Especial 2018 | Justiça: Testes variados

[dropcap]A[/dropcap] todos os níveis, 2018 foi um ano cheio de testes para a Justiça e para os tribunais da RAEM. Apesar dos muitos casos polémicos, é na utilização da língua portuguesa que há mais motivos para questionar se os tribunais caminham na direcção correcta.

Ao longo do ano registaram-se vários processos em que simplesmente não houve traduções de documentos para português, apesar de pedidos de arguidos e advogados para que tal fosse disponibilizado. Tudo indica que entre os tribunais continuam a imperar uma certa postura de arrogância, uma visão de que são as pessoas que se têm de desenrascar após receberem um documento, que nem conseguem ler. Era espectável que os tribunais funcionassem numa lógica de servir as pessoas com uma boa Justiça, acessível em ambas as línguas oficiais. É claro que os juízes têm todo o direito de tomar as decisões e escrever as sentenças nas línguas com que se sentem mais confortáveis, mas com os recursos existentes na RAEM não há justificação para que não se alarguem as equipas de tradutores. E foram pelo menos três os casos mediáticos em que a falta de traduções gerou obstáculos ao falantes das línguas oficiais: o caso João Tiago Martins, o julgamento de Sulu Sou e o caso do Hotel Estoril. Será que é esta a imagem que a justiça pretende transmitir?

Casos políticos

Ao nível dos casos com óbvio impacto político, destaque para o julgamento de Sulu Sou e Scott Chiang, relacionado com a manifestação promovida pela Associação Novo Macau contra a doação de 100 milhões de yuan da Fundação Macau à Universidade de Jinan.

O deputado arriscava-se a poder ser expulso da Assembleia Legislativa se fosse condenado a uma pena de 30 dias ou mais dias de prisão. Ficou muito clara que a intenção do Ministério Público (MP) foi sempre a aplicação de pena efectiva, apesar de ambos os arguidos estarem a ser julgados pela primeira vez.

No final, as penas não foram além de multas. Sulu Sou, apesar de se considerar inocente, abdicou de um eventual recurso para regressar à Assembleia Legislativa imediatamente. Scott Chiang levou o caso para a segunda instância, e ainda não há decisões.

Será que a pena aplicada foi justa? O Tribunal de Segunda Instância (TSI) vai responder. Mas por tudo o que se passou ao longo do julgamento, qualquer interpretação de falta de independência dos tribunais seria, no mínimo, abusiva. Os arguidos eram primários, a gravidade do crime é relativa, não houve ofensas à integridade de ninguém, não houve mortos, qualquer pena efectiva seria sempre descabida.

O mesmo aconteceu no caso do Hotel Estoril. Todos percebemos que o caso tem uma componente política e que Scott e Alin Lam não foram os primeiros a entrar indevidamente no antigo edifício. Mas no final foram condenado com uma pena leve por terem entrado num local onde não deviam estar. Não foi desadequada e a prova disso é que os dois optaram por não recorrer.

Em relação aos outro caso ligados à Novo Macau, Jason Chao foi absolvido de um crime de difamação por artigos publicados no portal Macau Concealers. A decisão acaba por ser compreensível, até porque um dos três artigos era apenas uma partilha online de um outro jornal.

É verdade que todos estes casos apontam para um padrão de caça aos democratas, se fossem cidadãos apolíticos há muitas dúvidas sobre se seriam sequer levados a julgamento, mas este padrão aparenta estar nas investigações da polícia e no Ministério Público. No que diz respeito aos tribunais, parece-me claro que as decisões não dão margem para questionar a independência face ao Executivo.

Son Pou absolvido de crime

No que diz respeito à relação entre a justiça e o jornalismo, o ano de 2018 registou uma tendência crescente para colocar os meios de comunicação social em tribunal. O caso entre a Polytec e a publicação Son Pou foi o mais mediático, e a publicação e os jornalistas acabaram absolvidos da prática do crime de difamação. Mesmo assim, houve a condenação ao pagamento de uma multa de 50 mil patacas devido à difusão de informação factualmente errada, que segundo os tribunais prejudicou a empresa.

O caso vai ter recurso, mas nota-se uma nova tendência na sociedade para tentar controlar as notícias negativas com ameaças de processos. Mesmo nos casos em que os meios de comunicação social tenham razão em tribunal, é importante que a Justiça não passe a ser utilizada como ferramenta de pressão.

Terras da discórdia

Outro dos grandes temas quentes do ano foram os vários processos ligados à declaração de caducidade dos terrenos. No entanto, as decisões conhecidas até ao momento estão todas relacionadas com a legalidade da recuperação do acto das terras.

Neste prisma, os tribunais foram chamados a decidir se o processo foi legal ou não. Em todos os casos conhecidos o Executivo teve razão. Poderia ser de outra forma? Não. Os especialistas em Direito são praticamente unânimes a reconhecer que a lei actual não dá uma grande margem de manobra. Quando os terrenos não são aproveitados, o Governo tem de recuperá-los. Foi o que aconteceu.

Todavia, o tema promete gerar mais discórdia deverá ter desenvolvimentos no próximo ano. Quem é que vai assumir as responsabilidades pelos terrenos que ficaram por construir? Será que o Governo vai poder compensar com tempo as construtoras ou vai ter de pagar indeminizações? O tema está longe de ser pacífico.

Concurso falhados

Se no caso das terras há a possibilidade de haver o pagamento de indemnizações, no caso das obras públicas este cenário está muito perto de se concretizar. O Governo sofreu derrotas com um enorme impacto para a população: o primeiro foi um erro de cálculo no concurso de atribuição das obras do parque de materiais e oficina do metro ligeiro. A matemática foi mal feita e a obra deveria ter sido atribuída a uma empresa que não aquela que foi declarada vencedora. O caso tem pouca polémica e não há dúvidas que se fez justiça.

O que ainda não se sabe é como o Governo vai compensar a parte afectada e se o caso acabará novamente nos tribunais.

A outra grande derrota para o Executivo foi o concurso público para as obras da habitação pública em Mong Há. O Governo aceitou duas propostas com o mesmo accionista e uma foi mesmo a vencedora. Os tribunais consideraram que havia nesta prática possibilidade de manipulação da concorrência no concurso público. Apesar do secretário Raimundo do Rosário não concordar com a leitura do tribunal, a mesma não deixa de ser aceitável. Talvez não houvesse jurisprudência nesta questão e a mesma até tenha sido levantada pela primeira vez, mas a decisão tomada é razoável.

2 Jan 2019