Votos para 2019

[dropcap]E[/dropcap] de repente faço sessenta anos (sou capricórnio) e recebo a visita de um neto, antes mesmo de ter tido um béguin com a Stephanie do Mónaco. A vida é ingrata!

Esta falha horroriza-me, nem sequer consegui ser guarda-costas da filha da Grace ou segurar-lhe as maças no circo. E em que zona das omoplatas me enxertaram um neto, se as minhas células continuam a regenerar à velocidade com que os supersónicos engolem nuvens de algodão doce e, por amor, me dispunha a renunciar aos princípios republicanos, de tal modo que ambos no fim tatuaríamos no peito um Leão da Tasmânia?

«Estamos alegres. Nem rato/ porá a casa em desacato,» sentencia o Robin de Sonho de Uma Noite de Verão, que acabo de reler, e sinto que o desacato personificou no rapaz gentil e falador de 9 anos que me entrou em casa nestes festejos e me desviou o pensamento da estratégia de me aproximar do Mónaco para conhecer a alvorada na intimidade de uma mulher que, dizem as revistas cor de rosa, choca os seus súbditos por não aparecer maquilhada nem esconder as rugas. Tudo o que me convinha.

O importante é que ela não cantasse, pois eu sou um gnomo honesto e seria incapaz de mentir-lhe.

E espero que o puto não me volte a visitar antes de me apresentar à Beth Hart, a cantora de blues, e de interpretarmos os dois no duche Caught Out In The Rain, fazendo disso cicatriz do destino.

Não esperem menos de mim que do Dominguín, o toureiro que foi amante de Ava Gardner e a deixou sozinha na cama às duas da manhã; respondendo, face ao espanto dela por ele sair da cama, Desculpa lá, mas agora tenho de ir ao bar contar que ando a comer a Ava Gardner, pois para mim metade do gozo está em contá-lo.

Fui sempre um rapaz recatado, mas esta onda de pez em que o «politicamente correcto» nos promete naufragar dá-me uma vontade irredutível de vos anunciar como vai ser, em 2019.

Na primavera rumarei à Escócia para dar uma oportunidade à Ali Smith para me conhecer. Depois proponho-lhe uma viagem no tempo, recuaremos vinte e cinco anos. Após o que talvez nos despenhemos no amor. A imaginação dela convém-me muito.

No verão, não regressarei imediatamente a Portugal depois da viagem que, está estabelecido, farei a Lisboa com a mulher e as filhas. Armarei uma estratégia para elas regressarem sem mim, e ala para a Bordéus, onde se encontra a escritora galega Luísa Castro. Do mais seria indecoroso falar, mas com certeza que a interrogarei sobre Los versos del eunuco, Los hábitos del artillero ou Una patada en el culo y otros cuentos, livros dela que me agradam muito.

Em Outubro deslocar-me-ei ao Canadá para discutir alguns tópicos de Oedipal Dreams com a sua autora, Evelyn Lau. Tudo dependerá de muito, mas se averiguar que ela não teve qualquer relação com o poeta americano Charle Simic – para mim, mulher de amigo é homem -, não me farei rogado e pode sair que algo corra entre nós, por exemplo, um livro a meias e em alexandrinos.

No Inverno repousarei.

A filha de Bukovski tem-me escrito, quer vir fazer-me a receita favorita do pai: bifes com ervilhas. Mas resguardo-me de quaisquer encontros com os mitos, temo a sua senescência.

O meu neto é que a sabe, fala como já floresceram as varandas em Verona.

Nos intervalos que a visita obrigatória ao Kruger com o miúdo me deixou, li dois livros deliciosos: Retalhos do Tempo/ Um memorial de Dublin, de John Banville, absolutamente recomendável, e a comédia de Shakespeare, numa excelente tradução de Maria Cândida Zamith.

O que é extraordinário, ao ler-se esta ou outra peça de Shakespeare, é pensar como era inteligente o público que fez de O Sonho duma Noite de Verão, o maior sucesso da carreira do bardo. A peça é estruturalmente enxuta e perfeita, mas a surpresa reside no facto do ignaro povo e maioritariamente analfabeto do período isabelino aderir ao seu teatro e à sua linguagem (que hoje nos parece elitista) sem a menor reserva e aprendendo trechos de cor.

Veja-se este espantoso jogo de trocadilhos fonéticos (- que fui buscar à tradução brasileira, que li primeiro, e que é o único trecho que prefiro a esta nova tradução da Relógio D’Água):

«Demétrio

O rapaz que jaz é um ás da morte.

Lisandro

Ás que jaz é incapaz; é um zero à esquerda.

Teseu

Com a ajuda de um médico é capaz de se recuperar e voltar a ser um as-no»

Pensar que o espectador elisabethiano acolhia entusiasmado o wit, a qualidade deste humor, e reagia na hora, no timing certo, às deixas – o que não acontece com a maioria dos meus alunos – é descoroçoador.

Há uma história da recepção literária ou dramatúrgica por fazer e seria utilíssima para derrotar mitos actuais que encharcam jornalistas, agentes culturais e editores numa suficiência espasmódica e gelatinosa que os levou a interiorizar a crença de que o gosto médio não está preparado para o complexo e só compreende estruturas básicas e um nível lexical a roçar a decomposição onomatopaica, viciando completamente a literatura e o que nela é considerado aceitável e inteligível.

Hoje o Shakespeare não teria editor e seria aconselhado a aplainar os textos em nome da eficácia e da funcionalidade. John Updike teria dificuldades em arranjar editor se começasse a editar vinte anos depois, pois foi sempre acusado de escrever bem demais.

E agora deixo-vos com uma variante minha à última fala de Oberon, na peça: «Agora, até à alvorada,/ Vá pela casa cada foda/ A melhor noiva escolher,/ Sua cama abençoar;/ (…) Cada foda vá voando/ Cada quarto abençoando/ Neste palácio amoroso: /E o seu dono, venturoso,/ Sempre descanse feliz./ Que se faça o que se diz».

São os meus votos.

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