por, pelo menos, um ano. Então, comecei a escrever histórias divertidas sobre Macau para a Maggie. Uma história passou para duas e depois ela acabou por escrever também. Quando reparámos tínhamos mais de 20 histórias sobre locais e monumentos históricos de Macau.

MPMH: O Christopher perdeu o emprego no fim da pandemia. Estava a sentir-se muito sozinho em Hong Kong e chateado durante o confinamento, não nos podíamos ver. Por isso, decidiu mudar-se para Macau de vez. Durante a quarentena de duas semanas, o apetite por visitar os locais históricos de Macau foi aumentando. Procurou livros que descrevessem os locais que estão na lista de património mundial da UNESCO e não encontrou nenhum livro em inglês fácil de compreender. Então, com muito tempo em mãos na quarentena, começou a escrever o esboço do primeiro livro, que acabou por ser o prelúdio para o livro sobre Pessanha.

A pandemia acabou por resultar num incentivo à produção.

CC: Sim, depois de sair da quarentena seguiram-se os confinamentos e pensei “isto é o que vamos fazer”, ler e escrever. O primeiro livro conta a história de Macau através dos seus monumentos e locais históricos. Existem aqui muitas histórias profundas, que têm como cenário estes locais. Não estamos a recontar a história, só mudámos o foco da narrativa. O primeiro livro tinha 22 histórias e quando nos debruçámos sobre o Pessanha… enfim, era uma história tão boa. Um homem com o coração partido, a forma como chegou a Macau, as batalhas judiciais, as pessoas com quem se cruzou. A história da sua vida era tão rica que tivemos de escrever o segundo livro. O primeiro título do livro era “Testemunha histórica de Macau”, e ele foi isso mesmo, uma testemunha histórica. Viu tantos acontecimentos notáveis desenrolarem-se à sua frente, participou em alguns. É um óptimo instrumento para compreender o que se passou em Macau, perceber como o mundo evoluiu, as muitas mudanças que aconteceram naqueles anos e que continuam a ser palpáveis nos dias de hoje. É isso que queremos mostrar, as histórias dentro da história. Este livro não é uma biografia, não é um livro de história, é alguém a contar a história da cidade.

Camilo Pessanha não é um testemunho histórico habitual. Era uma personagem excêntrica, não era propriamente uma figura política convencional.

CC: Honestamente, não me parece que conseguisse ser seu amigo (risos). Era muito progressista para a altura em que viveu e não me considero assim tão avançado. Via mais à frente. Tentou promover representação chinesa no Senado, proposta que foi muito controversa. Tinha, obviamente, problemas com a Igreja e a forma como os poderes eclesiásticos se imiscuíam na política. Era apoiante do movimento feminista. A Ana de Castro Osório lutou pela lei que permitiu o divórcio em Portugal, e é só a ponta do icebergue em termos de intelectuais com quem tinha relações. Não me parece que seria seu amigo, acho que ele me iria fazer bullying. Acho que acabaria por me pedir para não gozar com ele por usar bengala e ser viciado em ópio.

Como entraram em contacto com a poesia de Camilo Pessanha?

MPMH: Quando acabámos o primeiro livro, o Christopher precisava de outro assunto para ocupar a mente. Durante a pesquisa para o primeiro livro, ficou muito interessado na figura do Governador Ferreira do Amaral e pensou em escrever uma ficção da perspectiva de um pequeno menino chinês que mata o Governador. Escrever sobre a tensão entre a fronteira que separa vítima e agressor, onde estão os limites de cada um. Começou a pensar nesse tema e a ter pesadelos. Viver na pele de um rapaz, em pleno século XIX, foi demasiado intenso. Acordava rezingão e infeliz. Precisava de um tópico mais alegre.

CC: Engraçado que essa figura mais alegre passou a ser o Pessanha.

Alguma vez pensaram que um dia iriam escrever livros juntos?

CC: Não, sou um péssimo escritor. Nunca fui um bom escritor e nunca tivemos nada a ver com edição de livros.

Mas estamos a falar de dois livros num curto período de tempo.

CC: Sofro de hiperatividade com défice de atenção, preciso de fazer alguma coisa e estávamos fechados devido à pandemia (risos).

MPMH: Também nunca me imaginei a escrever livros de ficção. Sou uma pessoa muito técnica, faz parte da minha formação.

O processo foi suave, ou surgiram muitas lutas?

CC: Tivemos alguns desentendimentos sobre como contar as histórias. Se voltar atrás às minhas origens, os bancos têm analistas que avaliam o valor de empresas, esse era o meu trabalho, encontrar valor em algo. Para mim, o valor de Macau e do Camilo Pessanha era muito óbvio, a dificuldade era encontrar uma forma de contar a história. Se tivermos em consideração as Ruínas de São Paulo. Todos conhecem a história do incêndio e pouco mais. Como contador de histórias tens de focar tudo menos o incêndio, preencher as lacunas deixadas em branco, e isso é equity research. Acho que transferimos essas qualidades para a literatura, em vez de avaliar uma empresa, avaliámos uma cidade, uma pessoa.

Como foi processo de recolha de informação e como condensaram essa informação para o livro.

CC: É importante ressalvar que esta informação não é nova, não encontrámos o seu diário secreto do Camilo Pessanha, nem o entrevistámos. Pegámos naquilo que já se sabia, através de trabalhos académicos, literatura e correspondência.

Durante o confinamento, parte da vossa dieta consistia de publicações académicas sobre Camilo Pessanha.

CC: Não somos pessoas fixes. Passámos muito tempo a ler muita coisa.

MPMH: Uma das vantagens de trabalhar na Universidade de Macau é o acesso a recursos bibliográficos.

CC: Pegámos na vida do Camilo Pessanha, na sua cronologia em Macau e no que estava a acontecer no mundo durante esse período. Nesta análise, temas e padrões começaram a emergir, razões para as coisas acontecerem. Por exemplo, em 1895 Pessanha vai a Hong Kong com Venceslau de Morais. Nessa altura, havia um enorme fosso de riqueza entre Hong Kong e Macau. Pensámos que seria interessante endereçar este facto. Será que surgiram episódios de inveja durante as passagens pelo Clube Lusitano de Hong Kong? Será que pensavam nas razões para as desigualdades entre as duas cidades? Outro exemplo foi o período em que Pessanha esteve mais tempo fora de Macau, em Portugal durante quatro anos, a recuperar de pneumonia. Quando estava em Portugal o Rei D. Carlos foi assassinado. Pessanha estava em Braga, não estava em Lisboa, mas pensámos em formas de integrar este evento na história de Macau. Não soa muito bem, mas lembrou-me o 11 de Setembro. Sou de Nova Iorque e ninguém se esquece onde estava no 11 de Setembro, quando tudo mudou. Quando o rei do nosso país morre, esse momento é inesquecível. Um momento de mudança, nada será como antes. Mencionamos isso no livro.

Portanto, acabam por destilar estes momentos históricos de uma forma ficcional. Como fizeram a transição de história para ficção?

Bem, através de simples escrita criativa, tentámos acrescentar alguma fluidez. Por exemplo, Pessanha discursou sobre antiguidades neste edifício (Clube Militar) em 1915 e para encaixar no ritmo do livro situámos esse momento em 1910. Para o leitor aprender sobre o discurso de Pessanha, que falou da necessidade de mudar as indústrias, de mover influências para longe de casinos, ópio, prostituição e tráfico de cules para algo que fosse mais sustentável. Assumimos a responsabilidade de alterar esses pedaços de história e tentámos encontrar uma forma melhor de a contar.

MPMH: Além disso, alguns capítulos são escritos como monólogos. Procurámos entrar na cabeça do Pessanha, na primeira pessoa.

Com uma produção tão intensa, já começaram um livro novo?

CC: Escrever é contagiante, viciante. O nosso foco é encontrar aquilo que não foi muito explorado antes, oferecer algo melhor do que já havia e encontrar um veículo para fazê-lo. No primeiro livro usámos monumentos e locais históricos, no segundo o Camilo Pessanha. Pensámos em escrever um livro que conte a história de Macau através da comida, através dos paladares. Sempre se falou muito sobre a gastronomia macaense, as suas origens. É um tema interessante. Se pensarmos em comida em termos de ingredientes e a sua proveniência, mais uma vez, Macau está no centro de muita acção. Um bom exemplo é a bifana no pão, um prato tradicional de Macau, algo muito simples. Mas se olharmos para a história do pão e a sua evolução encontramos muitas coisas interessantes, a forma como foi correndo o mundo, por exemplo. Nas raízes de Macau, as padarias eram quase tão importantes como as igrejas, os orfanatos ou as escolas. O porco era também um grande indicador para determinar se a pessoa aceitava a fé cristã durante a inquisição. Nesta simples sanduiche, vemos uma nova história a surgir e essa é a ideia. Se encontrar uma nova história a apreciação e o amor pelos locais aumenta, e tudo isto está ligado à forma como as pessoas eram atraídas e chegavam a Macau.

Têm planos para traduzir estes livros para chinês?

CC: Estamos a tentar. Estas edições são de autor, tivemos sorte de encontrar uma editora que trabalhou connosco (Os Macaenses Publicações). Estamos a tentar traduzir para português e chinês, mas são trabalhos um bocado caros.

MPMH: Vamos tentar os apoios da Fundação Macau. A nossa editora tem também uma visão do livro mais pedagógica, por exemplo, para os estudantes aprenderem inglês. Mas temos algumas dúvidas, não queremos rotular o livro como material de ensino para o secundário. Também nos disseram que a história contém alguns elementos sensíveis.

6 Set 2023

Camilo Pessanha | Editada colectânea de estudos e escritos do poeta

“China e Macau – Camilo Pessanha” é o nome da nova obra do académico Duarte Drumond Braga que reúne e dá nova roupagem a textos de e sobre o poeta português falecido em Macau. Destaque para a reedição inédita de “Leituras Chinesas”, obra pedagógica lançada em 1915 por Camilo Pessanha e José Vicente Jorge destinada a portugueses que queriam aprender chinês

Muito já se escreveu sobre Camilo Pessanha, poeta e figura máxima do Simbolismo português falecido em Macau em 1926, território onde também foi docente e jurista. Mas a editora portuguesa Livros de Bordo, que conta no seu catálogo uma panóplia de títulos dedicados ao Oriente, acaba de editar um livro que reúne num volume estudos sobre Pessanha, bem como escritos e traduções de sua autoria.

Coube ao académico Duarte Drumond Braga, que há vários anos se debruça sobre a obra e vida do poeta português, fazer o trabalho de pesquisa, recolha e selecção que dá corpo a “China e Macau – Camilo Pessanha”, tendo como base muitas das obras editadas nos anos 90, algumas delas em Macau, e que são hoje difíceis de encontrar no mercado editorial.

Ao HM, Duarte Drumond Braga conta que se baseou, essencialmente, em duas obras editadas por Daniel Pires, um dos estudiosos de Pessanha. São elas “Camilo Pessanha – Prosador e Tradutor”, editado pelo Instituto Cultural de Macau em 1993, e ainda “China – Estudos e Traduções”, editado em 1993 em Portugal pela editora Vega. Enquanto a primeira obra “continua a ser a edição de referência para quem quer ter acesso, num só volume, à prosa de Pessanha”, descreve Drumond Braga, a segunda inclui textos “de âmbito escolar e sobre figuras de Macau” que não terão sido compilados em Portugal, limitando-se “a textos de tema chinês”.

Assim, “China e Macau – Camilo Pessanha” congrega “textos que já saíram, mas que têm agora uma organização e estruturação diferentes”, incluindo “a maior parte dos textos [de Pessanha] sobre a China e Macau que já estavam indisponíveis”.

O autor inclui ainda na obra um ensaio seu “sobre a relação de Camilo Pessanha com a China e Macau, e talvez aí se apresentem abordagens e perspectivas novas”.

Neste ensaio, Duarte Drumond Braga descreve a descoberta da China por Camilo Pessanha como sendo “autêntica, fruto de séria investigação e fora do vulgar para um português da sua época”.

Acrescenta-se que “as potencialidades de um posto numa colónia remota” proporcionam a Pessanha “um corpo fundamental de reflexão em prosa acerca do País do Meio”, ou seja, a China. “É, todavia, necessário recuperar o contexto em que Pessanha viveu e estudou a China: um continente visto de esguelha, a partir dos pequenos pontos em que os europeus eram autorizados a estanciar”, lê-se.

A obra inclui ainda um capítulo dedicado a “Textos sobre Macau”, onde se incluem, por exemplo, títulos como “Macau e a Gruta de Camões” ou “Homenagem aos gloriosos aviadores Brito Pais, Sarmento de Beires e Manuel Gouveia, heróis do raid LisboaMacau”, viagem que se realizou em 1924, entre outros escritos.

Na óptica do autor, a edição de “China e Macau – Camilo Pessanha” permite um acesso mais facilitado aos escritos de Pessanha sobre a Ásia aos leitores interessados. “Uma das características desta edição é que os textos mais específicos sobre história ou figuras históricas de Macau, ou a gruta de Camões, estavam dispersos em vários volumes, estando agora agrupados.”

Duarte Drumond Braga fez algum trabalho de pesquisa, nomeadamente na Biblioteca Nacional, onde se encontra o espólio de Camilo Pessanha, adquirido em 1979. Para este trabalho de investigação contou com o apoio de Daniel Pires. “Incluo aqui as versões completas de alguns textos [que tinham sido parcialmente editados nos livros anteriores]. Fiz ainda pequenas correcções. Não pude conferir as primeiras edições de alguns dos textos que estavam em Macau, e aí baseei-me no trabalho de Daniel Pires. Refiz as transcrições dos textos a partir dos jornais e isso dá sempre novas perspectivas”, explicou o autor.

O trabalho feito por Daniel Pires, em 1992, torna “bem evidente a sua actividade [de Pessanha] enquanto intelectual activo e empenhado”, descreve Braga. Além disso, “a correspondência e abundante documentação reunidas por aquele investigador deixam entrever um programa emancipador, de perfil republicano e nacionalista, presidindo às actividades cívicas e políticas do autor, além da raiz laica, anticlerical e maçónica”.

Pessanha tradutor

Uma das grandes novidades de “China e Macau – Camilo Pessanha” é a reedição, pela primeira vez desde 1915, da obra “Leituras Chinesas”, de nome chinês ” Kuok Man Kau Po Shü”, um manual de cariz pedagógico da autoria de Camilo Pessanha e José Vicente Jorge destinado ao ensino do mandarim a portugueses que viviam em Macau. Duarte Drumond Braga reeditou, assim, as traduções dos textos em português, uma vez que não teve acesso aos originais em chinês.

“Os autores apresentam [nesta obra] textos com o vocabulário todo discriminado, traduzidos depois por Pessanha e Vicente Jorge. Camilo Pessanha sabia chinês, mas José Vicente Jorge foi um dos mestres de chinês de Pessanha. É um trabalho a quatro mãos, o que é interessante. Pessanha daria, provavelmente, um arranjo final aos textos em português.”

Duarte Drumond Braga frisa que “este livro não serve de muito a quem quiser aprender chinês hoje em dia”, pois é ensinado o chinês tradicional, além de que “os métodos de ensino mudaram bastante”. Ainda assim, “os originais em chinês são textos importantes, da tradição taoista, por exemplo”.

“Pareceu-me importante reeditar este livro porque as traduções não eram muito consideradas. Aqui vê-se o Camilo Pessanha tradutor, e penso ser importante valorizar isso”, disse o autor.

Um regresso ao poeta

Camilo Pessanha, cujo corpo jaz no cemitério de São Miguel Arcanjo e que deixou descendência em Macau, tem sido lembrado entre Macau e Portugal através de diversas actividades culturais e edições de livros. Duarte Drumond Braga é um dos autores que consta na última obra lançada em Lisboa sobre o poeta, focada na sua obra maior: “Clepsydra 1920-2020 – Estudos e revisões”.

O livro, lançado em 2021, teve coordenação da académica Catarina Nunes Almeida e apresenta, conforme a mesma recordou ao HM à época, “uma releitura” de Clepsydra, única obra de poesia que Pessanha deixou e editado em 1920 graças ao esforço da amiga Ana Castro Osório.

A obra, que contou com o apoio do HM, inclui ainda textos de autores como Paulo Franchetti, Rogério Miguel Puga ou Carlos Morais José, entre outros, que se debruçaram sobre a vida e obra de Pessanha, profundamente ligada a Macau.

Camilo Pessanha foi para Macau em 1894, tendo sido “fundador da Maçonaria em Macau”, um “jurista temido” e ainda um inveterado fumador de ópio”, conforme descreveu Daniel Pires aquando do lançamento de “Clepsydra 1920-2020 – Estudos e Revisões”. Pessanha fez ainda amizade com diversas personalidades políticas de Macau numa altura em que o território vivia no rescaldo das duas revoluções republicanas – na China, em 1911, e Portugal, em 1910. O poeta foi próximo do republicano e governador Carlos da Maia e de Sun Yat-sen.

6 Ago 2023

Rosa Coutinho Cabral, cineasta: “Prémios dão um novo alento”

Filmado em Macau em 2018, “Pe San Ié”, longa-metragem documental sobre a vida de Camilo Pessanha, recebeu, em Fevereiro, quatro distinções no festival New York Movie Awards. Mas a realizadora Rosa Coutinho Cabral não tem parado. Depois do lançamento no ano passado de “A Casa da Rosa”, está na forja um projecto de filme e peça de teatro sobre Natália Correia, que poderá ser apresentada em Macau

 

A longa-metragem documental de 2018 “Pe San Ié” continua a ganhar prémios. Como encara esta longevidade da obra?

Fico muitíssimo satisfeita, sobretudo porque foi um trabalho que eu gostei muito de fazer na companhia do Carlos Morais José e apoio da produtora Inner Harbour. Contou ainda com a colaboração de muitas pessoas, tal como Susana Gomes e Pedro Cardeira na fotografia e José Carlos Pontes na música. Estes quatro prémios [Melhor Longa-metragem Documental, prémio Prata para Melhor Música Original, Melhor Edição e Melhor Cinematografia] dão um novo alento ao filme. No fundo, um filme vive do seu reconhecimento e da sua projecção, e se não for visto é, de alguma maneira, um arquivo morto. O facto de estar a ser desarquivado, digamos assim, e procurado [é bom], porque são muitos destes festivais que nos procuram, convidando-nos a enviar o filme para concurso. Não há dinheiro envolvido, mas estes prémios trazem o reconhecimento. Saber que fizemos um objecto artístico e cultural com interesse que vai além do momento em que a produção termina, o facto de continuar a ser solicitado depois destes anos traz uma revitalização muito grande. Dá uma grande importância ao tema, passado em Macau, algo que também está muito presente no imaginário das pessoas, bem como a figura de Camilo Pessanha.

Passaram alguns anos desde que fez o filme. Como olha hoje para o projecto?

Tive a oportunidade de rever o filme muito recentemente. É muito raro ver filmes meus já terminados e, muitas vezes, nem os vejo quando passam nos festivais. No entanto, vi-o num outro dia e considero que continua muito actual no propósito que tinha. Não mudaria nada. Acho que a escolha do Carlos Morais José para personagem aglutinadora faz com que o documentário seja ficcional, um misto de detective com Pessanha, da nossa própria condição de português no Oriente, é muito importante. Isso faz com que o filme ganhe um trajecto temporal entre aquilo a que se refere, que é o tempo de Pessanha, e o tempo que vivemos hoje em dia, que é o tempo em Macau. Esta actualidade que se prende com o tempo anterior está muito bem resolvida no filme e não mudaria nada. Ainda hoje recebi um convite de outro festival [para apresentar o filme a concurso]. Há ainda outro aspecto que queria sublinhar: sempre considerei que isto era um ensaio cinematográfico que colocava o olhar de um morto num sítio vivo. Acho que isto foi conseguido e, passados estes anos, ainda acho que é isso que está no filme: um contrato com a pessoa que morreu e com o seu olhar sobre um espaço que ele escolheu viver e morrer e onde escreveu grande parte da sua obra. Confesso que esta ideia de ter um espaço que vacilava entre o campo, que é o olhar dele, e o contracampo, que é o presente, ainda lá está no filme e fico contente com isso. Ainda consigo achar o que tinha proposto e não fiquei zangada comigo. Quando acabo os filmes fico sempre um pouco zangada, com a sensação que não era aquilo que queria.

Venceu também outros prémios neste festival, nomeadamente com o recente documentário “A Casa da Rosa”. Fale-me desse projecto.

É um projecto sobre a perda, o outro e tem a ver comigo, com aquilo que perdi ao longo da vida, que foi bastante trágico, e que acaba por culminar com a perda de uma casa. Quis filmar todo o processo de saída, de ser obrigada a sair de uma casa que era o meu lugar, um sítio onde tinhas as minhas memórias e onde tinha tudo aquilo de que não me queria afastar, mas que fui obrigada. Na verdade, não tinha dinheiro para pagar a renda e fui despejada. Fiquei um pouco espantada com o facto de o filme ter tido todo este reconhecimento, o que é interessante para um filme muito íntimo, muito sincero, muito honesto sobre o que senti. Foi totalmente feito por mim: gravei, fiz o som, filmei-me continuamente, tive de me encenar a mim, colocar a câmara, criar um espaço. Foi uma espécie de auto-encenação, uma coisa muito intensa e feita sem dinheiro nenhum, com o meu dinheiro e de pessoas amigas. A música foi oferecida pelo José Carlos Pontes. Acho que, cinematograficamente, é um filme de grande honestidade sobre a perda. A minha pergunta é como se filma a perda, o luto, algumas situações muito trágicas. Consegui fazer o filme porque me deixei arrastar pelo meu sentimento e honestidade, de nada esconder. É uma pessoa que se despe e mostra o que é. Não sei se voltarei a fazer isso, mas dessa vez, fi-lo.

Foi uma maneira para lidar com várias situações difíceis, portanto.

Sim, pode-se dizer que sim. Este lado trágico e que culmina com o processo da catarse… possivelmente, sim. Fui muito obsessiva na filmagem, gostei bastante de a fazer, mas usei o método que quase me levou a enlouquecer com essa obsessão. Já estava farta da casa e de filmar. Andava sozinha pela casa e pelo telhado de um edifício de Lisboa sozinha, à noite, porque queria sentir tudo o que tinha a ver com aquela casa. Houve uma altura em que quase raiou a loucura, uma certa desrazão. Mas foi um processo do qual não me arrependo. Ainda bem que o fiz.

Como é ver revelado algo tão pessoal em festivais de cinema?

Não foi difícil. A primeira exibição foi no DocLisboa, foi bem recebido, segundo consta esteve muito perto de receber o prémio [principal], mas houve outro filme de que gostaram mais. As coisas são assim. Depois tive um contacto com uma curadora italiana que quis levar o filme para o festival “8 1/2”, baseado no [Federico] Fellini, e aí o filme começou a circular e recebemos convites para outros festivais. Nunca recebemos dinheiro, o que me teria dado muito jeito (risos). Houve pessoas que acreditaram no filme e ajudaram na montagem.

Está a trabalhar num documentário sobre Natália Correia. Quando termina esse projecto?

Em Setembro. Na próxima semana vou estrear uma peça de teatro, também sobre a Natália Correia, intitulada “Colheres de Prata”, que, se tudo correr bem, poderá ir até Macau.

Porquê Natália Correia?

Por várias razões: eu sou açoriana, ela é açoriana. Viemos para Lisboa praticamente com a mesma idade, não porque quiséssemos vir, mas porque a família veio. Tivemos de sair de uma ilha de que ambas gostávamos bastante para um lugar ainda desconhecido. Natália foi sempre uma mulher do lado da liberdade e da defesa dos direitos humanos. Foi uma anti-fascista. Toda a vida foi dedicada a defender estes propósitos, quer na literatura, quer na política, quer nas campanhas que apoiou, nomeadamente a de Humberto Delgado. Foi uma mulher bastante intransigente e muitos livros dela foram apreendidos pela censura. Sempre defendeu a figura da mulher, sem o feminismo um pouco bacoco da época. Ela fazia, para mim, a defesa de um feminismo mais actualizado e interessante. Ainda hoje concordo com ela. Nunca teve a ideia disparatada de as mulheres terem de substituir os homens ou de homogeneizar formas de poder. Achava que o mundo tinha de ser habitado por homens e mulheres em igualdade de circunstâncias sociais, políticas e económicas e já falava na igualdade de género. Depois do 25 de Abril de 1974, foi uma voz importante e fez um movimento crítico em relação ao seguimento da Revolução. O que também acho interessante. Nunca perdeu as características da sua voz e isso fez dela uma mulher que muita gente quis reduzir a anedota, numa mulher de direita, desbragada. Nunca foi contra as instituições democráticas e as críticas que fez foram proféticas, com coisas que hoje vemos que são verdade. Sou uma pessoa de esquerda e sempre me identifiquei com ela, por ser uma voz discordante numa época em que era difícil sê-lo, pois ser discordante era ser de direita. Mas ela nunca se inibiu, e acho isso notável. Foi ainda uma mulher extraordinária na literatura, e luto, nestes projectos que estou a fazer, contra a redução dela a uma anedota e a uma ideia política que não corresponde à verdade. Foi sempre anti-fascista, antes e depois do 25 de Abril.

14 Mar 2023

Dora Nunes Gago, autora: “Gostava que o leitor encontrasse esperança”

A ex-directora do departamento de português da Universidade de Macau lança amanhã em Lisboa o livro de contos “Floriram por engano as rosas bravas”. Segundo a autora, a obra resultou de uma sucessão de idas e vindas a Macau, da inspiração em vultos culturais como Camilo Pessanha e Maria Ondina Braga, mas também da vontade de estabelecer uma ligação com a realidade noticiosa local

 

“Floriram por engano as rosas bravas” contem alguns contos que já foram publicados. Porquê lançar agora esta obra?

Não foram muitos publicados. Se calhar, no leque de 24 contos, seis tenham sido publicados, pelo que a grande maioria são textos inéditos. Esta é uma colectânea que fui organizando nos últimos seis anos. Recordo-me que o primeiro conto foi escrito no Ano Novo Chinês de 2016. No fundo acaba por ser um registo dos últimos dez anos de vivências em Macau e na Ásia, pois comecei a trabalhar na Universidade de Macau em Fevereiro de 2012. Fiz alguns rascunhos de situações que vivi e conheci, como viagens, e alguns contos baseiam-se em notícias de jornais, como é o caso do suicídio da então directora dos Serviços de Alfândega [Lai Man Wa], nos Ocean Gardens, ou aquele caso da morte do meio irmão do presidente da Coreia do Norte que foi assassinado em Kuala Lumpur e que viveu em Macau [Kim Jong-nam]. “A Roleta da Vida” é um conto sobre alguém que perdeu tudo num casino. Foi um trabalho feito ao longo do tempo, até que vi que era altura de juntar tudo e publicar.

Decidiu então pegar em assuntos do quotidiano e adaptá-los à literatura. Como foi o processo criativo de unir realidade e ficção?

Essa junção aconteceu de forma muito natural. Escrevo há muitos anos e a escrita e a literatura sempre foram, para mim, uma forma de olhar o mundo e também de me tentar integrar nele. Foi um pouco isso que tentei fazer através desses contos, tentar perceber melhor as diversidades culturais que existem em Macau e integrá-las em mim. Daí que acaba por ser quase inevitável essa junção dos mundos.

Quando se sentava para escrever, que temas da actualidade local lhe despertavam mais a atenção do ponto de vista literário?

Sempre me interessei por tudo. Uma boa história pode surgir no momento mais inesperado. Não procurei nos jornais ou em meu redor temas específicos. Por exemplo, a investigação que tenho feito na universidade, que tem muito a ver com imagens do estrangeiro e relacionadas com exílio, talvez tenha sido um pouco condicionada por isso. Mas interessam-me sobretudo temas sociais, que tenham a ver com cultura e sociedade. Tudo depende de como as coisas vão surgindo e do que despertam em mim.

Porquê o género conto?

Tenho uma colectânea de poemas completa e também estou a escrever algumas crónicas, que irei publicar em breve. O romance está ainda numa fase inicial porque exige outro tipo de trabalho, não é apenas inspiração, mas o trabalho textual tem de ser mais persistente e exigente, algo que não tenho conseguido conciliar com a minha profissão. O conto, por ser uma narrativa mais breve, e por ter um princípio, meio e fim, e porque naturalmente sempre tive mais tendência para ser sintética do que analítica, foi o género em que me senti mais à vontade.

O título da obra remete para um poema de Camilo Pessanha. Pessanha é, aliás, uma grande influência para este livro, tal como Maria Ondina Braga.

No caso do verso de Pessanha é curioso porque gostei muito dele e andava dentro de mim há muitos anos, há mais de 30 anos talvez, desde que li o poema. De repente, achei que esse verso fazia sentido porque está incluído num poema que fala de questões como a brevidade da vida, os desencontro, as ilusões e desilusões. É um poema simbolista com uma temática muito densa e que achei que se encaixava muito bem nesta colectânea. Quanto à influência da Maria Ondina Braga, sempre me identifiquei muito com a sua obra. Cheguei a conhecê-la pessoalmente num encontro de escritores, nos anos 90. Foi engraçada a minha entrada na sua obra. Em 1991, quando era aluna da Universidade de Évora, ganhei um prémio de escrita que incluía uma viagem a Macau. Quando regressei a Évora fui à livraria do centro comercial e havia lá um livro da Maria Ondina Braga, o “Nocturno em Macau”. Tinha acabado de sair. Identifiquei-me muito com esse romance e parecia que dava resposta a um certo fascínio que tinha sentido por Macau. A partir daí comecei a ler muita coisa sobre a autora e a nível de investigação também tenho escrito muita coisa sobre ela. Tem sido uma presença forte na minha vida.

No prefácio é referido o lado de exilado de Pessanha, que morre em Macau, dependente do ópio. Há também esta relação com Pessanha?

Camilo Pessanha é uma figura muito relevante na literatura portuguesa. É o nosso grande poeta simbolista e deixou uma grande influência na literatura portuguesa, nos modernistas, em Fernando Pessoa, por exemplo. Tendo este livro Macau como um dos cenários e estando Pessanha tão ligado a Macau, Pessanha é um autor que não se pode ignorar quando se fala de Macau e quando referimos o Oriente. É uma presença muito interessante.

O primeiro conto é “A Chegada” e depois termina com o conto “A Partida”. Há aqui a ideia de distância, de exílio, de ligação a uma terra que se ama mas não se conhece?

É verdade. Esta ideia de exílio colocou-se ainda mais nestes dois anos com a questão da pandemia, pois não pude ir a lado nenhum. Foi viver numa bolha à parte do mundo, uma bolha que fica longe.

Outra das mensagens muito presente no livro é o contraste entre culturas e línguas.

Sim. É também uma questão muito relevante em Macau, a questão linguística e as dificuldades que muitas vezes existem para se comunicar. Mas a literatura está sempre aberta às interpretações e cada leitor pode descobrir mensagens diferentes. Mas o que eu gostava realmente que o leitor encontrasse é a mensagem de esperança, mesmo nos momentos mais complicados e difíceis. Tentei em muitos contos apontar essa ideia de esperança.

Este livro mostra uma percepção do que é Macau?

Talvez. Macau é um território muito complexo, é um espaço geograficamente pequeno mas que tem dentro dele muitos mundos e culturas. Ao mesmo tempo é também um espaço em constante mudança, mas suponho que, pelo menos, o leitor fica com uma imagem de alguns aspectos relevantes do território.

Este livro vai ser editado em Portugal. Sente que existe interesse das editoras portuguesas relativamente a Macau e ao Oriente, sobretudo na literatura?

O panorama editorial em Portugal é complicado porque há imensas editoras e existe a sensação de que todos são escritores. Isso tem-se sentido muito nos últimos tempos, e faz impressão porque é um país onde não há muitos leitores. Creio que ainda há algum interesse pelo Oriente, porque continua a ser um mundo um pouco misterioso, apesar das viagens e da banalização.

Que cenário traça em termos de edição de livros e produção literária em Macau, em língua portuguesa?

Creio que esse mercado estará vivo mas começa a ressentir-se com a saída de estrangeiros, nomeadamente portugueses. Um dos problemas que vejo no mercado literário em Macau é a circulação dos livros fora do território.

13 Mai 2022

Sansão na Vingança!

Nomeado secretário do novo Governador, Francisco Maria Bordalo (1821-1861) chegou a Macau em 1850, ainda a tempo de encontrar os restos calcinados do seu irmão, ao que parece melhor poeta do que ele: “Onde Camões desterrado/ Seu tão triste amor carpira/ Vivo eu pobre, eu deslembrado,//Sem ter como elle uma lyra:/ Oh! Quem china antes nascêra,/ Na minha Lorcha eu vivera/ Com velas de esteira fina;/ Que lhe importa ao china a terra,/ Se tudo qu´elle ama, encerra/A Lorcha dum pobre china?”. Escrevera a atestá-lo Luís Maria Bordalo, pouco antes de morrer na explosão da fragata D. Maria II, ao largo da Taipa.

Movido por esse inesperado desastre, o irmão vai escrever uma noveleta em que o ficciona; ou semi-ficciona na verdade, pois não esconde os nomes dos protagonistas históricos, o que lhe dá um registo cronístico do qual os seus textos nunca saem inteiramente. Ambientada em Macau, onde o autor esteve uns magros 18 meses, Sansão na Vingança! (1854) – assim mesmo, com ponto de exclamação –, lê-se numa assentada. E ainda tem um arremedo de amor ultrarromântico entre o marujo poeta defunto e uma italiana fatal, que a explosão salva do adultério a tempo.

Quem sabe o leitor, cansado de curtir o seu longo recesso em Macau – que nestes tempos tem voltado a ser o acantonamento para os europeus que era de início –, não dá um passeio até à Biblioteca Municipal, ao Tap Siac, onde encontrará a edição de 1980, publicada em Macau e prefaciada por Pedro da Silveira? O florentino confirma-lhe a qualidade de iniciador da ficção portuguesa de temas marítimos e ultramarinos, coisas que nessa altura se confundiam. Mas apesar de tal pioneirismo os seus livros, diz Silveira, vendiam pouco. Ocupados com os últimos fogachos das pugnas liberais, poucos ouvidos davam os seus contemporâneos a assuntos coloniais e a aventuras de bordo. Ainda não soara a hora do império, estavam longe ainda os mapas de Berlim e sua conferência.

Prosador com o seu quê de naïf, faz sorrir a forma como em Sansão cede às fantasias mais absurdas do orientalismo europeu sobre a China, em particular ao famigerado “perigo amarelo”. Bordalo levanta, por exemplo, suspeitas em torno de supostas sociedades secretas chineses, que existiriam há mais de quatro mil anos, para repor ao poder a dinastia Ming e colocar os cristãos uns contra os outros. Teriam feito parte de um conluio para a destruição das naves portuguesas. Certamente que o clima anti-chinês, bem vivo nesta novela, estava ao rubro com a morte recente de Ferreira do Amaral, o que se nota ainda, de forma menos folclórica e mais sopesada, no capítulo VI, em que descreve o funcionamento de um tribunal sínico. Recorda o famigerado prefácio que Camilo Pessanha irá escrever anos mais tarde, e que tantos enganos tem gerado.

Pedro da Silveira, simpático açoriano que também passou por Macau para ver como era, com muita generosidade e audácia o compara a uma “espécie de Blaise Cendras antecipado, mas sem os ousios ou a imaginação do autêntico” (Prefácio, p. vi). Um Cendras ultrarromântico é obra! Mais facilmente pensaríamos no cearense Adolfo Caminha e no seu mais conseguido Bom Crioulo (1895), de tema amoroso e talvez mais conveniente a climas náuticos. De qualquer forma, fora a marinhagem, que hoje temos como datada e algo fastidiosa, interessa mais em Bordalo as viagens que ela permitiu e que surgem descritas em várias obras, uma mina para os que estão atentos. Não é pela marinha, seu pitoresco vocabulário e quadros semi-heróicos, que me perdoe Silveira, que Bordalo deve ser recuperado, mas por uma escrita clara e despretensiosa, que se abre a muitas geografias.

11 Ago 2021

Violentos incêndios em Macau

Camilo Pessanha está já em Macau quando no jornal Echo Macaense de 16 de Maio de 1894 é noticiado o incêndio ocorrido no sábado, dia 12, pelas 19 horas no Tarrafeiro, onde quatro prédios foram devorados pelas chamas. O vento nessa noite soprara com força e o fogo teria tomado maiores proporções não fosse os socorros prestados pelas bombas e corpo de marinheiros que ali compareceram. Trabalharam ainda activamente as bombas a vapor da Inspecção dos Incêndios e da Companhia do Ópio e várias outras bombas particulares. Fora fogo posto e o criminoso está já preso e processado. No entanto, não é referido como foi dado o sinal de incêndio e só com a leitura de outros incêndios, registados nos jornais, começamos a entender a forma normal de avisar a população de Macau. De referir ser Director das Obras Públicas o Major de Engenharia Augusto César de Abreu Nunes, que chegara a Macau a 21 de Dezembro de 1893 e desde 12 de Janeiro de 1894 era Inspector dos Incêndios. À data, no edifício do velho Convento de S. Domingos encontra-se a Direcção das Obras Públicas, o Corpo de Bombeiros e a Estação Central dos Telefones.

Contra as casas de madeira

Nos primórdios de Macau, os edifícios tinham paredes de taipa ou bambu com telhados de colmo ou madeira e, com o amuralhar da cidade cristã a partir de 1622, passaram aí a ser construídos em tijolo. Mas as barracas de bambu e palha perduravam no Bazar ainda no início do século XIX e daí o constante badalar em alvoroço dos sinos das igrejas e mais tarde, em simultâneo com tiros de pólvora seca dos canhões das fortalezas, a avisar os habitantes para acudirem com baldes de água a debelar as chamas. E tantos foram os incêndios e seguidos que as descrições se confundem e as datas se misturam. “Em 1817 ao que parece, tinham destruído também tendas de um importante pagode – aliás aquele onde se instalava o mandarim quando descia à cidade – levou a que fosse ordenada a substituição desses quarenta ou cinquenta estabelecimentos improvisados, por outros de tijolo, com arruamentos bem definidos, estrutura que em pouco tempo ficou concluída”, segundo Pedro Dias.

Beatriz Basto da Silva (BBS) refere-se talvez a esse grande incêndio na Praia Pequena a 6 de Junho de 1818, “pelas 9 da noite e atingindo o Bazar, com origem nas barracas clandestinas que serviam de habitação e botica a uma franja da população chinesa entre o vadio e o tendeiro. Arderam também boticas chinesas, algumas de boa seda. Talvez um prejuízo de 1 milhão de patacas.

O Convento de S. Domingos esteve em perigo.” Marques Pereira complementa ao dizer, a 20 de Julho de 1818, o “Edital do mandarim cso-tang de Macau, por apelido Chen, em que, atendendo a ser o pagode Sien-fung (Lin Fong, o pagode novo) muito venerado pelos chineses, e o lugar de hospedagem dos mandarins superiores que vinham a Macau, e considerando mais que os bonzos dele se achavam privados de rendimentos, pois que algumas lojas que tiveram no bazar, um incêndio as destruíra: constitui foreiras do dito pagode 67 lojas recentemente fabricadas de tijolo nos sítios da Praia Pequena e Matapau.”

O Dr. Caetano Soares referindo-se a esse ou a outro incêndio: “destruiu a maior parte do Bairro de S. Domingos, vulgarmente conhecido como Bazar Grande, sendo a Casa de Beneficência chinesa Sam Kai-Hui-Kum”, cuja sede era o Pagode das Três Ruas, o único edifício poupado. Refere BBS, “Na ocasião, o Procurador da Cidade escreve ao Suntó de Cantão pedindo-lhe apoio que não encontra nos Mandarins de Casa Branca, para fazer valer, junto desses ciosos chineses, a lei que proíbe tais barracas, que são também couto de ladrões e jogadores, mesmo chegadas a casas vizinhas dos portugueses. O Procurador Pereira participa ainda que, para evitar a propagação de mais incêndios, a cidade vai abrir uma rua larga, cercada por uma parede entre os dois focos habitacionais.”

Descuidos

A 31 de Dezembro de 1824, o Mosteiro de Sta. Clara, onde viviam em clausura 31 religiosas franciscanas clarissas, foi completamente devorado pelo incêndio ocorrido às 20 horas e 45 minutos. Devido ao vento, as luzes do presépio pegaram fogo e em três horas o vasto edifício ficou reduzido a cinzas. Como o capelão morava perto, ainda pôde salvar o Sacrário e os principais moradores da cidade correram logo a salvar as religiosas, morrendo queimada a Madre Florentina de 90 anos e outras duas faleceram mais tarde.

O mandarim Tchó-T’óng (tso-tang, com residência na península, mas fora da cidade cristã), de apelido Im, a 7 de Novembro de 1829 ordenou, para evitar incêndios, em vez de archotes andar-se de noite com lanternas, serem as barracas de palha demolidas e todas as lojas obrigadas a ter baldes com água à porta.

Após a destruição de 500 moradias no violento incêndio de 5 de Novembro de 1834, o Procurador da Cidade António Pereira pedia em ofício ao Tchó-T’óng o ser proibida a construção de barracas e casas de madeira na Praia Pequena, a fim de evitar o perigo de incêndios.

Mas foi a lenha amontoada na cozinha do Colégio de S. Paulo, utilizado então como quartel do Batalhão de Voluntários do Príncipe Regente, que pegou fogo a 26 de Janeiro de 1835. Eram seis e meia da tarde. O Chinese Repository descreve com tradução do padre Manuel Teixeira: “Uma descarga de canhões do forte de S. Paulo deu o alarme de incêndio. Este sinal foi imediatamente correspondido pelos canhões dos outros fortes, pelo repicar dos sinos das igrejas e pelo rufar de tambores.

As autoridades principais, a tropa e muitos dos habitantes de Macau depressa se puseram em movimentos. Mas, excepto aqueles que estavam perto da igreja, durante alguns momentos houve dúvidas sobre qual era o edifício que ardia; – o estado da atmosfera era tal que o fumo não podia subir, mas levado por uma breve brisa de noroeste, envolveu toda a parte oriental da cidade. Porém, não tardou muito que as chamas, irrompendo através do tecto, não deixassem dúvidas sobre o ponto donde saíam. Todos os compartimentos, que constituíam a ala esquerda da igreja, e que eram outrora ocupadas pelos padres, mas recentemente pelas tropas portuguesas, começaram logo a arder.

Por um momento, houve alguma esperança de que a parte principal da igreja – a capela, pudesse ser salva. Mas, antes das 8 horas, o fogo atingiu a parte mais alta do edifício e também a sacristia atrás do altar-mor. Um denso fumo de mistura com chamas depressa irrompeu pelas janelas de todos os lados, e então, subindo através do tecto, apresentava um aspecto sinistramente grande.

As chamas subiram muito alto e toda a cidade e o porto interior ficaram iluminados, justamente neste momento o relógio [oferecido por Luís XV e colocado na igreja em 1734] bateu 8 e um quarto. Até ali, tinham-se feito esforços para controlar o avanço das chamas; mas”, tornando-se evidente mais nada se poder fazer, cada qual ficou-se a contemplar o fogo. O incêndio devorou o edifício do antigo Colégio e a Igreja Mater Die, deixando-a reduzida à monumental frontaria de pedra.

21 Jun 2021

Literatura | Livro sobre Camilo Pessanha apresentado em Lisboa 

“Clepsydra 1920-2020 – Estudos e revisões” foi lançado este sábado em Lisboa, na Livraria da Lapa, depois de uma primeira apresentação em Macau, em Dezembro. Trata-se de um projecto que faz “a releitura da obra” de Camilo Pessanha “mais do que o foco no seu autor”, lembrou Catarina Nunes de Almeida, coordenadora da obra

 

“Faz sentido começarmos com as palavras do poeta”. E estas foram lidas por Raquel Marinho, com a sua própria edição da Clepsydra, tendo-se ouvido versos como “Eu vi a luz num país perdido” ou “Floriram por engano as rosas bravas”.

Estava assim dado o mote para o lançamento de mais uma obra sobre Camilo Pessanha, o poeta português falecido em Macau em 1926 e um dos expoentes máximos do Simbolismo na literatura portuguesa. Clepsydra seria lançado em 1920, graças aos esforços de Ana Castro Osório.

“Clepsydra 1920-2020 – Estudos e revisões”, com edição da Documenta e coordenada por Catarina Nunes de Almeida, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), reúne uma série de textos que olham não apenas para o poeta mas também “para o Pessanha sinólogo e jurista”. O lançamento aconteceu este sábado na Livraria da Lapa, em Lisboa, depois de ter sido feito uma primeira apresentação do livro em Macau, em Dezembro do ano passado. “Faz todo o sentido que esteja disponível para aquele universo de leitores, porque é o espaço de Pessanha”, adiantou Catarina Nunes de Almeida.

Esta obra, que teve o patrocínio do jornal Hoje Macau, contém textos de vários académicos, como Paulo Franchetti, Duarte Drumond Braga, Rogério Miguel Puga ou Carlos Morais José, entre outros, que se debruçaram sobre a vida e obra de Pessanha, profundamente ligada a Macau.

Catarina Nunes de Almeida frisou o facto de este trabalho propor-se fazer “a releitura da sua obra, mais do que colocar o foco no seu autor”, fazendo “não apenas uma análise estrita dos poemas, mas contribuindo com novos dados para futuras leituras”.

A coordenadora do livro destacou a importância que os escritos de Pessanha tiveram nas gerações seguintes de autores portugueses mais contemporâneos. “É a geração de Orpheu a primeira a reconhecer o estatuto de mestre [de Pessanha]”, embora os seus escritos tenham “continuado a ecoar em poetas mais recentes”.

Vida e quezílias

Camilo Pessanha viajou para Macau em 1894, quando este era um “território minúsculo”, lembrou Daniel Pires, um dos autores do livro e responsável pelo inventário da biblioteca pessoal de Pessanha.

Foi “o fundador da Maçonaria em Macau”, um “jurista temido” e um “fumador de ópio”, sem esquecer a amizade que o ligou a diversas personalidades, incluindo Sun Yat-sen e o Governador de Macau Carlos da Maia.

Houve, no entanto, “pessoas que o combateram firmemente, até com calúnias”, como Manuel da Silva Mendes, intelectual português em Macau e muito ligado à cultura chinesa.

Silva Mendes “era o grande rival de Pessanha no domínio da colecção de arte chinesa” e dizia “que a sua poesia não rimava, e que coleccionava bugigangas”. No entanto, Daniel Pires destacou o facto de Manuel da Silva Mendes se ter referido a Pessanha como “um bom advogado e professor”.

“A sua vivência em Macau continua a ter muitas lacunas”, frisou, “e o que de mais puro nos restou para aceder à verdade dessa figura é a sua escrita”. “Se não fossem essas lacunas certamente não teríamos tido um aproveitamento ficcional da personagem de Camilo Pessanha em obras como ‘A Quinta Essência’, de Augustina Bessa Luís, ou ‘O Mar’, de Paulo José Miranda”, lembrou Catarina Nunes de Almeida.

A China na prosa

Duarte Drumond Braga, também investigador da FLUL, é autor do capítulo “Para ler Camilo Pessanha sem sair de Macau”, lugar primordial para se entender a obra do poeta.

“A China mal está representada na Clepsydra, temos apenas dois poemas”, lembrou. Esta está “na prosa, que devemos ler em conjunto”, e que neste momento se encontra em Macau. “Merecia uma reedição”, sugeriu Drumond Braga.

É, sobretudo, fundamental combater a “ideia tola de que Camilo Pessanha não sabia nada sobre a China”. “Se estivermos à procura do bambu e da chinesinha não vamos encontrar nada, vemos outras coisas”, exemplificou.
Ricardo Marques, que analisou a publicação de escritos inéditos de Pessanha em revistas, considerou que existe a ideia da Clepsydra “como uma coisa definida”, mas Pessanha, “como outros poetas, fazia circular inéditos pelas revistas literárias, e isso é importante ver 100 anos depois”.

31 Mai 2021

Literatura | Personalidades copiam poemas de Clepsydra em edição comemorativa

“Clepsydra – Poemas de Camilo Pessanha” é a nova obra editada em Portugal pela Associação Wenceslau de Moraes em parceria com a Sociedade de Geografia de Lisboa. Várias personalidades, desde escritores a amantes da poesia de Pessanha, escolheram um poema e copiaram-no, no que resultou num “livro bonito”. A edição ficou a cargo de Pedro Barreiros e Margarida Jardim

 

A Associação Wenceslau de Moraes acaba de lançar uma nova obra comemorativa dos 100 anos da primeira edição de Clepsydra, do poeta Camilo Pessanha. “Clepsydra – Poemas de Camilo Pessanha” foi lançado oficialmente esta sexta-feira em Lisboa, num evento online, e não é mais do que uma reunião de poemas copiados por aqueles que admiram Pessanha ou que sobre ele escrevem ou investigam.

Margarida Jardim, uma das editoras desta obra, descreveu-a como “um livro que tem outros livros dentro dele, e que é bonito por isso”. “É simples, mas quando se abre reparamos que tem muitos livros lá dentro”, frisou.

Editar os 500 exemplares disponíveis foi uma “viagem” e uma “aventura” que foi sendo adiada devido à pandemia. A obra deveria estar pronta o ano passado mas tal não foi possível. “Este livro revelou-se uma aventura por variadíssimas razões, porque a ideia do Pedro [Barreiros] convocou à edição inúmeras pessoas que foram copistas. Cada um acolheu um poema e copiou-o humildemente. Uns vieram pela internet, chegaram cópias pelo correio, algumas perderam-se.”

O lançamento do livro aconteceu na sexta-feira, dia 19, por forma a assinalar a data em que Camilo Pessanha foi para Macau, com 26 anos, onde trabalhou como jurista e advogado. “Macau foi muito importante para o desenvolvimento dos interesses de Camilo Pessanha, que recebeu muito de Macau, inclusivamente a sua grande informação sobre a cultura chinesa, a poesia e a língua. [Pessanha] chegou a traduzir muitos poemas chineses dos quais a maior parte se perderam”, descreveu Pedro Barreiros, também editor da obra.

Mas não foi apenas Pessanha que ganhou com o território, tendo-se estabelecido uma relação mútua. “Macau ganhou imenso com a presença de Camilo Pessanha, porque a sociedade era virada para o comércio e o dinheiro. A única coisa que se pensava em Macau nessa altura era sobre essas duas coisas e a intelectualidade estava muito rebaixada, incluindo o conhecimento sobre a cultura chinesa”, adiantou Pedro Barreiros.

“Um livro com muitos elementos”

O editor do livro, que considera Camilo Pessanha como um dos quatro grandes poetas portugueses, explicou que a ideia de convidar várias personalidades a copiar poemas de Pessanha foi também uma forma de recordar um método usado pelo poeta.

“Esta ideia que tivemos de fazer a Clepsydra com autógrafos de escritores, poetas ou outras pessoas interessadas em Pessanha, com os poemas copiados à mão, era uma técnica de Camilo Pessanha. Ele nunca pensou em escrever um livro com princípio, meio e fim, o que fazia era declamar os seus poemas. Sabia tudo de cor, como sabia de cor vários poemas de vários autores. As pessoas depois escreviam os poemas.”

Em Macau, além da sua veia poética, Pessanha destacou-se também pelo seu talento na área do Direito. “A primeira função [que teve em Macau] foi ligada à parte jurídica, como funcionário do Ministério Público e como advogado, onde foi muito célebre. Dizia-se que ‘acção defendida pelo doutor Pessanha era acção ganha” ‘, lembrou Pedro Barreiros.

Rui Zink, escritor, foi um dos participantes da sessão de lançamento. “Todo este ruído e sujidade da caligrafia, e ainda por cima são dezenas de caligrafias diferentes, enriquece o livro. É mesmo uma entrega, uma coisa que se fazia muito no século XIX, a prática da homenagem, transcrevendo, e é que muito bonita”, disse.

O autor português descreveu também esta obra como sendo “um objecto de valor, de prestígio”. “É um livro com muitos elementos mas é depois difícil vendê-lo. Este é um objecto que fica, que tem um valor autónomo. As pessoas interessadas vão aparecer, por isso é bom que haja poucos pontos de venda. Sei que vou querer enviar isto para vários interlocutores. É um objecto de valor, de prestígio.”

Dada a diferença horária, ficou a promessa de realizar uma outra sessão de lançamento online para Macau, ainda sem data marcada. Manuela Cantinho, ligada à Sociedade de Geografia de Lisboa, entidade que também se associou a esta edição, garantiu que será feito um lançamento presencial quando terminarem as medidas de confinamento em Portugal.

22 Fev 2021

O flâneur, conto1

“Ce quelque chose q’on nous permetra d’appeler modernité”
Baudelaire

 

Moro em Baudelaire e gostava de dizer que nasci lá – naquele reino que me enche de comoção – mas nasci noutro lugar que não quero revelar para já. O que urge agora é ser o habitante daquela cidade parida num acto de escrita, e largar o meu corpo no passeio bouleversant das suas palavras, autênticas pontadas de civilização no meu coração nu, sangue de uma nova espécie de humanos: o flâneur que deambula sem profissão nem destino entre boulevards, quartiers, passages subtis e mergulhar “na multidão como um imenso reservatório de electricidade”. E a multidão, como ouvi em Benjamin, “é o véu flutuante através do qual Baudelaire vê Paris”. Ando e desando na cidade e, como numa atracção melíflua, vou sempre parar a Les fleurs du mal – bairro de Baudelaire onde me tenho embebedado, drogado e feito amor com a multidão, desposando-a em cada visita. A cidade é o espaço em que me quero mover para extrair a matéria prima que me interessa: o eterno do transitório na grande fábrica de choques que rege a cidade moderna na “realização do antigo sonho do labirinto” que o flâneur persegue, segundo também encontrei em Benjamin.

Benjamin é também uma cidade que visito com frequência, guiada pela minha carta-do-mundo. Nas últimas décadas foram escavadas importantes ruínas cartográficas, lugares de baldaquinos, cartografias e Globos Terrestres na cidade de Sloterdijk – topos deslumbrante mas muito inquieto! Bem sei que parece impossível, mas nem sempre as cidades mantêm as mesmas coordenadas. À frente destes olhos que o tempo há-de guardar, o mapa entra em mutação, como uma aranha desandasse a sua teia, e leva a cidade de Sloterdijk para perto de Marx, cidade incontornavelmente moderna. Mas o território representado no mapa não pára de se transformar e arrepia-se que nem uma serpente, insinuando-se nas cercanias de Kant, zona montanhosa e tradicional. E, não fica por aí, pois já a vi saltar para a frente da sombria cidade de Foucault ou mudar-se provisoriamente para a Ásia… mas isso fica para um conto a propósito de cidades-móveis que terei todo o gosto de vos falar quando chegarmos a Borges, a cidade de todos os Alephs, esferas mágicas, labirintos, bibliotecas encantadas, infinitudes que se concentram num só ponto.

Tenho uma absoluta consciência que a minha carta de orientação pode ser uma constelação: aquilo que pertence ao tempo, aquilo que se move, aquilo que está mas que não vemos sempre, aquilo que a luz obscura nos mostra e que podemos ligar a nosso bel prazer, dando nascimento às rotas que nos constituem no caminho. E sigo pela minha viagem.

Agora o que interessa é a minha visita a Baudelaire, uma cidade “crispé comme un extravagante”, “éprise du plaisir jusqu’ à l’atrocité”, “beugle”, e “hurle”. Senti-me como “un poète sinistre, ennemi des familles, favori de l’enfer” na maldição poética de Baudelaire. Finalmente instalei-me no Hotel dos Mortos, entre românticos e modernos. Como no Homem da Multidão de Edgar Alan Poe, eu ofereço-me como narradora desta aventura. Neste conto anormal das teorias do céu, o narrador é uma versão longínqua do flâneur, natural de Baudelaire. Neste conto sigo o olhar do flâneur que captura a paisagem num estado de distracção, ou melhor, “embriaguez anamnésica”, vagueando no presente à procura de “aventuras horríveis, raras, através das capitais”, glorificando a vagabundagem. Afinal ando à nora, entre informações disfuncionais. A minha rede de informações em Baudelaire leva-me a tantas outras cidades enterradas dentro dela, que fico tonta. A cidade subterrânea, escapista, as sensações multiplicadas com excesso e intensidade nos bairros de Mon coeur mis à nu, do Pintor da Vida Moderna, nos Tableaux Parisiens, inquietam-me.

Como qualquer criminoso, percorri o submundo da técnica moderna das fábricas, dos filmes, e aspirei a dissolução da experiência certa que ser consciente do meu próprio tempo é fundamental. Certa que quase “toda a nossa originalidade vem da marca que o tempo imprime nas nossas sensações.” Posso gritar Eu sou o Outro! O Outro sou eu!! Como um poeta da revolução que abre trincheiras e caminhos secretos para as cidades de Rimbaud e Pessoa.

Que sarilho – sinto-me como un Bateau Ivre, um soldado em fuga com uma malinha pequenina e castanha de couro da Suécia, onde guardo dois preciosos materiais: a aura e a experiência, por isso sou o narrador deste conto sobre cidades que nasceram no grande continente da Poesia rodeados do mar da literatura.

Voo para o Oriente. Aterro em Pessanha porque tenho esta incrível faculdade de conhecer as senhas de passagem entre cidades, como se fossem bilhetes de ida-e-volta para lugar nenhum. Apenas a viagem me alicia. Pessanha é uma cidade fin de siècle, acertada com o zeitgeist do seu tempo e, coisa rara, com a inteligenzia europeia. Nela reverberam outras cidades, a ocidente do oriente, neste caso, como Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Verlaine…

Movi-me como um flâneur entre uma multidão de palavras moventes, álgidas, imagens fugidias, voláteis, instantâneas, fantasmagóricas. Exalo o ópio, o absinto talvez, mas sobretudo aquele bairro de tempo que se chama Clepsidra. Detive-me lá como se eu, a narradora, encarnasse um destino adivinhado a pairar sobre Macau. arando em um montão de estrelas a topografia poética das palavras daquela cidade-móvel que se exilou a oriente do oriente. Nas suas ruas e tabernas embebedo-me com lágrimas e fragmentos de palavras ouvidas na cidade e misturando-as no meu choro: Ai meu coração volta para trás, nas róseas unhinhas, dentinhos, conchas e pedrinhas de um mar em sofrimento, derramado dos olhos mortos dos soldados e guardado no pranto do mundo!

“Foi no entanto que choramos a dor de cada um…
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber no mesmo pranto.”
Camilo Pessanha
15 Jan 2021

Livros | Centenário da publicação de “Clepsydra” celebrado na Casa de Portugal

Por ocasião dos 100 anos da publicação da obra única de Camilo Pessanha, foram lançadas as obras “Clepsydra 1920-2020 – estudos e revisões” e “Ladrão de Tempo”. Entre académicos, especialistas e escritores, um dos maiores legados da “obra imortal” do escritor foi colocar Macau no mapa da literatura lusófona

 

“Já gostava muito da poesia de Camilo Pessanha antes de vir para Macau, mas depois de ter vindo e sentido a presença dele na cidade, compreendi melhor os seus poemas e a sua sensibilidade”, disse Carlos Morais José, director do Hoje Macau e autor de “Ladrão de Tempo”, uma das duas obras lançadas ontem na Casa de Portugal, para assinalar os 100 anos da publicação de “Clepsydra”.

Além de “Ladrão de Tempo”, que reúne uma série de textos e artigos sobre Camilo Pessanha, publicados ao longo de vários anos por Carlos Morais José, foi também apresentada ontem a obra “Clepsydra 1920-2020 – estudos e revisões”. Esta última, abarca uma colecção de ensaios sobre a vida e a obra de Pessanha, sob coordenação de Catarina Nunes de Almeida (Faculdade de Letras de Lisboa), que conta com textos de Carlos Morais José, Catarina Nunes de Almeida, Daniel Pires, Duarte Drumond Braga, Fernando Cabral Martins, Paulo Franchetti, Pedro Eiras, Ricardo Marques, Rogério Miguel Puga e Serena Cacchioli.

“Em ‘Ladrão de Tempo’, os leitores podem aprender um pouco das minhas teorias sobre a vida e obra de Camilo Pessanha. No outro livro que publicámos, feito por académicos de grande competência existem textos realmente importantes para uma melhor compreensão da obra de Pessanha”, explicou Carlos Morais José.

O autor fez ainda questão de sublinhar a importância de Pessanha “não só para a literatura portuguesa, mas também para Macau”, pois através da sua obra “foi possível colocar Macau no mapa da literatura lusófona”. “Macau será sempre lembrada como um local onde floresceu a literatura em língua portuguesa pela pena de Camilo Pessanha, quer se queira, quer não”, acrescentou.

Por seu turno, Catarina Nunes de Almeida, que marcou presença no evento através de uma plataforma online, lembrou que a “Clepsydra é, não só um livrinho que traduz o expoente máximo do simbolismo em língua portuguesa, mas também uma obra máxima de todos os tempos” e que Camilo Pessanha foi um “mestre” para nomes como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Eugénio de Andrade.

Sobre a vida omissa e mística do escritor, acrescenta que Pessanha é inclusivamente personagem de romances e novelas, como é o caso de “A 5ª essência” de Agustina Bessa-Luís ou de “O Mal”, de Paulo José Miranda.

“A biografia de Camilo Pessanha continua a ser compensada por muitas suposições e lacunas. Há muitas brechas ao longo da sua vivência em Macau e da metrópole e a literatura tem aproveitado para criar uma série de ficções e de se deleitar com esses espaços em branco”, apontou a coordenadora de “Clepsydra 1920-2020 – Estudos e revisões”.

Intervindo também via online, Duarte Drumond Braga, fez questão de frisar o percurso “activo” de Camilo Pessanha na sociedade de Macau, onde foi professor e juiz, por oposição à imagem de “lenda” que foi sendo criada em torno do escritor.

Nas entrelinhas

Durante a sua intervenção, Duarte Drumond Braga assinalou ainda que a China não está presente na obra de Camilo Pessanha “de forma directa”, mas apenas “de forma subtil”.

Sobre o tema, Carlos Morais José referiu que, apesar de os sinais não serem declarados, “nota-se a presença de um outro lugar, ou seja a presença do exilado numa cidade estranha”.

“Aconselhava as pessoas a encontrar a sua própria experiência pessoal, sobretudo aqueles que estão em Macau. Se passearem pela cidade, saindo fora dos circuitos habituais, perdendo-se pela cidade chinesa de Macau, penso que talvez encontrem essa sensibilidade. Não é uma coisa que se atinge só pela razão ou pela leitura mas que se atinge muito pela sensibilidade e pela empatia com a cidade e a obra do autor”, acrescentou.

Referindo-se a “Clepsydra”, o autor de “Ladrão de Tempo” aponta ainda que “a grande poesia é infinita nas interpretações que se podem fazer dela”, tal como acontece com Camões ou Fernando Pessoa.

“É sempre possível encontrar novas leituras, novas explicações e, sobretudo, novas sensações e penso que isso torna este livro numa obra imortal”, rematou Carlos Morais José.

Na linha da frente

Marcando presença no evento, a presidente da Casa de Portugal, Amélia António vincou que “Pessanha é indissociável de Macau”, que a sua obra “extravasa” os limites do território e que, por isso mesmo, era importante “estar na linha da frente” para assinalar os 100 anos da publicação de “Clepsydra”.

Por seu turno, José Tavares, presidente do Instituto para os Assuntos Municipais (IAM) frisou que “ainda há muito por descobrir” sobre um “escritor da terra” que deixou obra feita e que está sepultado em Macau.
Sobre a iniciativa vincou que “é um trabalho contínuo”, que é preciso “valorizar e apoiar”.

30 Dez 2020

“Clepsydra 1920-2020 – Estudos e Revisões” é lançado amanhã em Macau

“Clepsydra 1920-2020 – Estudos e Revisões”, é apresentado amanhã em Macau. Uma obra que traça um olhar sobre o único livro que Camilo Pessanha deixou através de uma série de ensaios, alguns deles com novos dados sobre o poeta português. Editado em Portugal e em Macau, o livro é lançado amanhã na sede da Casa de Portugal com a chancela da editora COD. Será também lançada a obra “Ladrão de Tempo”, de Carlos Morais José

 

Como surgiu a ideia de reunir este conjunto de ensaios sobre “Clepsydra”?

Inicialmente pensámos em fazer um evento público para celebrar os 100 anos da publicação de “Clepsydra” através de umas jornadas, que iriam acontecer na Biblioteca Nacional. Esta ideia partiu de mim e do professor Gustavo Rubim [da Universidade Nova de Lisboa], que por motivos pessoais teve de se afastar do projecto. Mas a pandemia veio alterar tudo, e para não se perderem estes contributos, uma vez que a maior parte das pessoas já tinha aceite falar na ocasião, decidimos transformar as jornadas em livro. A ideia nasce desta linha de investigação que é o ORION, o orientalismo português. Neste momento sou eu que coordeno esta linha [na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL)] e já temos feito alguns trabalhos de investigação sobre Camilo Pessanha e a sua relação com a China e Macau.

O que é que este livro traz então de diferente?

Queríamos fazer algo um pouco mais abrangente e não ficarmos apenas pela parte orientalista de Pessanha, mas celebrar esse livro discreto que ele nos deixou, que até se pode dizer que de orientalista tem muito pouco, uma vez que é encarado como sendo, talvez, o melhor exemplo do simbolismo português. Reunimos especialistas, e entram os nomes incontornáveis em torno da investigação de Camilo Pessanha, que é o caso de Paulo Franchetti ou Daniel Pires. Mas depois também chamámos investigadores novos, que, não sendo especialistas das obras de Camilo Pessanha, poderiam de facto pensar sobre a obra e trazer novos contributos.

Duarte Drummond Braga, por exemplo, é um desses autores, que tem escrito muito sobre o orientalismo.

Sim, o Duarte e eu somos os dois representantes do ORION, essa linha de investigação do Centro de Estudos Comparatistas [da FLUL]. De facto, o texto que ele escreve para este volume está directamente relacionado com essa vivência de Camilo Pessanha na China e em Macau. No entanto, depois há outros trabalhos que não se cruzam tanto com esta temática. Mas sim, o Duarte é um dos pensadores desta nova geração de académicos que tem trazido muitas coisas novas sobre Pessanha, nomeadamente relacionando-o com a Geração de Orfeu, que vem logo a seguir à dele e que o considera um mestre. Ele [Camilo Pessanha] vai ser um mestre para Pessoa e para os restantes poetas de Orfeu.

Pessanha foi importante para poetas de gerações seguintes?

Pessanha tem sido muito lembrado já no novo milénio. Foi celebrado pela Comissão Asiática da Sociedade de Geografia de Lisboa nos 90 anos da sua morte, em 2016. Depois foi lembrado em 2017 quando foram os 150 anos do seu nascimento. Mas acho que a tónica tem sido a figura do Pessanha nas suas múltiplas facetas, de tradutor, sinólogo, professor e jurista. Mas a obra magistral que ele nos deixa não tinha sido ainda objecto de trabalho nenhum. A verdade é que ele é visto como um mestre, não só para a primeira Geração de Orfeu. Tem sido continuamente designado de mestre por poetas como Eugénio de Andrade, que também esteve em Macau. Eugénio de Andrade tem um livro muito interessante, “Pequeno Caderno do Oriente”, em que a figura central é Camilo Pessanha. Temos António Barahona, o próprio Gastão Cruz, e mais recentemente Manuel de Freitas. São poetas mais recentes e estamos sempre a encontrar um diálogo nas poesias. Muitas vezes vão buscar versos de Pessanha para compor novos poemas. Tem sido tão continuo este diálogo com a obra ao longo destes 100 anos que passaram que acho que seria uma pena deixarmos passar esta efeméride centrada numa obra fundamental e que, para muitos, é a mais importante da poesia portuguesa.

Um dos capítulos do livro é da sua autoria, e é sobre Pessanha lido hoje. Como é que Pessanha é hoje lido, além dessas referências dos poetas contemporâneos? É um autor próximo dos leitores portugueses? Não é uma poesia fácil.

Requer alguma maturidade, e talvez por isso seja um pouco marginal do ensino básico e secundário. Depois encontramos essa poesia mais facilmente na universidade. Um currículo de literatura portuguesa não deixará de incluir Pessanha, que é o representante da Escola Simbolista. Ele acaba por estar presente de uma forma discreta mas mais entre poetas, é aí que o vamos encontrar. E por isso dei o título “representar, rescrever e reconhecer um poeta”. Porque são estas três fórmulas que vamos encontrar nos exemplos que recolhi para o ensaio. “Representar” porque sendo uma figura muito lacónica, há muito pouca informação que seja absolutamente credível sobre a sua figura. Ele foi sendo representado, e essas lacunas foram sendo aproveitadas pelos próprios escritores para ficcionarem a sua figura. A verdade é que ele é personagem de romances, de novelas, como é o caso de Agustina Bessa-Luís, em “A 5ª Essência” e de Paulo José Miranda em “O Mal”. De algum modo a literatura delicia-se até com essas lacunas porque vai aproveitar tudo o que não sabe para criar por si.

Mas na poesia há uma ligação diferente.

No caso da poesia há esse diálogo inter-textual. Os poetas não precisam de o apelidar de mestre mas acabam por resgatar e revisitar alguns dos seus poemas, muitas vezes usando um ou outro verso, muitas vezes colocado em itálico, e escrevem um novo poema. Tem havido muito o outro lado da homenagem, não só com a obra que já referi, de Eugénio de Andrade, como o próprio Daniel Pires, que escreve um ensaio neste volume. Se há continuamente este tipo de impulsos, de escrever sobre ou para homenagear Pessanha, quer dizer que há muita vitalidade na sua obra, e há ainda que a pensar no final destes 100 anos, fazer um balanço.

Apesar de ser apenas uma só obra, “Clepsydra” é muito rica em análise.

Exactamente. É uma obra tão pequenina, de um autor discreto, que viveu quase como um exilado, longe da metrópole, e no entanto não o deixámos cair no esquecimento. E importa perguntar porquê, mas acho que a melhor resposta que temos é abrir a “Clepsydra” e lê-la.

Este conjunto de ensaios aborda menos o Pessanha homem, a sua personalidade e feitos além da literatura.

Não tínhamos tanto essa intenção. A nossa ideia era centrarmo-nos na “Clepsydra”, embora depois haja pontes para pensar essas questões. Por exemplo, é incontornável essa relação de Pessanha com Macau e com a China. Há um estudo de Daniel Pires que não deixa de nos trazer alguns dados novos muito importantes que não têm directamente a ver com a “Clepsydra”. Ele traz-nos com este ensaio um inventário daquilo que era a biblioteca de Pessanha que estava em Macau. Ele [Daniel Pires] nas várias viagens que foi fazendo conseguiu ir reunindo essa listagem das suas obras e sabemos que este tipo de inventários, do que é uma biblioteca de um autor, podem ter um contributo importante para a análise da obra. Outro exemplo importante é o trabalho do Ricardo Marques, que é o acesso ao que foi a crítica de Clepsydra no momento em que ela sai, nas revistas da Geração Orfeu.

Já existe uma data para a apresentação deste livro em Lisboa?

A obra acabou de sair em Portugal mas deixa-me muito feliz que acabe por ser apresentada em primeiro lugar em Macau. Ainda não temos data de apresentação em Lisboa, mas é possível que seja em Janeiro. Fico muito contente, pensando pela cabeça e coração de Pessanha, que a obra seja apresentada primeiro em Macau. Camilo Pessanha tem de facto uma comunidade de leitores muito importante em Macau.

28 Dez 2020

O Jornal Único

[dropcap]A[/dropcap] comunidade portuguesa de Macau não quis ficar fora das celebrações do quadricentenário da chegada de Vasco da Gama à Índia (1898), mas os festejos cívicos revelaram-se muito contidos, devido a uma outra peste que nessa altura grassava, um surto de cólera. Ficámos só com o busto no jardim hoje que leva o nome do almirante, nos limites da cidade oitocentista. Localmente, as comemorações do centenário do Gama foram lidas como a oportunidade ideal para a afirmação do poder central na colónia, através da homenagem da comunidade às figuras do malogrado governador João Ferreira do Amaral e do militar Vicente Nicolau de Mesquita, que tomara o forte de Passaleão, hoje parte de Zuhai.

Um outro resultado material destas comemorações foi a publicação do curioso Jornal Único (1898), bem uma obra do nacionalismo finissecular. Revista, mais do que jornal, e de número único, neste Jornal Único ouvimos sobretudo a voz de uma comunidade intelectual ultramarina misturada com a de alguns euroasiáticos, como o próprio organizador António Joaquim Basto. O triplo nome “Camões–Mesquita–Amaral”, monumentalizado como um pedestal para o Gama, aparece no frontispício da revista e em quase todos os textos da mesma, sublinhando a continuidade entre esses dois pares: de um lado o fautor da autonomia de Macau face à China e o seu garante; de outro o nauta e o seu cantor.

Trata-se de um grande e luxuoso volume, ornado de fotografias e impresso num papel especial. Nesta antologia, quase toda constituída de textos de circunstância, o louvor do passado só faz sentido à luz da necessidade de renovar o colonialismo português, que era o programa ideológico subjacente às comemorações deste centenário. Nesta conjuntura, é dada especial relevância à posição de Macau, que em “Praia Grande” de António Joaquim Basto, a esse tempo Presidente do Leal Senado, é descrito como colónia “quasi perdida” (p. 14). O clima de estagnação que faz da Cidade do Santo Nome uma terra “anémica e sem forças para robustecer” (p. 14) atravessa também, de uma forma elíptica, textos mais surpreendentes, como um duplo soneto de Pessanha que aqui se encontra.

Embora Camilo não pertença à comissão para as comemorações do Centenário e se furte a proposições daquele género, faz claramente parte de um mesmo esforço coletivo mobilizado pelos portugueses na China em torno das celebrações, ou não participaria nesta empresa de todo. “Nau San Gabriel”, com o subtítulo parentético “No quarto centenário do descobrimento da Índia” [sic], dá a ver Portugal, na calmaria pós-ultimato, através da alegoria de uma nau parada: “Inútil! Calmaria. Já colheram /As vellas. (..)Pararam de remar! Emmudeceram!”. É daqui que vem a necessidade de de novo retomar os ritmos marítimos, numa segunda viagem ou descoberta: “Velhos rithmos que as ondas embalaram). // San Gabriel, archanjo tutelar, (…)/ Vem-nos guiar sobre a planicie azul. //Vem conduzir as naus, as caravellas, /Outra vez, pela noite, na ardentia, /Avivada das quilhas. (…)/ Outra vez vamos!” (p. 14)

A nau-pátria é um tema alegórico do imaginário finissecular e que aparece em muitos outros textos da época. Assim se entende que o soneto é uma glosa aos motivos oficiais, heroicos e marítimos, do centenário da Índia, no espírito do nacionalismo cultural de perfil republicano. A Nau-Capitânia, imagem da nação, necessita de uma intervenção quasi-divina para nova travessia regeneradora, cujos contornos são tão nebulosos quanto a visão que o poeta e seus coevos tinham do futuro de Portugal. Ao contrário do que alguns críticos têm dito, esta contribuição de Pessanha para o movimento de despertar nacionalista é cristalinamente nacionalista, embora com alguns ecos de vencidismo, contudo insuficientes para infirmar o objetivo bem como o valor e sentido do contexto da sua publicação.

É precisamente o conhecimento do contexto de Macau e da produção em língua portuguesa feita em Macau, que aqui fazem a diferença na interpretação deste poema. E assim, apesar de o soneto parecer acusar a tese de Oliveira Martins – que impregna a literatura tardo-oitocentista – da crise nacional enquanto forma insuperável de estagnação, este poema de alguma forma inaugura a ideia que Pessoa retomará uns anos mais tarde das “Índias Espirituaes”. Esta singular ideia cinge-se a isto: as novas descobertas a fazer não serão já nos mapas físicos, mas antes nos mapas mentais, culturais e “espirituais”, ideia que o ortónimo dará corpo em Mensagem e em centenas de fragmentos ensaísticos. Mas é o discreto soneto de Camilo Pessanha que permite dar a Macau e à produção aqui feita pelos portugueses um lugar central na genealogia de uma ideia que ecoará ao longo do século XX, a de um “imperialismo cultural”, na formulação de Fernando Pessoa.

14 Out 2020

O meu rebanho de palavras

[dropcap]H[/dropcap]á coisas que estão enterradas no chão da terra – pedra tumular da humanidade. Nela navegam todos os meus mortos, todos os meus vivos, desde que há passado, presente e futuro. É este o mundo do meu pastoreio, onde um rebanho de palavras se espalha e espera que as encontre, junte e lhes dê algum alimento. É preciso cavar, adubar, semear o campo para colher as bagas com que sobrevivem as metáforas, analogias e demais condimentos que servem a escrita, è preciso cuidar dos campos onde colhemos as palavras que empurram o mundo, escrevendo-me nele. Entre elas, ouço Zaratustra: Aquilo que chamastes mundo, deveis primeiro criá-lo para vós. O motor está ligado. O movimento começa no grande escorrega do mundo interior. A rampa alonga-se numa viagem vertiginosa sem se deter e entra no subsolo como se eu fosse um verme nas mãos de um poeta. Estava a ser escrita sem saber. Era apenas uma palavra a deslizar sem ruído e a sumir-se no chão, comovendo-se com a enorme dor humana. A humidade pesada e aglomerante da terra cola-se ao corpo, enterrando-me viva no pranto de todos os que sofrem pela mão de Pessanha, a mesma carga dos homens-ratos de Steinbeck que sustentam o peso da terra inatingível na sua imensa pobreza. Já sem saliva, já sem sentidos, fico a saber que para as palavras pastarem é preciso o exílio, a dor e estar longe em cada uma que se lança ao nascimento e que pode, uma vez nascida, nomear-se como coisa da linguagem. Não que esta seja a casa do ser, desculpar-me-à o humanismo de Heidegger, mas porque formata a cultura, a imagem e a experiência mundo – é o seu horizonte. Agora sei que quando a escrita acontece o corpo escreve-se, nasce e morre. E o mundo também. Sei que as palavras são capazes de se libertar dos limites da linguagem e da jaula onde estão encaceradas – formando a mancheia que prefiro.

O meu rebanho de palavras é o meu acervo, espectáculo que exige a todo o momento a representação do meu olhar de colecionadora. Como diz Sontag caso não saiba que fazer com os olhos ávidos, tem sempre ao seu dispor esse outro, sempre, próximo, interior: um livro. As palavras desfilam perante os meus olhos como coisas que me extasiam, fazendo de mim a leitora que, cada vez que lê, é escrita no folhear contínuo deste arquivo indecente. Grafada no jogo intenso do mundo das palavras desejadas, resgato-as como objectos raros e preciosos, ou protejo-as da incúria de um destino esquecido. Talvez seja apenas uma ladra, como Bukowski, que rouba e amealha no seu mealheiro feroz palavras cheias de raiva. E refaço-me internamente nas mãos que escrevem nesta outra rua de letras onde reconheço Plath e Nietzsche de mãos dadas, como se fossem estrelas a dançar para Platão, arrastando-me no horizonte – o grande escorrega do mundo. Nesta abissalidade sem dormência evolam-se as delicadas folhas de livros onde ecoam as vozes dos escritores.

A vida não vem empacotada em experiências de três actos – diz-me Joyce com quem deambulo no arquivo de citações do coleccionador de palavras que abriu sem medo a sacola de Odisseu, contra o aviso de Tirésias, libertando a mutabilidade maldita da escrita. É preciso uma nova linguagem, novas palavras do ver, pensar e dizer das personagens e fazê-las viajar de um livro para outro, como Stephen Dedalus, já de si trajeto de um mito, que vai parar a Ulisses. Encontro Molly Brown a dizer sim-à-vida, no lance em que Joyce iguala Nietzsche, retirando às palavras o veneno oculto que as faz serviçais da cristalização das formas, do sentido, da verdade – libertando a linguagem do seu papel de ilusão. Ando agora aos trambolhões nas palavras de um homem que cria a sua própria linguagem, em metamorfoses constantes, na fragmentação, discontinuidade, colagem, interrupção, num sem número de processos que anunciam, num gesto contemporâneo, a morte da narrativa como era conhecida até então.

Quando Pina Baush morre no café Muller, diante de mim, eu morro com ela. Mas o meu corpo não cai. Antes fica suspenso entre ser e não ser, como no laboratório que Melville criou para Bartleby, numa pura potência de se emancipar tanto do ser como do não-ser, e criar a sua própria ontologia, nas palavras de Agamben.

Também não quero sair de trás do biombo verde. Também preferia não o fazer… O escrivão acolhe-me no seu colo e embala-me até adormecer, ao som das letras que o escrevem enquanto se recusa a escrever.

Naquela contingência, acordo e flutuo no arquivo-linguagem que nos mantém suspensos em letras e palavras, com vontade de mobilizar outra imagem da literatura. O que interessa é a obra que fica e a cortante novidade que tenho de guardar. O meu corpo desfaz-se na escrita de Gertrude Stein e na sua montagem desabrida contra todos os costumes narrativos. Escrever é sempre uma matéria em devir, como diz Deleuze.

Estou exausta: é muita coisa para um pastor.

Ia dizer à escrita que estava cansada desta tarefa, mas o rosto meridional de Barthes debruça-se sobre as mãos que agora me escreviam: Até o momento só existe uma escolha possível, e essa escolha faz-se entre dois métodos igualmente excessivos: considerar um real inteiramente permeável à história e ideologizar; ou inversamente, considerar um real finalmente impenetrável, irredutível, e, nesse caso poetizar.

É como imagino o horizonte onde repouso a cabeça, quando a madrugada me deita sobre o mar e a terra, à espera do meu rebanho de almas nuas.

24 Jul 2020

Poesia | Lisbon Poets & Co celebra edição de Camilo Pessanha em espanhol, inglês e francês

“Clepsydra”, obra-prima de Camilo Pessanha, quase toda escrita em Macau, ganhou novas edições bilingues em português/inglês, português/francês e português/espanhol com a chancela da editora portuguesa Lisbon Poets & Co. O editor Miguel Neto acredita ter chegado mais perto da organização que Pessanha queria para os seus escritos e que não foi conseguida por Ana de Castro Osório na edição de 1920

 

[dropcap]E[/dropcap]ste ano celebra-se o centenário da primeira edição de “Clepsydra”, a obra mais importante do poeta Camilo Pessanha, editada em 1920 por Ana de Castro Osório. Como forma simbólica de celebrar a data, a editora portuguesa Lisbon Poets & Co celebra a edição de duas edições bilingues, “Clepsydra – The Poetry of Camilo Pessanha” e “Clepsydra – La Poesía de Camilo Pessanha”, com introdução da académica Helena Buescu, da Universidade de Lisboa, e organização e fixação do texto por parte do professor Paulo Franchetti. Franchetti havia, inclusivamente, trabalhado na obra de Pessanha em edições anteriores publicadas em língua portuguesa.

“Estas duas edições são importantes para dar a conhecer a falantes de outras línguas [a obra de Pessanha]. Também vamos publicar uma edição em francês, que está a ser terminada, e vamos traduzir para outras línguas. Pessanha já é pouco lido e editado em Portugal e em outros países é, de facto, muito pouco conhecido”, apontou ao HM o editor Miguel Neto. É também objectivo da Lisbon Poets & Co “fazer esse contributo [para reavivar a memória]”. “

“A sua poesia tem uma natureza velada, é um pouco inacessível e difícil, o que não torna muito fácil uma leitura imediata. Além disso, Pessanha esteve longe de Portugal, passou quatro décadas em Macau e foi lá que escreveu a maior parte dos poemas, e em Portugal produziu muito pouco”, frisou Miguel Neto.

Ainda assim, isso não impediu Pessanha de ser considerado um dos nomes maiores do Simbolismo português. “‘Clepsydra’ é realmente marcante e é também a maior representação do Simbolismo em língua portuguesa, além de ser um livro que marcou toda a poesia vindoura, com Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa e poetas posteriores, como Eugénio de Andrade.”

Questão de organização

Aquando da primeira publicação de “Clepsydra”, em 1920, Ana de Castro Osório não terá seguido a organização dos poemas conforme o desejo de Pessanha. A descoberta foi feita por Paulo Franchetti através de um documento depositado na Biblioteca Nacional colado a um dos primeiros exemplares de “Clepsydra”.

Estas duas edições bilingues apresentam, portanto, uma organização o mais possível aproximada à vontade do autor. Aos poemas cuja ordem é indicada pelo autor juntam-se os restantes organizados por Paulo Franchetti, onde se incluem “dois poemas inacabados, poemas satíricos e poemas citados de memória por outras pessoas”.

Por esse motivo, “o que está no livro não é apenas uma aproximação possível e mais recente à ‘Clepsydra’, mas também a toda a poesia de Pessanha, e é a primeira vez que ela é traduzida integralmente para inglês e para espanhol”, rematou Miguel Neto.

Além destas edições, a editora Lisbon Poets & Co também promoveu nas redes sociais, em parceria com várias livrarias portuguesas independentes, vídeos com a leitura de poemas de Camilo Pessanha. A campanha dura até esta quarta-feira, dia 15.

13 Jul 2020

Bíblicas desilusões

[dropcap]E[/dropcap]m 1894, ainda a bordo do navio que o conduzia a Macau, Camilo Pessanha começou a escrever cartas ao pai e ao colega e amigo Alberto Osório de Castro. Trazem as descrições primeiras daquela cidade, bem como da travessia até lá. Mostram um registo pitoresco, embebido de leituras de Pierre Loti, um famoso autor do exotismo francês e dos crisântemos floridos que hoje já ninguém lê. É o registo do iniciante, do recém-chegado, vibrando a qualquer lastro de exotismo e não o Pessanha que nos habituámos a conhecer, ponderado estudioso das coisas da China e com muito poucas cedências ao fascinado discurso do exótico oriental, que tantas vítimas fez até hoje.

É de supor que as leituras orientalistas (Loti e outros franceses) fazem parte da bagagem da sua travessia para o “pálido Oriente – pálido e rútilo” (Correspondência, p. 120 da edição de 2012, de Daniel Pires), expressão com forte olor francês a chineserias e japoneserias retirada de uma carta a Osório de Castro. E o mais importante é que estas primeiras cartas assinalam já um vivo interesse pela China e, mais importante ainda, um programa de escrita logo desde a arribação, como o desta, enviada a seu pai desde Macau:

“Quase já estou animado a escrever sobre coisas do Oriente” (Correspondência, p. 228).
Mas o primeiro sinal desse confronto com o Oriente tem um nome concreto, chama-se desilusão, e chega mesmo antes de o poeta chegar à China. Passado o estreito de Malaca, logo se queixa ao pai acerca do mundo que se lhe apresenta para lá da Europa. É, na verdade, tópico habitual da literatura: o velho Oriente revelando-se como desilusão, quando confrontado com o livro, isto é, a autoridade europeia com que viaja debaixo do braço, que prepara, explica e dispõe o Oriente. É o ponto da viagem no qual se desilude com Adem, cidade-porto junto ao Mar Vermelho, na primeira travessia para Macau: “Não vi coisa alguma do que dizia um artigo que eu li de António Enes: nem chins, nem turcos, nem índios, nem gregos… nem ingleses” (p. 219). O poeta confronta a sua visão com a descrição de António José Enes, um político ultramarino invocado como autoridade (desmentida) em assuntos do Oriente. Seria porventura um artigo aconselhando o viajante português sobre o que iria encontrar em viagem para Leste, e como se comportar diante de bizarrias e barbaridades.

Aqui Camilo junta-se a outros viajantes ilustres da desilusão, como Goethe, Chateaubriand, Nerval ou Twain. O problema é que o Oriente moderno já não se parece nada com os textos, bíblicos e outros, como no caso daqueles turistas do Próximo Oriente a que podemos juntar o poeta da Clepsydra. O desencanto é porém mais um sinal do conhecimento superficial, e Camilo não é um turista na China, apenas nestas paragens. A China está certamente para além de qualquer encanto ou desencanto europeu, mas esta breve passagem pelo tema romântico da desilusão é importante como o momento em que a mente se prepara para conhecer o que está por detrás dos textos e criar novos textos que possam mentir de outra forma. Uma forma, digamos, mais sofisticada. Afinal, quarenta anos passados em Macau permitem mentir muito e melhor, ainda que sobre o celeste império dê para mentir apenas em prosa, que o verso, com China ou sem China, é sempre verdadeiro.

9 Jul 2020

O Buda Dourado de Camilo Pessanha

[dropcap]D[/dropcap]izem que foi o primeiro funcionário público português a pedir transferência para um território onde ninguém queria viver. Mas Alberto Osório de Castro vivia há já largos anos em Timor, para onde se havia trasladado de Moçâmedes. Era primo direito e amigo de Camilo Pessanha e, tal como este, juiz e poeta, além de arqueólogo e botânico amador.

No verão de 1912, Osório de Castro passou por Macau e assistiu ao ritual matinal do despertar do poeta, como deixou escrito na página de memórias «Camilo Pessanha em Macau», publicada em 1942 na revista Atlântico. Aí descreve uma visita ao confrade na sua tebaida, isto é, a casa de Camilo à Praia Grande, onde hoje se acha um insípido hotel chinês, mais ou menos frente à chuchumeca da Solmar. Fechado no seu quarto, Camilo demorava a despertar, numa descrição do opiómano que se tornou famosa: “Diante da janela toda aberta, um Buda doirado de bronze, cujo rosto extático vagamente sorria, numa expressão de transcendente serenidade. Dois pivetes ardiam devagar ante a luz, em homenagem da terra e das almas, como depois me disse Camilo, ao Desconhecido. […] O Camilo fumava a longos haustos caladamente, e reanimava-se pouco a pouco como se o tocara vara de condão”. Por conta da legenda, é fácil prestar atenção ao ópio, e ficar por aí. Mas mais do que o causador de tantos dissabores para China, parecem-me bem mais interessantes as referências religiosas: a São Paulo e sobretudo ao curioso Buda doirado, a modos que a evidência de uma suposta adesão ao budismo. Na verdade, é uma «citação» indireta e até jocosa de Arthur Schopenhauer, que também era proprietário de uma estátua doirada de Buda, e que, de modo a alimentar o seu pensamento pessimista, fez amplo uso da versão distorcida e europeizada do Budismo que circulava à época. Junto com os pivetes ardendo em homenagem «ao [Deus] Desconhecido», são apropriações distanciadas, irónicas (tristes até, na sua descrença desolada), de elementos chineses e budistas, junto com o Deus Desconhecido, de que Paulo se fizera emissário em Atenas (Atos dos Apóstolos, 17.23). Houve quem, iludido por estes sinais inequívocos de descrença, quisesse ver em Pessanha um budista. Não entendendo a ironia, ignorando a China e ainda mais o Budismo, enredaram-se no folclore. E há mais deste budismo irónico em Camilo. Veja-se uma carta enviada a um amigo, de 1896, escrita de Mirandela após breve regresso a Portugal: “Continuo fatigadíssimo desta série de deslocações em que ando há dois meses — e que só virá a terminar daqui por cinco ou seis, outra vez no mesmo cabo do mundo. Um horror para quem está acostumado a dois anos e meio de quietação búdica.” Ironia, mais uma vez, e por vezes dolorosa, como nestoutra, de março de 1912: “Não sei se eu disse alguma vez ao Carlos Amaro que há no inferno chinês um terraço, — a torre da Amargura, — onde o condenado é levado ao cabo de cada ciclo de tormentos e de onde vê tudo o que se está passando no mundo distante e pode interessar-lhe o coração”. Para quem muito entendia da China e dos seus mundos, quer a quietação búdica quer a Torre da Amargura, às quais junto o Buda doirado, são pequenos e amargos jogos, não tanto com a China em sim, mas com uma certa visão dela.

Por um lado, Camilo Pessanha sabia que o buda schopenhauriano ou o budismo quietista-niilista eram distorções europeias de realidades asiáticas; por outro, sabia também que o seu olhar seria sempre o de um europeu descrente, de algum modo e por isso mesmo, sempre condenado às distorções.

28 Fev 2020

IPM | Apresentado novo livro sobre Camilo Pessanha

[dropcap]O[/dropcap] Instituto Politécnico de Macau (IPM) lançou um livro sobre o poeta português Camilo Pessanha intitulado “Camilo Pessanha: Novas Interrogações (150 anos do nascimento)”. O lançamento da obra decorreu no âmbito das comemorações do 20.º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas entre a China e Portugal e do 70.º aniversário da fundação da República Popular da China.

“Camilo Pessanha é considerado um promotor do intercâmbio cultural entre o Oriente e o Ocidente e um dos seus testemunhos mais significativos, assim atravessando as fronteiras nacionais”, justificou o IPM numa nota oficial.

A instituição sublinhou que Macau “tem uma responsabilidade acrescida enquanto plataforma de serviços para a cooperação comercial” entre a China e os países lusófonos”, até porque “desde o século XVI que (…) ocupa um lugar de destaque na Rota da Seda Marítima”.

Por outro lado, estas iniciativas devem ser compreendidas a partir do papel de Macau “como base de formação de quadros qualificados bilingues em chinês e português”, acrescentou o politécnico, que destacou ainda Camilo Pessanha como “o grande escritor do simbolismo português (…) mantendo-se até hoje como referência na literatura portuguesa”.

25 Nov 2019

IPM | Apresentado novo livro sobre Camilo Pessanha

[dropcap]O[/dropcap] Instituto Politécnico de Macau (IPM) lançou um livro sobre o poeta português Camilo Pessanha intitulado “Camilo Pessanha: Novas Interrogações (150 anos do nascimento)”. O lançamento da obra decorreu no âmbito das comemorações do 20.º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas entre a China e Portugal e do 70.º aniversário da fundação da República Popular da China.
“Camilo Pessanha é considerado um promotor do intercâmbio cultural entre o Oriente e o Ocidente e um dos seus testemunhos mais significativos, assim atravessando as fronteiras nacionais”, justificou o IPM numa nota oficial.
A instituição sublinhou que Macau “tem uma responsabilidade acrescida enquanto plataforma de serviços para a cooperação comercial” entre a China e os países lusófonos”, até porque “desde o século XVI que (…) ocupa um lugar de destaque na Rota da Seda Marítima”.
Por outro lado, estas iniciativas devem ser compreendidas a partir do papel de Macau “como base de formação de quadros qualificados bilingues em chinês e português”, acrescentou o politécnico, que destacou ainda Camilo Pessanha como “o grande escritor do simbolismo português (…) mantendo-se até hoje como referência na literatura portuguesa”.

25 Nov 2019

Lotaria do Senado para a Santa Casa

[dropcap]A[/dropcap] primeira estadia de Camilo Pessanha em Macau ocorre de 10 de Abril de 1894 a 22 de Junho de 1896 e à sua chegada os rendimentos da lotaria da Santa Casa da Misericórdia são já uma sombra dos auferidos até um ano antes. Agora paupérrimos, começa o jogo da lotaria a acumular prejuízos. Nesse mês é reduzido o número de bilhetes que de seis mil passam para três mil e quinhentos, apesar do preço do bilhete ter aumentado de $1 para $2 patacas e mesmo assim, quase mil bilhetes ficaram por vender e nesses, poucos e pequenos prémios saíram à Santa Casa, com um residual valor de $475. A sorte não está com a S. C. da Misericórdia e a 9 de Agosto de 1895 é a sua lotaria suspensa a título temporário, pois já não dá lucro.

No dia da chegada a Macau de Pessanha, ocorrera a seguinte história relatada no jornal O Independente de 14 de Abril: “É sabido por todos que o Sr. José Maria de Castro Basto é encarregado da venda de bilhetes da Lotaria da Santa Casa da Misericórdia, recebendo por este trabalho $60 mensais. O Sr. Basto, quer por autorização da Mesa, quer por vontade própria, vendia bilhetes a crédito com garantia ou sem ela. Vendeu a crédito, ou à consignação a um mainato que vivia na povoação de S. Lázaro por nome José Paulo Ly centenas de bilhetes sem outra garantia pela segurança do pagamento além do selo da sua loja de lavagem de roupa, negócio mainato, ficando desta forma o credor sendo fiador de si mesmo, pois nem o prédio em que esta loja está estabelecida é propriedade do tal Ly. A 9 do corrente o débito do mainato já excedia a $1500; à falta de meios para saldar esta conta e querendo continuar no seu jogo de comprar os bilhetes a $1.()0 [creio ser $1.50], para os vender a $1.70, lançou mão deste meio: “. O processo foi instaurado contra José Paulo Ly, que ficou recolhido na cadeia pública.

No dia seguinte, 11 de Abril, o Secretário da Santa Casa da Misericórdia colocou um anúncio a dizer que não eram cobrados 15% aos prémios da lotaria, como em boato se propagara pela cidade, pois todos os prémios se pagam neste Cartório à apresentação dos bilhetes, sem o mais pequeno desconto.

O Echo Macaense de 18 de Abril, com o título Atenção refere, “Com relação ao artigo que apareceu no último número do Independente acerca da conta de José Paulo Ly e do encarregado da lotaria da Santa Casa da Misericórdia, o Sr. José M. de Castro Basto, fomos por este informados que os factos narrados no Independente não são exactos e que o seu proceder está em harmonia com as instruções dadas pelo Sr. Provedor suplente, Artur Tamagnini Barbosa”.

Carta Régia

A Santa Casa da Misericórdia foi fundada por D. Leonor em 1498 e em Macau estabelecida no ano de 1569 por D. Belchior Carneiro, Bispo do Japão e da China.

A SCM de Lisboa, por Carta Régia de 18 de Novembro de 1783 criara em Portugal Continental a Lotaria Nacional, concedendo 12% dos lucros aos Hospitais Reais dos Enfermos e dos Expostos, ocorrendo a primeira extracção a 1 de Setembro de 1784 e prolongou-se por 34 dias, com um prémio de 12 mil réis. Em Macau, por Carta Régia de D. João VI, na altura príncipe regente, de 5 de Junho de 1810 foi concedida autorização ao Senado para explorar uma lotaria anual, em benefício das casas de piedade e beneficência. Refere: .

Segundo o Dr. José Caetano Soares, “Nunca o Senado utilizara a mercê, mas por mais de uma vez a cedeu à Misericórdia, o que já em 1833 levaria esta, em representação ao Governador da Índia D. Manuel de Portugal e Castro, a pedir para si a prerrogativa.”

20 Mai 2019

Rosa Coutinho Cabral, cineasta: “Renasci muita coisa pelo caminho”

A cineasta Rosa Coutinho Cabral está em Macau para apresentar o filme “Pé San Ié – O poeta de Macau”, um ensaio visual sobre o exílio de Camilo Pessanha, que será exibido na Cinemateca Paixão na segunda-feira, às 18h. Este é o culminar de um processo de encontros e desencontros com a fantasmagoria do poeta e da cidade onde morreu

[dropcap]E[/dropcap]stá em Macau para apresentar o filme sobre o Camilo Pessanha. Porquê este poeta?
A génese da minha ligação a este poeta extraordinário tem uma pequena história. Aliás, todas a minhas ligações têm uma história, quer seja na vida, na literatura ou no cinema. A génese desta ligação com o Pessanha começou muito cedo, quando eu era miúda. Estava ainda nos Açores e teria menos de 13 anos. Descobri um dia um livro na casa de alguém, comecei a ler, adorei, pedi emprestado, não me lembro se por não ter dinheiro para o comprar ou porque não estaria à venda ali em São Miguel. Mas li Pessanha e como todos os adolescentes, também tinha a pulsão da escrita e acabei por “roubar” palavras a este poeta. Tudo isto está no filme. O mais importante é o que aprendemos acerca de nós próprios em todo o processo. Ficamos a conhecermo-nos melhor através de um conhecimento que nos é exterior.

Um conhecimento de alguma forma projectado?
Não sei se é projectado mas acho que é uma boa palavra, ainda não tinha pensado nela. Mas, sobretudo, quando uma peça acaba, quando terminamos de realizar uma coisa com toda a alegria e sofrimento que lhe é intrínseco, na verdade o que fica de mais importante é o que se conhece acerca de nós através dessa tal exterioridade, projectada ou não, e que neste caso tinha o nome de Camilo Pessanha de Macau. O que fica também é uma ligação, que vou adjectivar de superlativa, a ligação que tive com os outros, comigo e com o objecto do filme, o Pessanha, e como estas várias ligações me trazem até aqui. Não morri pelo caminho. Morri muita coisa, toda gente morre muita coisa pelo caminho, mas também renasci muita coisa pelo caminho. Isto só acontece se houver uma ligação forte com o que se faz.

Como foi o processo para fazer este filme?
Acho que tive o privilégio absolutamente extraordinário de trabalhar com pessoas com quem gostei muito de trabalhar. Umas já conhecia, outras não. Já conhecia o João Cabral, que é meu irmão e quem diz os poemas no filme. Há uma matéria no filme que é a própria poesia do Pessanha. Já conhecia o Pedro Cardeira, aqui de Macau, de um outro filme que tinha feito. O filme não é só meu. São matérias que têm uma ligação muito profunda com cada sujeito que as produz e que, por sorte, se encontraram neste filme e congeminaram qualquer coisa que acho que tem interesse. Também tenho que referir o José Carlos Pontes que fez a música e que, além disso, acompanhou todo o processo de acabamento do filme. Foi o grande apoio do fechar do filme e sem o qual seria impossível terminar este filme. Além destas pessoas que conhecia há duas novidades grandes: a Susana Gomes, que fez a fotografia, e o Carlos Morais José. E acho que o encontro com o Carlos Morais José é muito importante no próprio processo do filme. Este acto de fazer um filme, ou outra coisa, fica sempre marcado pelos encontros.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Da mesma forma que se reencontrou com a primeira leitura…
Na realidade, quando era miúda e descobri o Pessanha percebi que aquelas palavras na poesia eram fundamentais. Eu era uma adolescente, mas talvez também sentisse a dificuldade que é viver neste mundo. Mas acabei por esquecer o Pessanha. Um dia, aqui em Macau, o Rodrigo Guimarães pergunta-me porque é que eu não fazia um filme sobre o Pessanha. Na viagem de regresso a Lisboa o Daniel Pires faz-me a mesma pergunta. Reli o Pessanha e achei que era isso mesmo que queria fazer. Regressei a Macau e comecei a trabalhar com a Susana. Nessa altura, conheci o Carlos Morais José. Ouvi-o falar de Pessanha e pedi quase imediatamente se o podia filmar numa espécie de repérage ainda. Fiquei com a sensação de que aquela pessoa tinha que ver com o âmago deste projecto, no sentido da parte em que queria fazer um documentário ficcionado e não só um filme institucional com entrevistas. Fiquei com um duplo problema porque a partir daí percebi que estava dirigida para dois objectos: um para o documentário e o outro que era o filme. Tinha de fazer os dois e assim fiz, num tempo recorde. Durante ano e meio filmámos e montámos o filme.

Não é a primeira vez que filma em Macau. Qual é a sua relação com o território?
Já conhecia Macau. Já cá tinha filmado. Tive a sorte de o fazer com o Manuel Vicente. Adoro Macau. Há sempre coisas muito estranhas na vida e às quais eu não espero dar nenhuma explicação. Macau é uma destas cidades que produz em mim uma atracção muito forte e que esteja talvez no capítulo das pequenas ou das grandes paixões. Como todas as atracções tem os seus momentos de ódio, repúdio. Mas há qualquer coisa muito profunda que me liga a Macau, embora eu tenha cá chegado já bastante tarde até porque já não sou nova. Mas, de facto, não conheci Macau jovem nem com um olhar quase adolescente. Nada disso. Acho que conheci Macau com o olhar de quem está a entrar no envelhecimento. É uma cidade que tem diversas escala. É uma cidade aparentemente desordenada, cheia de contrastes de épocas, do antigo e do muito velho, que são coisas diferentes ao muito novo e ao muito actual. Estas diferenças agradam-me muito e produzem de um ponto de vista urbano uma espécie de desorientação muito divertida. É quase o que podemos encontrar em grandes metrópoles, porque tudo é abrangente pelo olhar mas é tudo muito diferente. Também gosto muito de estar num sítio com pessoas diferentes e Macau é a diferença por excelência. Há ainda outra questão. Sou açoriana e há uma humidade em Macau que adoro. Sinto-me absolutamente em casa. Outra coisa interessante é que da última vez que saí de Macau senti uma coisa muito especial: senti que me estava a ir embora e não que estava a regressar ao meu lugar a Lisboa. Sinto que me estava a ir embora do meu lugar e agora, quando cheguei, senti que estava a regressar a Macau o que é uma coisa estranha.

O filme foi apresentado no DocLisboa. Como foi a reacção do público?
Da crítica não sei, porque foi há muito pouco tempo. As outras reacções foram de boca a boca, do público que lá estava e que pelo que disseram gostaram muito. O filme é um objecto estranho. Não é um objecto que se diga tradicional. Aqueles que conheciam Macau gostaram da forma como viram a cidade e como filmei Macau. Fico contente com isso, fico orgulhosa por ter correspondido a qualquer coisa que as pessoas esperavam ver e ficaram muito admiradas com uma pessoa como o Carlos Morais José. Aliás, perguntaram-me onde encontrei este actor, esta pessoa, quem é ele, de onde vem. A relação entre os nossos dois discursos presentes no filme corre muito bem, interage muito bem. Eu dediquei-me a falar de cinema e não do Camilo Pessanha e esta relação com uma pessoa que está ali e fala do Camilo Pessanha. Ao mesmo tempo prestou-se generosamente ao jogo e à encenação do que eu queria fazer para poder filmar o morto. Não foi um desafio fácil, ele aceitou o desafio e fê-lo magistralmente.

“Aproximar da morte, de algum modo, aproximar da fantasmagoria e, sobretudo, não querer tornar presente aquilo que está ausente no sentido da carne. Ele não está cá, há outras coisas que podem estar.”

Porque é que este filme é um objecto estranho?
Só posso falar da estranheza do objecto, ou da forma como fiz o filme pensando no filme acabado. Esta é uma circunstância nova. É estranho porque a tal ligação que tive com este Camilo Pessanha foi um encontro muito profundo, especialmente, por razões próprias com a dor. Tinha de chegar aí e tinha de trabalhar esta ligação de uma forma que se convertesse cinematograficamente. Essa ligação tinha de ser uma faca afiada, profunda, até ao fim do mundo. Finalmente, tinha de me colocar a mim própria, pela primeira vez num filme feito por mim, ensaiar numa experiência quase repetitiva este acto de me aproximar de alguém que não está cá. Aproximar da morte, de algum modo, aproximar da fantasmagoria e, sobretudo, não querer tornar presente aquilo que está ausente no sentido da carne. Ele não está cá, há outras coisas que podem estar. Isso era um grande desafio e torna imediatamente o objecto deste filme num objecto estranho.

Depois há o modo de fazer, como é que se faz isso?
São as questões que coloco no filme. Como faço e experimento isso? Acho que o cinema é, acima de tudo, um acto de experimentar que deve ser feito com a maior honestidade possível. Acho que ninguém faz tudo o que quer, mas acho que me aproximei o quanto baste para me sentir bem. Uma pessoa experimenta e eu experimentei o espaço por forma a decantar essa presença do Camilo Pessanha nesta cidade e a cidade Macau de Caminho Pessanha.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Teve uma experiência semelhante, mas com uma pessoa viva. Manuel Vicente. Foi muito diferente?
A diferença reside num ponto muito simples. A vida e a morte. O Manuel Vicente veio a Macau pela última vez comigo. Ele próprio diz, a dada altura no filme, “sei lá se volto a Macau”. Eu acho que ele sabia que não voltava, intuía. Acho que aquele filme foi uma despedida do Manuel Vicente a Macau. Era a Macau de Manuel Vicente. Eu gosto muito de cidades, e a forma como se vive e usa a cidade. Portanto, o Manuel Vicente deu-me uma perspectiva de Macau mas com aquela diferente, ele estava vivo, tinha carne e osso. E o Camilo Pessanha não tinha carne nem osso. Esta realidade de trabalhar atrás de um fantasma, atrás da morte, foi uma coisa muito profunda para mim e foi aquilo que tentei descobrir cinematograficamente.

Acha que este filme é mais seu que os outros?
É. Duas ou três pessoas que me conhecem há muito tempo disseram-me que este é o meu melhor filme. Não sou um cineasta VIP, fiz pouca coisa e não estou na boca do mundo. Não faço parte do mainstream e também nunca quis fazer. Sempre tentei fazer o que queria e acho que, finalmente, comecei a ter essa possibilidade. Quero contar coisas que tenham uma certa universalidade no fim, o Camilo Pessanha é importante porque a dor dele tem uma certa universalidade, a dor da humanidade, a dor dos desvalidos da sorte. Imagino que nem toda a gente goste, ou que um número muito reduzido de pessoas goste, não me importo, mas estou-me a aproximar cada vez mais do que quero fazer. Por outro lado, é um filme que também foi buscar à própria natureza do Camilo Pessanha, à sua forma de fazer. De algum modo, é um ensaio que se divide em quatro e esses quatro ensaios estão constantemente a recomeçar e a matar o anterior. Ou seja, é uma reinscrição ao jeito de Pessanha. A sua procura da eterna perfeição que ele tentou fazer reescrevendo os seus poemas, por vezes deixando de escrever. Mas, como o Carlos diz no filme, um poeta é sempre um poeta, mesmo que deixe de escrever.

1 Nov 2018

Pe San Ié – o poeta de Macau

[dropcap]T[/dropcap]eve estreia esta sexta-feira na sala Manuel de Oliveira do Cinema S. Jorge em Lisboa, no segundo dia do 16ª do Festival Internacional DOCLISBOA.

Passava pouco das 18h30 m quando a sala ficou escura e a tela se ilumina num filme que se propõe trabalhar o exercício do cinema numa viagem fantasmática a uma materialidade impossível, a do corpo e olhar do poeta Camilo Pessanha no seu habitar da cidade de Macau, lugar da sua vida e do seu exílio.

O filme anuncia-se a si mesmo como filme ensaio em quatro capítulos, que se pretendem mudança de ângulo no olhar sobre o mesmo tempo e espaço. Como se sabe, o ponto de vista é no cinema a singularidade da escrita cinematográfica, a assinatura autoral.

Um corpo, um homem, um personagem, um sujeito, surge e ocupa a tela, depois de alguns momentos de imagens difusas que se fundem e vão perdendo o carácter de dissipação na afirmação cada vez mais nítida tinta no papel tornada palavra.

Da palavra escrita do poeta surge a presença revelação do homem corpo vivo, inquieto e pensante, que nos diz o que nos alerta para as dificuldades do que nos podemos esperar, anunciando uma primeira revolta impossível, porque, como afirmado por Bazin, o cinema é uma arte impura, e o cinema dos dias do agora, como toda a arte contemporânea, é também um exercício de citação, a si próprio e ao mundo de que se alimenta e que, de forma mais perene do que supomos , é por ele construído. E o que a voz off da realizadora Rosa Coutinho Cabral nos é anunciado é um exercício de cinema.

Como todo o filme vai demonstrar, ao longo do exercício de suspensão fantasmática, entre os diferentes tempos presentes na tela, esse momento de intervalo cinematográfico da criação de um tempo paralelo inexistente, onde a impossibilidade do tempo passado no tempo presente coabitam, interrogando quais os passos e onde, querendo até, inventariar os porquês desse caminho, é esta materialidade deste corpo homem, também ele escritor, também ele amante intimo da língua, também ele solitário no seu sentir a dor e a alegria do mundo, é esta dupla figuração de personagem e de homem verdade no tempo presente, que de forma plena enche o ecrã nesta viagem por uma arquitetura da cidade onde a opulência a existir é da ordem do mistério e da procura impossível do sublime.

De Carlos Morais José são já há muito conhecidos vários talentos, o da escrita, o do jornalista, o do comentador, este filme demonstra que o cinema também é feito de um carisma potencia, onde a verdade do pensamento encontra visibilidade na sonoridade da palavra que o expressa e no corpo que o habita. Talvez seja disso que o filme trata, ou queira tratar, do como é o habitar das palavras pelos poetas. É Carlos Morais José quem o afirma, nesta sua roupagem complexa e paradoxal de fantasma capaz da visibilidade e leitura do real, que no poeta está presente o verbo inicial, a matriz , o arquétipo, o sopro e marca primeira, a revelação inconsciente da esfinge, o suor e a languidez da morte no rio perpétuo do fogo do sangue. O trauma e a viagem inicial e iniciática.

O filme dá-nos ver a escrita de Camilo Pessanha e a escrita do poeta é-nos dada pela voz do actor João Cabral, uma voz é sempre uma leitura própria, uma procura que nos é anunciada. A redundância é usada como recurso estilístico, citação ao cinema ensaio do Godard, talvez nem sempre com a assertividade estética pretendida.

Se, e ainda que o cinema seja o lugar de todos os possíveis, onde se morre e permanece vivo, bola de cristal que dá a ver o futuro e o passado vivido no tempo presente em cada projeção na sala escura dos milagres, apesar da suspensão, do intervalo, a cidade é um organismo vivo que dificilmente se deixa capturar a não ser em sempre escassas parcelas da sua realidade e, filmar hoje Macau de Camilo Pessanha é sempre um exercício mais de imaginação do que materialidade , esse lugar do visível, o “terroir” do(s) cinema(s).

A palavra não é o lugar exacto da prática cinematográfica donde a definitiva relevância do corpo do actor e da materialidade dos elementos em ligação direta sináptica com cada um dos espectadores.

É Jacques Rancière, quem escreve : “no teatro, independentemente da dimensão dada ao gesto e ao espaço, o concreto reside antes de mais nada, na palavra. A conversa em torno de uma fogueira pode dispensar a fogueira, a erva o vento. Ao contrário, no cinema, seja qual for o esforço para o intelectualizar, o concreto está ligado ao visível dos corpos falantes e das coisas que falam. Daqui se deduzem dois efeitos contraditórios: um deles consiste em intensificar o visível da palavra, dos corpos que a carregam e das coisas de que falam; o outro consiste em intensificar o visível como aquilo que recusa a palavra ou mostra a ausência daquilo que de que ela fala”.

Quando o corpo produtor primeiro da fala do filme é uma ausência sem solução, resta a materialidade da campa no cemitério final que o acolheu, a palavra escrita no papel impresso, a marca do peso da mão ausente que ali esteve, e reescreveu, rasurou, escrevendo de novo o já antes escrito. Mas é sobretudo a presença da materialidade do corpo do actor mesmo quando este encena a sombra, a presença impossível do fantasma, que nos transporta ao sopro da vida do poeta. É o corpo e a radicalidade do dito pelo homem que o habita que nos transporta nesta procura de contacto com o poeta maior do simbolismo em Português.

Ainda que o destino apenas possa ter hipotética presença visível no depois e que o mistério passeie de mão dada no interior da beleza das coisas, sabemos que, se não destino, Macau foi facto e fim. Macau foi o território cidade da vida adulta do poeta. Foi em Macau que viveu, respirou, adormeceu, acordou, escreveu, desejou, sofreu, amou. Sim, foi em Macau os seus olhos foram vistos e viram os seus passos percorreram ruas, subiram escadas, seguiram sombras, pisaram nuvens em dores amansadas de ópio.

Se a língua é sempre o território maior da pátria, naqueles expatriados que em lugares tão distantes vivem, e ainda mais quando poetas, torna-se não já a pátria mas o mundo, o lugar onde se não é estrangeiro, o lugar identitário que o corpo habita.

“Camilo Pessanha, o maior poeta simbolista português, escreveu e reescreveu até morrer os poemas de Clepsidra, a sua única obra. O filme não é o seu retrato, nem a ilustração dos seus poemas, mas o ensaio da forma cinematográfica do seu exílio voluntário em Macau. Como filmar este opiómano singular? Dando a câmara de filmar a um morto, ouvindo os seus poemas, seguindo os passos e a reflexão de Carlos Morais José.” Lê-se na sinopse que apresenta o filme, tente-se isso, não é tempo perdido.

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22 Out 2018

Um ano entre Sun Wen e Camilo Pessanha

[dropcap]D[/dropcap]escritos alguns dos mais importantes acontecimentos históricos do século XIX na China, anteriores à chegada de Camilo Pessanha a Macau, e que influenciaram Sun Wen para o combate revolucionário contra a dinastia Qing, falta agora apresentar estas duas personagens.

Sun Wen, conhecido pelos estrangeiros por Sun Yat-sen, antecedeu um ano Camilo Pessanha, tanto no nascer como a deixar esta vida. Assim, Sun Zhongshan, nome dado a Sun Wen após a morte e que virá a ser o primeiro Presidente da República da China, nasceu a 12 de Novembro de 1866 numa família de camponeses na pequena aldeia de Choy Heng (Cuiheng em mandarim), no distrito de Heong-Sán (Xiangshan, actual Zhongshan), província de Liangguan (Guangdong e Guangxi), situada a cerca de 50 quilómetros a Norte de Macau. No trono do Celeste Império encontrava-se então o oitavo Imperador Qing, Tong Zhi (Mu Zong, 1862-1874).

Refere o Padre Manuel Teixeira, “O pai de Sun Wen foi alfaiate em Macau, regressando à sua aldeia antes do nascimento do filho”. Dez meses depois, no ano da abolição da pena de morte em Portugal, onde reinava D. Luís (1861-89), nasceu Camilo de Almeida Pessanha na freguesia da Sé Nova, em Coimbra, pelas onze da noite do dia 7 de Setembro de 1867. Segundo Daniel Pires, era filho de um estudante do 3º ano de Direito, Francisco de Almeida Pessanha e da sua governanta Maria do Espírito Santo Duarte Nunes Pereira. Fora baptizado a 30 de Outubro de 1867, mas só a 9 de Outubro de 1884 seria perfilhado pelo pai, estava Camilo no primeiro ano da Faculdade de Direito na Universidade de Coimbra.

Na aldeia de Cuiheng, Sun Wen nasceu e viveu em criança com o nome de Dixiang, onde na escola primária escuta as memórias do tempo das Guerras do Ópio (1839-60) e da Revolta Taiping (1850-64). Sun Wen chamado ao Havai pelo irmão mais velho Sun Mei, em 1878 passou por Macau a caminho das ilhas Sandwich (onde o Capitão Cook chegara em 1778, um século antes de Sun Wen), arquipélago da Polinésia, a meio do Oceano Pacífico entre a China e os EUA. A viver em Maui, uma das oito ilhas do Havai, para continuar os estudos iniciados na aldeia natal foi matriculado na escola primária e ajudava o irmão como empregado de balcão.

Em Agosto, dois meses após a sua chegada, vai estudar inglês para Honolulu, na escola primária americana Iolani, onde terminou os estudos em 1882. No ano seguinte, já no Iolani College em Honolulu, foi chamado a regressar à terra natal por outro dos seus irmãos. Tendo em Cuiheng destruído a imagem de um deus, o que desagradou à população local, os pais acharam melhor enviá-lo para estudar na Escola Diocesana da Igreja Anglicana em Hong Kong, onde baptizado pelo missionário protestante americano Dr. Charles R. Hager foi-lhe dado o nome de Sun Yat-sen. Em 1884 frequentava o Queen’s College, ainda em HK, quando se casou com Lu Mu-zhen (Lou Mou Cheng, aliás Cheng-ling song), de quem virá a ter duas filhas e em 1891, o filho Sun Fó.
Já Camilo Pessanha completou em 1884 os estudos secundários no Liceu Central de Coimbra e nesse ano entrou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, formando-se em Junho de 1891.

Dr. Sun

Na China reinava o nono Imperador Qing, Guang Xu (De Zong, 1875-1908) quando em 1886 Sun Yat-sen, com vinte anos, vai para Cantão estudar medicina tradicional chinesa. Por andar a difundir a revolta contra a dinastia Imperial manchu dos Qing e as ideias de República importadas do Ocidente, em Janeiro de 1887 passou a frequentar o Colégio Britânico de Medicina para chineses em Hong Kong, orientado pelo Prof. James Cantlie.

Licenciou-se em medicina ocidental a 22 de Julho de 1892, mas como não havia vagas para médicos em Hong Kong, após uma breve passagem por Beijing, vai em Setembro exercer clínica em Macau, convidado para criar um departamento de Medicina Ocidental por Chen Xi Ru, na altura um dos maiores accionistas do Hospital Kiang Wu. Chen Xi Ru com Lou Cau e He Sui Tian (Ho Lin Vong) colocaram um anúncio no JingHaiCongBao a dizer ser Sun Yat-sen um muito bom médico de medicina ocidental.

A instalação do Hospital Kiang Wu, aprovada a 21 de Junho de 1870 pelo Governo de Macau, fora requerida pela comunidade local chinesa, representada pelos senhores Sam Wong, Chou Iao, Tak Fong e Wong Lok, estipulando o foro anual de uma pataca e autorizando a angariação de fundos necessários para a sua construção. Fundado em 28 de Outubro de 1871, no início apenas aí se preparava e cozinhava os medicamentos, distribuídos gratuitamente e só em 1874 foi no local criado o departamento de Medicina Tradicional Chinesa.

O Dr. Sun trabalhava no Hospital Kiang-Wu e na Associação de Beneficência Tong Sin Tong, fundada em Julho de 1892, e em ambos os locais, onde as pessoas sem posses se tratavam gratuitamente pela medicina tradicional chinesa, ele introduziu medicamentos ocidentais.

Já para abrir uma farmácia sino-europeia (Tchong-Sai Yeok-Ko, em cantonense e em mandarim, Zhong Xi Yao Jü) na Rua das Estalagens n.º 80, Sun Wen contraiu com o Hospital Kiang Wu uma dívida de 2000 patacas, “sendo fiador o conhecido e abastado comerciante Ung Tchit Mei”, como refere o Padre Manuel Teixeira. A farmácia tornou-se fachada de um local de conspiração para derrubar a monarquia e o empréstimo, que tinha um prazo de cinco anos, só foi totalmente liquidado por Sun Yat-sen ao Hospital Kiang Wu em 1919.

Fok Kai Cheong refere ter encontrado o contrato de arrendamento relativo à propriedade sita no Largo do Senado n.º 14 feito pelo arrendatário Dr. Sun com a Santa Casa da Misericórdia a 26 de Agosto de 1893. Luís Gonzaga Gomes dá essa referência, no “prédio n.° 14, que ficava numa fileira de casas que ia da Travessa do Roquete à Rua do Gonçalo…” era o domicílio de Sun Wen. Na acta de 4-9-1895 da Mesa da SCM, publicada no Echo Macaense a 9-11-1895, refere-se que .

Assim, quando Camilo Pessanha chega a Macau, o Dr. Sun tem ainda alugada a casa no Largo do Senado, apesar de já não se encontrar na cidade. Aqui devemos aos nossos leitores uma rectificação, pois no último artigo referimos encontrar-se os Correios no edifício do Senado, o que só ocorrerá em 1915, estando este então ainda na Praia Grande, no edifício contíguo ao Hotel Hing Kee.

19 Out 2018