Uma instrução positivista

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]eguimos pela carta do Senhor Z, publicada a 11 de Abril de 1894 no Echo Macaense, dia seguinte à chegada de Camilo Pessanha a Macau.

“Dirá V. Exa. que eu sou defensor do atraso da instrução; não sou, não Sr.; le monde marche e caminhemos com ele e como ele; mal vai a quem assim o não fizer. E este meu modo de pensar e obrar, não sei se é ajuizado; quer-me parecer até que o não é; mas tenho muita e muito boa companhia, e isso me consola do meu desatino e do desgosto que por vezes sinto em não ver melhor encaminhado em Macau o estudo da língua portuguesa, cujo conhecimento é, como acima disse, da mais absoluta necessidade para os seus filhos.

Esta necessidade, porém, embora seja de grande monta para nós, tem de se amoldar às circunstâncias que predominam em geral nesse ensino, e essas circunstâncias não podem ser senão as que se dão no reino; e se elas são ali desfavoráveis, o ensino em Macau tanto do português como do mais há-de ressentir-se disso fatalmente.

Que elas são desfavoráveis ao reino, sabe-o toda a gente; mas para melhor se ver isso, vou transcrever alguns trechos da obra O DOUTOR MINERVA crítica do ensino em Portugal, por Manuel Bento de Sousa, publicada no princípio deste ano [de 1894]. Diz o citado autor: “Entretanto, se por um lado é evidente que degeneramos, e por outro é uma verdade impressa nas consciências das sociedades civilizadas – o ser a instrução meio certo e bem formar homens para as dificuldades da vida – qual é a influência que nos abastarda, a nós que tanta instrução temos?

“Evidentemente também a resposta é esta: – é a mesma instrução, por ser falsa, fingida, desvirtuada, numa palavra, porque não presta. E, porque não presta, tudo vamos perdendo do que tínhamos, até a nossa bela língua, a qual, não falando já do português familiar (essa mesclada algaravia tão semelhante àquela gíria dos circos, em que o arlequim mete palavras de quantos países atravessou) vai notavelmente decaindo no que em público se diz e se escreve, como não pode deixar de ser, visto o modo porque a ensinam. [Lembre-se! Está a ler um texto do último decénio do século XIX.]

“Já de muitas escolas foi banida a gramática portuguesa para a substituírem umas coisas do Sr. Fulano ou do Sr. Cicrano, verdadeiras antigramáticas, amparadas por aprovações superiores e divulgadas por mestres, que, uns por necessidade e outros por timidez, as admitem nas suas lições.

“Bastará correr as primeiras páginas do que mais voga tem no centro do país para admirar com espanto que tão errada e confusamente se exponham matérias, que era fácil tornar mais claras e é difícil tornar tão obscuras, o que tem levado muita boa gente à convicção de que tal atrapalhação seja intencional num ensino que, como todos o sabem, se torna assim mais rendoso.

“Com tal ensino ninguém deve admirar-se de que a língua se corrompa, devemos todos esperar que dentro em pouco esteja reduzida ao que entre nós sempre se chamou – língua de preto.

“O que vai pela gramática vai por tudo o mais. O estudo do latim foi desviado da sua direcção, deixando de ser uma base para ser um acessório.

“No ensino antigo, logo que o estudante estava senhor da gramática portuguesa, passava para o latim e era conduzido de tal maneira, que ao terminar a sua latinidade achava-se, e sem dar por isso, sabendo bem o português, o português ao mesmo tempo singelo, puro e másculo, que o padre Malhão falou e António Rodrigues Sampaio escreveu, sem lhes ter feito falta nenhuma o não os terem maçado em pequenos com a ciência do português. Desta riqueza, pelo menos, ficava possuidor o estudante aplicado, acontecendo muitas vezes ficar senhor de mais outra, que era saber a fundo uma língua morta, que o habilitava a seguir os modelos de uma literatura, os quais, digam o que disserem, não são para desprezar-se, (…). Hoje o latim acabou por ser uma língua desnecessária, um preparatório de formalidade, com o duplo encargo de fazer gastar dinheiro aos pais e tempo aos filhos e a dupla vantagem de se não ficar sabendo nem o latim nem o português.”

Liberal Educação

“Com tal ensino e tais livros, com tal tolerância dos governos que à sua sombra se vão decretando programas, que chegam a perguntar aos alunos das escolas primárias pelos serviços literários de D. Diniz e D. Duarte, e a pedir indicações do atraso intelectual dos primeiros tempos da monarquia – e dos progressos da agricultura, letras e ciências no século XVIII; com planos tão acertadamente traçados e sua execução tão magistralmente desempenhada, qual deve ser o fruto certo para todos os que não tenham meios de por outras vias e pessoas adquirirem os conhecimentos, de que precisem?

“Se o estudante for acanhado de inteligência, e sujeito a perturbar-se por esse mesmo acanhamento, mais se escurecerá o seu espírito, ficará ignorante e incapaz de ganhar a vida, dando no futuro um vadio perigoso, se os braços paternais do Estado o não ampararem para fazer dele um empregado obtuso. Se for vivo e talentoso, tudo vencerá com esforços de memória, repetirá coisas que não entende, com a mesma proficiência com que repetiria as máximas de Confúcio em língua chinesa, sem lhe saber os significados, e, amestrado na cábula e outros meios de vencer exames sem conhecimentos sólidos, ficará com o saber bastante para ser pedante e a arte precisa para ser velhaco, vindo a dar no futuro um sustentáculo deste desgraçado país …> Assim se expressa o Sr. Manuel Bento de Souza.

“Aí tem V. Exa., Sr. Redactor, bem debuxado o quadro do ensino em geral, e do estudo de português e latim em especial, no reino, e sendo ali essas as circunstâncias do ensino, que admira que em Macau o estudo do português e outros não estejam mais desenvolvidos e não produzam melhores resultados? O que realmente admira é que não estejamos mais atrasados tanto no português, como nas outras matérias.

“Não tem, pois, V. Exa. razão na referência que fez ao pouco resultado do ensino de português em Macau, o qual necessariamente há-de ressentir-se da viciosa norma superior que lhe é apresentada como modelo e como guia.

“Em conclusão, Sr. Redactor, permita-me V. Exa. que eu lhe declare com a máxima franqueza que o fim desta correspondência é mostrar que o seu artigo editorial, louvável no seu intuito, primoroso na sua forma, e sensato nos seus princípios gerais, peca todavia pela ingenuidade e pela inconveniência (para a vida positiva da época, já se sabe,) do seu alvitre para desenvolver a cultura da língua portuguesa, e pela inexactidão e uma tal ou qual injustiça na indicação da causa por que não é profícua em resultados práticos o estudo de português em Macau, que, sendo filha de Portugal, tem de lhe seguir os passos e há-de reflectir o seu modo de viver, seja ele qual for. É lei da natureza e da sociedade, a que não há fugir, por mais relutância que se sinta: ou bem que somos ou bem que não somos.

“Agradecendo a V. Exa. a publicação destas linhas, me confesso obrigado.

De V. Exa. etc., Z”.

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