Três amigos, Camilo Pessanha, Padre Manuel Teixeira e Armando Martins Janeira

 Com Camilo Pessanha, em São Miguel de Seide

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m São Miguel de Seide,

rasgado pelo esplendor de um estranho ocaso,

falo de Camilo, o outro, o grande Pessanha,

“morto vivo” em Macau.

 

Lá longe, as paredes da casa humedecidas pelo tédio,

uma imensa “abulia, sem remédio”,

as mulheres chinesas, o desamor, o descarinho,

o ópio enegrecendo os dias, de mansinho.

 

Aqui, o cintilar das rimas, no triste entristecer,

lá fora, água cristalina nos lameiros,

a luz insinuando-se pelos meandros do entardecer,

o ondular da bruma nos outeiros.

Apetece ajoelhar, reverenciar o deus da poesia,

beber o sublime das palavras, do sentir,

em tempo de extremado sofrer, de melancolia,

os lábios numa prece. E depois partir.

 

 
Com Monsenhor Manuel Teixeira, em Freixo de Espada à Cinta

 

Sempre o conheci,

de batina e barbas brancas ondulando na brisa,

sobraçando livros e canhenhos,

a História de Macau, os missionários,

a gesta portuguesa pelo Extremo-Oriente,

tudo na confusão e poeira dos arquivos,

depois a baloiçar na ponta da sua pena.

Alegre e afável na companhia das gentes,

as senhoras bonitas para a fotografia,

com os amigos bebericando o “chá da Escócia”,

excelso whisky com uma pedra de gelo,

garantia certa, dizia, “para afastar o calor.”

Todos os dias, às sete da manhã,

missa na capela de Santa Rosa de Lima,

o padre falava com Deus,

levava chinas ao Céu.

Em Trás-os-Montes,

na sua Freixo de Espada à Cinta,

de onde saiu menino,

venho ao seu encontro,

na memória distante

do Portugal que lhe corria no sangue.

Por Macau, viu passar dezanove governadores,

quase oito décadas de vida

de mãos abertas para a cidadezinha

na foz do rio das Pérolas

que, para sua tristeza,

passou de portuguesa a chinesa.

Velho, aproximou-se de Deus

e foi, depois do regresso

à sua bravia terra transmontana,

que, serenamente, fechou os olhos e partiu.

Deixou escrito:

“O homem é pó. A fama é fumo e o fim é cinza.”

 

Com Armando Martins Janeiro, em Torre de Moncorvo

 

Armando, meu amigo,

nado e criado na singeleza assombrosa destas terras,

sob a silhueta azul do céu

e os verdes e castanhos esparramados pelos montes.

Criança ainda, no alpendre da casa da avó,

na aldeia de Felgueiras,

crescia o sonho de conquistares o mundo.

Quem diria, havia todo o Japão à tua espera,

séculos de história luso-nipónica,

Wenceslau, mais mil diplomacias,

e gueishas perfumadas levitando no requebro dos dias!

Chego a Torre de Moncorvo

com o sol poente descendo pela crista da montanha.

Entro na velha igreja onde foste baptizado,

a pedra carcomida pela erosão dos anos,

a voz silenciosa das colunas medievais,

um altar barroco, anjos e querubins,

a Senhora intercedendo por nós, diante de Deus.

Em mim, uma prece, o joelho

descendo para a laje fria do templo

e saio com o repicar dos sinos.

Sigo depois pela encosta da vila,

ao encontro do teu busto de bronze,

cinzelado tal e qual como te conheci,

o Armando, excelente cepa transmontana,

orgulhoso e humilde, inteligente e sagaz.

Uma saudação, um afago na luz ténue do teu rosto,

uma despedida e sigo viagem,

pelos últimos raios do entardecer,

entre montes dourados onde a noite nasce.

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