Ângelo de Lima e a nossa loucura moral

Nos vinte anos passados em Rilhafoles nunca terá habitado o famoso panóptico, destinado aos loucos furiosos ou agitados, como se dizia à época. O psiquiatra Miguel Bombarda impusera-lhe no diagnóstico um vago “loucura moral”, que é como quem diz “loucura social”. Alguns anos antes, é lá que Fernando Pessoa, não se sabe acompanhado de quem, vai buscar um punhado de poemas para publicar no segundo número de Orpheu, assim respondendo a quem considerava loucos aqueles novistas, atirando-lhes como resposta um louco consumado e contumaz.

Ângelo de Lima, poeta e artista plástico, nascera no Porto em 1872. Ingressa muito novo no Colégio Militar em Lisboa, do qual é expulso em 1888. Regressado ao Porto, aí frequenta a Academia de Belas-Artes. Reconhecido desenhador, chega mesmo a substituir o pintor (e também poeta) António Carneiro na direção artística de uma das muitas revistas artísticas que pululavam na capital do Norte, A Geração Nova (1894-95). Continuará ainda a desenhar nas instituições psiquiátricas que o acolheram, mas a sua obra gráfica, tocada de óbvio academicismo, não se compara à importância da sua poesia. Como militar, oferece-se para seguir em 1891 na expedição a Moçambique que apresou o Gungunhana e está também envolvido na gorada conspiração republicana do Porto, no mesmo ano, e de que tem notícias ao chegar a Adem. Depois de complicações várias, incluindo um presumível incesto e um desacato público, em 1901 é internado em Rilhafoles, hospital em que mais tempo passará, até à sua morte em 1921.

A loucura domina assim como um signo fatal sobre o poeta e sua obra, não só comprometendo-lhe a receção, mas toldando ou até apagando o entendimento dela. Mais do que isso, toda a crítica – nem de propósito, Essa Crítica Louca é um título de E. Melo e Castro – está, na verdade, refém desta questão, na loucura moral de não ver o óbvio.

Cem ou mais anos para ver o óbvio: Ângelo de Lima nunca foi louco, foi feito dele um louco. Bastaria olhar a métrica perfeita e a articulada desagregação gráfica dos poemas. São textos enlouquecidos de um poeta que nunca foi louco, e apenas na aparência desarticulados: “– Mia Soave… – Ave?!… – Alméa?!…/ – Maripoza Azual… – Transe!…/ Que d’Alado Lidar, Canse… / – Dorta em Paz… – Transpasse Idéa!…” Já não é esse o caso da prosa, a maior parte da qual muito possivelmente escrita mais tarde, como a carta em que disserta acerca da feia bandeira do novo regime, apesar do seu republicanismo inflamado. É já uma carta de alguém de quem foi feito um louco.

Mas há que começar a ler Ângelo para além da sua (falsa) loucura. O seu caso é um de lenta patologização de comportamentos desviantes, como as obscenidades que terá proferido num teatro (“porra!”) ao ser comprimido pelo público e um incesto com uma suposta meia-irmã. É hoje em dia extremamente perturbador, e significativo do grau de controle e alienação de uma sociedade que não só encarcera alguém que diz “porra!” no lobby de um teatro, mas que ainda o patologiza com base nisso e num suposto incesto, nunca comprovado e sempre desmentido pelo poeta.

Do teatro vai direto para a penitenciária, e daí para Rilhafoles, num processo de criminalização da miséria amplamente documentado por João Gonçalves, no elucidativo A Penitenciária perante a Loucura, obra de 1908. Ratoneiros, latoeiros, lavradores analfabetos é que formam a brandoniana enxurrada humana que escoa em Rilhafoles. Seria essa uma das causas da patologização de Ângelo, empobrecido e alcoólico por anos de errância? Não sou eu quem o diz, antes de mais o poeta: “Eu não sou doudo, tenho sido manejado como um puro manequim”, frase repetida por João de Deus nas Recordações da casa amarela e que, quanto a mim, deve ser lida à letra. Nas últimas linhas da sua autobiografia diz ainda: “E agora aqui estou, resultado final, sob concorrente exótica – a determinação tão arbitrária dêsse acobertado com a autoridade legal – resultado final até aqui, dêste viver aqui neste papel descrito.” É outro texto que, pela sua desarticulação, já mimetiza, pelo menos na sintaxe, as vesânias que lhe atribuem.

Posto isto, falta só uma coisa, que é ler os seus poemas, lê-los realmente, e parar de os apresentar como exemplo de loucura em literatura. Parar de o tomar como exemplo de o que quer que seja. E então estaremos prontos para encontrar, por exemplo, o Oriente metafísico da sua poesia, ao qual não escapou a China, e que vai muito além dos livros de jade de uma Judith Gaultier: “– E a Mãe do Rei do Reino Sul-Occaso/ Disse a Mu-Ang – Alguma Vez, Accaso…/ – Olha a Nuvem no Ceu… e como Corre!…/ – Assim as Horas da Ventura Minha… / – Quem Tem Filhos na Terra – Esse Não Morre!…/– Despozae – Se Sois Rei – uma Rainha/– Que É Tanto como Vós Pela Grandeza…/– E… Depois… de Espozardes a Belleza /Podeis Seguir Então Vossa Encaminha!…”

E é assim que, nesta reta íngreme em direção ao olvido na qual sempre vamos distraídos, ninguém se deu conta dos cem anos passados sobre a morte de Ângelo de Lima, em ano que se encontra agora perto do fim. Talvez este seja o único texto publicado na imprensa de língua portuguesa que se lhe dedica. Em Macau, o que é significativo.

Esperemos que não, embora muita coisa naquele país distante seja possível, o Grande Reino do Mar de Ocidente, como lhe chamavam os missionários que chegaram à corte imperial de Pequim. Posto assim, nominalizado e substancializado pelas maiúsculas, quase que essa inglória tradução da língua chinesa parece um poema de Ângelo de Lima.

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