A aposta

[dropcap]N[/dropcap]um dos seus pensamentos mais conhecido, Pascal propõe uma aposta para a pergunta se Deus existe ou não.

A argumentação de Pascal pode ser classificada como pragmática, porquanto se trata de apresentar as razões benéficas para se acreditar que Deus existe. Não se pode evitar a decisão. Temos de nos resolver por necessidade. O reconhecimento do “rapport” entre nós e o Senhor. É o ser a acreditar que faz a diferença vital para a vida de cada um na sua singularidade: uma “living option”. Escolher Deus implica-nos na vida no seu todo. Não há outra escolha porque “há uma meta infinita para a existência humana e que vale infinitamente a pena”. O modo de alcançar essa meta obriga a mudar de vida, a decidirmo-nos por um “modo de vida que possa levar-nos à felicidade infinita” (ibid.). Querer o vínculo é o supremo acto de liberdade, do ponto de vista humano. De que se abdica? A que se renuncia? “A tudo o que esta vida pode oferecer”. A escolha aponta à transcendência, convida-a a entrar, expõe-nos ao possibilitante. A escolha é inexorável e escatológica: Que Deus existe implica um reconhecimento de si na possibilidade mais extrema e radical que pode haver. Apenas ao reconhecer-se a si como susceptível de Deus se reconhece os outros na sua própria liberdade para Deus. É de Deus a assomar no horizonte que se potencia esta possibilidade, verdadeira modificação da imanência pela transcendência. Ao revelar-se Deus, revela-se, de algum modo, a Sua natureza na graça e a sua natureza infinita: no amor.

E como se manifesta este amor? O que é ser a amar? Primeiramente, há o reconhecimento de uma renúncia. Perdemos, com certeza, na aposta, no investimento. E o ganho é incerto. Não sabemos, como nenhum jogador sabe, se ganhamos – se perdesse e soubesse que perdia sempre de antemão, jamais jogaria. É o elemento de incerteza que o faz jogar. O risco é motivador e abre um espaço de manobra que não é despiciendo. Mas a renúncia não é um comportamento negativo? Não abrimos mão de qualquer coisa, às vezes até de alguém? Ficar com qualquer coisa implica sempre, para nós, abandonar certas outras coisas. A renúncia não é, assim, apenas negativa. Ela é por mor de qualquer coisa. Só podemos ter uma hipótese, quando se dá a ocasião, o custo de oportunidade. Para ter uma coisa precisamos de abdicar de outra ou de outras. De que nos fala Pascal? “Il faut renoncer à la raison” (“É necessário renunciar à razão”). É preciso ser louco. É na loucura que se resguarda a vida. Resguardar a vida diz-nos, aqui, que a não arriscamos. Antes arriscamos a razão para nos resguardarmos na vida. O sentido desta vida é “um ganho infinito” (“gain infini”). O ganho infinito pela sua qualificação transforma o nada da perda numa perda de nada. Ao permanecer na loucura, que renuncia à razão, cria-se uma tensão em direcção ao infinito. Nessa permanência, inundada de infinito, anula-se o finito e o nada. Se somos obrigados a apostar, somos também obrigados a renunciar, a arriscar (“hasarder”). É a isto que estamos forçados: e eu não estou na liberdade, não tenho nunca um momento de sossego. No momento de renúncia da razão, ganha-se a loucura do amor de Deus. A troca não é de géneros. Não há troca por troca. O sentido desta permuta não poderá ser nunca compreendido do ponto de vista ôntico. Primeiro, porque não se sabe, na cotação de valores, que preço tem uma coisa se não há um preço para quem abdica do que abdica e para o que ganha. Depois, porque a troca, aqui, não é comercial, mas assenta no sentido do ser do humano. Compreendemos a abdicação como o sacrifício a fazer para nos podermos dedicar a qualquer outra coisa. A recusa pode ser em vista de uma entrega. O sentido do ser é o da finitude. Este pode ser enunciado assim: não podemos ter tudo e, para termos alguma coisa, temos de abrir mão de qualquer outra coisa. Temos sempre de fazer escolhas. A dificuldade consiste nisto. Que o que quer que renunciemos estará sempre connosco. Temos sempre de ter a força para renovar os votos, temos sempre de suportar o que preterimos. Somos sempre o que escolhemos ter e o que escolhemos não ter ou não pudemos escolher. Somos sempre o que escolhemos ser e o que, com essa escolha, não pudemos ter sido.

A situação que Pascal cria é paradoxal: É preciso apostar: “Sim, mas eu tenho as mãos atadas e a boca muda. Forçam-me a apostar, e eu não existo na liberdade, não me soltam. E eu sou feito de uma tal maneira que eu não consigo acreditar. Que quereis vós que eu faça?” Contrariamente, “a impotência para acreditar … vem das paixões”. A situação que Pascal cria nega duplamente a liberdade. Por um lado, é-se obrigado a apostar, não temos a liberdade de não apostar, de poder não apostar. Por outro, e contrario, encontro-me na impotência de acreditar. Qual é motivo deste non possum ontológico, condicionado pela finitude constitutiva da nossa facticidade? A impossibilidade de acreditar (“impuissance à croire”) resulta das nossa paixões e do divertimento vão.

Não importa aqui caracterizar exaustivamente o sentido das paixões e do divertimento em Pascal. O assunto é central no seu pensamento. Não podemos deixar, por outro lado, de caracterizar os fenómenos aqui em causa. É deles que, uma vez renunciados, resulta a possibilidade da aposta. Isto é, há uma incompatibilidade entre uma vida orientada pelo sentido que as paixões constituem e a fé. Há uma incompatibilidade entre o divertimento, que nos faz divergir e afastar de nós e de Deus em nós e da concentração no si de cada um de nós. As paixões são caracterizadas como fazendo guerra interior, intestina, na alma, à razão (29, 514), como perturbadoras, domáveis, mas que nos impelem para fora de nós (“nous poussent au-dehors”, 176), os inimigos do homem. Portanto, o que cria a incapacidade. O divertimento tem também esta orientação para fora de nós. É o divertimento que neutraliza a sensibilidade à morte (33). O que neutraliza a sensibilidade à morte é o que anula a capacidade de percebermos a finitude temporal e ontológica. A nossa própria condição finita depende da ideia da morte: que não podemos ter tudo, que não podemos ser tudo. É a ideia de morte que nos abre para a possibilidade da eternidade: cheia de sentido e salvação ou com sentido nenhum, a maldição do dia-a-dia dos condenados, a miséria do nada de nada, do para sempre em que nada acontece. É pela anulação do divertimento e das paixões que podemos ter a liberdade para ser quem se é em Deus, com Deus e por Deus.

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