Para emendar de vez o caos

[dropcap]O[/dropcap] caos apenas respira onde não há imagens que lhe possam dar sentido. Quando se criam imagens, a voragem tranquiliza-se. São elas que melhor induzem a um reequilíbrio, mesmo se precário. São elas que conformam e dão a ver a vida como uma flutuação imprevisível que pode ser domesticada. Um bom design tranquiliza. Um bom site embala a navegação. Um anúncio a clamar por derrame estético demove-nos (aparentemente) do mal.

As imagens confundem os nossos gestos com o mundo e, por outro lado, conotam poderosamente, dando-nos a ver o que aparece, mas também o que lá não está, saciando-nos fantasias. De um detalhe efabulamos todo um continente. Esta capacidade de simultânea apreensão e aceleração aparece reflectida em actividades humanas ancestrais ligadas à persuasão. Mas não só. A história, relativamente recente, da publicidade e do design são trunfos que sempre respiraram dentro desta jangada que nos faz a todos marinheiros de um oceano feito de espelhos esféricos sempre a rodarem.

É curioso como as marcas trabalham a partir da ideia de uma anamorfose que permanentemente se recompõe. Definidas por Al Ries e Laura Ries (e por outros gurus da área) como “percepções que o público tem de um serviço, produto, pessoa, etc.”, a verdade é que ninguém detém ou controla uma marca*. É por isso que elas deslizam para além dos sentidos que as condicionam, como se fossem modelos em permanente reactualização, compostos por “património”, o que é tangível, e pelo essencial “core”, o que o não é. A uma referência (e a uma história) cola-se sempre uma nuvem (ou uma aura). Enquanto se afirmam, as marcas preparam, sem cessar, a sua encarnação noutra e noutra catadupa de imagens. É isso que as posiciona: a reencarnação. É isso que as cola a todos nós.

Este efeito de boomerang entre factos, acenos e figurações também é típico do design que nos compõe o pano de fundo (material) dos dias. Por um lado, pelo facto de ser a maior marca do mundo (na medida em que atravessa todas as actividades, bastando o nome que o designa – o design – para definir um horizonte, um status, uma fasquia). Por outro lado, pelo facto de desmistificar o encantamento estético, enquanto o empresta aos objectos em que se realiza (seja uma t-shirt, um automóvel ou um simples teclado de computador).

Dito de outro modo: o design propõe a transformação do mundo físico num imenso sopro onde o nosso corpo desejará idealmente rever-se ou verter-se (e ser acolhido) como se fosse um vasto estuário. Tudo o que ao longo da história moderna e industrial se limitava a ser apenas instrumental – um mero revestimento – está hoje a constituir-se como um modo de o humano, ainda que involuntariamente, se cumprir.

A ritualização de objectos culturais – muito desejados – que é levada a cabo pelo design reata práticas muito antigas (lembremo-nos dos báculos megalíticos que eram, ao mesmo tempo, objectos de culto e de pastoreio), mas adquire uma novidade sem precedentes, ao reunir a ‘transcendência estética’ com a emergência do dia-a-dia. O deslumbre e o quotidiano de mãos dadas.

Como se o design existisse para se sobrepor ao caos, ou para ilusoriamente o emendar, e isso justificasse o mais importante laboratório de imagens que existe no planeta. Não é por acaso que ele surge e se enuncia ao serviço de tudo o que nos rodeia (como se fosse uma camada invisível que nos inscreve o ânimo e nos promete sentido): na medicina, na publicidade, na rede, nos objectos, na indústria, nas campanhas políticas, na arquitectura e nas mil melopeias mais vãs da comunicação.

Curar a crueldade já foi função dos mitos nas sociedades ancestrais; hoje essa expiação pertence às grandes máquinas de sedução pública. E nós nem damos por isso: uma verdadeira cirurgia sem dor.


*Ries, A./L., (2002) 2003, A Queda da publicidade e a ascensão das relações públicas, Editorial Notícias, Lisboa.

5 Set 2019

Dar corda ao relógio do caos

[dropcap]D[/dropcap]isse-me um senhor em Mafra que, no princípio do mundo, só havia ratazanas albinas. Depois vieram os humanos e a sua terrível mania de contar histórias e de relatar ‘memoriais’. Tinha razão, pois, desde a mais tenra infância, que ‘contar a vida’ é o desígnio mais óbvio que nos persegue. O mundo começa a alicerçar-se quando entendemos quem foram os nossos avós e bisavós, por onde andaram, o que fizeram, que traços deixaram. Há alturas na vida em que regressamos a esses vestígios e os passamos a pente fino com aquele jeito com que os cães cheiram os interstícios da lama ou a terra dos canteiros de onde brotam rosas em flor.

Um dos livros que mais associei a este tipo de afinidades (nada electivas) foi A Vida e Opiniões de Tristram Shandy de Laurence Sterne, uma obra publicada em meados do séc. XVIII. O ponto de partida é este: o biografado só é quem é (ou aparenta ser), devido ao modo como foi gerado. E a razão é elementar: nove meses antes de o biografado ter vindo ao mundo, em pleno truca truca, a futura mãe pergunta ao futuro pai se deu corda ao relógio. O homem ficou logo desarmado, o afã a murchar, o vaivém a esfriar tipo comboio a travar nos altos do desfiladeiro depois de ter soado o alarme.

Os efeitos que a pergunta provocou (imagino a futura mãe a olhar para os rendilhados do tecto sem sequer encarar o rosto anquilosado do homem), foram depois decisivos para a vida de Shandy (nome que, na sua origem, significa ‘cabeça oca’, ‘maluco’ ou mesmo ‘doido’, apesar de o termo ter raízes obscuras, podendo estar ligado a uma palavra do Inglês antigo – “shanny” – que quer dizer bufão, truão ou mesmo charlatão). O facto é que Shandy fica tudo a dever ao instante preciso em que foi gerado. O livro acabará por ser uma longa digressão: um passeio por tudo e por nada, uma narrativa que fala de si mesma e que quase acaba por elidir o herói, cuja trama e desgraça foram semeadas pelo relógio da sala.

O que ecoa da obra de Sterne é o nexo da linguagem, a atmosfera, o jogo sem fim. E é por isso que o livro se viria a tornar tão importante para diversos autores das ‘vanguardas’ do século XX. Das histórias que na infância chegaram até nós – acerca da vida dos nossos avós e bisavós – ecoará precisamente o mesmo: ambientes, geografias vãs, casas destelhadas, algumas anedotas e digressões inacabadas, enfim: sombreados que fascinam. Afinidades que não escolhemos, mas que nos semeiam e que desempenham o papel (da corda) do relógio da casa dos pais de Shandy.

Não tenho dúvidas nenhumas de que as atmosferas, digamos as músicas de fundo, são sempre memorialmente mais importantes do que os factos ditos reais (com princípio, meio e fim). A captação dos ambientes excede sempre o tema e o diapasão concretos.

Quando relembro ensaios que li, revejo sobretudo uma experiência íntima da linguagem e bem menos aquilo que pretendia ter sido comunicado (a chamada força ilocutória). O que fica repete-se interiormente como um brado que se agita e o que talvez fosse fundamental – aquilo de que se faz apologia – quase que se dilui como o óleo no mar. Quando relembro romances que li há algum tempo, acontece aparentemente o contrário: ficam situações, facetas de personagens, quebras, viragens, paisagens, palavras e expressões avulsas. A linguagem, ou o mar que faria de aquário a essas espécies, parece desaparecer. Evaporar-se. E só renasce de cada vez que volto a abrir um desses romances e releio uma ou outra linha. Seja como for, num caso e noutro, o que fica são os sombreados que fascinam.

Ainda que não cheguemos aos calcanhares das ratazanas albinas (terão elas calcanhares?), o certo é que ‘contar a vida’ não passa de uma Rayuela sem chão para pisar e para saltar. Bem sei que W. Benjamim foi pioneiro, quando alertou para o facto de a complexidade da vida moderna travar o tradicional trânsito dos legados familiares e de proximidade. Seja como for, o caos apenas respira onde não há imagens que lhe possam dar sentido. Mesmo que esse sentido resida em quebras de tesão e nos celerados ponteiros do relógio da casa dos pais de Shandy.

28 Dez 2018

A R.A.E.C. (Região Administrativa Especial do Caos)

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]rbanisticamente, Macau nunca evidenciou tantas deficiências. Não há praticamente zona nenhuma da Taipa e muitas de Macau e Coloane que não estejam em obras. Algumas delas têm anos de vida. O pó, a sujidade, a inconveniência e a fealdade acumulam-se. A poluição do ar e a poluição sonora são um mal constante e em várias áreas do território (em jardins com crianças) há um permanente cheiro a diesel. A zona em redor do aeroporto, primeiro local de contacto com a cidade para um número significativo de turistas, há anos que está um nojo. A zona das Portas do Cerco é um caos. O Terminal Marítimo Provisório da Taipa é um sítio de Terceiro Mundo.

Ninguém parece perceber nada do que se passa e a confusão é total. A operação dos transportes públicos revela total incompetência, sendo sem qualquer dúvida a pior rede de transportes públicos de uma cidade rica que eu conheço. Não é preciso pensar muito para se perceber a razão de tudo isto: total provincianismo e ignorância pura.

O que é o desenvolvimento? Não vale a pena estar a arranjar canteiros se não há flores. Macau não está mais desenvolvida, tem mais carros e motas, mais residentes, mais turistas, mais hotéis, mais cuspo, mais casinos, mais lojas de joalharia e parece maior. Mas os hospitais são os mesmos que havia há 25 anos; aumentou o número de escolas e de estabelecimentos de ensino superior mas a má qualidade é a mesma de sempre; o sistema de transportes (táxis e autocarros) é muito pior e a qualidade do ar deteriorou-se 100 vezes.

Há muito mais actividade económica mas a administração (chamar-lhe governo seria um elogio que não merece) não faz nada (ou faz mal) há décadas. Quem tem feito é a Galaxy ou a Wynn, a Sands ou o senhor Ho.

Sejamos claros: nos últimos quinze anos concluiu-se um projecto com decência: a ponte de Sai Wan; terminaram-se desastrosamente dois: a nova universidade (desastroso porque teria sido a oportunidade ideal para o regime mostrar cultura e ter contratado um arquitecto a sério e ter deixado obra singular e de referência) e a habitação social em Coloane (modelo inultrapassável de desprezo total pelos mais desfavorecidos); e falharam-se redondamente 4: a nova biblioteca central, o novo hospital das ilhas, o metro de superfície (anedota total 1) e o Terminal Marítimo da Taipa (anedota total 2). Que se tenham tentado apenas sete é sinal de imensa pobreza.

O centro da cidade, que poderia ser dos centros urbanos da Ásia Extrema mais bonitos e com um potencial de charme imbatível, é uma feira pobre e, em termos comunitários, uma terra de ninguém, inteiramente abandonada à ganância e à falta de cultura. A pedonização de vastas áreas centrais em Macau e na Taipa tarda em chegar e o carro particular continua a ser a peça mais importante deste pesadelo, reflexo de uma mentalidade com 30 anos de atraso.

Nos cruzamentos a polícia, muito incompetente, obriga os peões, idosos e crianças, a correr entre carros mesmo durante o seu tempo legítimo de atravessamento; metade dos condutores usam os telefones durante a condução; muitos não usam cinto de segurança; crianças pequenas usam o banco da frente como se vivêssemos em 1950; a quantidade de condutores, profissionais ou não, que permanece com o motor ligado quando parado é criminosa e a polícia (a não ser que aqueles miudinhos de azul não sejam polícias) não deve sequer perceber o que se passa.

Ninguém parece ter a mínima noção do valor da promoção da ideia de comunidade e não se faz a reutilização de edifícios já existentes para mistos de habitação e recreação. Não se faz porque os responsáveis administrativos não sabem fazer.

O meu projecto preferido neste momento, à falta de outros, é a passagem de peões circular construída junto ao Venetian que vai ligar . . . o quê . . . a quê? Será utilíssima a uma pessoa que esteja no City of Dreams e se queira deslocar à bomba de gasolina que se encontra numa das saídas desta cómica instalação urbana para comprar cigarros ou um gelado de chocolate e baunilha. A ligação para o lado do Venetian faz-se de modo muito mais conveniente por outra via. As outras saídas não servem para absolutamente nada. Se na bomba de gasolina não houver gelados de chocolate e baunilha isto vai ser um problema.

Há duas hipóteses para a construção desta parvoíce: ou se trata de uma instalação de intenção artística demasiado cara ou é produto de total incompetência e falta de visão.

Falando de projectos mais a sério o mais giro neste momento é a ponte entre Hong Kong e Macau/Zuhai. Concebida numa altura, febril, em que se pensava que a província de Guangdong, junto a Macau e Hong Kong, seria uma zona de olímpico crescimento fabril é, agora que as fábricas começaram a fechar e a China começou a deixar de interessar, a bridge to nowhere, um pouco como a ligação ferroviária entre Hong Kong e Cantão (Cidade de Guangzhou). Não é difícil perceber porquê. Da perspectiva de um residente de Hong Kong que razão o levará a querer ir a Cantão? Fazer o quê?

Assim, o governo da RAEHK e a administração da RAEC não param de nos divertir: na primeira não conseguem fazer um comboio para uma cidade onde ninguém quer ir, na segunda, em 15 anos, não conseguem fazer um comboiozinho ligeiro, não conseguem fazer um hospital e não conseguem fazer um terminal marítimo. Em esforço conjunto não conseguem fazer uma ponte que, de qualquer maneira, não serve para nada. Felizmente que não é a administração que constrói casinos e hotéis senão só tínhamos um.

Mercer Quality of Live Rankings 2016

Acho que não é inútil relembrar quais os critérios que a Mercer usa para classificar as cidades que lista como as melhores cidades para expatriados. Lembre-se que esta existe precisamente como instrumento para medir a qualidade de vida em cidades que receberão profissionais (e suas famílias) de outros países e que tipo de compensação deve ser atribuído aos profissionais em situações de risco. Serve igualmente às administrações das cidades. São critérios cujo cumprimento, no entanto, interessam igualmente a residentes.

São levados em conta 39 factores, agrupados em 10 categorias (tradução própria):

  1. Atmosfera política e social (estabilidade política, crime, cumprimento da lei, etc.).
    2. Atmosfera económica (regulamento cambial, serviços bancários).
    3. Atmosfera sócio-cultural (acesso a órgãos de comunicação social, censura, limites às liberdades pessoais).
    4. Considerações médicas e de saúde (serviços e provisão médica, doenças infecciosas, esgotos, remoção de lixos, poluição atmosférica, etc.).
    5. Escolas e educação (nível e disponibilidade de escolas internacionais).
    6. Serviços públicos e transportes (electricidade, água, transportes públicos, congestionamento de tráfego, etc.).
    7. Recreação (restaurantes, teatros, cinemas, desporto e tempos livres, etc.).
    8. Bens de consumo (acesso a produtos alimentares e de consumo diário, carros, etc.).
    9. Habitação (mercado de arrendamento, equipamentos domésticos, mobiliário, serviços de manutenção).
    10. Ambiente natural (clima, registo de desastres naturais).

Tentar aplicar esta bitola a Macau seria doloroso. A primeira cidade da lista de 2016 é Viena, como acontece há sete anos. Seguem-se Zurique e Auckland, como em 2015. Singapura, a primeira cidade asiática e de matriz não ocidental, em 26º. Lisboa aparece em 42º lugar, antes de Chicago e Nova Iorque, e Tóquio, a melhor cidade da Ásia, ocupa o 44º posto. Hong Kong surge em 70º e Taipé em 84º. A última desta lista em que as considerações sobre a segurança são nucleares é Bagdad, em 230º posto. (dados recolhidos entre Setembro e Novembro de 2015).

20 Jul 2016