Deste interior não sai ninguém

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap], no entanto, entra-se. Pode-se entrar por ele adentro como de uma realidade que, podendo ser ilusória, nunca se perde de o ser. E cair. Por essa realidade abaixo. Por ela fora, por aí. Mesmo se inexistente. Mesmo se previamente inexistente senão em possibilidade, e mesmo se antecipadamente pressentida em toda a sua intangibilidade, para além de uma sombra um reflexo ou a pura invenção de uma camada do que não é, não foi, mas se presta a uma forma possível. De ser. De iludir.

Ali me sento todos os dias na sua frente. Não talvez já a tentar entendê-lo, mas que se me revele ele lentamente no seu silêncio. Encontrar-lhe o olhar. A cor. Pinceladas que erram ou não.

Pintar. Às vezes, como partir para um “blind date”. Sentar-me à mesa com o desconhecido. Uma coisa mútua, em que cada um tenta explicar-se ao outro.

E ficava. Quieta nas horas, em frente a ele quando veio sentar-se. Central e necessário. E eu em busca de lhe entender o olhar. Como uma linha da vida, da mão, da página, do coração, em que, como numa única e ínfima célula, se encerrasse como num cofre, todo o código genético de um pensamento, de um sentir e de um viver. Numa única célula. De um corpo. De uma frase. De um olhar. Esse seu olhar divergente, como uma curiosa antecipação genética ao que teria que ser. E a ver a chegada de cada linha, numa arquitectura de interrogações. A mim, a ele, a esse interior de que não se sai.

E antes ainda, à procura de um local mítico de encontro improvável, possível, na imensa maleabilidade do tempo que tudo admite à ilusão, à fantasia ou à memória, encontrei-me como se com esse meu mais que ilustre, distinto e invulgar colega do Liceu de Macau. O ponto etéreo de cruzamento de uma memória com uma fantasia. E eu ali, como sempre, pequena e timidamente o olho em tentativa de entender. Sabendo, sem redenção, que não se sabe o desconhecido. Sabe-se o desconhecimento.

Baixo. Surgiu baixo e fui ver. Na verdade, então, não era uma figura imponente. No corpo. Não no corpo. E ficou ali, e um dia, depois, voltou e enrodilhou-se sobre si. A olhar de dentro, soturno e calado como o outro. E quando voltou, vindo de um real para além da dor, cambaleou a ansiar o conforto de não pesar ao corpo, nem a vida, nem o pesar a consumi-lo. E os monstros. Fugido de monstros e memórias, ou talvez a mesma coisa tudo. Cambaleou para o interior vindo da dissolução progressiva e futura. Reuniram-se na curvatura de uma parábola muda de cegos – pensei: como a outra, de Brueghel – e assim também aqui esse desígnio os fez cair. Ancorados no cego da frente, o primeiro a ouvir brisas ténues da poética realidade enfeitiçada de símbolos, que tudo modelou do início para o fim. Dali, da frente, para trás, o início de tudo. Aqui, ou ali. Como se no tempo da narrativa, no tempo de se deixar varrer de olhos em muda interrogação, se pudesse distinguir duas opostas leituras vectoriais. Dois sentidos de leitura, entre o oriente e o ocidente do oriente também do quadro. Numa curiosa imagem, do fio cronológico das coisas que se sucedem. Antecedem?

Mas há uma face a que nunca terei e se tem acesso. Não vou dizer o que, assim, não é nomeável. Tacteável. Que de dentro espreitaria sempre sem se deixar ver por detrás de reflexos cristalinos de um olhar cuja cor não ficou registada. E dele sempre seria evidente, mais o reflexo do que o interior. E é um jogo imparável, este, do desconhecimento. E assim se anda sempre á procura de um entendimento do outro, confundindo-o em muito com o que reflecte de quem o olha. De um além fechado sobre a impossibilidade de saber mais. Mais para além do muito que floresce em palavras e pequenas e múltiplas peças de um puzzle labiríntico, em que se o tenta edificar. A pessoa que já não está. Por detrás das palavras e dos gestos que elaborou. E que noutro tempo, sabe-se lá onde estaria para além ou para aquém delas e desses.

Observei até quebrar a estranheza, os olhos e como quando os olhos teimam em ser baixos se lhe eleva o queixo. Em desafio. Todos os dias de riquexó e cão para o liceu. Onde fomos colegas. Que importa se num tempo que não cruzou ali caminho nem pena nem espada. Honra-me assim pensar o tempo sem direcções preferenciais, sem disjunções estanques, e porque às vezes não as tem mesmo e de todo. O tempo da memória faz-se talvez de matérias como o da imaginação e da ilusão. Sim. Ia de riquexó e de cão para lá. O homem que deu este nome a um cão. Arminho. Como as etéreas rendas de que cobria a madrugada dos poemas. Cortinas e esfumados lirismos como das gaivotas exaustas e sem ânimo. Nunca mortas, afinal. Sentava-se mais tarde quieto na camisa- de- forças do seu duplo e pensava na gaivota por morrer. Arminho. Sabe-se lá porquê. O arminho que é coisa leve e de fru-fru de festas. O arminho que é coisa inquieta a um simples suspiro, leve como leves os tules das cortinas simbólicas de que reveste os seus monstros. Dantes, Nilo ou Tejo eram nomes de cão e o do seu, leve e esvoaçante. Talvez a paixão pela música das palavras não deixasse chamar-lhe das pérolas. Deste rio. E, no entanto, pérolas são os pontos de dor da ostra. Tornados luz.

Mas o que de um poeta diz, a vida de um poeta, e o que diz um poeta no que diz, o que diz no que não diz, talvez. O que se esconde no que esconde e naquele que o procura, a ele ou esconder.

De que véus e velaturas se recobre o que se esconde, como de desvendável existência, é pergunta que me fugiu desamparada para o longínquo horizonte da resignação. Como se sólida matéria a intuir por detrás. Mas o escondido é nebulosa não matéria. Invenção de que pergunta, sem saber mais do que adivinhar o muito que preenche o território de que se revelam as sombras projectadas do poeta. As brumas amigas. As camadas de encobrimento. Aguadas como poalha em dias de chuva. Coloquei-as para não ter a pretensão de as retirar. Janelas sobre o espaço. Entreabertas e obstruídas levemente de leves cortinas. Portas que não levam ao conhecido. Cuidadosas a mais por detrás de biombos. Como filtros. Como roupas entre o corpo e a casa. Pessanha, o quadro sobre um tempo invisível que não atinjo mas tapo. Os quadros vivos atrás do quadro.

E indecisa digo também o contrário, como da vida me chegam sempre ecos. Porque há de a vida abalroar-me sempre nesta estranha convivência de contrários. Recomeçando. Como distinguir-lhe um silêncio de secreta abertura, de um silêncio de discreto encerramento. E depois, trocar os adjectivos. Porque me fugiu sempre a invejável harmonia das certezas, para este olhar polifónico que me traz num carrocel. Mas ele ali, parado, que pensaria?

Quando naqueles dias de alma difusa e sem ideias que transpareçam por detrás desta cortina, deixo que sejam os pequenos bichos devoradores a agitar-se na folha. Cada um na certeza de existir e produzir sombra. Sem cardume possível se bem que partilhando águas. Sigo-lhe as sombras. Os objectos a representar a vida e a cobrir esta de obstáculos ao vazio. Intrigante colecionismo, o de objectos inúteis e crivados de imagens. Duas camadas de máscaras sobre o interior. De um pote, um vaso, um jarrão sem flores. Vivas. Vazio. Como na poesia, que dele revela uma leve e musical arquitectura da dor. De que parte, que recobre, e onde regressa como ao grito necessário. Medido e emendado. No entanto. E recoberto de símbolos ou diluído neles. O grito da dor. Da que é início e decidida sentido e fim.

Sento-me na sua frente todos os dias. Desmultiplicou-se em tempos, fragmentou-se, diluiu-se no fundo, como era para ser. Denso de cor e etéreo de transparência. Sento-me ali a olhar como, por um túnel paradoxal de linguagem a tentar igualar a vida, se juntam e justapõem os tempos, os lugares e as fases de ser, entre uma poética guiando a vida e, em sentido contrário, o recuo a uma retaguarda que foi teoria e definiu. E não salvou.

Restos. Como células que descartamos todos os dias. Invisivelmente. Em cada passo, em cada gesto. Impressas do código genético. E partículas de água que se evolam e nos abandonam a uma secura de plantas. A ir. Naquele fio do tempo. Ou da navalha. Como restos são os mortais. Ou os restos imortais espalhados por uma eternidade de memória, nos quais, como um convite desfiado em cordas, se tenta ascender. Adivinhar caminho. Ou tão simplesmente, na música do poeta. Sem mais do que ouvir. E queria o olhar inquieto a viajar, de leste a oeste do quadro. De oriente a ocidente. Repletos de origem, confusos de final.

Tantos dias e tão poucos ali me sentei na sua frente. Ele calado e eu. A tentar adivinhar a arquitectura daquele interior. Daquele exterior invasivo. A tentar não o expor nem o fechar. Com a emoção de um encontro. E um dia, encerro a última aresta daquele interior cruzado de monstros e enigmas que ficam. Deixo uma portada entreaberta e vou. Mas olho para trás todas as vezes que posso enquanto o meu olhar alcançar o quadro. O poeta. Despeço-me com saudade. Do encontro plano com a terceira dimensão escondida e escura atrás do quadro. Está frio. O tempo congelou. O homem morreu. A poesia não.

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