Filme sobre poeta Camilo Pessanha exibido na extensão de Macau do DocLisboa

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme “Pé San Ié – O Poeta de Macau”, inspirado na vida e obra do poeta Camilo Pessanha, vai ser exibido na extensão de Macau do Festival Internacional de Cinema DocLisboa.
Depois da primeira exibição no DocLisboa, prevista para 19 de outubro, o filme faz a sua estreia asiática a 05 de novembro, na Cinemateca Paixão, na extensão do festival português dedicado ao documentário, que é organizada em Macau pelo Instituto Português do Oriente.

Trata-se de um projeto da realizadora Rosa Coutinho Cabral e da produtora Maria Paula Monteiro, rodado inteiramente em Macau, em 2017, e finalizado este ano.

A mesma dupla é a responsável pelo documentário “Camilo Pessanha – 150 anos”, que será exibido em Macau no auditório Dr. Stanley Ho, sustentado pelo depoimento de investigadores, biógrafos e historiadores, na sua maioria ilustres figuras de Macau.

Segundo a produtora, nesse documentário surgem as várias dimensões do homem e não só do poeta, revelando-o como jurista eminente, republicano, maçom, professor, sinólogo, colecionador, tradutor e falante de chinês, oscilando sempre entre dois eixos: o mundo a Ocidente, onde nasceu, e a Oriente, onde viria a morrer.

9 Out 2018

“O que resta?”

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] último trabalho do realizador J. Gaia – título original “What´s Left” de 2012 -, é um filme polémico, vanguardista, singular, devastador e maldito.

Apesar de vivermos numa conjuntura económica favorável, há uma grande falta do investimento, por parte do Governo, de que resulta uma certa estagnação da actividade cinematográfica. Talvez mais importante que a retracção, seja a ausência de uma orientação estratégica clara para o sector por parte das entidades competentes. Falta pensamento institucional, políticas próprias e por razões várias de decisores públicos. É tudo muito paroquial.

A cultura (cinema) é uma responsabilidade do Governo. Optar por festivais, pode não ser a melhor opção – veremos!

Sem grande pretensiosismo, J. Gaia agarra o impossível com mestria, agilidade e um talento notável. Uma “história” simples, linear, em que o realizador sem preconceitos ou conceitos, antes com desrespeito pelas regras base da cinematografia – sem grande consistência estilística – explora, experimenta, resumindo cria o retrato de uma cidade em mudança, com um quadro negro, diga-se psicológico, da sociedade. A dissolução.

Filme de palavra curta, com uma forte concisão da linguagem e, narrativamente simples. É a imagem que a dá a ver – ajuda a procurar uma saída positiva, criadora e eficiente, um meio audaz, necessário, o autor vive obcecado pela maximização (de meios e custos) e, talvez por isso surge como uma via de complemento de afirmação, sem subalternizações, como uma nova realidade estética, sem contudo cair na tentação de limitar campos, e conteúdos. Existe uma unidade entre texto e imagem que atinge pontos extremos de criatividade, elegância e invenção cinematográfica. Perfeita a montagem sincopada e electrizante.

Falar de crise através dos cúmplices, da bolsa através dos especuladores, do clima através das catástrofes, do ambiente através da destruição, da globalização através da fome, da justiça através da dignidade, do mundo através do entretenimento, jogo através de números, da palavra através de sobreviver, de presente através de consumo e futuro através de reprodução – um mundo de palavras soletradas uma a uma, de forma, solene, nobre, vigorosa e seca – em off -, doseadas com imagens digitais de um impressionante realismo atroz inquietante e perturbador. Um diálogo (palavra/imagem) existencial, sem divagações ou histerias, que se abate sobre o espectador, podendo criar ansiedade e depressão, sobretudo naquela faixa etária mais resignada.

Há duas ou três cenas, no filme – onde existe mais cinema a ver do que em algumas dezenas, mas não dizer centenas de filmes inteiros -, dessas sessões contínuas que enchem a cidade inteira.

Sem comentários adicionais, para não perturbar o espectador nas suas “leituras cinematográficas”, veja-se por exemplo a cena «Missa Dominical». Ao sair da Igreja de braço dado com a sua afilhada Joaninha, D. Amélia Cunha – grande plano da Igreja de S. Lázaro (Porquê esta Igreja?), com a figura tutelar do padre na despedida aos fiéis, ainda no adro, abre a sua sombrinha e ouve de Joaninha: “Não madrinha é um problema de inveja”.

A que D. Amélia responde – apesar da idade – em tom seco e timbrado, “não minha filha, aqui os problemas são única e exclusivamente de dinheiro”.

Surge uma «cortina», aqui necessária e obrigatória (por causa das más interpretações), mas talvez o único senão ao longo do filme, o seu uso e abuso, apesar de todos nós sabermos que a cidade deixou há muito de poder ser um estúdio ao ar livre. Fazer exteriores com orçamentos apertados, é impossível.

A cena seguinte – é digna de bom entendedor – no restaurante «Hong Feng » (Montanha Vermelha), ficam casualmente sentadas entre uma típica família chinesa e uma portuguesa. Do lado esquerdo a chinesa e do lado direito a portuguesa. O olhar silencioso e as expressões de D. Amélia e Joaninha – quase perdem o apetite. Excelente, revela dois nomes a fixar, um grande momento cinematográfico.

Por fim, veja-se como Gaia filma em poucos planos sofás, cristaleira, estante, mesa, açambarcando toda a sala da família Cunha. É de mestre. Falamos da cena em casa dos Cunhas.

A cidade dorme. Joaninha numa noite quente, abafada, húmida, noite de pesadelos e insónias, acorda e dirige-se até à sala de jantar para beber um copo de água. Na quietude na noite, olha para a estante e reflecte. Dá dois passos em frente e olha atentamente para os livros. Estende a mão e pega na “Clepsidra” de Camilo Pessanha. Abre ao acaso o livro – lê interiormente – “Quem poluíu, quem rasgou os meus lençóis de linho, onde esperei morrer…”. Um som ensurdecedor irrompe da rua. Um «gangue» perturba o silêncio, o sossego a paz, com berros, gritos e desordens várias. Joaninha estremece, deixa cair o livro e fica estupefacta. (Porquê ?)

Em todas, ou quase todas, as cenas deste filme, existe uma grande dose de nebulosidade de ideias, jogos de palavras que sugerem, não explicam. Ao espectador, sobretudo aos mais distraídos, desde já um conselho. Alerta máximo, abertura de espírito e sobretudo grande empreendedorismo mental.

“What´s Left”, não é de maneira nenhuma um filme de entretenimento de massas, com efeito psicológico aliviador ou desangustiante – não se esperam ver filas intermináveis na procura de um bilhete, ou a acotovelarem-se na busca de uma borla, nem tão pouco a entupirem a Net… É, antes de tudo, um filme de grande criatividade, um filme intimista, que terá certamente o seu grande percurso em festivais de cinema, cinematecas e plataformas de distribuição online. Apesar de a distribuição se resumir a um restrito “grupo de amigos”, não está em causa a qualidade intrínseca da obra.

Ficamos à espera, se entretanto alguém se lembrar, de uma retrospectiva integral, não só para redescobrir, mas também reavaliar a obra de J. Gaia.

Um filme com abundante matéria de análise, reflexão e porque não discussão – a Ver!!!


“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a Humanidade já estavam todas escritas. Só faltava uma coisa: salvar a Humanidade.”
José Almada Negreiros (1893/1970), artista pástico/escritor
11 Abr 2018

Rua Camilo Pessanha

[dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ublicado no artigo anterior a parte inicial do discurso do então Presidente do Senado, Dr. Luiz Gonzaga Nolasco da Silva, que com “breves e sentidas palavras” falava a 3 de Março de 1926 na secção do Leal Senado da Câmara de Macau. Nessa reunião camarária, propôs um voto de profundo pesar pelo passamento de Camilo Pessanha e dar o nome desse ilustre cidadão a uma rua. Em homenagem, “dando-se o caso de o ter conhecido e convivido com ele longos anos, primeiro como seu aluno e depois, colega durante o percurso deste como professor e advogado”. Discurso que aqui continuamos, após ter descrito a acção do advogado dos advogados, versa agora sobre as outras facetas do distinto poeta.

“Como juiz, foi Pessanha de uma austeridade e de uma probidade inconcussas. Lembro-me de que uma vez um nababo chinês tinha uma questão cível pendente da sentença de Pessanha: esse litigante foi visitá-lo algumas vezes, e da última, ao despedir-se, deixou-lhe um envelope sobre a mesa… Pessanha deu pela incorrecção do homem e, obrigando-o a recolher o vil metal, correu-o à bofetada até à porta da rua. Foi assim que Pessanha castigou aquela tentativa de corrupção. Era intransigente em pontos de honra profissional, mas temperava a sua austeridade de julgador com a bondade do seu coração. Todas as vezes que o seu dever lhe impunha uma condenação, procurava aplicar ao réu a menor pena que por lei, podia aplicar-se.

Na situação de juiz substituto em exercício, teve ensejo de revelar, por mais de uma vez, os seus eruditos conhecimentos.

Está ainda na memória dos seus colegas e da família judicial, uma extensa sentença por ele escrita num processo de crime por venda de menor, sustentando que, segundo a idiossincrasia chinesa, tal facto não era criminoso.

Outra vez em que manifestou a pujança do seu intelecto com uma retentiva nunca vista, foi no processo de extradição do mandarim Pui-Keng-Foc, em que esteve seguramente quinze dias a ouvir as declarações do extraditando e outros quinze ditando-as, sem se socorrer dum único apontamento escrito, e sem pôr um ‘digo’ ou fazer qualquer emenda. Quando terminou o seu ditado, com tanta clareza e fidelidade como elegância e vernaculidade, pediu ao intérprete que traduzisse uma a uma as palavras por ele ditadas, e o mandarim Pui, que era também um literato e um poeta, ao acabar de ouvir a tradução da última linha, pediu licença ao juiz, para o cumprimentar por aquele record de assimilação e de retentiva que o fez admirar das faculdades intelectuais do juiz português. E lá da sua prisão na Fortaleza do Monte, escreveu num leque uns versos que dedicou a Camilo Pessanha.

Acham-se dispersos nos arquivos dos tribunais de Macau e da Secretaria do Governo da Província, muitos trabalhos jurídicos de Camilo Pessanha, e é pena que não se faça deles uma edição in memoriam”.

 

De jornalista a coleccionador

 

“Pessanha foi também jornalista, e eu tive a honra de o ter tido por meu colaborador no jornal que fundei, intitulado O Macaense. Neste jornal publicou Pessanha a tradução em versos portugueses, de umas elegias chinesas, seguida de eruditas notas explicativas das passagens ou palavras mais interessantes, e por ventura menos compreensíveis da história e da literatura chinesa. Pena foi que tivesse ficado em meio, ou a menos de meio, aquela tradução, que Sua Excelência com tanto entusiasmo encetara, e que pensava remeter para Portugal para que Dona Ana de Castro Osório fizesse dela uma edição portuguesa. Porém, os bocados de ouro que ficaram arquivados em O Macaense servem para dar aos estudiosos uma ideia da erudição de Pessanha em assuntos da literatura chinesa – pois é bom que se saiba, e que fique escrito, que Pessanha, apesar de não ter tido um único exame de língua chinesa, estudara esta língua, e bem assim as fontes da sua literatura, que bem se podia considerar um bom sinólogo português.

Quantas vezes, em dias calmosos, em que a maior parte da população procura nas distracções fáceis e nas brisas das praias um alívio aos calores da época, quantas vezes, nesses dias, não vi eu Pessanha, com o mestre china ao lado, aprendendo os caracteres chineses e repetindo com o professor os tons e sons da língua sínica! E que Pessanha só se recreava com coisas de espírito, e a civilização chinesa era para ele uma fonte inexaurível de estudo e de recreação do espírito.

Pessanha foi, ainda, um coleccionador de coisas de arte chinesa, as suas salas eram uma exposição permanente de muitos objectos artísticos da China, e na aquisição deles, consumiu Pessanha, estou certo, a maior parte dos seus proventos da advocacia.

Várias vezes, fez Pessanha doação ao Governo Português, do que melhor tinha na sua colecção de arte chinesa, e até ultimamente, um mês antes de morrer, doou ao Estado mais objectos artísticos. Eu lembro-me muito bem de ter visto em Lisboa, no Museu das Janelas Verdes, várias pinturas chinesas, doadas por Camilo Pessanha ao Governo Português. Nestas sucessivas doações, manifestou Pessanha o seu patriotismo”.

 

Nome para uma Rua

 

“Enfim, a morte de Camilo Pessanha veio, como disse, abrir uma lacuna entre os advogados de Macau. O país inteiro o pranteará, porque perdeu um poeta, um jurisconsulto, um artista, e um patriota.

Proponho, pois, que, além do voto de sentimento na acta e da remessa de uma cópia deste parágrafo a seu filho, Sr. João Manuel de Almeida Pessanha, se dê o nome do grande cidadão a uma das vias públicas de Macau. Tenho dito”.

Após a sentida homenagem do Dr. Luiz Gonzaga Nolasco da Silva, seguiu-se o Vice-Presidente do Leal Senado que se associa “com a maior dor e comoção à proposta de sentimento pela morte da grande individualidade que, em vida, se chamou Camilo de Almeida Pessanha. Já Sua Excelência, o Presidente, no admirável discurso que acabou de pronunciar, pôs em relevo as altas e inconfundíveis qualidades morais e intelectuais que caracterizaram o divino autor da Clepsydra, poema que foi com certeza idealizado num daqueles momentos de êxtase em que o espírito de Pessanha se evolava às mais belas regiões do sonho, envolvido pelo fumo do veneno destilado das rubras papoilas. Só lhe resta, pois, prestar o culto da sua homenagem a quem foi alguém na vida terrena”.

Após o vereador Damião Rodrigues dar o apoio às propostas do Presidente do Senado, associam-se também os outros vereadores, como Jacques Gracias e Pedro Lobo, que reside nesta colónia há bem pouco tempo. Assim aprovada por unanimidade, nesse dia 3 de Março de 1926 assenta-se mudar o nome da Rua do Mastro para Rua Camilo Pessanha, o que deverá acontecer para breve.

Com a construção entre 1910 a 1915 do primeiro lanço da Avenida Almeida Ribeiro, do Largo do Senado ao Porto Interior, a Rua do Mastro ficara dividida e assim o seu nome na parte Norte passava a chamar-se Rua Camilo Pessanha, o que terá ocorrido a 8 de Março de 1926, segundo Beatriz Basto da Silva e do lado “da Rua da Felicidade mantém a designação do Mastro, reduzida a Travessa”.

9 Mar 2018

Os derradeiros momentos de Pessanha

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Macau os relógios eléctricos estão parados desde 27 de Fevereiro devido à necessidade de proceder à limpeza dos instrumentos, quando, às 8 horas da manhã de 1 de Março de 1926 o autor da Clepsidra, Dr. Camilo de Almeida Pessanha faleceu na sua casa situada no número 75 da Rua da Praia Grande.

A poucos metros de distância, nesse dia ia ser inaugurado o novo edifício do Banco Nacional Ultramarino, na Avenida Almeida Ribeiro, fazendo o edifício esquina com a Rua da Praia Grande.

Professor liceal, distinto advogado e admirável poeta, o Dr. Camilo de Almeida Pessanha residira em Macau durante aproximadamente 25 anos, tendo feito quatro viagens a Portugal, algumas por motivos de doença. Se o normal era em Macau se quedar entre oito a dez meses, já na penúltima, a temporada foi mais longa, acima dos cinco anos. Nascera em Coimbra a 7 de Setembro de 1867 e chegara a Macau na primeira vez em 10 de Abril de 1894, sendo a última a 21 de Maio de 1916, de onde não mais saiu.

Viera como professor de Filosofia para o Liceu que iria ser inaugurado e como bacharel, muitos outros cargos aqui desempenhou, como refere sintetizando-os Beatriz Basto da Silva: “Camilo Pessanha veio a ser Conservador da Comarca (posse a 23 de Junho de 1900), Juiz Substituto do Tribunal Judicial (1904), Conservador servindo de Juiz e Presidente do Tribunal do Comércio (1911), Conservador do Registo Predial (1913), 1.º Substituto do Juiz de Direito da Comarca (1919), Auditor do Tribunal Militar, Professor do 4.º Grupo, efectivo no Liceu Central, sendo ali nomeado com Manuel da Silva Mendes como Director de Classe (1919). Foi ainda Juiz do Tribunal Privativo dos Chinas, como substituto (1919); juntamente com Fernando de Lara Reis e por desistência de Humberto Severino de Avelar, foi eleito Vogal do Conselho Administrativo do Liceu Central e, em 1920, Director da área de Geografia no mesmo Liceu, para onde foi nomeado Reitor Interino em 1925. Foi substituto do Juiz de Direito da Comarca (1920).”

Nos últimos tempos de existência, Camilo Pessanha fora nomeado por despacho de 17 de Setembro de 1924 para exercer o cargo de Director das classes 3.ª, 6.ª e 7.ª (letras) do Liceu Central de Macau e como Reitor a 15 de Julho de 1925. No dia seguinte saiu a sua nomeação como director da quarta e sétima classes do Liceu para o próximo ano lectivo. Em 11 de Agosto de 1925 requereu como professor efectivo do quarto grupo do liceu que lhe fosse aumentado o vencimento de categoria por diuturnidade de serviço a contar de 16 de Julho de 1924, nos termos do disposto no artigo 217 do Regulamento da Instrução Secundária de 18 de Junho de 1921. Segundo Daniel Pires, a 4 de Setembro de 1925 Camilo Pessanha pede a exoneração do cargo de Reitor e a partir de 28 desse mês, está de licença por motivos de doença. A 10 de Fevereiro de 1926 solicitava como professor do 4.º grupo do Liceu Central uma licença de trinta dias, que ainda não tivera despacho quando faleceu.

Os últimos desejos

“Há longo tempo que a doença lhe vinha minando o corpo deixando-lhe, todavia, em plena vitalidade aquela sua prodigiosa inteligência que todos lhe reconheciam e que até aos seus últimos momentos de existência na vida o não abandonou. Espírito altamente filosófico e amplamente liberal, alma aberta a todas as dores e infortúnios, encarava a vida desprendidamente, sem os preconceitos vãos e mentirosos que por aí pululam a contaminar tudo e todos. Alma sempre propensa ao Bem, praticava-o sem ostentação, gozando o prazer da sua consciência satisfeita – e por isso lhe bastava – ao saber que a sua benéfica acção, singelamente praticada, ia concorrer para a debelação de uma angústia ou de um infortúnio”, como escreve o jornal O Combate a 4 de Março de 1926, que finaliza dizendo, “Advogado de rara envergadura, perdeu o foro um dos seus mais inteligentes ornamentos; professor distintíssimo, perderam os seus alunos um bom, devotado e carinhoso mestre; e maçon por convicção, sofreu a Maçonaria e os ideais de liberdade que defende, e sofremos todos nós, a perda de um dedicado irmão e fervoroso defensor dos humildes e desprotegidos”.

“Os últimos momentos passou-os falando do enterro. Não queria ser transportado no carro funerário de Macau: embirrava com essa carripana. Desejava ser conduzido num armão de artilharia e por soldados, o que dizia, talvez não fosse difícil de conseguir visto ter sido frequentemente auditor no Tribunal Militar de Macau. Pobre Camilo Pessanha, bem fácil foi dar satisfação ao seu desejo! E sobre dois pequenos armões, de peças japonesas, assim se efectuou a última jornada de um dos mais curiosos espíritos, de um dos maiores e mais preciosos poetas portugueses”, segundo refere A. de Albuquerque. Já João Gaspar Simões complementa, “Certo de que teria um enterro oficial, professor do liceu que fora e seu reitor, juiz de Direito, advogado no foro local, prestigioso sinólogo e habituado a assistir ao saimento pomposo das outras personalidades locais, quis precaver-se pelo menos contra um dos números obrigatórios do programa. Eis porque, depois de consignar no testamento que pretendia que o seu enterro fosse o menos dispendioso e aparatoso possível, exige que não seja acompanhado de música.

Porquê tal recomendação? Porque fazia parte de todos os funerais solenes de Macau a banda dos alunos do colégio católico da província. Ora o poeta, fina sensibilidade musical, preferia o silêncio ao fungagá dos metais soprados pelos meninos chinas. Obrigado a ouvir ainda, nessa pátria ideal onde o melhor enfim é não ouvir nem ver, os discursos oficiais, pelo menos não ouviu a desafinação agressiva da charanga implacável”.

O Padre António Maria de Morais Sarmento assistiu ao último sopro de vida de Camilo Pessanha, que antes de finar pronunciou calmamente “está tudo a acabar… tudo podridão… tudo matéria…”, e referiu mais tarde, “tê-lo encontrado num estado de espírito que jamais verificara em qualquer moribundo.”

23 Fev 2018

Três amigos, Camilo Pessanha, Padre Manuel Teixeira e Armando Martins Janeira

 Com Camilo Pessanha, em São Miguel de Seide

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m São Miguel de Seide,

rasgado pelo esplendor de um estranho ocaso,

falo de Camilo, o outro, o grande Pessanha,

“morto vivo” em Macau.

 

Lá longe, as paredes da casa humedecidas pelo tédio,

uma imensa “abulia, sem remédio”,

as mulheres chinesas, o desamor, o descarinho,

o ópio enegrecendo os dias, de mansinho.

 

Aqui, o cintilar das rimas, no triste entristecer,

lá fora, água cristalina nos lameiros,

a luz insinuando-se pelos meandros do entardecer,

o ondular da bruma nos outeiros.

Apetece ajoelhar, reverenciar o deus da poesia,

beber o sublime das palavras, do sentir,

em tempo de extremado sofrer, de melancolia,

os lábios numa prece. E depois partir.

 

 
Com Monsenhor Manuel Teixeira, em Freixo de Espada à Cinta

 

Sempre o conheci,

de batina e barbas brancas ondulando na brisa,

sobraçando livros e canhenhos,

a História de Macau, os missionários,

a gesta portuguesa pelo Extremo-Oriente,

tudo na confusão e poeira dos arquivos,

depois a baloiçar na ponta da sua pena.

Alegre e afável na companhia das gentes,

as senhoras bonitas para a fotografia,

com os amigos bebericando o “chá da Escócia”,

excelso whisky com uma pedra de gelo,

garantia certa, dizia, “para afastar o calor.”

Todos os dias, às sete da manhã,

missa na capela de Santa Rosa de Lima,

o padre falava com Deus,

levava chinas ao Céu.

Em Trás-os-Montes,

na sua Freixo de Espada à Cinta,

de onde saiu menino,

venho ao seu encontro,

na memória distante

do Portugal que lhe corria no sangue.

Por Macau, viu passar dezanove governadores,

quase oito décadas de vida

de mãos abertas para a cidadezinha

na foz do rio das Pérolas

que, para sua tristeza,

passou de portuguesa a chinesa.

Velho, aproximou-se de Deus

e foi, depois do regresso

à sua bravia terra transmontana,

que, serenamente, fechou os olhos e partiu.

Deixou escrito:

“O homem é pó. A fama é fumo e o fim é cinza.”

 

Com Armando Martins Janeiro, em Torre de Moncorvo

 

Armando, meu amigo,

nado e criado na singeleza assombrosa destas terras,

sob a silhueta azul do céu

e os verdes e castanhos esparramados pelos montes.

Criança ainda, no alpendre da casa da avó,

na aldeia de Felgueiras,

crescia o sonho de conquistares o mundo.

Quem diria, havia todo o Japão à tua espera,

séculos de história luso-nipónica,

Wenceslau, mais mil diplomacias,

e gueishas perfumadas levitando no requebro dos dias!

Chego a Torre de Moncorvo

com o sol poente descendo pela crista da montanha.

Entro na velha igreja onde foste baptizado,

a pedra carcomida pela erosão dos anos,

a voz silenciosa das colunas medievais,

um altar barroco, anjos e querubins,

a Senhora intercedendo por nós, diante de Deus.

Em mim, uma prece, o joelho

descendo para a laje fria do templo

e saio com o repicar dos sinos.

Sigo depois pela encosta da vila,

ao encontro do teu busto de bronze,

cinzelado tal e qual como te conheci,

o Armando, excelente cepa transmontana,

orgulhoso e humilde, inteligente e sagaz.

Uma saudação, um afago na luz ténue do teu rosto,

uma despedida e sigo viagem,

pelos últimos raios do entardecer,

entre montes dourados onde a noite nasce.

26 Jan 2018

Uma instrução positivista

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]eguimos pela carta do Senhor Z, publicada a 11 de Abril de 1894 no Echo Macaense, dia seguinte à chegada de Camilo Pessanha a Macau.

“Dirá V. Exa. que eu sou defensor do atraso da instrução; não sou, não Sr.; le monde marche e caminhemos com ele e como ele; mal vai a quem assim o não fizer. E este meu modo de pensar e obrar, não sei se é ajuizado; quer-me parecer até que o não é; mas tenho muita e muito boa companhia, e isso me consola do meu desatino e do desgosto que por vezes sinto em não ver melhor encaminhado em Macau o estudo da língua portuguesa, cujo conhecimento é, como acima disse, da mais absoluta necessidade para os seus filhos.

Esta necessidade, porém, embora seja de grande monta para nós, tem de se amoldar às circunstâncias que predominam em geral nesse ensino, e essas circunstâncias não podem ser senão as que se dão no reino; e se elas são ali desfavoráveis, o ensino em Macau tanto do português como do mais há-de ressentir-se disso fatalmente.

Que elas são desfavoráveis ao reino, sabe-o toda a gente; mas para melhor se ver isso, vou transcrever alguns trechos da obra O DOUTOR MINERVA crítica do ensino em Portugal, por Manuel Bento de Sousa, publicada no princípio deste ano [de 1894]. Diz o citado autor: “Entretanto, se por um lado é evidente que degeneramos, e por outro é uma verdade impressa nas consciências das sociedades civilizadas – o ser a instrução meio certo e bem formar homens para as dificuldades da vida – qual é a influência que nos abastarda, a nós que tanta instrução temos?

“Evidentemente também a resposta é esta: – é a mesma instrução, por ser falsa, fingida, desvirtuada, numa palavra, porque não presta. E, porque não presta, tudo vamos perdendo do que tínhamos, até a nossa bela língua, a qual, não falando já do português familiar (essa mesclada algaravia tão semelhante àquela gíria dos circos, em que o arlequim mete palavras de quantos países atravessou) vai notavelmente decaindo no que em público se diz e se escreve, como não pode deixar de ser, visto o modo porque a ensinam. [Lembre-se! Está a ler um texto do último decénio do século XIX.]

“Já de muitas escolas foi banida a gramática portuguesa para a substituírem umas coisas do Sr. Fulano ou do Sr. Cicrano, verdadeiras antigramáticas, amparadas por aprovações superiores e divulgadas por mestres, que, uns por necessidade e outros por timidez, as admitem nas suas lições.

“Bastará correr as primeiras páginas do que mais voga tem no centro do país para admirar com espanto que tão errada e confusamente se exponham matérias, que era fácil tornar mais claras e é difícil tornar tão obscuras, o que tem levado muita boa gente à convicção de que tal atrapalhação seja intencional num ensino que, como todos o sabem, se torna assim mais rendoso.

“Com tal ensino ninguém deve admirar-se de que a língua se corrompa, devemos todos esperar que dentro em pouco esteja reduzida ao que entre nós sempre se chamou – língua de preto.

“O que vai pela gramática vai por tudo o mais. O estudo do latim foi desviado da sua direcção, deixando de ser uma base para ser um acessório.

“No ensino antigo, logo que o estudante estava senhor da gramática portuguesa, passava para o latim e era conduzido de tal maneira, que ao terminar a sua latinidade achava-se, e sem dar por isso, sabendo bem o português, o português ao mesmo tempo singelo, puro e másculo, que o padre Malhão falou e António Rodrigues Sampaio escreveu, sem lhes ter feito falta nenhuma o não os terem maçado em pequenos com a ciência do português. Desta riqueza, pelo menos, ficava possuidor o estudante aplicado, acontecendo muitas vezes ficar senhor de mais outra, que era saber a fundo uma língua morta, que o habilitava a seguir os modelos de uma literatura, os quais, digam o que disserem, não são para desprezar-se, (…). Hoje o latim acabou por ser uma língua desnecessária, um preparatório de formalidade, com o duplo encargo de fazer gastar dinheiro aos pais e tempo aos filhos e a dupla vantagem de se não ficar sabendo nem o latim nem o português.”

Liberal Educação

“Com tal ensino e tais livros, com tal tolerância dos governos que à sua sombra se vão decretando programas, que chegam a perguntar aos alunos das escolas primárias pelos serviços literários de D. Diniz e D. Duarte, e a pedir indicações do atraso intelectual dos primeiros tempos da monarquia – e dos progressos da agricultura, letras e ciências no século XVIII; com planos tão acertadamente traçados e sua execução tão magistralmente desempenhada, qual deve ser o fruto certo para todos os que não tenham meios de por outras vias e pessoas adquirirem os conhecimentos, de que precisem?

“Se o estudante for acanhado de inteligência, e sujeito a perturbar-se por esse mesmo acanhamento, mais se escurecerá o seu espírito, ficará ignorante e incapaz de ganhar a vida, dando no futuro um vadio perigoso, se os braços paternais do Estado o não ampararem para fazer dele um empregado obtuso. Se for vivo e talentoso, tudo vencerá com esforços de memória, repetirá coisas que não entende, com a mesma proficiência com que repetiria as máximas de Confúcio em língua chinesa, sem lhe saber os significados, e, amestrado na cábula e outros meios de vencer exames sem conhecimentos sólidos, ficará com o saber bastante para ser pedante e a arte precisa para ser velhaco, vindo a dar no futuro um sustentáculo deste desgraçado país …> Assim se expressa o Sr. Manuel Bento de Souza.

“Aí tem V. Exa., Sr. Redactor, bem debuxado o quadro do ensino em geral, e do estudo de português e latim em especial, no reino, e sendo ali essas as circunstâncias do ensino, que admira que em Macau o estudo do português e outros não estejam mais desenvolvidos e não produzam melhores resultados? O que realmente admira é que não estejamos mais atrasados tanto no português, como nas outras matérias.

“Não tem, pois, V. Exa. razão na referência que fez ao pouco resultado do ensino de português em Macau, o qual necessariamente há-de ressentir-se da viciosa norma superior que lhe é apresentada como modelo e como guia.

“Em conclusão, Sr. Redactor, permita-me V. Exa. que eu lhe declare com a máxima franqueza que o fim desta correspondência é mostrar que o seu artigo editorial, louvável no seu intuito, primoroso na sua forma, e sensato nos seus princípios gerais, peca todavia pela ingenuidade e pela inconveniência (para a vida positiva da época, já se sabe,) do seu alvitre para desenvolver a cultura da língua portuguesa, e pela inexactidão e uma tal ou qual injustiça na indicação da causa por que não é profícua em resultados práticos o estudo de português em Macau, que, sendo filha de Portugal, tem de lhe seguir os passos e há-de reflectir o seu modo de viver, seja ele qual for. É lei da natureza e da sociedade, a que não há fugir, por mais relutância que se sinta: ou bem que somos ou bem que não somos.

“Agradecendo a V. Exa. a publicação destas linhas, me confesso obrigado.

De V. Exa. etc., Z”.

26 Jan 2018

A clepsidra existencial não é vista de fora nem de dentro

[dropcap style≠’circle’]”T[/dropcap]odo o meu ser suspenso, Não sinto já, não penso, Pairo na luz, suspenso… Que delícia sem fim!” … Ó Morte, vem depressa, Acorda, vem depressa, Acode-me depressa, Vem-me enxugar o suor, Que o estertor começa.”

Camilo Pessanha

Um relógio de água ou clepsidra (grego κλεψύδρα de κλέπτειν kleptein, ‘to steal’; ὕδωρ hydor, ‘water’) é qualquer relógio em que o tempo é medido pelo fluxo regulado de líquido que entra para (tipo de entrada) ou de líquido que sai de (tipo de saída) um recipiente em que a quantidade é medida.

Este relógio é diferente dos modernos analógicos ou dos contemporâneos digitais. Estes objectos cronométricos são orientados pela abstracção do tempo apontado no momento agora que é indicado pelo ponteiro. Do ponto de vista da percepção humana podemos ir aos décimos de segundo, eventualmente aos centésimos de segundo, mas tempos mais rápidos e curtos a passar não são tidos pela percepção humana. De qualquer forma o ponteiro aponta para um momento no tempo agora mesmo, ensanduichado entre o momento há pouco que já passou e o momento daqui a nada que ainda não chegou. Isto é, o momento agora apontado é um istmo entre dois tempos que não são na realidade. Não são ainda e não são já, porque há pouco já passou e não existe em lado nenhum no mundo e daqui a nada não existe ainda.

A clepsidra é uma metáfora viva do tempo que é vivido do futuro para o presente e do presente para o passado, sob base interpretativa do tempo que escoa. Ou seja, o momento agora da clepsidra é um momento no esvaziamento no escoamento do fluxo da água no recipiente que é substituída gota a gota, até esgotar completamente, por água. Se o relógio diz que horas são agora, mesmo para avaliar o tempo que falta para A, B ou C, se há ou não há tempo, quanto tempo temos, a clepsidra vê cada agora numa qualidade de duração que tem os olhos postos na sequência da passagem irreversível da água que é a passagem irreversível do tempo, sem repetição, nem ultrapassagem. Quer dizer, o que está a ser medido é uma duração qualitativa da vigia de noite do quartel, da sessão no tribunal, do tempo que é em função do tempo que há e que inexoravelmente há-de deixar de ser. Ou seja, o tempo clepsídrico é o tempo que há partida é vista em antecipação projectada e previsivelmente como tempo que há de ter acabado. O momento agora é o integrado no derradeiro momento quando tiver acabado toda a unidade temporal de duração bem como no primeiro momento, que é primeiro relativamente a um segundo, terceiro, quarto e último momentos pensados todos eles em contagem decrescente.

Nós todos desde sempre, em todas as gerações de gerações de humanos, passadas, presentes, futuras estamos no recipiente complexo com a água fluída a afluir continuamente para continuamente escoar até esgotar-se completamente o tempo dado para a vida total de que todos os humanos são portadores e para a vida individual de cada um. A proto estrutura do tempo mergulha-nos na água que continuamente está a ser roubada, a esgotar-se, de uma forma maciça, sem percepção desse facto irreversível, o mais das vezes.

A clepsidra é um nomen agentis, isto é, só quem tem uma compreensão intrínseca do tempo, tempo que não é nenhum objecto, nem exterior nem interior, nem dentro nem fora, mas a própria forma da vida pode tornar a clepsidra analógica da vida na sua totalidade como tempo cronologicamente finito, desde sempre a acabar, desde o primeiro de todos os instantes. A medição do tempo e não as horas é o que é tido em vista pela clepsidra com conteúdo real e físico, a água que se escoa, o ar que entra, em função de unidades de sentido temporais: a madrugada que irrompe, a manhã que passa, a tarde que vem, o crepúsculo que cai, agora no Verão e depois no inverno, no princípio da vida, na infância, juventude, quando era tempo, no ocaso da vida, tudo numa universal e cósmica clepsidra que também ela própria está no interior de outras clepsidras que contem as de menor capacidade e são contidas nas que têm maior capacidade e todas elas dentro da mega clepsidra do tempo que passa e não regressa nunca mais.

A clepsidra existencial não é vista de fora nem de dentro.

26 Jan 2018

Mostra de Xu Bing até 4 de Março para o fazer

“A Linguagem e a Arte de Xu Bing” é a exposição da vida do mestre chinês da gravura, caligrafia e instalação. A mostra estará patente no Museu de Arte de Macau até ao dia 4 de Março e oferece ao público uma visão sobre os trinta anos de um dos artistas chineses mais influentes da actualidade

[dropcap style≠‘circle’]X[/dropcap]u Bing é um artista singular que, além do fascínio pela linguagem e a caligrafia chinesa, gosta de incorporar o mundo na sua criação e colocar em confronto a arte contemporânea e a criação com raízes mais clássicas. Na sequência dos protestos da Praça de Tiananmen de 1989, o artista aproveitou uma bicicleta espalmada pela passagem de um tanque e incorporou-a numa mostra que deu pelo nome de “Background Story”. Outro dos “itens coleccionados”, como lhe chama, foi pó resultante da queda das Torres Gémeas depois do ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001.
Aliás, a instalação em que Xu Bing utilizou a bicicleta espalmada foi interpretada como uma crítica ao Governo de Pequim, o que originou um crescendo de pressão sobre o artista que o levaria a fugir do país, e a exilar-se nos Estados Unidos, em 1990.
No fundo, as criações do chinês não fogem a temas fracturantes, ao longo de uma carreira de 30 anos onde a hibridização e a multiplicidade são aspectos chaves da criação artística.
A exposição “A Linguagem e a Arte de Xu Bing” reúne o melhor da obra do artista. O público que se deslocar ao Museu de Artes de Macau terá uma visão do processo criativo do chinês, as experiências e esboços da sua produção que demonstram o seu raciocínio e lógica.
Uma das obras em destaque, e que foi comissionada pelo museu, é a “Viola Chinesa”, um trabalho no qual o artista recorre ao tema “Caligrafia das Palavras Quadradas” para transcrever um excerto de um poema de Camilo de Pessanha como o mesmo nome.

Pintar a língua

A exposição reúne ainda esboços, notas e trabalhos de menor escala, onde se incluem “Livro do Céu”, “Um Estudo de Caso sobre Transferência” , “Caligrafia de Palavras Quadradas”, “Livro da Terra”, “Escrita de Paisagem” , “‘Projecto da Floresta’ – Série da Floresta IV”, “Rolo de Paisagens do Jardim da Semente de Mostarda” e “O Carácter dos Caracteres”.
O mestre da gravura, caligrafia e instalação é professor associado da prestigiada universidade norte-americana Cornell University e foi vice-presidente da Academia Central de Belas Artes da China.
Assim que começou a sua carreira, Xu Bing deixou bem evidente o fascínio pelos caracteres chineses, sobretudo do ponto de vista da reflexão entre forma e significado. Essa tensão está no cerne dos seus trabalhos, principalmente na maneira como o artista apreende os objectos do quotidiano, o que origina debates constantes que extravasam a apreciação artística e entram em discussões sobre a civilização contemporânea.
Com mais de 30 anos de carreira, Xu Bing é um artista cuja criação se mantém fresca e actual.
A exposição estará patente até 4 de Março. Quem se deslocar ao Museu de Arte de Macau aos sábados, domingos e feriados tem visitas guiadas das 15h às 16h no segundo piso do museu.

23 Jan 2018

Ensino da Língua Portuguesa em Macau

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amilo Pessanha chega a Macau a 10 de Abril de 1894 e, no dia seguinte, o Echo Macaense traz um artigo com o título O Estudo da Língua Nacional, que refere:

“O ALVITRE que apresentamos para tornar obrigatório, ou ao menos facultativo, nos três primeiros anos dos cursos do liceu, o estudo de latim simultaneamente com as outras duas disciplinas consignadas no mapa da distribuição das disciplinas ora em vigor para os liceus em geral, tem despertado a atenção pública sobre o assunto, e mereceu da parte do nosso amigo Z o bem elaborado artigo que abaixo se lê.

“O nosso amigo manifesta a sua descrença sobre a probabilidade de ser adoptado esse alvitre, embora reconheça a sua utilidade porque, como ele bem o diz, nos tempos que correm dá-se mais importância às aparências do que à realidade e o que querem são os diplomas legais dos exames e não os conhecimentos sólidos da verdadeira ciência.

“Se é verdade que existe essa tendência nociva, cumpre-nos o dever de reagirmos contra ela, para não irmos de mal a pior.

“Para os alunos do futuro liceu de Macau, os documentos de exames serão quase inúteis, se não forem acompanhados de uma instrução sólida e real.

“Para os que quiserem seguir os cursos superiores no reino, não poderá haver maior calamidade do que irem daqui mal preparados na instrução secundária, pois ficarão desapontados e muito prejudicados no seu futuro, porque, ou não poderão prosseguir nos seus estudos superiores, ou terão de estudar de novo a instrução secundária. Para os que quiserem seguir a carreira do comércio nestas paragens, ainda serão mais inúteis esses diplomas legais de exames, porque no decurso da sua vida ninguém perguntará por eles, e só terá valor o que eles na realidade souberem.

“É por isso que nos parece necessário adoptar medidas que obriguem os alunos do liceu a estudarem a valer, e virem a saber bem as disciplinas que cursarem.

“Em primeiro lugar é preciso que eles saibam bem o português; portanto se, para o desenvolvimento deste estudo, se tornar preciso que eles estudem o latim, não deve haver dúvida alguma em lhes impor a obrigação de estudarem mais esta disciplina, o que, como já temos demonstrado anteriormente, se pode fazer sem se afastar da legalidade. No mais, parece não haver discrepância entre o nosso alvitre e as considerações muito sensatas do nosso amigo Z.”

Instrução pública em Portugal

O programa de estudos a ser seguido em todos os liceus de Portugal traz o problema de não dar horas suficientes à língua portuguesa para os alunos do liceu de Macau, na sua maioria deficitários pois em casa não têm o costume de a falar.

Continuamos pela carta do amigo Z publicada no Echo Macaense de 11 de Abril de 1894.

“Sr. Redactor, seu artigo prendeu-me a atenção pela importância da matéria e também pela sensatez do alvitre que apresenta para remediar o mal de que V. Exa. se queixa, e que muito receia se agrave com a criação do liceu. A importância da cultura da língua nacional é uma coisa incontroversa, já pela sua extraordinária influência no desenvolvimento intelectual, já por ser um dos principais característicos de qualquer nacionalidade, chegando muitas vezes a ser, por assim dizer, a única força de coesão dos diversos elementos étnicos que entram por vezes na formação duma nação. Ninguém, pois, duvida da importância do estudo da língua nacional, que deve sobrelevar ao de qualquer outra disciplina. (…) Sendo assim, é realmente para causar a todos sérias apreensões o receio que V. Exa. manifesta de que, com a organização do liceu, este estudo se torne ainda mais deficiente de que o é já, apesar dos esforços da Escola Central e do Seminário, pela redução que se terá de fazer no tempo e por conseguinte na matéria do ensino. Para este mal, propõe V. Exa. como remédio o estudo simultâneo, por três anos, do latim com as outras disciplinas que constituem o curso de liceu, pensando, e bem, que por essa forma se iria inculcando insensivelmente e solidamente o conhecimento da língua portuguesa, que, como todos sabem, é derivada da latina, afora outras vantagens intelectuais que o estudo desta língua inquestionavelmente proporciona.

“Se admiro por um lado o interesse que V. Exa. toma pelo progresso intelectual, legítimo e sólido dos filhos desta terra, por outro lado admiro a ingenuidade, desculpe-me a franqueza, com que V. Exa. lança em circulação uma lembrança, sensata é verdade, mas que vai de encontro às tendências desta nossa sociedade fin de siècle, em que só se pensa nas aparências, que valem tudo, seja qual for a realidade, que é coisa de que ninguém se importa. Isso é assim em tudo, e a essa influência não escapa a instrução pública.

“É conhecido, confessado, reprovado, e quem sabe se amaldiçoado, por todos, publica e particularmente, o estado mesquinho e caótico da instrução pública em Portugal, pela sua organização, pelo seu método, pelos seus compêndios, pelos seus programas, contra os quais bramam todos, na imprensa, em obras especiais, em conferências públicas, e até no parlamente; e, contudo, todos dão aos seus filhos essa mesma instrução condenada pela voz pública.

“E porquê? Porque é que não procuram desviar-se desse rumo que conhecem como errado e que um importante jornal de Lisboa chegou a chamar o caminho da idiotice?

“A razão é muito simples: é porque é da época o não se importar com a realidade e a bondade das coisas, e apreciar só a aparência e a conveniência: fiz exame disto, tenho curso daquilo, possuo habilitações legais, e por isso estou no caso de ocupar tal lugar, e… acabou-se! Quanto a saber, pensar-se-á nisso, quando houver vagar e ocasião. Contentamo-nos todos com isto, e como isto basta, é de razão que nos contentemos. É o positivismo, e o positivismo é hoje a lei da vida. Nestas circunstâncias, não parece a V. Exa. que tenho razão em achar adorável a ingenuidade da sua lembrança em querer maçar os estudantes de Macau com um estudo mais sólido do português por meio do latim, quando o programa não exige isso e no próprio Portugal o estudo tanto de português como de latim está em maré baixa?

“O curso de português é só dum ano, e eu não quero crer que haja em toda a extensão da monarquia portuguesa um homem tão obtuso, que acredite que, em tão pouco tempo, com um programa tão acanhado, e com livros tão mal engendrados, se possa saber razoavelmente a nossa língua, tão bela, mas tão difícil, quando em França e Inglaterra o estudo da língua nacional leva anos consecutivos no curso secundário com livros preparados na máxima perfeição. Ninguém acredita em tal; mas… a lei diz que isso basta, e basta; e se basta para lá, deixe, Sr. redactor, que baste também para cá.”

Estamos em 1894, ainda antes do início do primeiro ano electivo do Liceu. Assunto cuja problemática se arrasta desde meados do século XVIII, quando o primeiro professor régio, José dos Santos Baptista e Lima para ensinar a língua portuguesa muitas vezes necessitava de intérprete para perceber o que diziam os seus alunos.

19 Jan 2018

Camilo Pessanha | IPM com colóquio acerca do poeta

Um encontro que junta académicos para tratar Pessanha e a sua obra é a proposta do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa. Nas comemorações do quinto aniversário do centro, Carlos André aproveita para relembrar, de um ponto de vista científico os 150 anos do poeta

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] próxima semana tem o início marcado com a realização de um colóquio académico acerca da obra do poeta Camilo Pessanha. A iniciativa é do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa (CPCLP) do Instituto Politécnico de Macau (IPM) e assinala dois aniversários: os 150 anos do nascimento do poeta e o quinto aniversário do CPCLP. “Todos os anos, temos o hábito de assinalar o aniversário do centro com uma iniciativa e este ano decidi que seria um colóquio acerca do poeta Camilo Pessanha”, referiu o director do centro, Carlos André, ao HM. 

Não é o primeiro conjunto de actividades dedicado ao trabalho do poeta, mas este, que tem lugar a 13 e 14 deste mês no IPM, é uma visão científica da obra que deixou. “Um poeta também tem de ser olhado cientificamente” começa por dizer Carlos André.

O resultado são dois dias que reúnem dez oradores. “É um colóquio que congrega pessoas, não apenas do IPM. Tivemos uma resposta muito positiva de uma professora da Universidade de São José, Vera Borges, e outra da professora da Universidade de Macau, Dora Nunes Gago.

Saber de fora

De Portugal vêm convidados oriundos de diferentes áreas.  “Há um professor de literatura, o Seabra Pereira que é, talvez, o que melhor conhecedor das obras dos autores relacionados com o simbolismo”, diz o director do centro. Cabe a Seabra Pereira o encerramento do evento com uma palestra  “Estética da sugestão e da tradição chinesa em Pessanha – um potencial esotérico”. Mas Carlos André não se ficou por aqui e avançou com o desafio a uma linguísta. Isabel Duarte vem da Universidade do Porto, para falar do papel da língua na obra de Camilo. “Nunca ninguém falou do Camilo Pessanha e do seu contributo para a língua e a sua linguagem é muito especial”, aponta Carlos André.

Celina Veiga de Oliveira é a académica convidada para a reflexão acerca da presença de Camilo Pessanha no território e Sara Augusto vai trazer uma apresentação “Espelho inútil: A missão impossível de Clepsidra”.

“Finalmente, vamos ainda contar com a participação de alguém que fez uma tese acerca do Camilo Pessanha”, diz o director do CPCL. Trata-se de Maria Antónia Jardim, que “numa perspectiva diferente” vai trazer “Camilo Pessanha: um educador épico-ético”.

Carlos André vai abrir o colóquio com uma apresentação que explora o sentimento de ausência na obra do Pessanha. Para o académico este é a primeira incursão na pesquisa de Camilo, sendo que ressalta o tema lhe é muito “caro”.

10 Nov 2017

Colóquio | IPM vai discutir Camilo Pessanha

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Instituto Politécnico de Macau (IPM) vai organizar um colóquio sobre o poeta Camilo Pessanha nos dias 13 e 14 de Novembro, disse à Lusa fonte da organização. A conferência, a propósito dos 150 anos do nascimento de Pessanha, vai contar com 12 oradores: quatro de Portugal e oito de Macau. Um deles será José Carlos Seabra Pereira, especialista em simbolismo, corrente literária a que pertence o poeta. Segundo a mesma fonte, com excepção de Seabra Pereira, o colóquio contará com intervenções de “pessoas que não têm o hábito de se dedicar a Camilo Pessanha”, como será o caso do Carlos André, director do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do IPM.

Nam Van | Energia para animar o lago

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s obras no sistema de energia eléctrica arrancam no fim deste mês no Anim’Arte NAM VAN. A intervenção abrange a escavação de valas para instalação de cabos e tubos, a substituição das tampas dos cabos eléctricos e a repavimentação de passeios. Durante o período da execução das obras, a “Feira de Artesanato do Lago Nam Van aos Fins-de-Semana” e os workshops programados são realizados conforme previsto. Os espaços expositivos da Galeria Junto ao Lago, a Loja Temática do “Mapa Cultural e Criativo de Macau” e o Smiling Workshop continuam a funcionar como habitualmente. Por sua vez, o IFT Café encerrará de 6 a 11 de Novembro.

 

26 Out 2017

Sílvia Gonçalves vence Prémio de Jornalismo da Lusofonia

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] reportagem “Floriram por Pessanha as rosas bravas”, da jornalista Sílvia Gonçalves, venceu o Prémio de Jornalismo da Lusofonia, criado pelo Clube Português de Imprensa e pelo Jornal Tribuna de Macau, foi ontem anunciado.

Reunido em Lisboa, o júri atribuiu o prémio por unanimidade ao trabalho de Sílvia Gonçalves, realçando a “originalidade da abordagem e a forma como foi construída a narrativa”, indicou o júri, em comunicado.

“Trata-se de um texto que não se limitou a ser evocativo dos 150 anos de Camilo Pessanha, contribuindo para o conhecimento do poeta e da sua relação estreita com a lusofonia”, sublinhou o júri sobre o trabalho agora distinguido e publicado no Ponto Final, jornal de língua portuguesa de Macau, a 8 de Setembro passado.

O júri foi presidido por Dinis de Abreu, em representação do Clube Português de Imprensa (CPI), José Rocha Diniz, ex-director e administrador do Jornal Tribuna de Macau (JTM), José Carlos de Vasconcelos, director do Jornal de Letras, Carlos Magno, em representação da Fundação Jorge Álvares, e Silva Pires, do CPI.

O concurso recebeu mais de duas dezenas de trabalhos.

O prémio, de dez mil euros, vai ser entregue a 1 de Novembro, em Macau, por ocasião do 35.º aniversário do JTM, que se realiza no Clube Militar.

O Prémio de Jornalismo da Lusofonia destina-se a jornalistas e à imprensa de língua portuguesa de todo o mundo, “em suporte papel ou digital”, de acordo com o regulamento.

Este prémio anual “surge no quadro do desejado aprofundamento de todos os aspectos ligados à Língua Portuguesa, com relevo para a singularidade do posicionamento de Macau no seu papel de Plataforma de ligação entre países de Língua Oficial Portuguesa”, de acordo com a organização.

O CPI e o JT contam com o patrocínio da Fundação Jorge Álvares, que promove a continuidade do diálogo intercultural entre Portugal e Macau.

20 Out 2017

Deste interior não sai ninguém

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap], no entanto, entra-se. Pode-se entrar por ele adentro como de uma realidade que, podendo ser ilusória, nunca se perde de o ser. E cair. Por essa realidade abaixo. Por ela fora, por aí. Mesmo se inexistente. Mesmo se previamente inexistente senão em possibilidade, e mesmo se antecipadamente pressentida em toda a sua intangibilidade, para além de uma sombra um reflexo ou a pura invenção de uma camada do que não é, não foi, mas se presta a uma forma possível. De ser. De iludir.

Ali me sento todos os dias na sua frente. Não talvez já a tentar entendê-lo, mas que se me revele ele lentamente no seu silêncio. Encontrar-lhe o olhar. A cor. Pinceladas que erram ou não.

Pintar. Às vezes, como partir para um “blind date”. Sentar-me à mesa com o desconhecido. Uma coisa mútua, em que cada um tenta explicar-se ao outro.

E ficava. Quieta nas horas, em frente a ele quando veio sentar-se. Central e necessário. E eu em busca de lhe entender o olhar. Como uma linha da vida, da mão, da página, do coração, em que, como numa única e ínfima célula, se encerrasse como num cofre, todo o código genético de um pensamento, de um sentir e de um viver. Numa única célula. De um corpo. De uma frase. De um olhar. Esse seu olhar divergente, como uma curiosa antecipação genética ao que teria que ser. E a ver a chegada de cada linha, numa arquitectura de interrogações. A mim, a ele, a esse interior de que não se sai.

E antes ainda, à procura de um local mítico de encontro improvável, possível, na imensa maleabilidade do tempo que tudo admite à ilusão, à fantasia ou à memória, encontrei-me como se com esse meu mais que ilustre, distinto e invulgar colega do Liceu de Macau. O ponto etéreo de cruzamento de uma memória com uma fantasia. E eu ali, como sempre, pequena e timidamente o olho em tentativa de entender. Sabendo, sem redenção, que não se sabe o desconhecido. Sabe-se o desconhecimento.

Baixo. Surgiu baixo e fui ver. Na verdade, então, não era uma figura imponente. No corpo. Não no corpo. E ficou ali, e um dia, depois, voltou e enrodilhou-se sobre si. A olhar de dentro, soturno e calado como o outro. E quando voltou, vindo de um real para além da dor, cambaleou a ansiar o conforto de não pesar ao corpo, nem a vida, nem o pesar a consumi-lo. E os monstros. Fugido de monstros e memórias, ou talvez a mesma coisa tudo. Cambaleou para o interior vindo da dissolução progressiva e futura. Reuniram-se na curvatura de uma parábola muda de cegos – pensei: como a outra, de Brueghel – e assim também aqui esse desígnio os fez cair. Ancorados no cego da frente, o primeiro a ouvir brisas ténues da poética realidade enfeitiçada de símbolos, que tudo modelou do início para o fim. Dali, da frente, para trás, o início de tudo. Aqui, ou ali. Como se no tempo da narrativa, no tempo de se deixar varrer de olhos em muda interrogação, se pudesse distinguir duas opostas leituras vectoriais. Dois sentidos de leitura, entre o oriente e o ocidente do oriente também do quadro. Numa curiosa imagem, do fio cronológico das coisas que se sucedem. Antecedem?

Mas há uma face a que nunca terei e se tem acesso. Não vou dizer o que, assim, não é nomeável. Tacteável. Que de dentro espreitaria sempre sem se deixar ver por detrás de reflexos cristalinos de um olhar cuja cor não ficou registada. E dele sempre seria evidente, mais o reflexo do que o interior. E é um jogo imparável, este, do desconhecimento. E assim se anda sempre á procura de um entendimento do outro, confundindo-o em muito com o que reflecte de quem o olha. De um além fechado sobre a impossibilidade de saber mais. Mais para além do muito que floresce em palavras e pequenas e múltiplas peças de um puzzle labiríntico, em que se o tenta edificar. A pessoa que já não está. Por detrás das palavras e dos gestos que elaborou. E que noutro tempo, sabe-se lá onde estaria para além ou para aquém delas e desses.

Observei até quebrar a estranheza, os olhos e como quando os olhos teimam em ser baixos se lhe eleva o queixo. Em desafio. Todos os dias de riquexó e cão para o liceu. Onde fomos colegas. Que importa se num tempo que não cruzou ali caminho nem pena nem espada. Honra-me assim pensar o tempo sem direcções preferenciais, sem disjunções estanques, e porque às vezes não as tem mesmo e de todo. O tempo da memória faz-se talvez de matérias como o da imaginação e da ilusão. Sim. Ia de riquexó e de cão para lá. O homem que deu este nome a um cão. Arminho. Como as etéreas rendas de que cobria a madrugada dos poemas. Cortinas e esfumados lirismos como das gaivotas exaustas e sem ânimo. Nunca mortas, afinal. Sentava-se mais tarde quieto na camisa- de- forças do seu duplo e pensava na gaivota por morrer. Arminho. Sabe-se lá porquê. O arminho que é coisa leve e de fru-fru de festas. O arminho que é coisa inquieta a um simples suspiro, leve como leves os tules das cortinas simbólicas de que reveste os seus monstros. Dantes, Nilo ou Tejo eram nomes de cão e o do seu, leve e esvoaçante. Talvez a paixão pela música das palavras não deixasse chamar-lhe das pérolas. Deste rio. E, no entanto, pérolas são os pontos de dor da ostra. Tornados luz.

Mas o que de um poeta diz, a vida de um poeta, e o que diz um poeta no que diz, o que diz no que não diz, talvez. O que se esconde no que esconde e naquele que o procura, a ele ou esconder.

De que véus e velaturas se recobre o que se esconde, como de desvendável existência, é pergunta que me fugiu desamparada para o longínquo horizonte da resignação. Como se sólida matéria a intuir por detrás. Mas o escondido é nebulosa não matéria. Invenção de que pergunta, sem saber mais do que adivinhar o muito que preenche o território de que se revelam as sombras projectadas do poeta. As brumas amigas. As camadas de encobrimento. Aguadas como poalha em dias de chuva. Coloquei-as para não ter a pretensão de as retirar. Janelas sobre o espaço. Entreabertas e obstruídas levemente de leves cortinas. Portas que não levam ao conhecido. Cuidadosas a mais por detrás de biombos. Como filtros. Como roupas entre o corpo e a casa. Pessanha, o quadro sobre um tempo invisível que não atinjo mas tapo. Os quadros vivos atrás do quadro.

E indecisa digo também o contrário, como da vida me chegam sempre ecos. Porque há de a vida abalroar-me sempre nesta estranha convivência de contrários. Recomeçando. Como distinguir-lhe um silêncio de secreta abertura, de um silêncio de discreto encerramento. E depois, trocar os adjectivos. Porque me fugiu sempre a invejável harmonia das certezas, para este olhar polifónico que me traz num carrocel. Mas ele ali, parado, que pensaria?

Quando naqueles dias de alma difusa e sem ideias que transpareçam por detrás desta cortina, deixo que sejam os pequenos bichos devoradores a agitar-se na folha. Cada um na certeza de existir e produzir sombra. Sem cardume possível se bem que partilhando águas. Sigo-lhe as sombras. Os objectos a representar a vida e a cobrir esta de obstáculos ao vazio. Intrigante colecionismo, o de objectos inúteis e crivados de imagens. Duas camadas de máscaras sobre o interior. De um pote, um vaso, um jarrão sem flores. Vivas. Vazio. Como na poesia, que dele revela uma leve e musical arquitectura da dor. De que parte, que recobre, e onde regressa como ao grito necessário. Medido e emendado. No entanto. E recoberto de símbolos ou diluído neles. O grito da dor. Da que é início e decidida sentido e fim.

Sento-me na sua frente todos os dias. Desmultiplicou-se em tempos, fragmentou-se, diluiu-se no fundo, como era para ser. Denso de cor e etéreo de transparência. Sento-me ali a olhar como, por um túnel paradoxal de linguagem a tentar igualar a vida, se juntam e justapõem os tempos, os lugares e as fases de ser, entre uma poética guiando a vida e, em sentido contrário, o recuo a uma retaguarda que foi teoria e definiu. E não salvou.

Restos. Como células que descartamos todos os dias. Invisivelmente. Em cada passo, em cada gesto. Impressas do código genético. E partículas de água que se evolam e nos abandonam a uma secura de plantas. A ir. Naquele fio do tempo. Ou da navalha. Como restos são os mortais. Ou os restos imortais espalhados por uma eternidade de memória, nos quais, como um convite desfiado em cordas, se tenta ascender. Adivinhar caminho. Ou tão simplesmente, na música do poeta. Sem mais do que ouvir. E queria o olhar inquieto a viajar, de leste a oeste do quadro. De oriente a ocidente. Repletos de origem, confusos de final.

Tantos dias e tão poucos ali me sentei na sua frente. Ele calado e eu. A tentar adivinhar a arquitectura daquele interior. Daquele exterior invasivo. A tentar não o expor nem o fechar. Com a emoção de um encontro. E um dia, encerro a última aresta daquele interior cruzado de monstros e enigmas que ficam. Deixo uma portada entreaberta e vou. Mas olho para trás todas as vezes que posso enquanto o meu olhar alcançar o quadro. O poeta. Despeço-me com saudade. Do encontro plano com a terceira dimensão escondida e escura atrás do quadro. Está frio. O tempo congelou. O homem morreu. A poesia não.

8 Set 2017

Efeméride | Correios lançam colecção de selos sobre Pessanha

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s Correios de Macau emitiram ontem uma colecção especial de selos sobre o poeta português, cujo aniversário se celebrou esta semana

Os 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha foram ontem assinalados em Macau com uma emissão filatélica dedicada ao poeta que viveu e morreu no antigo enclave português, onde a efeméride tem dado o mote para várias actividades.
O lançamento feito pelos Correios de Macau inclui dois selos e um bloco filatélico desenhados pelo arquitecto Carlos Marreiros, um “estudioso do poeta” que conheceu nos tempos de liceu através da revista Selecta Literária.
Desde os anos de 1970, Marreiros já assinou mais de mil trabalhos, entre desenhos, pinturas e ilustrações, sobre o autor considerado o expoente máximo do simbolismo português.
Camilo Pessanha nasceu em Coimbra. Depois de se ter formado em Direito, foi viver para Macau, em 1894, para exercer funções de professor no Liceu de Macau.
O autor de “Clepsydra” viveu durante 32 anos em Macau até à sua morte, em 1926, mantendo-se os seus restos mortais sepultados no cemitério de São Miguel Arcanjo.
“Dei ênfase a esta relação do poeta com a cidade. Ele realmente é coimbrão, é considerado o maior poeta simbolista português, mas é um poeta de Macau, porque toda a poesia dele está imbuída de sons, de cenários e emoções, paixões da longínqua China e precisamente de Macau e da zona da [cidade chinesa de] Cantão”, disse Carlos Marreiros à agência Lusa.
No bloco filatélico, o arquitecto desenhou Camilo Pessanha a “flutuar” com a “mulher da vida dele”, cujo nome chinês traduzido para português “significa literalmente Águia de Prata”.
“O bloco mostra-o a esvoaçar com a Águia de Prata: ele vestido de mandarim e a Águia de Prata uma senhora delicada, flutuante, doce, mas que tem garras de águia, ao invés de ter pezinhos, mas de forma romântica, sobre o Porto Interior, portanto, a ligação da paixão dele e o Porto Interior [na península de Macau]”, explicou.
Num dos selos, o poeta português aparece com a “Águia de Prata a namoriscar, a poetar, a filosofar – cada um entenda como quiser – numa mesa, a beber qualquer coisa”.
No outro, Pessanha surge sozinho, “sentado, com asas de anjo e pés [transformados] em garras de águia”, em mais uma referência à mulher. Mas neste selo, mais do que a vida íntima de Pessanha, Marreiros quis destacar a ligação do escritor à Maçonaria em Macau.
“Aqui faço uma referência, ele está de branco, mas as asas não são de águia, mas de um anjo. É a ligação, segundo a história, que ele tinha com a Maçonaria em Macau, porque o nome simbólico dele era Angélico”, justificou, acrescentando que “Camilo Pessanha aparece de certa forma angélico neste segundo selo”.
A pedido do artista, os selos são a preto e branco: “São adaptações de desenhos antigos meus e queria mesmo que fosse a preto e branco. A cor pontual só aparece no título e na indicação numérica postal e no preço”.

A exposição

Além da emissão filatélica, Carlos Marreiros é também o autor de uma instalação sobre Camilo Pessanha, que vai estar exposta em duas praças de Macau. A instalação, ainda sem data para inaugurar, intitula-se “Camilo Pessanha no Ano do Galo”, porque “os 150 anos do nascimento coincidem com o Ano do Galo”, iniciado em 28 de Janeiro, sob o signo daquele que figura como um dos doze animais do milenar zodíaco chinês.
Entre outros trabalhos mais antigos, o macaense pintou o acrílico sobre tela “Camilo Pessanha e a Máscara”, um quadro integrado há vários anos na exposição permanente do Museu de Arte de Macau.
Além de Macau, o artista plástico já levou os desenhos, pinturas e ilustrações de Camilo Pessanha até Portugal, Itália, Hong Kong, China ou Japão.
Em 1998, fez a exposição “O Poeta e a Cidade”, com desenhos realizados entre 1977 e 1997, a qual se tornou itinerante e foi mais tarde estendida a “O Poeta, a Cidade e o Mar”.

8 Set 2017

Pessanha, 150 anos | Valério Romão, escritor: “O amor já existia antes da literatura”

Valério Romão está prestes a encerrar o capítulo final de uma trilogia de romances, Paternidades Falhadas, com um livro, que terminou recentemente, sobre o Alzheimer. Tem também no currículo dois livros de contos. O escritor que gosta de temas arriscados esteve por cá para celebrar os 150 anos de Camilo Pessanha

[dropcap]C[/dropcap]omo se começa a fazer um livro?
Normalmente a coisa impõe-se de uma forma bastante natural. Quando dás por ti tens um projecto na cabeça que nasceu como uma espécie de revelação, uma iluminação. De repente há qualquer coisa que faz sentido e sobre a qual achas que podes passar alguns meses, ou alguns anos, a trabalhar sem que isso chateei, porque o romance é uma maratona. Começas agora e acabas muito tempo depois, portanto, tem de ser qualquer coisa que seja suficientemente apaixonante para te motivar. Acho que é bastante análogo ao trabalho académico, no princípio tudo parece muito bonito mas assim que começas a escrever surgem as dúvidas, pensas que está tudo uma grande merda. Tens oscilações, com amplitudes enormes, entre “eu sou muito bom” ou “eu sou uma grande porcaria” durante todo o processo, até que chegas a um ponto em que já nada importa a não ser acabar aquilo. Como o corpo do maratonista que já está tão anestesiado que já não lhe dói, já não é cansaço, já não é nada. É, pura e simplesmente, uma espécie de mecânica cuja inércia nunca mais termina e que faz com que ele chegue até ao fim da corrida. Entras num estado de semi-hipnose em que a cabeça se concentra num único objectivo e na única coisa que, de facto, te pode salvar naquele momento que é chegar ao fim.

Como é que se sabe que o processo de escrita chegou ao fim?
Tu decides. Há vários fins, ou seja, quando acabas de escrever a primeira versão, quando voltas a trabalhar naquilo. Havia um gajo qualquer que dizia: “sabes que está terminado quando já não consegues olhar para aquilo”. É mais ou menos isso. No meu romance “O da Joana” fiz sete revisões, cheguei ao fim e decidi entregar aquilo a alguém porque já estava a tirar vírgulas do sítio onde as tinha posto e a pô-las onde as tinha tirado. Corria o risco de estar naquilo, tipo Sísifo, o resto da vida. Acho que no fundo já não consegues fazer muito dano porque te estás a repetir. As partes de que não se gosta cortam-se, modificam-se, essa são fáceis de resolver. As difíceis são aquelas em que não tens a certeza. Depois também chegas a um ponto em que estás demasiado perto para poder avaliar aquilo, já não tens clareza suficiente para mexer nas coisas. É muito mais fácil quando estás a rever o livro de outra pessoa. Não é uma questão de ligação emocional ao que está escrito, tem a ver com o facto de haver uma espécie de opacidade que turva as coisas quando escreves qualquer coisa e vais revê-la ao fim de algum tempo. O que é muito bom e muito mau é fácil, o que está no meio é muito mais difícil e é a maior parte.

Como é que começou a escrever?
Começas a escrever porque gostas muito de ler e gostas muito de ler porque, normalmente, tens um problema social qualquer, ninguém te liga. A vida é muito mais interessante que a leitura. A maior parte das vezes não tens muito jeito para estar com pessoas, as pessoas não te interessam muito e refugiaste um bocado ali na leitura. Depois de estares nesse refúgio descobres que podes fazer um caleidoscópio do mundo e encontrar muitos mundos dentro deste mundo através da leitura e apaixonaste por aquilo. Com alguma naturalidade, vais tentando imolar aqueles de que mais gostas.

Que são…
Eu comecei, como julgo que imensos escritores da minha geração, com os Lobos Antunes da vida. É uma referência, mas também um eucalipto que seca tudo à volta porque, de facto, não se pode jogar no campo dele.

Os temas centrais dos seus livros são duros, extremados. Porquê?
Tenho algumas coisas, mais ou menos, simpáticas em contos, por exemplo. Mas, normalmente, vou à procura das coisas menos simpáticas. Primeiro, porque as acho mais interessantes, depois porque estão pouco trabalhadas, outras estão à espera que alguém pegue e faça alguma coisa. A literatura contemporânea tende a ser um bocado neutra a este tipo de temas, não os aborda, ou fá-lo de uma forma mais neutralizada. Interessa-me o desafio de pegar em matéria muito complexa. Pegar num tema destes e trabalhá-lo mal implica teres um livro que manipula uma determinada carga emocional e que redunda num livro delico-doce, ou num dramalhão. É um risco muito grande pegares no autismo, que é o tema do meu primeiro livro, ou numa gravidez falhada, que é o tema do segundo, corres o risco sempre de estar a manejar mal aquilo e de se tornar insuportável de ler por ser pornográfico. Porque expõe em demasia aquilo que as personagens estão a sentir, a desgraça alheia como finalidade, como no Big Brother. A minha finalidade não é essa. A minha finalidade é tentar perceber em que condições é que ocorre uma determinada experiência e tentar devolver essa experiência de uma forma intersubjectiva, de uma forma que faça sentido para mim e para ti sem que isso redunde em voyeurismo.

A sua estreia no romance tem uma recepção muito interessante, inclusive foi finalista do Prémio Femina, em França. Pensou que tinha alcançado um patamar interessante e estava no certo caminho para ser escritor?
Senti quando acabei aquele livro que era um bom livro. Precisava, talvez, de mais tempo para resolver alguns problemas de que ele enferma. Naturalmente, por ser um primeiro livro e por ser muito colado a uma vivência pessoal, mas senti que era um livro bom. Senti ainda mais isso no “O da Joana”, porque, na minha opinião, estruturalmente ainda é mais arriscado e não tendo falhado nesse risco acho que ainda é melhor. Mas percebes quando um livro é bom. Depois tens o teste do primeiro leitor, do editor, mas percebes quando é bom.

Sente que está a fazer o seu caminho e a conseguir o seu lugar?
Acho que ainda não cheguei lá, que ainda falta algum tempo para chegar ao meu lugar, seja lá o que isso for. Aquela coisa de encontrar a minha voz já está resolvida.

Acha que há uma geração nova de escritores portugueses? Um movimento pressupõe algumas condições…
O movimento característico desta geração é termos temas comuns. Muitas vezes o tema é uma espécie de incapacidade de encontrar um sentido para isto onde nós estamos a viver, o que não é nada de original mas que se acaba por repetir. A originalidade das coisas não pode estar no tema. Por exemplo, o amor existe antes de haver literatura, a morte também. O tema não pode ser diferente, mas a forma como o envelope lhe cai em cima, como é vestido é que pode ser diferente, a forma como pode ser vivido e expresso. Neste caso temos uma geração de pessoas que estão ligadas a essa incapacidade de encontrar sentido, que resulta também nalguma incapacidade de haver um movimento porque todo o movimento surge sempre como contraponto a qualquer coisa e aqui não há contraponto. Não é uma questão de realistas e românticos, não é uma questão de neo-realistas e simbolistas, não há isso. Para quê criar um movimento quando não há nada para ir contra? Claro que temos aquelas tricas, que não chegam sequer a ser dignas de menção literária, tipicamente lisboeta e portuguesa. É uma pequena cidade num país muito pequenino, em que as pessoas todas se conhecem e acabam por gostar e detestar-se mutuamente, com a mesma força.

Mas há, ou havia há um ano, um renascimento da poesia em Lisboa.
Há coisas interessantes a acontecer. Nunca tivemos tanta leitura de poesia, a poesia ficou sexy. Terá contribuído para isso a forma como é lida, porque a poesia era lida de uma forma em que acabava tudo a soar sempre a Manuel Alegre. A forma, a técnica, eram muito solenes e estamos numa altura em que as coisas solenes, para o bem e para o mal, não têm piada. Foi bom poder pegar em poetas e lê-los com uma guitarra eléctrica por trás, com piano, com o quer que seja, às vezes sem nada. Temos uma perspectiva muito desempoeirada do que pode ser uma leitura. Vais para um bar e não estás à espera de ver um gajo em modo lírico a noite toda a declamar como se estivesse a ser possuído por, sei lá por quem…

Pelo fantasma do Viegas…
Exacto.

O que nos pode dizer acerca do seu próximo livro?
Acabei de escrever a primeira versão antes de vir para cá. É um livro que ainda não sei muito bem como descrevê-lo porque é muito pulverizado. Tem como pano de fundo o Alzheimer. Gosto de adaptar uma forma específica de escrita a cada livro que escrevo. O “Autismo” tem uma série de capítulos que suportam e fazem a coluna dorsal do livro, que são as partes que se passam numa sala de espera de um hospital. Tudo o resto decorre daí, intercala-se como membros daquela construção que vão encaixar nessa coluna dorsal, em que há analepse, prolepse, para fazer essa sequência e uma espécie de bailado por dentro da história. É sinuoso, mas perfeitamente lógico. “O da Joana”, como é um livro que se passa numa noite, não tem capítulos, é vertiginoso, obriga o leitor a não parar. Como é um livro pequeno eu queria que a experiência fosse assim. Sem paragem, respirar só quando acabar o livro, é um shot de sofrimento. Este, como é sobre o Alzheimer, não tem ordem cronológica. Pode-se começar a ler do meio para o fim, e do meio para o princípio, a experiência não é igual mas pode ser feita. O livro está pulverizado, atomizado em capítulos de página, página e meia, que são uma espécie de ilhotas que simbolizam, de certa forma, as memórias do Alzheimer, que aparecem e desaparecem. Imaginemos um campo de dunas, em que as memórias aparecem em sítios diferentes, em dias diferentes. Queria que fosse uma coisa tão perigosa, tão frágil quanto isso. Não sei se vai resultar, vamos ver, mas já está acabado.

7 Set 2017

Paulo José Miranda, escritor e poeta: “Esta também é a terra dos portugueses”

Em “Karadeniz – Entrevista com um assassino”, Paulo José Miranda explora um dos muitos limites da natureza humana, ao mesmo tempo que reflecte sobre o terrorismo. Convidado da iniciativa “Camilo Pessanha – 150 anos”, o escritor e poeta fala do novo livro, cuja personagem é o oposto do assassino profissional. O autor, que fala hoje no edifício do antigo tribunal, defende que a existência de duas culturas que se compreendem e que fazem de Macau um lugar singular no mundo, irrepetível

Publicou “Karadeniz – Entrevista com um assassino”, uma compilação dos textos que tem vindo a publicar no HM. Porquê a entrevista a um assassino?

Tenho duas participações no HM. Uma é com os textos que compõem a secção “Máquina Lírica”, em que costumo escrever acerca de livros e maioritariamente poetas mais novos do que eu, que têm editado em Portugal. Participo também com a secção “Em Modo de Perguntar”, com pequenas entrevistas que tenho feito a várias pessoas, actores, poetas e escritores. De repente ocorreu-me a ideia de fazer um projecto, algo que já tinha escrito em 2004, a ver se funcionava. E eu próprio entro como entrevistador. Este livro faz parte de um projecto que já terminei, sobre obras do século XX, onde explorava diversas formas. A entrevista é uma forma utilizada no século XX, e em Portugal o gosto do público pela entrevista intensificou-se nos anos 90.

Porquê?

Talvez devido ao facto de termos vivido muitos anos no Estado Novo, a entrevista não era propriamente algo que agradasse ao regime. Então na década de 90 começou a acontecer uma coisa curiosa, em que as pessoas liam mais as entrevistas dos escritores do que os próprios livros.

Isso mudou ou intensificou-se?

Hoje em dia a situação é diferente porque a internet mudou muita coisa. Partindo dessa observação construí uma narrativa, uma ficção, em forma de entrevista. Já não era preciso estar a ler a entrevista do escritor. O Carlos [Morais José] gostou da ideia, teve alguma aceitação. Depois fez-me a proposta para editarmos o livro. Nunca pensei que o texto fosse editado tão cedo. Uma das razões para isso prende-se com o facto da entrevista ser um formato estranho para um livro, não seria a forma mais apetecível para os editores. Mas julgo que a maior dificuldade é que o texto não é muito longo. Se fosse um longo romance…que, aliás, pretendo fazer um dia.

A partir deste livro?

Não, só com esta forma, mas com outros personagens. Talvez aí seja mais fácil e apetecível para um editor. Quando me foi feita a proposta, aceitei de imediato. E porquê um assassino? O assassino opõe-se em determinados pontos de vista, que me parecem fundamentais, em relação às nossas próprias vidas e ao nosso tempo. Um deles é que ele faz uma vida inteira sem ser conhecido, porque ele era excelente no que fazia e ninguém sabia quem ele era. Isto é o oposto do que nós queremos nos nossos dias. Não só queremos ser reconhecidos pelo trabalho que fazemos como queremos ser reconhecidos só porque sim. 

Queremos ter os tais quinze minutos de fama.

E que os quinze minutos se prolonguem. Houve uma grande explosão, que me parece que está a terminar, em que as pessoas iam para a televisão sem terem feito nada de extraordinário. Este personagem é então o oposto disso tudo. Ao mesmo tempo há um jogo de espelhos entre a actividade dessa pessoa e a do próprio escritor. Vai-se traçando, à medida que ele está a falar, toda uma preparação. Há ainda a relação com a morte. Para ele matar não é encarado como morte, é visto como um trabalho. Há um outro lado, que está muito presente no nosso tempo, que é o modo como o personagem se posiciona de forma antagónica com o terrorismo, o que nos causa algum choque. Imaginamos que um assassino profissional é um terrorista, e ele distancia-se disso.

Editar este livro foi a maneira que encontrou de reflectir sobre essa questão, numa altura em que o terrorismo é tão falado e tão incompreendido?

É uma das maneiras. Tenho um livro, passado em Hong Kong, que é “A Máquina do Mundo”, uma história de amor entre dois assassinos profissionais, que vão perdendo vidas como se fosse um jogo de computador. Aí reflicto mais sobre o assunto. Em “Karadeniz – Entrevista com um assassino”, o que há é o mostrar como nos anos 50 e 60 quase tudo era de elites. Até matar e pagar para matar. Hoje, como diz Karadeniz, qualquer um encomenda uma morte por meia dúzia de tostões. O assassino profissional já se tornou democrático também.

Foto: Sofia Margarida Mota

Percebo que há aí um certo fio condutor em relação à morte. Esse tema, sobretudo a morte premeditada, fascina-o?

Não. O que acho é que o assassino profissional interessa, porque todas as situações limites do ser humano nos fazem pensar. E ser um assassino profissional é uma situação limite. Isso são coisas que me fascinam porque reflicto sobre elas, sem dúvida nenhuma. Alguém que transforma uma pessoa numa coisa entra na esfera do horror.

Algo desprovido de sentimento.

É o horror, como o que aconteceu em Auschwitz. Estas são formas que me interessam para pensar e ao mesmo tempo expor o humano que habita em todos nós. Não vamos a esse extremo, mas há algo que se ilumina a partir dali, daquele limite. O meu próximo livro, um longo romance de mais de 600 páginas, é o oposto: é sobre alguém que viveu a vida de um ponto de vista absolutamente ético. O que também é uma posição radical, de limite. Passou a vida a ler e a estudar, tendo responsabilidade. São casos extraordinários para reflexão. Ao tentarmos descer ou subir até eles, acabamos por nos iluminar a todos nós, o humano, na sua normalidade.

Falou-me do livro “A Máquina do Mundo”. Foi esse o livro que o fez regressar a Portugal depois de ter vivido vários anos no Brasil. Chegou a ser referido na imprensa como um “fantasma literário”, porque desapareceu do panorama literário português durante uns anos.

O João Paulo Cotrim recebeu uma indicação do António Cabrita, que lhe tinha enviado “A Máquina do Mundo”. Ele gostou do texto e contactou-me a perguntar se já tinha editora. Eu vivia em Curitiba e ele foi a minha casa, e conversámos. Durante o ano de 2014 acabei por escrever um livro de poesia, então o João Paulo Cotrim acabou por editar três livros.

Mas como foi regressar? Sentiu-se esse “fantasma literário”?

Não pensei assim e continuei a escrever. No tempo em que não escrevi estava dedicado à música. Não publicava, mas não tentei publicar. Era uma situação difícil para publicar, porque estava muito afastado. Hoje em dia é muito difícil editar livros sem aparecer. Se não apareces para as entrevistas as pessoas deixam de existir, somos cada vez mais numa sociedade mediática.

E o escritor tem de ser uma estrela.

Não diria uma estrela. Comecei a publicar no final dos anos 90 e as coisas eram diferentes. Davam-se entrevistas, mas não se aparecia. Hoje isso é fundamental. Nunca senti a questão do “fantasma literário”. Continuei a publicar, mas de facto não aparecia. Foram livros que passaram, não estava lá. E do ponto de vista do jornalismo é interessante escrever sobre alguém que está exilado, desaparece e de repente edita três livros.

Esta terça-feira falou sobre a experiência do que é ser português em Macau. Viveu essa experiência na pele durante três meses.

Vivi um pouco, mas a minha experiência veio de uma grande intuição, e também pela experiência de ter vivido cinco anos em Istambul. Foi uma experiência mais radical do que estar em Macau, porque ninguém fala português. Haveria talvez uma pessoa que sabia quem tinha sido Fernando Pessoa. Em Macau, além de ter lido as cartas e imenso sobre Pessanha, fiquei com uma percepção. Há qualquer coisa que acontece com os portugueses de Macau que é uma espécie de amplificador de uma estrutura existencial. Essa estrutura é como aquele fenómeno que se passa na mecânica quântica, como se houvesse uma vida paralela. Durante um tempo poucas pessoas que vinham para aqui não sentiriam que a sua vida seria uma vida de empréstimo, e que mais cedo ou mais tarde iriam recuperá-la.

Sente que somos uns privilegiados em Macau?

Hoje em dia já não, mas na década de 90 sim, sem dúvida. As pessoas ganhavam uma fortuna a fazer o mesmo que fariam em Portugal. 

Falo do privilégio de ter acesso à cultura portuguesa e a pontos identitários nesse sentido.

O que acho é que Macau é um lugar privilegiado e provavelmente único. É provavelmente o único lugar onde os portugueses estiveram que não foi conquistado, foi doado. Isso muda tudo. Em Moçambique há uma sensação de racismo, porque os moçambicanos foram colonizados. Aqui isso não existe.

Mas há um distanciamento.

Que advém da enorme diferença cultural e da língua. Há essa experiência que é o convívio de duas culturas muito distantes uma da outra, que não se fundem. Houve muito mais fusão cultural, e entre as pessoas, em Moçambique do que aqui. Os portugueses tiveram, apesar de tudo, uma diferença em relação aos outros países, apesar das atrocidades cometidas. O português misturava-se. Quando chegamos aqui os bárbaros éramos nós, há logo uma diferença, porque havia aqui uma cultura instalada. Sempre houve esse respeito. Em nenhuma parte do mundo acontece isto. No mundo em que nós vivemos, é exemplar.

Quando viveu em Macau veio escrever sobre Camilo Pessanha.

Estava inserido num projecto que era uma parceria entre a Fundação Oriente (FO) e a editora Cotovia, da qual fazia parte. A Cotovia enviava escritores para vários locais a Oriente e publicava os livros. A FO encarregava-se dos custos. Foi-me dado a escolher entre Pessanha e Venceslau de Moraes, e aí iria para o Japão. Eu não escolhi Macau, escolhi Pessanha. É um poeta pelo qual sentia um fascínio há muito tempo. Li muito sobre ele, andei nos lugares onde andou. Foi o Pessanha e a força da poesia dele que me trouxe, e interessei-me depois pela sua pessoa. É uma pessoa contraditória, cheia de mistérios à sua volta, alguém que é viciado em ópio e que tem uma profissão importante. Ao mesmo tempo tinha um desprezo pelos seus conterrâneos, e depois tinha uma sensibilidade enorme. Acho que Macau está melhor, porque já não há a sombra de muitos portugueses que sentiam isto como uma colónia. Alguns achavam que os chineses eram inferiores. Era uma sombra que pairava, mesmo que nem todos pensassem assim. Com a transferência de soberania essa sombra desaparece. Mas esta é também a terra dos portugueses, e isso é hoje mais claro.

6 Set 2017

Literatura | Amélia Vieira traz “Abril” à celebração dos 150 anos de Pessanha

Chega a Macau para os eventos que marcam os 150 anos de Camilo Pessanha com mais de dez livros na bagagem. Traz ainda a sua mais recente publicação, “Abril”. Ao HM, Amélia Vieira fala do que a move enquanto poetisa e da rudeza da sociedade portuguesa

[dropcap style≠’circle’]“N[/dropcap]o princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Assim arranca o Evangelho de João na visão bíblica da criação. Em conversa com Amélia Vieira, abordámos as características divinas do momento criativo literário. “Nós, que estamos muito agarrados a um plano da carne, das vísceras, da conceptualização do mundo pela posse, acabamos por ter uma relação de magia e hipnose com a palavra”, comenta a poetisa.

Amélia Vieira começou o seu contacto com a literatura pela normal via da leitura e o do conhecimento. No plano da criação artística, a autora que conta com mais de uma dezena de livros na sua obra, teoriza sobre a característica sagrada da literatura. “A escrita é o sopro, o verbo é a mais inefável das experiências humanas, a parte mais etérea”

A escritora fez-se ultrapassando o momento em que quis ler tudo, em que o verbo tomou uma dimensão virtuosa. “Vemos que essa fina película da palavra vai da magia para o sagrado, aí a palavra consagra-se”, refere.

Amélia Vieira sempre sentiu uma forte tendência para a exacerbação de tudo o que era escrita e oralidade, já desde os tempos de liceu. Além disso, teve como companhia alguns dos grandes nomes da literatura portuguesa. “Tive ao meu redor poetas velhos, consagrados, convivi com eles ainda antes de saber que eram grande vultos literários e fui-me tornando um tecido poético, uma espécie de consubstancialização de toda a matéria que estava à minha volta e onde fui crescendo”.

Entre os autores com que conviveu muito cedo contam-se Ernesto Melo e Castro, Casimiro de Brito, Teresa Horta, Natália Correia e David Mourão Ferreira.

Mês de Abril

Os ambientes literários davam conforto à jovem Amélia Vieira, que se sentia como “uma pessoa pequena que está rodeada por pessoas que a protegem”. De resto, a autora conta que sempre viveu num ambiente hostil, numa família e sociedade adversas. “A sociedade portuguesa era muito agreste. Aliás, Portugal é um país profundamente fascista nas suas intrínsecas noções, não é um país carinhoso, é um país com lacunas nas questões da afectividade e da boa educação”, interpreta.

Amélia Vieira não encara com bons olhos o ambiente que se vive no país, que considera “um viveiro de gente que se pode tornar perigosa num curto espaço de tempo”.

A escritora, que se sente movida por uma forte necessidade litúrgica, considera que a prática religiosa “tem uma relação com o fazer poético”, estudou ciência das religiões na Universidade de Toulouse e traduziu “As Centelhas da Torá”, uma obra que ainda não foi publicada.

Já passou por fases criativas mais “estendidas, mais prosódicas”. A autora revela que actualmente tem “uma enorme tendência para o mínimo de tudo, o mínimo de palavras, objectos, dinheiro, de amor e ódio”.

Quanto ao seu posicionamento no mundo literário, confessa que nem sabe muito bem o que as outras pessoas andam a fazer. Justifica este alheamento por já não pertencer ao mundo. “Pertenço a outro mundo. O que vejo, geralmente, não gosto, o que gosto vive comigo e não estou nada interessada naquilo a que a maior parte das pessoas anda interessada”, revela.

Amélia Vieira traz na bagagem o seu mais recente livro “Abril”, que resultou de uma recolha de prosa poética e poemas que estavam por publicar.

“É um livro de poesia com 88 poemas, o que equivale a dizer que é o livro exacto para o Oriente, que encaixa perfeitamente na numerologia”, explica Amélia Vieira.

Além disso, o convite para a escrita do livro foi feita em Abril e a pasta onde guardou os documentos tinha esse nome. “Abril, é um mês que abre, que inaugura e eu acho que estou numa fase inaugural da minha vida, é também o mês do 25 de Abril, um mês que me é profundamente querido, Abril, Ápis, sou uma espécie de boi Ápis iniciando um novo ciclo”, teoriza a autora.

6 Set 2017

«É o xuá das ondas a se repetir»

Spotify, 28 Agosto

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]alto para «As Caravanas» com Chico a viajar pelos reflexos dos hojes. Melhor, vou para Chico, sítio que continua único. Não gasto mais do que umas linhas com a tolice das vigilâncias que vão grassando como ervas daninhas, censores de algibeira que não alcançam que o lugar da arte só pode a dimensão e a forma dos oceanos, respirando tempestades e calmarias com profundidades sem luz enquanto espelham o céu. Prefiro caminhar nas dificuldades da canção que dá título, por exemplo. Traz um Brasil que expulsa negros e pobres da praia, um Brasil de bossas velhas que embaçam olhos e razão. «Sol, a culpa deve ser do sol/ Que bate na moleira, o sol/ Que estoura as veias, o suor/  Que embaça os olhos e a razão/ E essa zoeira dentro da prisão/ Crioulos empilhados no porão/ De caravelas no alto mar». O Sol há-de ser culpado de tudo, até das trevas. Mas vislumbro momentos de sentar na infância, comoção em estado puro, que os dias estão para isso. Nesta, toca com o neto. «É o xuá/ Das ondas a se repetir/ Como é que eu vou saber dormir/ Longe do mar/ Ó mãe, pergunte ao pai/ Quando ele vai soltar a minha mão/ Onde é que o chão acaba/ E principia toda a arrebentação/ Devia o tempo de criança ir se/ Arrastando até escoar, pó a pó/ Num relógio de areia o areal de Massarandupió.» Onde acaba o nosso chão? Uma após outra, mais ou menos solares todas, estas canções são do espanto feroz.

Santa Bárbara, 29 Agosto

Devia. Os dias nascem logo forrados a deveres, e é a custo que procuro não ocupar as noites alinhando os por fazer que vão esticar ao impossível a pele das horas. Faço-me ortónimo e libertário, não saio de casa, que «grande é a poesia, a bondade e as danças…», mas leio um livro. Oliveira que podia bem ser, finco raízes e aprendo «práticas de viagem» sem sair do sítio. Vou para «Itália», na melhor das companhias, de braço dado com o António [Mega Ferreira] (ed. Sextante). Dispenso até a deslocação, pois os lugares são aqui reconstruídos da boa maneira, cruzando saber e sabor. São os sentidos, se neles incluirmos a inteligência, que se fazem cicerones no labirinto de torres e palácios, pinturas e escritores, Svevo e Joyce, as sublimes composições e os cafés de ficar horas, o Rosati de Pasolini, os azeites aromáticos e os vinagres balsâmicos, sabonetes e Paolo Conte, Carpaccio pintor e prato que o homenageia, a modesta planície de Morandi e os portos e os passos de Dante. No percurso, deparamos continuamente com primeiras vezes, na cultura ocidental e, portanto, em nós. Nem guia nem roteiro, antes Grand Tour a uma paixão, que é país, mas sobretudo berço de uma cultura que celebra a vida. Quem viaja ainda deste modo?

Horta Seca, 30 Agosto

Devia estar a caminho de Macau, na boa companhia de tantos abysmados que partem celebrar Pessanha. As circunstâncias conspiraram e travaram os ímpetos e as vontades. Fico-me, encostado a uma lápide, gatos por perto, horizonte de torres (como o poeta, na interpretação de Rui Rasquinho nesta página). A ler luzes em países perdidos, com a intacta intenção de no chão sumir-me, como fazem os vermes. Pessanha e Macau tornaram-se estranhos sinónimos. Releio «O Mal», do Paulo [José Miranda], para encontrar a tese de que ambos são sinal, húmido e desfocado, da errância em busca de uma identidade, em vida de empréstimo. De Portugal e do que dele encontramos em nós. Cidade e poeta são sinais e versos de um mau estar, de um Mal tornado ser.

O desprezo pela vida, que ambos cultivam, encontro-o na bd melancólica de Fonseca & Morais, Caze – Um caso de ópio. Narrativa na velha tradição do policial negro, mergulha a aventura nas lendas chinesas que tudo sintetizam em pintura, que tanto pode vaticinar a morte do seu pintor como dar vida a uma águia. «Ela descia, vagarosa e sonolenta, senhora antiquíssima dos ventos e das elipses, até pousar nas copas mais altas dos jardins proibidos.» O traço solto, meio desajeitado, sublinha os passos ziguezagueantes de Caze, o detective que parte em demanda, por encomenda, de um antepassado português, portanto de uma identidade, afinal não mais que ladrão de arte e de passados. O testemunho chega-nos por escrito e na primeira pessoa. Será mesmo apenas um caso de ópio, ainda que este sirva para amaciar as arestas da vida? Não, nem mesmo do ódio, aquele que a personagem do Paulo persegue em ensaio para explicar Pessanha. Sendo nós, cada um de nós, pouco mais que sombra em trânsito, saber apagar-se releva da sabedoria. E apagar outros não custa assim tanto, pelo que a mandatária de Caze desaparece no fim, sem custo, em viagem ao fim do mundo. Macau ergueu-se ilha do fim do mundo, ainda que por ali nasçam princípios a cada esquina, também o tempo.

Por que fez Orson Welles de Macau o cenário da peça magnificamente filmada, a sua primeira a cores, «The Immortal Story»? Pourquoi pas?, diz Jeanne Moreau, anunciando o lema da casa do pai, que se suicidou por ter experimentado a miséria às mãos do todo poderoso Orson Welles. Macau pouco mais acontece aqui do que evocação de um lugar que comunica com os infernos. Para mim, Macau está nas escadas que sobem e descem na semi-obscuridade. Não são as paisagens que contam, mas rostos, filmados como só Welles sabia, olhando de frente a câmara, pois ela é o destino. «As pessoas só recordam coisas que já aconteceram», diz o gigante solitário e moribundo que Welles incarna, afinal um encenador, demiurgo do mal. E se o dinheiro for capaz de produzir uma realidade que preencha o vazio de uma história de marinheiros? Isso mesmo se congemina, o velho relato de um marinheiro a quem o marido paga para engravidar a mulher vai acontecer. Acontece por ser Macau o farol do poder do jogo, claro, mas sobretudo do ouro, que «é sólido e à prova de dissolução», diz o mais dissoluto senhor do dinheiro nesta imortal história. Abunda o vermelho nas cores saturadas e fortes, translucidas apenas na cama, palco maior do acto entre Virginie e o virgem, marinheiro que não perdeu as graças da palavra. A madrugada faz tombar o pano da dor. Para o senhor da venalidade, os olhos fecharam-se-lhe de vez. Mas não haverá, apesar da dor, neste cruzamento de encontros novos princípios? Valha-nos Pessanha, chão onde sumir.

«Na inundação da luz/ Banhando os céus a flux,/ No êxtase da luz,/ Vejo passar, desfila/ (Seus pobres corpos nus/ Que a distância reduz/ Amesquinha e reduz/ No fundo da pupila)// Na areia imensa e plana/ Ao longe a caravana/ Sem fim, a caravana/ Na linha do horizonte/ Da enorme dor humana,/ Da insigne dor humana…/ A inútil dor humana!/ Marcha, curvada a fronte.//  Até o chão, curvados,/ Exaustos e curvados,/ Vão um a um, curvados,/Os seus magros perfis;/ Escravos condenados,/ No poente recortados,/ Em negro recortados,/ Magros, mesquinhos, vis.// (…) A dor, deserto imenso,/ Branco deserto imenso, /Resplandecente e imenso, /Foi um deslumbramento. /Todo o meu ser suspenso,/ Não sinto já, não penso, /Pairo na luz, suspenso /Num doce esvaimento.»

6 Set 2017

Camilo Pessanha, 150 anos | António Cabrita: “Sou um filho da dificuldade”

Escolheu o tempo ao dinheiro. Foi para Moçambique após mais de uma década como jornalista no Expresso e desde aí a sua vida é escrever. António Cabrita está hoje no Edifício do Antigo Tribunal para uma conferência integrada na comemoração dos 150 anos do Camilo Pessanha

Publicou o seu primeiro livro de poesia aos 17 anos.

Sim, mas é um horror. Tenho quatro livros que não cabem na minha tábua bibliográfica. Foram absolutamente retirados. Ali só coloco os livros que publiquei a partir dos 38 anos. São poemas de uma imaturidade absoluta e não tenho nenhum prazer nem em revê-los. Até me custa falar disso.

Ainda muito novo também conheceu o Al Berto. 

Sim. Conheci o Al Berto devia ter uns 18 ou 19 anos. Ele tinha mais dez anos do que eu. Conheci-o pouco depois de ele ter chegado da Bélgica onde esteve numa espécie de exílio. O Al Berto tinha sido enviado para fora para estudar, para não ir à tropa. Também tinha outra condição que nessa altura era complicada de ser declarada, a homossexualidade. A família mandou-o para fora. Começou como pintor e depois rompeu com toda a pintura e figuração e dedicou-se à escrita. Teve também uma pequena editora. Andei com ele na altura a distribuir alguns dos livros pelas livrarias o que causava um certo escândalo. Tinha alguns livros ousados. Eram livros de afirmação da sexualidade o que causava escândalo diante dos livreiros que, nessa altura, não estavam habituados ainda a tais liberdades cívicas. Ele publicou um livrinho, o meu segundo livro. Era um poema de 17 ou 18 páginas que eu há uns anos reduzi a sete. Era uma longa verborreia lírica. Enxuguei as águas e ficou um vão mais potável, mas ainda assim com pouco sol. Só aos 38 anos é que achei uma voz. Na altura, e curiosamente, publiquei um livro. Queria-me candidatar a um prémio que ganhei. Precisava de pagar dívidas. Foi assim que realmente apareceu o primeiro livro.

Como é que se deu a passagem da poesia para a ficção?

Essa mudança acaba por ocorrer por uma circunstância simples. Fiz o curso de cinema e fui logo identificado como um tipo que tinha um jeito especial para fazer diálogos e nas aulas era recrutado para os fazer. Mais tarde, tinha formação técnica e sabia como realizar um filme. Acabei por fazer guiões mas ficava sempre chocado com o que via. Achava que eles eram uns grandes nabos. Não consigo escrever um guião sem imaginar como é feito. Nunca tive esses despojamento. Escrevo um guião imaginando-me um realizador. Depois de escrever uns sete ou oito filmes e ficar sempre com um sabor amargo face ao resultado percebi que, para a reconstituição do meu ego em clivagem, precisava de começar a comandar alguns dos processos. Tinha de estar diante de uma narrativa que tivesse controlado do princípio ao fim. E foi assim que comecei a escrever ficção. Comecei por um livro de contos que correu muito bem. A ficção começa também como um desafio. Eu escrevo porque não sabia escrever. A dificuldade é que me fez continuar. Na adolescência, fazia parte de um grupo de amigos, alguns deles famosos e que são pessoas consideradas, e que fizeram uma carreira. Todos eles escreviam poesia ou ficção e acabávamos a discutir esses assuntos. Era uma coisa engraçada em que eu era inevitavelmente o mais desajeitado. Eles desistiram todos, porque tinham facilidade. Eu como tinha dificuldade tinha de trabalhar para contornar os problemas e as deficiências e isso acabou por me melhorar. Mas, de facto, sou um filho da dificuldade. Venho de um meio pobre e tive de recobrir séculos de ignorância genética. Ainda hoje tenho lacunas graves.

Está em Moçambique. Depois do jornalismo e de muitos anos no Expresso, resolveu abandonar tudo e ir. O que é que aconteceu?

Estive no JL, depois estive na Elle e depois no Expresso. Fui para Moçambique ganhar um terço do que ganhava. Sou um caso do mundo emigrante que sai para ganhar menos. Depois tive de remontar a vida. Quis ganhar tempo. Perdi dois terços de tudo o que é pecuniário mas ganhei dois terços de tempo e isso mudou tudo. Desde que estou em Moçambique já publiquei treze livros.

Mudou também a sua maneira de escrever?

Sim. Mudou, entre outras razões, por causa do anonimato que encontrei em Moçambique. Estive cinco anos absolutamente anónimo e isso foi absolutamente extraordinário. Permitiu que rescrevesse tudo, que escrevesse de outras formas, experimentar outros modos sem ter nenhuma cabecinha atrás do ombro a dizer-me que estava a trair o meu estilo. Isso deu-me uma liberdade imensa. Quando reapareci, toda a gente ficou surpreendida. Quando fui para África as pessoas consideraram a minha opção muito estranha. Chego a África e desato a  trabalhar como um doido e, de repente, apareci renovado e com uma densidade que ninguém estava à espera. Tive de fazer o percurso. Os primeiros livros que editei depois de ter ido para Moçambique foram uma novela juvenil, um livro de poesia e um livro de contos grande. Na altura saíram quatro coisas muitíssimo boas nos jornais acerca deste livro, que não no Expresso, coisa que me magoou muito. Depois fiz o meu primeiro romance e mandei-o para a Porto Editora que me pediu uma versão light. O livro é a “A Maldição de Ondina”. Enviei-o para o Brasil que me mandou um contrato. O livro foi editado lá e depois acabou por ser finalista de um prémio. Recuperei uma ressonância mediática em Portugal. Mas teve de vir de fora, dar a volta ao Brasil, para ser reconhecido.

Porque é que acha que esse tipo de situação acontece?

Por inveja. Uma das coisas que distingue a editora Abysmo é que todos os escritores que ali editam são amigos uns dos outros, não se invejam. Ficamos contentes com os êxitos uns dos outros, lemos os livros uns dos outros e discutimos. Isso foi uma espécie de revolução coperniciana durante algum tempo na adição portuguesa.

Falando em escritores portugueses. Como é que vê a produção literária em Portugal neste momento?

Estou fora e há coisas que não acompanho. Mas, do que me é dado a conhecer, mais na ficção, neste momento acho que há uma coisa espantosa. Há uma geração de mulheres escritoras, tal como nos anos 70. Estou-me a lembrar, por exemplo, da Maria Velho da Costa, da Teresa Horta. Surgiram uma série de mulheres ao mesmo tempo naquela altura, o que era uma espécie de banco de coral muito enriquecido. Acho que do melhor que se está a fazer na literatura portuguesa tem que ver com a pressão feminina. Além disto parece que há uma série de gente nova muito boa. Não vou estar aqui a falar dos meus amigos (risos). Há sempre um discurso sobre a crise em que estamos em crise em tudo. Sou muito mais positivo. Acho que estamos num período difícil porque estamos numa encruzilhada entre regimes de cultura e existe uma grande confusão em relação a isto. Normalmente não damos conta no nosso quotidiano, mas enfrentamos signos de diferentes regimes de cultura. De cultura popular, de cultura erudita ou humanística, de massas, digital e por aí fora. Isto são regimes diferentes que implicam, não só imaginários diferentes, como valorizações e pautas valorativas diferentes. Confundimos a cultura pop com a cultura. É a mesma coisa que confundir a cosmética com a beleza natural. Há uma grande confusão sobre o que é cultura. Isto é um problema. Vivemos de frivolidade, de pouco esclarecimento e de pouco discernimento precisamente porque estamos neste caldo dos vários regimes culturais que coexistem ao mesmo tempo. Se formos para a globalização temos confusões ainda maiores.

Temos aqui um guionista, um escritor, um poeta, um ensaísta e um jornalista. Como é que estas pessoas convivem entre si? 

Ainda devo cerca de 10 mil dólares ao ensaísta (risos). Às vezes reencontramo-nos todos e jogamos a dinheiro. Mas, falando mais a sério, o ensaísta acontece por duas razões. Tenho um percurso solitário. Não tenho um percurso integrado numa geração. Cada geração cria os seus escritores e os seus críticos. Cada geração também tem os seus santinhos que são as chaves da decifração para o estilo de cada geração. Eu surjo como um ovni. Comecei por ficar surpreendido com as coisas que escreviam acerca dos meus livros. Achava que eram, na maior parte das vezes, um disparate. Às vezes intuía que era um disparate sem saber de forma racional e articulada explicar que o era. Com o ensaio, surgiu em mim, uma necessidade de me explicar. Mas nem gosto muito de escrever sobre livros, gosto de escrever sobre temas.

Gosta do vento e pensa ter um livro acerca do assunto.

Tenho este fascínio pelo vento. Penso que será o meu fim, que um dia serei levado por ele, para qualquer lado. Cada um tem a pancada que pode, eu tenho esta. Tenho já reunidos um cinquenta poemas de poetas que escreveram sobre o vento para uma antologia. Um dia gostava também de ter uma conversa com o vento. Não sei porquê mas desde miúdo que tenho este fascínio pelos elementos. De um ponto de vista académico dir-se-ia que é uma espécie de entronização com o sublime. O sublime é uma espécie de angariação com as forças que são maiores do que nós. Provavelmente é isso.

É a primeira vez que está em Macau e integra as comemorações dos 150 anos do Camilo Pessanha. Como está a ser a experiência?

Estou aqui há pouco tempo mas estou agradado. Até posso dizer que já tenho um projecto doido que tem que ver com Macau. Vou escrever uma peça de teatro acerca das relações difíceis entre o Camilo Pessanha e o seu arqui-inimigo, Silva Mendes. O Camilo pode representar um tipo humano periférico e difícil como a relação do poeta na cidade. O Silva Mendes representa aquilo que tenho encontrado muito. É o português que vive de irreais e que chega aos territórios sempre para tentar fazer réplicas da sua aldeia. Penso que pode dar uma boa comédia e vou tentar ter dois meses para vir cá fazer esta peça.

5 Set 2017

Camilo Pessanha, 150 anos | Marreiros “chama atenção” com instalação de arte pública

[dropcap style≠’circle’]“C[/dropcap]amilo Pessanha no Ano do Galo” titula a instalação de arte pública itinerante que o macaense Carlos Marreiros prepara para “chamar a atenção” para o expoente máximo do simbolismo português, que viveu e morreu em Macau.

A instalação de arte, ainda sem data para inaugurar, surge na sequência das comemorações dos 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha, uma iniciativa lançada pelo diretor do jornal Hoje Macau, Carlos Morais José, cujo programa, que inclui exposições de pintura e de fotografia, conferências e lançamento de livros, arrancou no dia 01 e termina na quinta-feira.

A instalação, que vai ser itinerante, intitula-se “Camilo Pessanha no Ano do Galo”, porque “os 150 anos do nascimento coincidem com o Ano do Galo”, iniciado em 28 de janeiro, sob o signo daquele que figura como um dos doze animais do milenar zodíaco chinês.

A “peça geométrica a sugestionar um galo” é “bastante abstrata” e nela vão estar integradas “ampliações de desenhos” da sua autoria e “também textos originais de Carlos Morais José e de Yao Jingming”, que verteu para chinês Camilo Pessanha, entre outros nomes da literatura portuguesa, de acordo com o artista plástico.

Marreiros, autor nomeadamente das ilustrações de uma edição especial, em dez volumes com caixa, d’“A Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, pretende com a instalação “chamar a atenção do público em geral sobre a importância de um poeta que tem tudo a ver com Macau”.

“Foi Macau que [Camilo Pessanha] escolheu para se refugiar do seu amor sofrido, por causa da paixão por Ana de Castro Osório. Foi aqui que foi professor, juiz substituto, escritor, intelectual, interveniente e uma figura bastante excêntrica”, elencou o também arquiteto.

Com a “preocupação” sempre presente de “comunicar com os chineses e com as outras etnias que vivem em Macau”, Carlos Marreiros pretende então levar Camilo Pessanha mais além, porque “há coisas bonitas feitas pela comunidade portuguesa, mas que ficam só entre nós”.

“Toda a minha vida fiz a ponte, e o Carlos Morais José gostou muito da ideia também”, afirmou ainda, explicando que a peça vai ser itinerante, correndo três pontos de Macau, e que, em torno dela, falar-se-á de Camilo Pessanha em chinês.

A instalação vai ser colocada em primeiro lugar na praça do Leal Senado, no coração da cidade, seguindo depois para o Jardim Triangular da Areia Preta, “uma das zonas mais populosas de Macau e de camadas economicamente mais débeis”, porque o objetivo passa “precisamente [por] levar a cultura ao povo”.

A peça estará exposta em ambos os espaços públicos por “alguns dias” e, à sua volta, vai haver “algumas dramatizações, algumas récitas simples e a distribuição de exemplares da ‘Clepsydra’ em língua chinesa”.

“É com isso que se consegue uma interatividade com o público e que o nome dele chegue mais longe”, realçou.

Carlos Marreiros deu o exemplo de Luís Vaz de Camões: “Os velhos habitantes da zona [do Jardim Luís de Camões] sabem a história: ‘Era um senhor que era visto, barbudo e ia poetar no ninho das pombas’”.

O macaense referia-se ao facto de o Jardim Luís de Camões ser ainda conhecido em chinês por “ninho das pombas brancas”.

“Esse tipo de legado é importante e Camilo Pessanha era bom demais para o seu tempo, incompreendido no seu tempo”, pelo que “a população chinesa deve rever-se numa figura que, aliás, é tão próxima”, sublinhou.

Depois do Senado e do Jardim Triangular da Areia Preta, a instalação segue para o Albergue SCM, uma organização cultural sediada no histórico bairro de S. Lázaro, presidida por Carlos Marreiros, onde ficará patente “por algum tempo”.

Considerado o expoente máximo do simbolismo em língua portuguesa, Camilo Pessanha nasceu em Coimbra, em 07 de setembro de 1867, e morreu em Macau, em 01 de março de 1926, onde vivia desde 1894.

4 Set 2017

Entrevista | António de Castro Caeiro, “Tudo quanto exista implica tempo”

António de Castro Caeiro fez parte da histórica banda punk, Mata-Ratos, até mergulhar a fundo na filosofia. Actualmente divide-se entre a crónica, a tradução de clássicos gregos e a divulgação filosófica. Está em Macau e dá hoje uma conferência no Antigo Tribunal, pelas 19h30, no âmbito da celebração dos 150 anos de Camilo Pessanha

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez parte de uma das bandas que mais marcou o panorama do punk nacional, os Mata-Ratos. Como se faz a passagem para a filosofia?
Na verdade, formalmente, não é uma transição difícil porque o “label” dos Sex Pistols era “no future”. Portanto, a expressão do punk mais barulhento dava conta disso na primeira juventude. Eu vou para filosofia aos 17 anos. Essa era outra forma de expressão erudita, mais complexa e não tão barulhenta, mas que também tem no sentido final essa ideia do ser no encaminhamento da morte. No fundo, toda a arte, poesia, filosofia, pintura, arquitectura tem, em certa medida, a ver com a nossa vivência na Terra, com a complexa compreensão de que ficamos para morrer, que não estamos aqui para sempre.

Tem escrito bastante sobre o tempo. É um tema que o tem perturbado, para o qual tem procurado resolução?
Comecei por abordar a filosofia de um ponto de vista analítico. Isto porque eu estive para estudar engenharia, portanto, a forma lógica esteve sempre nos meus horizontes. A partir de determinada altura, digamos assim, a lógica é sem tempo, é repetível em qualquer circunstância, em qualquer sítio do mundo. Isso contrasta e relativiza com a situação concreta de cada indivíduo na família, na nação, num estado de alma, num determinado contexto ou ambiente. Cedo comecei a estudar grego e latim e, a partir daí, li os filósofos alemães. Inclusivamente vivi alguns anos na Alemanha e li o grande livro de Heidegger “Ser e Tempo” e o “Tempo e Ser”. Tudo aquilo quanto existe implica tempo. É por isso, por exemplo, que pomos a mesa e que depois de comermos recolhemos a mesa, lavamos a louça, enxugamo-la e arrumamo-la para o dia seguinte. Tudo quanto nós usamos implica essa ideia de uma utilização, num determinado momento, de uma forma eficaz, com a expectativa que temos. Tenho 50 anos, uma idade em que acompanhamos o envelhecimento da mãe, do pai, ou dos avós e em que perdemos pessoas, nós próprios envelhecemos e percebemos que as circunstâncias não mudam apenas adjectivamente, mas substantivamente com o tempo. Portanto, ser, viver, estar na realidade não é uma coisa para sempre mas é uma coisa que está continuamente a deixar de ser. Esse é o objecto de estudo, o grande operador ontológico da filosofia.

Apesar da intensidade de trabalho que a vida académica implica e dos projectos em que está envolvido, ainda tem tempo para escrever. Está algum livro na forja?

Sempre, vários livros. Traduzi os fragmentos perdidos dos livros de Aristóteles há sete anos e agora vão ser publicados pela Abismo do João Paulo Cotrim as constituições perdidas de Aristóteles. Depois segue-se a publicação de textos sobre estética e, finalmente, textos científicos. À parte disso, estou a escrever semanalmente para o Hoje Macau. Vou alargar a minha colaboração com o jornal, tenho estado a traduzir o poeta austríaco Georg Trakl e estou a planear sair um poema por semana, bilingue, em alemão e português. Por outro lado, vamos ter uma coluna a quatro mãos com o João Paulo Cotrim que abordará temas ad hoc. Cada um escolherá o seu texto que passará pelas mãos do grande editor, grande poeta e ensaísta, João Paulo Cotrim e por mim, que sou um novato nestas coisas. Isto é algo que vou gostar muito de fazer. Dito isto, para além das cerca de dez conferências por ano que dou sobre temas academicamente complexos, sobre a linguística grega e o pensamento antigo, o meu objectivo é sempre explorar a filosofia a partir dos exemplos que tenho das aulas. Quem quer que seja que se interesse por um problema filosófico sem ter a sua certidão de nascimento na filosofia, num autor ou num texto, tem de conseguir perceber do que é que se trata. O que se trata é a relação connosco, a relação com os outros, com o mundo, a relação com o tempo. Como é que, em Lisboa, uma manhã de Primavera é completamente diferente de uma tarde de Verão em Agosto. Como, por exemplo, a Clepsidra que é uma descrição do tempo a escoar enquanto nós estamos lá no meio daquela bola que se vai indo. Isso para mim é o objectivo, não é uma questão de tornar simples, mas que as pessoas possam aproximar-se dos problemas da filosofia sem a carga e o peso da técnica académica. Essa é uma pretensão minha e, eventualmente, uma arrogância.

Como é a concretização semanal de escrever um artigo para um jornal?

Esta é a minha segunda experiência a escrever num jornal. Durante nove meses, como a gestação de um bebé, tive no Expresso online um blog que era “O modo e o tempo”. Quando o Carlos Morais José me convidou disse-lhe que queria fazer uma coisa sobre moods, tonalidades, que tivesse a ver com qualquer coisa que nos aconteceu durante a semana. Estou tão cioso destes meus textos que saem no Hoje Macau que, às vezes, por qualquer motivo, elas só saem à segunda-feira. Então, o Carlos leva com os meus emails, cheguei mesmo a dizer-lhe que esta era a única coisa boa que me está a acontecer e, portanto, fico contente por ver o artigo online e por o poder partilhar no Facebook. Muitas pessoas lêem e partilham e eu fico muito feliz por isso, por estar no sudoeste de Portugal a pensar no sudoeste asiático.

Como surgiu a possibilidade de trazer a filosofia para um programa de televisão na RTP2?
Fui entrevistado duas ou três vezes na televisão. Este projecto resulta de uma conversa com o Nuno Artur Silva [administrador da RTP da área dos conteúdos de ficção]. Disse-lhe que queria ter um programa de filosofia justamente para fazer uma aproximação, que já se fez na ficção e na poesia, mas que nunca se fez na filosofia em Portugal. Há programas na Alemanha como o “Quarteto Filosófico”, na BBC há grandes entrevistas com grandes filósofos e o Nuno Artur Silva não me disse logo que não. Meses mais tarde disse-me: “Olha, o Público está a editar quinze livros de catorze autores, entre os quais Confúcio, porque é não começas por aqui? Em seguida abrir-se-ão portas”. Assim foi. Vamos ter treze programas de 30 minutos com o João Paulo Cotrim, o Luís Gouveia Monteiro, eu e alguns convidados. Depois a Teresa Paixão disse-me que tinha de apresentar em dois ou três minutos uma nota biográfica e uma nota bibliográfica.

A filosofia compagina-se com uma mensagem tão sucinta?
Sim. O Wittgenstein dizia que o que pode ser dito tem de ser dito claramente. Há pessoas que escrevem milhares de páginas e que falam muito, outras que não dizem nada nessas milhares de páginas. O Heidegger dizia que uma frase de Heráclito valia mais do que a inteira Biblioteca de Alexandria. Foi um exercício de compilação e, ao mesmo tempo, não de contracção mas de expansão. Foi interessante também por esse lado. Eu dou aulas de duas horas, os mestrados são de três horas, mas já dei aulas de quatro horas. É completamente diferente quando temos de pensar que não há reformulação possível. Diz-se uma nota bibliográfica e uma nota biográfica e espera-se que a pessoa não tenha tempo para fazer zapping e fazer-me desaparecer do ecrã.

4 Set 2017

Um vermelho tardio

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara Oriente nos fascina a cor vermelha – a sua cor vermelha – tão diferente daquelas que conhecemos, um escarlate sempre rubro no nosso imaginário, talvez no negro a Ocidente se dê este complemento e seja tão intensa esta atração.

Macau! Esta distante terra é como as oferendas que transportamos por méritos, tendo ficado assim como aqueles dons que se presenteiam e nessa transação não entrasse a guerra da conquista pelas coisas, apenas o usufruir de um merecimento. Nela têm desembarcado ilustres seres de uma Nação desavinda com a sua fixação, por ela andaram mergulhados de longos pensamentos que escutámos sempre nela, e, quase seria de esperar que as suas longas formas de praça forte tivessem ao longo de séculos protegido aqueles que o solo natal não acarinhou.

Escutávamos coisas vindas do Oriente como as suas sebes vermelhas, o Mar das Pérolas, o mandarim, e as húmidas e quentes Estações, as influências no duro osso nacional amansavam e dele saiam mais refinadas do que em nenhum outro local.  É por um deles, que agora para lá nos dirigimos, Camilo Pessanha, que se imolou numa nuvem de ópio e paz muito febril e cheio de uma nostalgia assim permaneceu como os mais belos gases que se evolam: todo ele era uma natureza quase gasosa desfazendo-se talvez numa  água, que os dias não precisam do pesado das carnes em locais onde elas pesam mais e os vermelhos não são sanguíneos. É por ele, esquálido e de génio iridescente que nos aglutinamos no extremo do mundo e tomamos como nossas as tempestades nascentes: assim, como um acto de amor inalterado que nos ficou para não esquecermos na voragem dos tempos os nossos melhores.

Pressagiamos a festa, e a volúpia vermelha do Galo de Fogo que tem fustigado a Ocidente as florestas e os dias de Estio feito mais duros, O Galo garboso e belicoso, esse ser da aurora que nos orienta agora na marcha dos sítios onde nasce a Luz, entendemos este Bestiário, e vamos sabendo que ele é muito mais, e cada vez menos, regional. Buda é o reflexo que nos diz que os homens de paz amam os animais, até os Ratos, tendo-lhe dado o primeiro lugar neste podium. Só eles acham encantos a este rastejante sobrevivente do asfalto que se franqueia em todas as marchas por onde Dragões hão-de passar.

Não é um dia como os outros aquele em que a vamos visitar. É assim como uma antevisão de uma vermelha tonalidade que só eles compõem, pois que a arte oriental, chinesa neste caso, deplora a tragédia e, nas suas mais inofensivas fórmulas, trabalha para um decorativo permanente, genuíno e delicado. A caligrafia disso é registo pois que desenhar alfabetos não será exactamente o mesmo que compor siglas. Esta maravilhosa arte do efeito gera em nós hipnose. Nós somos definitivamente e como modelo outros seres que foram felizes na Estética do Feio e se não fôramos mais felizes foi por que não nos deixamos ser por modelo filosófico.

Se Camilo Pessanha não era na índole um ser de natureza feliz foi porque  também o resultado de um país triste de fim de século «dos vencidos da vida», dos seus contemporâneos dos «Só» das negras sombras de Junqueiro, das lágrimas quentes do suicida Antero, da vaga nortada destes trajectos  se fez uma grande experiência de fogo interior. Os saudosistas de coisas outras da filosofia nacional, o momento político talvez vexatório, as amarras da família, a mãe, a namorada, a amiga, os homens. Mas a alma dos poetas são faróis eternos, olham-nos nas vidraças do outro lado do Espelho, e ele sabe que vamos por ele, louvá-lo a ele, por ele percorrer as distâncias.  A sua, nossa, dele Pátria, anda ocupada com tudo que é nada na visão concreta de um descortinar mais poético, que talvez em muitos casos nem saiba já quem ele seja. Ficam assim os redutos e os nichos da memória como canteiros vivos de vermelhas flores.

Dentro de algumas horas estaremos na sua aura calorosa, no seu mundo que para os que agora  a cidade se dirigem nunca fora distante, e nesta enseada nos vamos estreitando, aqueles que estão certos no fabrico dos laços. Os laços de amor tinham-nos sempre os Vice-Reis das Índias, eram formas de representar os tratados e as alianças. Os dedos já não as suportam nem os tempos as sabem usar.

Quando estivermos no Verão asiático o mundo será outro e nem os furacões e as desditas torrenciais nos afastarão esta alegria escarlate que nos corre no peito como um sangue lavado sem mais nada. É o coração que nos guia e assim não haverá tormenta e se cumprirão os pactos.

São os nossos Fados.

4 Set 2017

Camilo

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om passos de chumbo, esforçados, San Ma Lo acima, persigo a custo o elusivo dragão, fustigado pela agonia da carência. O meu corpo tem-se evaporado com o tempo como uma nuvem narcótica em direcção à dissolvência, sou a rarefacção de barbas negras mas arrasto, determinado, todo peso do universo nos pés. Procuro outro santuário, enfastiado pelos dias fechado em casa. Dirijo-me para a Hospedaria On Iok Iun, onde um familiar cachimbo me retornará à comatosa paz que anseio, às pupilas minguantes e aos sonhos indefinidos. Resfastelo-me na acolhedora esteira de Tánatos, onde morrerei mais um pouco, por mais um dia. Consolo-me neste exílio físico de não me sentir presente, de ser todo ausência, de me tornar matéria sublime, etérea, fora desta terra e deste cárcere de carne que me encerra. Sinto um indomável desejo de sucumbir e ceder ao doce abismo de um lugar onírico. Por aqui me quedo, mergulhado em fantasia, esquecido do enfado das minudências tacanhas de uma cidade que desgasta mais o espírito que todos os cachimbos do Oriente. Macau é o meu túmulo, soube-o desde que atraquei.

Fui desde o berço desterrado, perfilhado tardiamente, desde sempre consumido tanto por febril paixão como por profunda misantropia. Fruto do adultério, nunca me senti amado, desde que fui arrancado do útero. Joguei-me ao mar com o coração nas mãos, pronto para o alcançar o longínquo destino oriental, sedento de esquecimento, teria ido para a Lua se me fosse permitido.

Cheguei a esta terra, cultivei amizades vitalícias e escrevi, quase em segredo, as paisagens do meu banimento, os hinos da minha melancolia. Deixei-me ferir pela cruel boçalidade saloia e bebi, consciente, o veneno oferecido por conterrâneos que sempre me olharam como se fosse o mais extravagante dos estrangeiros.

Rapidamente deixei-me seduzir pela musicalidade tonal do mandarim, pela lisura dos lacados com que a Europa saliva desde os tempos do emproado Rei Sol, pela profusão de dourados e vermelhos. Rendi-me aos recantos abrigados da mais míope diáspora e abracei o inteiro continente chinês que se espraiava para mim depois das Portas do Cerco. Coleccionei arte, mulheres e manhãs de agonia, encontrei familiaridade no exotismo.

A Macau que conheci era um pequeno pedaço de China onde reinava um conservadorismo de aldeia isolada, era como viver numa sacristia a céu aberto onde se espalhavam condenações e penitências generosamente a quem ousasse ser diferente. Macau coleccionava pequenas pessoas carregando enormes fardos morais cimentados pelo dinheiro, tornando em coros os cochichos de maledicência e acefalia analfabética. Felizmente fiz amigos que duraram a vida inteira, que floriram como o lótus deste lamacento canteiro civilizacional. Empreguei o labor que o devaneio me permitiu às minhas obrigações profissionais, emaranhei-me em burocracia enquanto a possessão estética me deu descanso. Mas esses labores apenas me trouxeram agastamento e uma imensa vontade de tudo largar.

Hoje vivo na memória de poucos, como um vulto cuja sombra se projecta gigantesca no exterior e minúscula na cidade madrasta que faz por me esquecer.

Tentei resistir até onde pude, para finalmente tudo largar, sempre com a imagem dela a trazer-me mares salgados aos olhos.

Ana, minha perdição, meu eterno amor, minha rosa bravia florida fora da estação. Abismo de mim, vento agreste nas velas do batel do meu exílio, minha Cleópatra, minha Czarina, minha A-Má, minha Rainha. Passo dias inteiros a tentar reconstruir a tua voz. Por muitas concubinas que me tenham passado pelos lençóis, serás sempre a mais doce das negações, a ausência pela qual queimo sacramental sândalo no incensador da minha devoção. Arderei para sempre por ti. Sou teu antes de ser o quer que seja, é a ti que anseio retornar, a minha dor de ti é a única pátria que conheci.

4 Set 2017