Pequim opõe-se ao “abuso” pelos EUA de medidas de controle de exportação

[dropcap]“A[/dropcap] China opõe-se ao abuso pelos Estados Unidos do conceito de segurança nacional e controle de exportação para interferir e restringir as trocas e cooperação normais entre as empresas”, disse na quarta-feira um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês.

O governo dos EUA está a finalizar um conjunto de regras restritivas para limitar as exportações de tecnologia sofisticada para a China. O Departamento de Comércio norte-americano estará a dar os últimos retoques nas cinco regras que cobrem produtos como computação quântica e impressão 3D.

“A China pede aos EUA que façam mais para promover a confiança mútua e a cooperação entre os dois países, não o contrário”, disse o porta-voz Geng Shuang. Geng disse que os Estados Unidos são muito presunçosos em acreditar que as suas restrições nas exportações de tecnologia emergente para a China possam prevenir a inovação tecnológica no país.

“As restrições, interferência, sabotagem e bloqueios dos EUA não afectarão a China”, disse Geng, acrescentando que esses retrocessos temporários apenas “inspirarão a inteligência do povo chinês e promoverão sua moral. Estamos confiantes no progresso tecnológico e desenvolvimento da China”, concluiu.

EUA ainda isentos

Entretanto, a China divulgou nesta quinta-feira outra lista de produtos dos Estados Unidos que serão isentos da primeira ronda de tarifas adicionais sobre os produtos americanos. Trata-se do segundo conjunto de bens dos Estados Unidos que será excluído da primeira ronda de contramedidas tarifárias da China contra as medidas da Seção 301 dos Estados Unidos, disse a Comissão de Tarifas Alfandegárias do Conselho de Estado num comunicado.

A lista de isenção terá validade entre 26 de Dezembro de 2019 e 25 de Dezembro de 2020. As tarifas que já foram arrecadadas não serão reembolsadas, explicou o comunicado. O restante dos produtos americanos sujeitos à primeira ronda de tarifas adicionais da China não será excluído até o momento.

Posteriormente, a comissão continuará a trabalhar no processo de isenção e divulgará as listas de isenção dos bens dos Estados Unidos sujeitos à segunda ronda de tarifas adicionais no devido tempo.

Exposição | Relação China/Portugal no Museu de São Roque, em Lisboa

Foi ontem inaugurada na galeria do Museu de São Roque, em Lisboa, a exposição “Um Rei e Três Imperadores. Portugal, a China e Macau no tempo de D. João V”, que relembra, entre outras efemérides, o aniversário da transferência de administração de Macau. Jorge Alves, curador, fala ao HM da mostra que revela uma visão global das relações entre China e Portugal, sem esquecer o papel de Macau como importante entreposto comercial

 

[dropcap]A[/dropcap]té ao dia 5 de Abril do próximo ano poderá ser visitada no Museu de São Roque, da Santa Casa da Misericórdia (SCM), em Lisboa, a exposição intitulada “Um Rei e Três Imperadores. Portugal, a China e Macau no tempo de D. João V”, com cerca de meia centena de obras que espelham “as relações luso-chinesas na sua dimensão global, centrando-se na primeira metade do século XVIII – um dos períodos mais intensos e relevantes do relacionamento entre Portugal e a Europa, e a China”. Além de celebrar os 20 anos da transferência de transição de Macau para a China, a mostra marca também o 40º aniversário das relações diplomáticas entre Portugal e a China e os 450 anos de existência da SCM de Macau.

A exposição foi ontem inaugurada e, à margem do evento, o HM falou com o seu curador, Jorge Santos Alves, que nos falou do carácter exclusivo de algumas peças, “uma boa parte delas nunca antes expostas ou pouco vistas em Portugal”. Estas pretendem mostrar “as quatro principais dimensões do relacionamento entre Portugal e a China”.

A mostra contém uma “parte temática”, que mostra ao público o trabalho das embaixadas e o relacionamento político e diplomático que se estabelecia com o império chinês.

“Havia uma dimensão económica e comercial muito importante na época, baseada na importação de mercadorias chinesas pela Europa e Portugal, incluindo um importante produto que é o chá. Temos na exposição moedas de prata que eram trocadas pelo chá nos mercados, objectos que entram no nosso quotidiano, como os bules.”

Jorge Santos Alves destaca ainda o facto de os objectos mostrarem que estas trocas comerciais se faziam não apenas entre Macau e Cantão, mas também através de Lisboa, “com viagens organizadas em Portugal”.

Religião e diplomacia

A mostra no Museu de São Roque conta também o importante papel que os jesuítas tiveram na China da época e que protagonizaram enormes avanços culturais, científicos e tecnológicos através do armamento, instrumentos musicais ou matemática, entre outros elementos. Há ainda uma parte dedicada aos ritos cristãos, no sentido de perceber se os chineses os podiam ou não seguir. “Este é um debate que perturba um pouco as relações entre China e Portugal”, esclarece Jorge Santos Alves.

A exposição fecha com um núcleo inteiramente dedicado à Macau da primeira metade do século XVIII, quando se vivem “grandes desafios”, graças “ao ajustamento a novos parâmetros políticos que vêm de Portugal, com a nomeação de governadores e a entrada em cena de companhias de comércio da Europa e dos EUA”.

Nesta época, “a comunidade macaense foi absolutamente relevante na sobrevivência da cidade, a nível da diplomacia e tradução”, o que permitiu manter “este relacionamento de Macau com a China e entre Portugal e a China”. “Foi no século XVIII e diria que até aos dias de hoje”, defendeu Jorge Santos Alves.

A exposição do Museu de São Roque é também composta por vários retratos. Um deles foi cedido pela SCMM e é de Francisco Xavier Roquette, português metropolitano que foi viver para Macau e que deixou o maior testamento à SCMM. “Este quadro é também uma homenagem a Macau, portugueses e luso-asiáticos que garantiram ao longo do tempo a sobrevivência de Macau”, disse o curador.

Contudo, a obra que Jorge Santos Alves destaca é “um quadro feito por um jesuíta francês de uma concubina e que é um exemplo perfeito, quer pelo valor e beleza do quadro, quer pelo significado do diálogo cultural entre Europa e China no século XVIII”.

Exposição | Relação China/Portugal no Museu de São Roque, em Lisboa

Foi ontem inaugurada na galeria do Museu de São Roque, em Lisboa, a exposição “Um Rei e Três Imperadores. Portugal, a China e Macau no tempo de D. João V”, que relembra, entre outras efemérides, o aniversário da transferência de administração de Macau. Jorge Alves, curador, fala ao HM da mostra que revela uma visão global das relações entre China e Portugal, sem esquecer o papel de Macau como importante entreposto comercial

 
[dropcap]A[/dropcap]té ao dia 5 de Abril do próximo ano poderá ser visitada no Museu de São Roque, da Santa Casa da Misericórdia (SCM), em Lisboa, a exposição intitulada “Um Rei e Três Imperadores. Portugal, a China e Macau no tempo de D. João V”, com cerca de meia centena de obras que espelham “as relações luso-chinesas na sua dimensão global, centrando-se na primeira metade do século XVIII – um dos períodos mais intensos e relevantes do relacionamento entre Portugal e a Europa, e a China”. Além de celebrar os 20 anos da transferência de transição de Macau para a China, a mostra marca também o 40º aniversário das relações diplomáticas entre Portugal e a China e os 450 anos de existência da SCM de Macau.
A exposição foi ontem inaugurada e, à margem do evento, o HM falou com o seu curador, Jorge Santos Alves, que nos falou do carácter exclusivo de algumas peças, “uma boa parte delas nunca antes expostas ou pouco vistas em Portugal”. Estas pretendem mostrar “as quatro principais dimensões do relacionamento entre Portugal e a China”.
A mostra contém uma “parte temática”, que mostra ao público o trabalho das embaixadas e o relacionamento político e diplomático que se estabelecia com o império chinês.
“Havia uma dimensão económica e comercial muito importante na época, baseada na importação de mercadorias chinesas pela Europa e Portugal, incluindo um importante produto que é o chá. Temos na exposição moedas de prata que eram trocadas pelo chá nos mercados, objectos que entram no nosso quotidiano, como os bules.”
Jorge Santos Alves destaca ainda o facto de os objectos mostrarem que estas trocas comerciais se faziam não apenas entre Macau e Cantão, mas também através de Lisboa, “com viagens organizadas em Portugal”.

Religião e diplomacia

A mostra no Museu de São Roque conta também o importante papel que os jesuítas tiveram na China da época e que protagonizaram enormes avanços culturais, científicos e tecnológicos através do armamento, instrumentos musicais ou matemática, entre outros elementos. Há ainda uma parte dedicada aos ritos cristãos, no sentido de perceber se os chineses os podiam ou não seguir. “Este é um debate que perturba um pouco as relações entre China e Portugal”, esclarece Jorge Santos Alves.
A exposição fecha com um núcleo inteiramente dedicado à Macau da primeira metade do século XVIII, quando se vivem “grandes desafios”, graças “ao ajustamento a novos parâmetros políticos que vêm de Portugal, com a nomeação de governadores e a entrada em cena de companhias de comércio da Europa e dos EUA”.
Nesta época, “a comunidade macaense foi absolutamente relevante na sobrevivência da cidade, a nível da diplomacia e tradução”, o que permitiu manter “este relacionamento de Macau com a China e entre Portugal e a China”. “Foi no século XVIII e diria que até aos dias de hoje”, defendeu Jorge Santos Alves.
A exposição do Museu de São Roque é também composta por vários retratos. Um deles foi cedido pela SCMM e é de Francisco Xavier Roquette, português metropolitano que foi viver para Macau e que deixou o maior testamento à SCMM. “Este quadro é também uma homenagem a Macau, portugueses e luso-asiáticos que garantiram ao longo do tempo a sobrevivência de Macau”, disse o curador.
Contudo, a obra que Jorge Santos Alves destaca é “um quadro feito por um jesuíta francês de uma concubina e que é um exemplo perfeito, quer pelo valor e beleza do quadro, quer pelo significado do diálogo cultural entre Europa e China no século XVIII”.

Cinemateca Paixão fecha portas nos próximos dias 

Questões contratuais com o edifício na Travessa da Paixão terão ditado o fecho da Cinemateca, adiantaram realizadores ao HM. Albert Chu, presidente da Associação Audiovisual Cut, concessionária do espaço, confirma o encerramento, mas só fala depois do comunicado oficial do Instituto Cultural

 

[dropcap]A[/dropcap] Cinemateca Paixão vai fechar portas ainda este ano devido ao facto de o contrato de arrendamento do espaço, situado na Travessa da Paixão, não ter sido renovado a tempo. A informação foi confirmada ao HM pela realizadora Tracy Choi e por um outro realizador, que não quis ser identificado.

“Penso que o encerramento se deve ao facto de o Instituto Cultural (IC) não ter planeado bem a questão”, começou por dizer Tracy Choi. “Eles sabiam que o contrato iria terminar no final deste ano, mas demoraram a tomar uma decisão, o que não deu tempo para assinar um novo contrato”, acrescentou.

Albert Chu, director artístico da Cinemateca Paixão e presidente da Associação Audiovisual Cut, concessionária do espaço, confirmou ao HM o fecho da sala de cinema, mas recusou-se a prestar esclarecimentos adicionais.

“Há uma mudança e há uma razão formal que o IC vai apresentar em breve. É melhor para nós não fazermos  qualquer comentário antes dessa declaração”, apontou.

Público crescente

A Cinemateca Paixão abriu portas em 2017 e desde então que tem vindo a apresentar um cartaz repleto de ciclos de cinema especiais, dedicados a realizadores internacionais de renome como Pedro Almodôvar ou Reiner Werner Fassbinder, sem esquecer o destaque dado a realizadores asiáticos e locais. Tracy Choi relembra o facto de esta sala de cinema ter vindo a receber cada vez mais pessoas nos últimos três anos.

“Começámos a ter um público cada vez mais numeroso, com exibições todos os meses. E agora não há qualquer sala disponível onde possamos fazer isto. Espero que a Cinemateca Paixão possa abrir em breve porque já tinha todas as estruturas necessárias”, adiantou.

Outro realizador, ligado à Associação Audiovisual Cut, e que não quis ser identificado, disse ao HM que desde Novembro que havia um sinal de que as coisas não estavam bem.

“Comecei a questionar quais seriam os planos da Cinemateca para o novo ano, porque há sempre um avanço em relação à agenda para os meses seguintes. E percebi as caras de desapontamento da equipa. No início não responderam, porque não tinham a certeza de que iria ser assim. Mas agora estamos no final do ano e o que lhe posso dizer é que a razão oficial para o fecho por parte do IC é a renovação do local, o que é um motivo falso.”

Este realizador explicou ainda que “as pessoas que estão na liderança [do IC] não levaram a cabo os devidos procedimentos para continuar com a abertura do espaço”.

“O IC vai anunciar a renovação do espaço para manter este suspense, mas é temporário. Mas sabemos que não trabalham de forma muito rápida. Não me parece que seja o fim da Cinemateca, mas 2019 deve ser o fim da primeira edição do projecto. Acredito que não abra no espaço de um ano e meio”, concluiu. O HM contactou o IC sobre esta questão, mas até ao fecho da edição não foi possível obter uma resposta.

Banco central | Limite diário de remessas para o continente aumenta

O banco central chinês anunciou ontem que vai aumentar o valor máximo da remessa diária por parte de residentes de Macau, para contas pessoais na China, de 50.000 yuan para 80.000 yuan. A Autoridade Monetária de Macau saudou a medida

 

[dropcap]É[/dropcap] oficial. O valor máximo das remessas diárias que um residente de Macau pode transferir para contas pessoais no Interior da China aumentou de 50 mil yuan para 80 mil yuan. Em comunicado, o Banco do Povo Chinês disse que a medida visa “atender melhor à necessidade dos residentes de Macau de ter liquidez em yuan ” e “tornar mais conveniente o comércio e outras trocas entre o continente e Macau”.

Na mesma nota, o banco central assegurou que vai continuar a apoiar a economia, comércio e o investimento em Macau denominados em yuan.

O aumento do tecto diário para a transferência de capital aplica-se apenas num sentido, de Macau para o continente chinês. No sentido inverso, a China impõe um limite anual de transferências para o exterior equivalente a 50.000 dólares.

O levantamento de dinheiro no estrangeiro por parte de titulares de cartões bancários emitidos na China está também limitado a 100 mil yuan por pessoa e por ano, independentemente do número de cartões e de contas.

Reacções esperadas

A Autoridade Monetária de Macau (AMCM) saudou as medidas anunciadas pelo banco central chinês. Em comunicado, a AMCM “entende que as mesmas podem apoiar o desenvolvimento das operações em yuan em Macau”.

Por outro lado, destacou que ficam criadas “condições sólidas e necessárias que permitem o estabelecimento da conexão e articulação entre os mercados financeiros localizados na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”.

Também no mercado bolsista a medida foi recebida de forma positiva, em especial pelos investidores nas acções das operadoras de resorts integrados. Por exemplo, a cotação das acções da Las Vegas Sands valorizaram 1,11 por cento, quanto a Wynn Resorts registou uma subida de quase 4 por cento. Os investidores com acções da Melco Resorts no portfolio tiveram também um bom dia com as acções do grupo a valorizarem 3,79 por cento.

Em 2018, o comércio entre o continente e Macau atingiu 3,16 mil milhões de dólares, quatro vezes mais do que em 1999, o ano da transição, segundo dados do ministério chinês do Comércio. Os investimentos no continente oriundos de Macau atingiram os 1,28 mil milhões de dólares, no ano passado.

Banco central | Limite diário de remessas para o continente aumenta

O banco central chinês anunciou ontem que vai aumentar o valor máximo da remessa diária por parte de residentes de Macau, para contas pessoais na China, de 50.000 yuan para 80.000 yuan. A Autoridade Monetária de Macau saudou a medida

 
[dropcap]É[/dropcap] oficial. O valor máximo das remessas diárias que um residente de Macau pode transferir para contas pessoais no Interior da China aumentou de 50 mil yuan para 80 mil yuan. Em comunicado, o Banco do Povo Chinês disse que a medida visa “atender melhor à necessidade dos residentes de Macau de ter liquidez em yuan ” e “tornar mais conveniente o comércio e outras trocas entre o continente e Macau”.
Na mesma nota, o banco central assegurou que vai continuar a apoiar a economia, comércio e o investimento em Macau denominados em yuan.
O aumento do tecto diário para a transferência de capital aplica-se apenas num sentido, de Macau para o continente chinês. No sentido inverso, a China impõe um limite anual de transferências para o exterior equivalente a 50.000 dólares.
O levantamento de dinheiro no estrangeiro por parte de titulares de cartões bancários emitidos na China está também limitado a 100 mil yuan por pessoa e por ano, independentemente do número de cartões e de contas.

Reacções esperadas

A Autoridade Monetária de Macau (AMCM) saudou as medidas anunciadas pelo banco central chinês. Em comunicado, a AMCM “entende que as mesmas podem apoiar o desenvolvimento das operações em yuan em Macau”.
Por outro lado, destacou que ficam criadas “condições sólidas e necessárias que permitem o estabelecimento da conexão e articulação entre os mercados financeiros localizados na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”.
Também no mercado bolsista a medida foi recebida de forma positiva, em especial pelos investidores nas acções das operadoras de resorts integrados. Por exemplo, a cotação das acções da Las Vegas Sands valorizaram 1,11 por cento, quanto a Wynn Resorts registou uma subida de quase 4 por cento. Os investidores com acções da Melco Resorts no portfolio tiveram também um bom dia com as acções do grupo a valorizarem 3,79 por cento.
Em 2018, o comércio entre o continente e Macau atingiu 3,16 mil milhões de dólares, quatro vezes mais do que em 1999, o ano da transição, segundo dados do ministério chinês do Comércio. Os investimentos no continente oriundos de Macau atingiram os 1,28 mil milhões de dólares, no ano passado.

Associação Novo Macau diz ter sido vítima de ameaças e perseguições

Kam Sut Leng, presidente da Associação Novo Macau, denunciou na sua página no Facebook ter sido perseguida e alvo de ameaças, além de que, nos últimos dias, foi notada uma presença permanente de cinco a seis pessoas junto ao escritório da associação. Sulu Sou e Scott Chiang consideram a situação inaceitável e exagerada

 

[dropcap]A[/dropcap] Associação Novo Macau (ANM) diz ter sido vítima de ameaças, vigias e perseguições nunca antes vistas, numa altura em que o Presidente chinês Xi Jinping realiza uma visita oficial ao território, por ocasião dos 20 anos da RAEM.

Kam Sut Leng, presidente da ANM, começou por denunciar a situação na sua página de Facebook. “A situação ficou mais grave hoje [quarta-feira], porque acabei de sair do gabinete e fui seguida por duas motas. Um dos condutores colocou-se atrás de mim e disse para irmos dar uma volta, continuando a relatar ao outro condutor a minha localização. Quando cheguei ao escritório as duas motas ensanduicharam-me e um deles perguntou: ‘Linda, para onde vais? Vamos beber um copo’. Agora não posso voltar a casa porque tenho receio de que saibam onde vivo”, disse.

Ao HM, Kam Sut Leng disse notar que as acções destas cinco ou seis pessoas que têm estado junto ao escritório da Novo Macau foram tudo menos discretas. “Normalmente quando temos reuniões ou organizamos protestos há sempre polícias à paisana, mas desta vez fiquei com a sensação que as coisas eram diferentes. Alguns colegas nossos perguntaram o que é que estavam a fazer lá fora, mas eles disseram que eram turistas e que estavam a jogar no telemóvel. Gravámos um vídeo e eles assumiram uma postura mais discreta”, relata.

A presidente da ANM disse ainda que esta terça-feira estas mesmas pessoas fotografaram quem saía e entrava do escritório. À TDM Rádio Macau, o deputado Sulu Sou, e vice-presidente da ANM, explicou que “nos últimos dias havia pessoas no exterior do escritório”. “Ficavam lá o dia todo, de manhã até à noite, mudando de posição ao longo do dia”, acrescentou o deputado, que considera esta postura “inaceitável”.

“Recordo sempre ao Governo que compreendo que tem de preparar uma estratégia ao nível da segurança pública para a visita do Presidente, mas devem fazê-lo de uma forma razoável. Não precisam de reagir de forma exagerada ou ser demasiado sensíveis. Isso só vai criar problemas desnecessários do ponto de vista político”, disse à TDM Rádio Macau.

Mais respeito

Kam Sut Leng disse ao HM que não se recorda de ver algo do género acontecer. “Todas estas coincidências nos fazem crer que se tratam de autoridades da China. Ainda estamos a pensar se falamos ou não com a polícia, porque não quero que os nossos trabalhos sejam afectados”, frisou.

Também Scott Chiang, activista da ANM, disse ao HM que esta situação é excessiva e que nunca sentiram ameaças de forma “tão explícita e directa”. “É totalmente desnecessário e contraproducente face à política ‘Um País, Dois Sistemas’. Macau é supostamente o ‘bom filho’. Não deveriam garantir à RAEM um pouco mais de espaço para respirar e respeito?”, questionou o activista.

Au Kam San, ligado ao campo pró-democrata e ex-membro da ANM, disse à publicação Macau Concelears que estes actos são “irracionais”. “Mesmo que seja altura da visita de Xi Jinping, não é preciso perseguir pessoas. Houve activistas que foram coagidos a deixar Macau”, disse o deputado, que adiantou não ter sofrido quaisquer ameaças. “Talvez eu não seja uma figura tão sensível, não sinto que haja alguém a seguir-me”, rematou.

RAEM 20 anos | Jornais em língua portuguesa depois de 1999: Do medo à vitalidade

[dropcap]O[/dropcap] presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês defendeu ontem que a sobrevivência dos jornais em língua portuguesa foi posta em causa antes da transição de Macau para a China, mas 20 anos depois está mais pujante.

“A realidade é substancialmente melhor, incomparavelmente melhor daquela que era projectada há 20 anos”, afirmou ontem à Lusa José Carlos Matias.

A decisão política após 1999 de apoiar financeiramente a imprensa em língua portuguesa e chinesa, a melhoria da situação económica, dinamizada através da indústria do jogo, e a decisão de Pequim de transformar Macau como plataforma de ligação entre a China e os países de língua portuguesa, em 2003, são algumas das razões apontadas pelo presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM) para a “boa saúde” dos jornais em língua portuguesa.

“Agora, a situação económica é muito mais pujante e os recursos são muito mais abundantes e isso faz com que os recursos do Governo estejam muito mais disponibilizados, por um lado, mas também os recursos das empresas” destinados à publicidade, sublinhou.

Pelo facto de Macau se ter tornado a plataforma de ligação entre a China e os países de língua portuguesa, defendeu, “houve um ambiente que se foi cimentando, favorável ao apoio das actividades culturais, a actividades de ligação entre a China e os países de língua portuguesa através de Macau e, no fundo, a imprensa em língua portuguesa é parte dessa dinâmica”.

Quantidade vs qualidade

Um quadro actual bem diferente daquele traçado poucos dias antes da transição da administração do território de Portugal para a China: em Dezembro de 1999, em declarações à Lusa, os directores dos jornais temiam que o reduzido número de leitores lusófonos e a falta de publicidade seria uma ameaça à sobrevivência dos jornais de língua portuguesa em Macau.

Hoje, em Macau existem três jornais diários em língua portuguesa (“Ponto Final”, “Hoje Macau” e o “Jornal Tribuna de Macau”) e outros dois semanários (“Plataforma” e “O Clarim”). Este contingente aumenta ainda se contarmos com o canal de televisão em língua portuguesa, TDM, e a Rádio Macau TDM. No total, José Carlos Matias estima existirem cerca de 70 jornalistas portugueses no território.

Uma imprensa que “não vive do número de vendas” e, por isso, não “vive de uma questão de quantidade, mas sim de qualidade de leitores”, afirmou o presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês.

As diferenças editoriais dos jornais em língua portuguesa também são visíveis para José Carlos Matias: “se olharmos para o tipo de informação que estava nos jornais no período do final dos anos 90 (…) a actualidade era muito dominada pela perspectiva portuguesa sobre a transição, isso era a grande história que estava a ser contada”.

“Hoje em dia, as redacções, e em traços gerais a agenda, passaram a ser mais jornais em português de Macau do que jornais portugueses de Macau”, analisou.

Apoios e obstáculos

As principais fontes de rendimento dos jornais em língua portuguesa vêm de apoios fixos por parte do Governo de Macau, mas também de anúncios judiciais, campanhas de publicidade oficiais e publicidade das empresas privadas como bancos e operadores de jogo, explicou José Carlos Matias.

Os apoios governamentais representam “estruturalmente uma situação de dependência”, mas o responsável ressalvou que “esse subsídio não representa uma fatia assim tão grande” do bolo das receitas dos jornais.

“Esse subsídio é importante, mas por si só não permite, de modo algum, o funcionamento de um jornal” e “na prática, em língua portuguesa, nos últimos 20 anos o que vimos foi uma imprensa com qualidade e com espírito independente”, defendeu.

Quanto às dificuldades que os jornalistas portugueses em língua portuguesa sentem no território, o presidente da AIPIM, apontou que o “acesso à informação nem sempre é fácil. É um acesso à informação que em vários casos é mediado por tradutores”.

O presidente da AIPIM deixou ainda críticas ao nível da administração onde “não existe uma cultura de transparência de prestação de informação célere e de uma forma aberta” como os jornalistas gostariam.

RAEM 20 anos | Jornais em língua portuguesa depois de 1999: Do medo à vitalidade

[dropcap]O[/dropcap] presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês defendeu ontem que a sobrevivência dos jornais em língua portuguesa foi posta em causa antes da transição de Macau para a China, mas 20 anos depois está mais pujante.
“A realidade é substancialmente melhor, incomparavelmente melhor daquela que era projectada há 20 anos”, afirmou ontem à Lusa José Carlos Matias.
A decisão política após 1999 de apoiar financeiramente a imprensa em língua portuguesa e chinesa, a melhoria da situação económica, dinamizada através da indústria do jogo, e a decisão de Pequim de transformar Macau como plataforma de ligação entre a China e os países de língua portuguesa, em 2003, são algumas das razões apontadas pelo presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM) para a “boa saúde” dos jornais em língua portuguesa.
“Agora, a situação económica é muito mais pujante e os recursos são muito mais abundantes e isso faz com que os recursos do Governo estejam muito mais disponibilizados, por um lado, mas também os recursos das empresas” destinados à publicidade, sublinhou.

Pelo facto de Macau se ter tornado a plataforma de ligação entre a China e os países de língua portuguesa, defendeu, “houve um ambiente que se foi cimentando, favorável ao apoio das actividades culturais, a actividades de ligação entre a China e os países de língua portuguesa através de Macau e, no fundo, a imprensa em língua portuguesa é parte dessa dinâmica”.

Quantidade vs qualidade

Um quadro actual bem diferente daquele traçado poucos dias antes da transição da administração do território de Portugal para a China: em Dezembro de 1999, em declarações à Lusa, os directores dos jornais temiam que o reduzido número de leitores lusófonos e a falta de publicidade seria uma ameaça à sobrevivência dos jornais de língua portuguesa em Macau.
Hoje, em Macau existem três jornais diários em língua portuguesa (“Ponto Final”, “Hoje Macau” e o “Jornal Tribuna de Macau”) e outros dois semanários (“Plataforma” e “O Clarim”). Este contingente aumenta ainda se contarmos com o canal de televisão em língua portuguesa, TDM, e a Rádio Macau TDM. No total, José Carlos Matias estima existirem cerca de 70 jornalistas portugueses no território.
Uma imprensa que “não vive do número de vendas” e, por isso, não “vive de uma questão de quantidade, mas sim de qualidade de leitores”, afirmou o presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês.
As diferenças editoriais dos jornais em língua portuguesa também são visíveis para José Carlos Matias: “se olharmos para o tipo de informação que estava nos jornais no período do final dos anos 90 (…) a actualidade era muito dominada pela perspectiva portuguesa sobre a transição, isso era a grande história que estava a ser contada”.
“Hoje em dia, as redacções, e em traços gerais a agenda, passaram a ser mais jornais em português de Macau do que jornais portugueses de Macau”, analisou.

Apoios e obstáculos

As principais fontes de rendimento dos jornais em língua portuguesa vêm de apoios fixos por parte do Governo de Macau, mas também de anúncios judiciais, campanhas de publicidade oficiais e publicidade das empresas privadas como bancos e operadores de jogo, explicou José Carlos Matias.
Os apoios governamentais representam “estruturalmente uma situação de dependência”, mas o responsável ressalvou que “esse subsídio não representa uma fatia assim tão grande” do bolo das receitas dos jornais.
“Esse subsídio é importante, mas por si só não permite, de modo algum, o funcionamento de um jornal” e “na prática, em língua portuguesa, nos últimos 20 anos o que vimos foi uma imprensa com qualidade e com espírito independente”, defendeu.
Quanto às dificuldades que os jornalistas portugueses em língua portuguesa sentem no território, o presidente da AIPIM, apontou que o “acesso à informação nem sempre é fácil. É um acesso à informação que em vários casos é mediado por tradutores”.
O presidente da AIPIM deixou ainda críticas ao nível da administração onde “não existe uma cultura de transparência de prestação de informação célere e de uma forma aberta” como os jornalistas gostariam.

RAEM, 20 anos | Duarte Drumond Braga, académico: “Somos, sem dúvida, favorecidos”

Depois de seis anos no Brasil, Duarte Drumond Braga mudou-se para Macau, uma das cidades-chave na sua área de investigação. O académico, ao serviço da MUST, tenciona aprender mandarim e ficar por Macau, “um território que sempre foi chinês”, e que espera que no futuro tenha espaço para que os portugueses continuem a desempenhar um papel relevante

 

[dropcap]E[/dropcap]stá a viver em Macau há relativamente pouco tempo. O que o trouxe para o território?

Cheguei em Agosto para assumir um contrato numa universidade privada, a Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau (MUST, na sigla inglesa). Passei por uma selecção prévia e aqui estou. Antes desta experiência, vivi no Brasil durante cinco anos, onde tive uma bolsa de investigação. Fiz doutoramento e mestrado em Portugal e depois saí para o Brasil em 2014. Desde então, não voltei a Portugal e vim directamente para aqui.

Na sua vida académica estudou as representações da Ásia na cultura e literatura portuguesa, algo que passa também por Macau. Ou seja, tinha uma visão académica de Macau. Houve algum conflito entre essa ideia e a realidade da cidade?

Já conhecia Macau de experiências anteriores. Já cá tinha estado duas vezes, uma delas fiquei durante três meses. Estar cá a morar dá outra noção das coisas, ainda para mais quando se trabalha para uma instituição mais chinesa. Assim sendo, tive de me habituar a alguns procedimentos e regras mais próprias de instituições chinesas. Mas nada que tenha representado qualquer tipo de problemas, foi apenas uma questão de hábito.

Tem, portanto, uma experiência diferente dos outros portugueses que ficam mais fechados na “bolha” portuguesa.

Não circulo apenas no meio português aqui em Macau. Aliás, acho que isso seria algo um pouco pobre. Atenção, frequento, como toda a gente, o meio português. Acho óptimo que exista. Mas, como vim do Brasil directamente para aqui, não me parece que seja um caso muito normal, não sei se há muitas pessoas com o mesmo percurso que eu. Antigamente, era comum encontrar em Macau pessoas que estavam cá há muito anos e que vinham das ex-colónias portuguesas em África. Eu vim do Brasil. A parte da vida de Macau que se reflecte nas grandes multidões, no aglomerado de prédios e no urbanismo descontrolado, são realidades para as quais já estava habituado no Brasil. Aquilo que realmente foi mais diferente para mim foi habituar-me à cultura chinesa e ao convívio com os chineses. Situações que também têm uma relação directa com a questão da comunicação, toda a gente passa por isso. Circulo muito aqui por Macau, gosto bastante de passear e de conhecer a cidade e, como tal, faço questão de tentar falar um pouco a língua. Aliás, no próximo semestre devo começar aulas de mandarim.

Encara Macau como uma cidade para viver no futuro.

Eu vejo-me a morar aqui, é um lugar onde gosto de estar, um lugar muito particular e interessante. Que, por vezes, pode ser um pouco claustrofóbico, como toda a gente sabe, mas que também é muito bem localizado na Ásia, algo que me permite deslocações com facilidade para qualquer lado. Também como trabalho com Portugal, com cultura e literatura portuguesa, e estou sempre a pensar nisso, não tenho uma necessidade muito forte de ir a Portugal várias vezes. Vivo bem sem essa necessidade muito forte. Pelo menos, para já. Vejo-me a morar aqui. Claro que é preciso reconhecer que Macau é um território chinês, é e sempre foi assim, sempre esteve mesmo antes de iniciar aquele período propriamente colonial, do Ferreira do Amaral e mais tarde regressou a ter uma administração apenas chinesa. Sempre houve uma negociação forte, sempre houve interesse de parte a parte para que estivéssemos aqui. Espero que a comunidade portuguesa possa continuar aqui, com as vantagens e até privilégios que temos em aqui estar. Nós somos, sem dúvida, dos estrangeiros mais favorecidos neste território chinês e acho que devemos estar gratos por isso. Quanto aos problemas mais falados, bem, há pessoas que falam do peso da vigilância, eu ainda não sinto muito isso. Mas, talvez, no futuro venha a sentir.

Como sente esta entidade de Macau aberta à confluência de culturas?

Macau deixa um pouco cada um para o seu lado. A questão do encontro de culturas é um encontro que também é um desencontro. Parece uma banalidade dizer isto, havia uma altura em que se falava no encontro de culturas, mas eu acho que é mais uma convivência, um estar lado a lado. Também há outras presenças e elementos interessantes na história de Macau que remetem para outras partes da Ásia. Por exemplo, como eu estudei Goa, interessam-me as relações de Macau com a Índia. Consigo ler algumas das referências, que são várias, a Goa no território. Macau leva-me também para outras partes da Ásia. Estamos a cerca de um raio de 6 horas de voo das principais capitais, centros económicos, financeiros e culturais da Ásia. Portanto, também quero tirar partido disso, sabendo que estamos sempre com o nosso pé, a nossa raiz, na cultura portuguesa. Como também já estou fora há algum tempo, meia dúzia de anos, isso torna-se mais claro e óbvio, mais à flor da pele esta condição do que é ser português fora de Portugal. Apesar de ter vivido sempre em lugares ligados a Portugal, sinto que essa condição ainda é mais forte, ou sente-se de outra forma.

Quais as perspectivas, enquanto português aqui em Macau, para o futuro, face à integração na Grande Baía e com 2049 no horizonte?

Em traços gerais, acho que é a realidade que está aí a vir, temos de lidar com o que aí vem de forma pragmática para saber como nos vamos colocar nesse futuro próximo que já está aí a chegar. Temos de lidar com ele como um dado adquirido. É assim que vai ser, sabemos que esse é o plano para o futuro. Espero que os portugueses possam ainda ter algum papel numa Macau já nessa situação e nesse contexto novo. Não sei qual possa ser, em que moldes será, mas espero que se concretize.

RAEM, 20 anos | Duarte Drumond Braga, académico: “Somos, sem dúvida, favorecidos”

Depois de seis anos no Brasil, Duarte Drumond Braga mudou-se para Macau, uma das cidades-chave na sua área de investigação. O académico, ao serviço da MUST, tenciona aprender mandarim e ficar por Macau, “um território que sempre foi chinês”, e que espera que no futuro tenha espaço para que os portugueses continuem a desempenhar um papel relevante

 
[dropcap]E[/dropcap]stá a viver em Macau há relativamente pouco tempo. O que o trouxe para o território?
Cheguei em Agosto para assumir um contrato numa universidade privada, a Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau (MUST, na sigla inglesa). Passei por uma selecção prévia e aqui estou. Antes desta experiência, vivi no Brasil durante cinco anos, onde tive uma bolsa de investigação. Fiz doutoramento e mestrado em Portugal e depois saí para o Brasil em 2014. Desde então, não voltei a Portugal e vim directamente para aqui.
Na sua vida académica estudou as representações da Ásia na cultura e literatura portuguesa, algo que passa também por Macau. Ou seja, tinha uma visão académica de Macau. Houve algum conflito entre essa ideia e a realidade da cidade?
Já conhecia Macau de experiências anteriores. Já cá tinha estado duas vezes, uma delas fiquei durante três meses. Estar cá a morar dá outra noção das coisas, ainda para mais quando se trabalha para uma instituição mais chinesa. Assim sendo, tive de me habituar a alguns procedimentos e regras mais próprias de instituições chinesas. Mas nada que tenha representado qualquer tipo de problemas, foi apenas uma questão de hábito.
Tem, portanto, uma experiência diferente dos outros portugueses que ficam mais fechados na “bolha” portuguesa.
Não circulo apenas no meio português aqui em Macau. Aliás, acho que isso seria algo um pouco pobre. Atenção, frequento, como toda a gente, o meio português. Acho óptimo que exista. Mas, como vim do Brasil directamente para aqui, não me parece que seja um caso muito normal, não sei se há muitas pessoas com o mesmo percurso que eu. Antigamente, era comum encontrar em Macau pessoas que estavam cá há muito anos e que vinham das ex-colónias portuguesas em África. Eu vim do Brasil. A parte da vida de Macau que se reflecte nas grandes multidões, no aglomerado de prédios e no urbanismo descontrolado, são realidades para as quais já estava habituado no Brasil. Aquilo que realmente foi mais diferente para mim foi habituar-me à cultura chinesa e ao convívio com os chineses. Situações que também têm uma relação directa com a questão da comunicação, toda a gente passa por isso. Circulo muito aqui por Macau, gosto bastante de passear e de conhecer a cidade e, como tal, faço questão de tentar falar um pouco a língua. Aliás, no próximo semestre devo começar aulas de mandarim.
Encara Macau como uma cidade para viver no futuro.
Eu vejo-me a morar aqui, é um lugar onde gosto de estar, um lugar muito particular e interessante. Que, por vezes, pode ser um pouco claustrofóbico, como toda a gente sabe, mas que também é muito bem localizado na Ásia, algo que me permite deslocações com facilidade para qualquer lado. Também como trabalho com Portugal, com cultura e literatura portuguesa, e estou sempre a pensar nisso, não tenho uma necessidade muito forte de ir a Portugal várias vezes. Vivo bem sem essa necessidade muito forte. Pelo menos, para já. Vejo-me a morar aqui. Claro que é preciso reconhecer que Macau é um território chinês, é e sempre foi assim, sempre esteve mesmo antes de iniciar aquele período propriamente colonial, do Ferreira do Amaral e mais tarde regressou a ter uma administração apenas chinesa. Sempre houve uma negociação forte, sempre houve interesse de parte a parte para que estivéssemos aqui. Espero que a comunidade portuguesa possa continuar aqui, com as vantagens e até privilégios que temos em aqui estar. Nós somos, sem dúvida, dos estrangeiros mais favorecidos neste território chinês e acho que devemos estar gratos por isso. Quanto aos problemas mais falados, bem, há pessoas que falam do peso da vigilância, eu ainda não sinto muito isso. Mas, talvez, no futuro venha a sentir.
Como sente esta entidade de Macau aberta à confluência de culturas?
Macau deixa um pouco cada um para o seu lado. A questão do encontro de culturas é um encontro que também é um desencontro. Parece uma banalidade dizer isto, havia uma altura em que se falava no encontro de culturas, mas eu acho que é mais uma convivência, um estar lado a lado. Também há outras presenças e elementos interessantes na história de Macau que remetem para outras partes da Ásia. Por exemplo, como eu estudei Goa, interessam-me as relações de Macau com a Índia. Consigo ler algumas das referências, que são várias, a Goa no território. Macau leva-me também para outras partes da Ásia. Estamos a cerca de um raio de 6 horas de voo das principais capitais, centros económicos, financeiros e culturais da Ásia. Portanto, também quero tirar partido disso, sabendo que estamos sempre com o nosso pé, a nossa raiz, na cultura portuguesa. Como também já estou fora há algum tempo, meia dúzia de anos, isso torna-se mais claro e óbvio, mais à flor da pele esta condição do que é ser português fora de Portugal. Apesar de ter vivido sempre em lugares ligados a Portugal, sinto que essa condição ainda é mais forte, ou sente-se de outra forma.
Quais as perspectivas, enquanto português aqui em Macau, para o futuro, face à integração na Grande Baía e com 2049 no horizonte?
Em traços gerais, acho que é a realidade que está aí a vir, temos de lidar com o que aí vem de forma pragmática para saber como nos vamos colocar nesse futuro próximo que já está aí a chegar. Temos de lidar com ele como um dado adquirido. É assim que vai ser, sabemos que esse é o plano para o futuro. Espero que os portugueses possam ainda ter algum papel numa Macau já nessa situação e nesse contexto novo. Não sei qual possa ser, em que moldes será, mas espero que se concretize.

RAEM 20 anos | Jorge Neto Valente: “Aponto o dedo a nós próprios”

Jorge Neto Valente, empresário e filho do presidente da Associação dos Advogados de Macau com o mesmo nome, acredita, vinte anos depois, que a comunidade macaense continua a correr contra o prejuízo da sua própria inacção durante o período de transição para a administração chinesa. Em entrevista, olha ainda para futuro com os olhos postos na Grande Baía e considera impossível que Macau venha a substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro

 

[dropcap]N[/dropcap]uma altura de balanços, comecemos por aí. O que sentiu há 20 anos atrás durante o período da transição?

Havia muita incerteza e, para além disso, algum medo, tanto do que estava para vir da parte do nova administração, como pela instabilidade e pela criminalidade que havia antes da transição. Existiram períodos muito maus, o crime disparou, havia assassinatos e raptos, o que já não se vê agora. Infelizmente penso que isso definiu o ambiente na altura da transição. Olhando para trás, quando vemos as imagens do dia da passagem parece muito mais giro do que realmente foi na altura, que era muito mais sombrio e incerto.

Que acontecimento destes 20 anos mais o marcou?

A liberalização do jogo que é, sem dúvida, um marco histórico e permitiu um desenvolvimento muito grande em todos os aspectos em Macau. A parte económica teve um empurrão da China, que também ajudou ao deixar vir muitos turistas do continente, mas a liberalização do jogo foi o que mudou a sociedade. Antes apenas uma família controlava o jogo e não havia transparência, nem competição entre os casinos. Quando há competição, ou quando uma empresa enfraquece, há outra que toma o seu lugar e logo aí existiu uma mudança muito grande, pois a verdade é que, na altura, nem sequer sabíamos que o jogo envolvia tantos aspectos, porque era tão pouco transparente que as pessoas nem sequer se apercebiam. Os casinos passaram directamente, digamos, da década de 70, para casinos de ponta e de referência para outros locais que passaram a vir cá copiar como se faz. A competição traduziu-se no aumento salarial dos trabalhadores do jogo e passou a pagar-se mais aos melhores. Portanto houve um aumento qualitativo e um aumento quantitativo e isso acabou por arrastar o desenvolvimento de tudo o resto. Para mim foi isso que também marcou os primeiros dois termos do primeiro chefe do Executivo.

Até pelo que o Jorge representa, como vê comunidade macaense e o caminho por ela trilhado desde há 20 anos?

Ficámos todos a ver o que ia acontecer e o tempo foi passando. A parte social foi deixada de lado e talvez seja um dos aspectos mais negativos. Aponto o dedo a nós próprios, mais do que a outras pessoas porque antes de 1999, e depois também, não houve uma preparação na comunidade macaense. Passaram 10 e 20 anos e a verdade é que não fizemos muito. Os jovens não se interessaram nem quiseram entrar na vida cívica ou política, porque estavam também a ver o que ia acontecer, alguns deles com um pé cá e outro em Portugal, onde muito acabaram por ir. Mas os mais experientes, que deviam ter ajudado a traçar o caminho, também ficaram a ver, tiveram medo de seguir um rumo que podia correr mal e ser culpados por isso. As coisas iam melhorando na sociedade de Macau, na política e na economia, e nós ficámos a hibernar, sem fazer muito mais do que aquilo que já se estava a fazer. Daí que, ao fim de 10 anos, mais ou menos quando regressei a Macau, notei que as associações de matriz chinesa tinham organizações para todas as idades e as associações de matriz macaense não tinham jovens. Como havia muitas oportunidades nos casinos e em empresas privadas, concentraram-se muito na vida profissional e na família. Outro aspecto negativo e que aconteceu até 2015, é o desaparecimento do português e do ensino do português na escola. Penso que aqui houve também, digamos, um bocadinho de maldade, por parte de um certo pensamento dos dirigentes do novo Governo, que acharam que o português já não interessava em contrário do ensino do chinês. Foi só depois quando lançaram a plataforma entre a China e os países de língua portuguesa (PLP) e quando em 2015 o primeiro-ministro chinês [Li Keqiang] veio a Macau é que as se pessoas se lembraram que realmente o português ainda era importante. Mas como o português não foi ensinado durante 15 anos, perdeu-se uma geração e para recomeçar foi mais difícil. O problema é que agora existe mesmo um interesse, não só de Macau, mas da China, que quer pessoas que falem as duas línguas, para fazerem a ponte de ligação para os PLP e apontar Macau como a plataforma para esse fim.

Qual é a principal diferença que encontra em termos de perspectiva, entre os portugueses que chegaram durante a administração portuguesa e os que vêm agora trabalhar na RAEM?

Penso que a distinção não será tanto, entre os que estão cá antes de 1999 e os que vieram depois. Penso que a distinção é entre aqueles que querem saber mais e estão abertos a aprender e absorver o que vem de fora, e aqueles que são muito mais fechados. Noto, desde pequeno, que havia aqueles portugueses colonialistas que vinham cá, até vestidos a rigor, e nunca se misturavam com os chineses, ou seja, comiam em português, viviam nas concentrações portuguesas e tudo o resto passava-lhes ao lado. Mas esse é o extremo. Depois há aqueles muito mais liberais, normalmente os jovens que cresceram já no Portugal da Europa, que vêm e gostam de ir sítios diferentes, onde há só chineses e não se fecham. Para esses a integração é muito mais fácil. Para os outros não há integração mas a vida também é fácil porque há sempre concentrações portuguesas em Macau a uma esquina de distância. Macau está sempre a evoluir e é hoje uma cidade muito mais internacional. Existem pessoas de todo o tipo e provenientes de todo o lado e penso que daqui a 10 anos vamos olhar para trás e Macau vai continuar a evoluir.

O Jorge é um empresário em nome próprio, que tem um papel activo na sociedade. De que forma pode ser um exemplo para a comunidade?

O exemplo começa pela Associação de Jovens Macaenses. Criámos a associação precisamente com esse fim: iniciação de jovens. Por isso é que fazemos muitas actividades e damos uma oportunidade de experimentar para ver o que é que gostam, entre desporto, arte, caridade, etc. Depois de participar, acabam sempre por arranjar uma coisa que gostam de fazer e complementam dessa forma a sua actividade profissional. O que nós queremos é passar a mensagem de que “não fiquem só a ver os navios a passar”.Em vez de nos perguntarmos porque é que não há mais participação, devemos participar nós próprios na sociedade e fazer o trabalho, porque as associações chinesas nesse aspecto têm feito um trabalho muito melhor de preparação.

Que análise faz ao trabalho da tutela da Economia e Finanças nos últimos anos? Na sua opinião, em que sentido está Macau a caminhar nesta matéria e o que pode o Governo fazer diferente?    


Agora vamos ter um novo Governo e temos grandes expectativas. Passados 10 anos, e depois de dois mandatos completos, o primeiro Governo fez muita coisa. Houve escândalos, claro, mas fez muito. Houve a parte da corrupção, mas foi também uma altura em que havia também muita corrupção na própria China. E a verdade é que as coisas se endireitaram tanto em Macau, como no interior da China e hoje em dia não existe aquilo que se via. Penso que o “elástico” estava muito solto no primeiro Governo e no segundo Governo puxaram muito por esse “elástico”, fazendo com que a segunda parte destes últimos 20 anos tenha existido muita inacção. Se virmos bem, o metro define mais ou menos o segundo Governo. Como se viu, o metro foi definido por um preço, tinha um traçado que previa passar em certas partes e houve tanto medo de o fazer, e ao mesmo tempo tanta vontade, que acabaram por arranjar uma solução que, para não desagradar a alguns, desagrada a todos. O metro da Taipa podia ser um metro subterrâneo e isso evitaria problemas. Além disso, a própria inauguração do metro também definiu essa incapacidade porque parou meia-hora depois de abrir e após terem gasto cinco vezes mais do que tinha sido planeado. Mas é preciso ver também que o Governo de Macau é muito dependente de factores externos.

Muito se fala na diversificação económica de Macau. Qual a sua importância, tendo em conta a ambição de integração cada vez maior nos projecto da Grande Baía?

Todos os países têm uma indústria que os definem. No Médio Oriente é o petróleo, por exemplo, e aqui é o jogo. A diversificação em termos absolutos diz-nos que Macau agora, em vez de depender 90 por cento da indústria do jogo, depende 89 por cento do jogo, e isto faz com que todas as políticas e o próprio investimento privado tendam sempre a apontar para o jogo. Mas a verdade é que os casinos não podem englobar toda a gente, nem toda a gente está apta ou quer trabalhar neles. E nesse sentido, tanto a Grande Baía como a plataforma [com os PLP] trouxeram essas oportunidades. Penso que nos próximos 30 anos, para os jovens, é na Grande Baía que estão as oportunidades praticamente todas. Quem quiser apostar e trabalhar na China e em Macau, sem ser nos casinos, tem de olhar para a Grande Baía, porque tem aquilo que nos falta: um mercado de cerca de 100 milhões de pessoas, espaço e pessoas para trabalhar. A Grande Baía ajuda a direccionar os investimentos, porque são 11 cidades muito próximas que estão agora a definir quais as suas vantagens. Se Macau, para além do jogo, se conseguir definir como plataforma dos países de língua portuguesa, então as outras cidades têm de vir a Macau para esses negócios específicos. Se Hong Kong, que está agora a passar por mau bocado, não se definir e perder as suas vantagens, vai ficar para trás e alguma outra cidade irá tentar tomar-lhe o lugar. Isto é a competição, ou seja, o Governo central traçou a Grande Baía mas depois também dá liberdade a cada cidade de melhorar e de se tornar “campeã” nas áreas que conseguir.

Então considera que Macau poder vir a assumir uma posição importante como centro financeiro?

Em algumas áreas acho que é possível e é fácil tornar-se num centro económico para os PLP, até porque as leis são muito parecidas mas, fazendo de advogado do Diabo e sendo franco, substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro é impossível. Para isso acontecer seria necessário modificar a lei e a forma de passagem de bens e acções das empresas, que é muito importante para os empresários. Em Hong Kong, baseado na common law, é muito fácil haver transacção e passagem das acções das empresas e é por isso que as pessoas gostam muito de usar as leis e os tribunais de Hong Kong. Para nós modificarmos estes tópicos, que estão tão bem entranhados na lei continental europeia, seria extremamente difícil.

Para quem fica para os próximos 20 anos, que futuro esperar?

O futuro é sempre incerto, mas tanto por parte do Governo central como do Governo de Macau, há vontade de manter a estabilidade sociológica, política e económica e dar as oportunidades devidas à população. Se utilizarmos as nossas vantagens que passam por aproveitar as duas línguas que temos, aproveitar tudo o que relaciona a China com os PLP em termos de negócio, cultura e economia, vamos ser campeões nessa matéria. A partir dessa área podemos alastrar a outras áreas complementares e trabalhar muito, porque a sorte também vem para aqueles que estão bem preparados e prontos para agarrar as oportunidades.

RAEM 20 anos | Jorge Neto Valente: “Aponto o dedo a nós próprios”

Jorge Neto Valente, empresário e filho do presidente da Associação dos Advogados de Macau com o mesmo nome, acredita, vinte anos depois, que a comunidade macaense continua a correr contra o prejuízo da sua própria inacção durante o período de transição para a administração chinesa. Em entrevista, olha ainda para futuro com os olhos postos na Grande Baía e considera impossível que Macau venha a substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro

 
[dropcap]N[/dropcap]uma altura de balanços, comecemos por aí. O que sentiu há 20 anos atrás durante o período da transição?
Havia muita incerteza e, para além disso, algum medo, tanto do que estava para vir da parte do nova administração, como pela instabilidade e pela criminalidade que havia antes da transição. Existiram períodos muito maus, o crime disparou, havia assassinatos e raptos, o que já não se vê agora. Infelizmente penso que isso definiu o ambiente na altura da transição. Olhando para trás, quando vemos as imagens do dia da passagem parece muito mais giro do que realmente foi na altura, que era muito mais sombrio e incerto.
Que acontecimento destes 20 anos mais o marcou?
A liberalização do jogo que é, sem dúvida, um marco histórico e permitiu um desenvolvimento muito grande em todos os aspectos em Macau. A parte económica teve um empurrão da China, que também ajudou ao deixar vir muitos turistas do continente, mas a liberalização do jogo foi o que mudou a sociedade. Antes apenas uma família controlava o jogo e não havia transparência, nem competição entre os casinos. Quando há competição, ou quando uma empresa enfraquece, há outra que toma o seu lugar e logo aí existiu uma mudança muito grande, pois a verdade é que, na altura, nem sequer sabíamos que o jogo envolvia tantos aspectos, porque era tão pouco transparente que as pessoas nem sequer se apercebiam. Os casinos passaram directamente, digamos, da década de 70, para casinos de ponta e de referência para outros locais que passaram a vir cá copiar como se faz. A competição traduziu-se no aumento salarial dos trabalhadores do jogo e passou a pagar-se mais aos melhores. Portanto houve um aumento qualitativo e um aumento quantitativo e isso acabou por arrastar o desenvolvimento de tudo o resto. Para mim foi isso que também marcou os primeiros dois termos do primeiro chefe do Executivo.
Até pelo que o Jorge representa, como vê comunidade macaense e o caminho por ela trilhado desde há 20 anos?
Ficámos todos a ver o que ia acontecer e o tempo foi passando. A parte social foi deixada de lado e talvez seja um dos aspectos mais negativos. Aponto o dedo a nós próprios, mais do que a outras pessoas porque antes de 1999, e depois também, não houve uma preparação na comunidade macaense. Passaram 10 e 20 anos e a verdade é que não fizemos muito. Os jovens não se interessaram nem quiseram entrar na vida cívica ou política, porque estavam também a ver o que ia acontecer, alguns deles com um pé cá e outro em Portugal, onde muito acabaram por ir. Mas os mais experientes, que deviam ter ajudado a traçar o caminho, também ficaram a ver, tiveram medo de seguir um rumo que podia correr mal e ser culpados por isso. As coisas iam melhorando na sociedade de Macau, na política e na economia, e nós ficámos a hibernar, sem fazer muito mais do que aquilo que já se estava a fazer. Daí que, ao fim de 10 anos, mais ou menos quando regressei a Macau, notei que as associações de matriz chinesa tinham organizações para todas as idades e as associações de matriz macaense não tinham jovens. Como havia muitas oportunidades nos casinos e em empresas privadas, concentraram-se muito na vida profissional e na família. Outro aspecto negativo e que aconteceu até 2015, é o desaparecimento do português e do ensino do português na escola. Penso que aqui houve também, digamos, um bocadinho de maldade, por parte de um certo pensamento dos dirigentes do novo Governo, que acharam que o português já não interessava em contrário do ensino do chinês. Foi só depois quando lançaram a plataforma entre a China e os países de língua portuguesa (PLP) e quando em 2015 o primeiro-ministro chinês [Li Keqiang] veio a Macau é que as se pessoas se lembraram que realmente o português ainda era importante. Mas como o português não foi ensinado durante 15 anos, perdeu-se uma geração e para recomeçar foi mais difícil. O problema é que agora existe mesmo um interesse, não só de Macau, mas da China, que quer pessoas que falem as duas línguas, para fazerem a ponte de ligação para os PLP e apontar Macau como a plataforma para esse fim.
Qual é a principal diferença que encontra em termos de perspectiva, entre os portugueses que chegaram durante a administração portuguesa e os que vêm agora trabalhar na RAEM?
Penso que a distinção não será tanto, entre os que estão cá antes de 1999 e os que vieram depois. Penso que a distinção é entre aqueles que querem saber mais e estão abertos a aprender e absorver o que vem de fora, e aqueles que são muito mais fechados. Noto, desde pequeno, que havia aqueles portugueses colonialistas que vinham cá, até vestidos a rigor, e nunca se misturavam com os chineses, ou seja, comiam em português, viviam nas concentrações portuguesas e tudo o resto passava-lhes ao lado. Mas esse é o extremo. Depois há aqueles muito mais liberais, normalmente os jovens que cresceram já no Portugal da Europa, que vêm e gostam de ir sítios diferentes, onde há só chineses e não se fecham. Para esses a integração é muito mais fácil. Para os outros não há integração mas a vida também é fácil porque há sempre concentrações portuguesas em Macau a uma esquina de distância. Macau está sempre a evoluir e é hoje uma cidade muito mais internacional. Existem pessoas de todo o tipo e provenientes de todo o lado e penso que daqui a 10 anos vamos olhar para trás e Macau vai continuar a evoluir.
O Jorge é um empresário em nome próprio, que tem um papel activo na sociedade. De que forma pode ser um exemplo para a comunidade?
O exemplo começa pela Associação de Jovens Macaenses. Criámos a associação precisamente com esse fim: iniciação de jovens. Por isso é que fazemos muitas actividades e damos uma oportunidade de experimentar para ver o que é que gostam, entre desporto, arte, caridade, etc. Depois de participar, acabam sempre por arranjar uma coisa que gostam de fazer e complementam dessa forma a sua actividade profissional. O que nós queremos é passar a mensagem de que “não fiquem só a ver os navios a passar”.Em vez de nos perguntarmos porque é que não há mais participação, devemos participar nós próprios na sociedade e fazer o trabalho, porque as associações chinesas nesse aspecto têm feito um trabalho muito melhor de preparação.
Que análise faz ao trabalho da tutela da Economia e Finanças nos últimos anos? Na sua opinião, em que sentido está Macau a caminhar nesta matéria e o que pode o Governo fazer diferente?    

Agora vamos ter um novo Governo e temos grandes expectativas. Passados 10 anos, e depois de dois mandatos completos, o primeiro Governo fez muita coisa. Houve escândalos, claro, mas fez muito. Houve a parte da corrupção, mas foi também uma altura em que havia também muita corrupção na própria China. E a verdade é que as coisas se endireitaram tanto em Macau, como no interior da China e hoje em dia não existe aquilo que se via. Penso que o “elástico” estava muito solto no primeiro Governo e no segundo Governo puxaram muito por esse “elástico”, fazendo com que a segunda parte destes últimos 20 anos tenha existido muita inacção. Se virmos bem, o metro define mais ou menos o segundo Governo. Como se viu, o metro foi definido por um preço, tinha um traçado que previa passar em certas partes e houve tanto medo de o fazer, e ao mesmo tempo tanta vontade, que acabaram por arranjar uma solução que, para não desagradar a alguns, desagrada a todos. O metro da Taipa podia ser um metro subterrâneo e isso evitaria problemas. Além disso, a própria inauguração do metro também definiu essa incapacidade porque parou meia-hora depois de abrir e após terem gasto cinco vezes mais do que tinha sido planeado. Mas é preciso ver também que o Governo de Macau é muito dependente de factores externos.
Muito se fala na diversificação económica de Macau. Qual a sua importância, tendo em conta a ambição de integração cada vez maior nos projecto da Grande Baía?
Todos os países têm uma indústria que os definem. No Médio Oriente é o petróleo, por exemplo, e aqui é o jogo. A diversificação em termos absolutos diz-nos que Macau agora, em vez de depender 90 por cento da indústria do jogo, depende 89 por cento do jogo, e isto faz com que todas as políticas e o próprio investimento privado tendam sempre a apontar para o jogo. Mas a verdade é que os casinos não podem englobar toda a gente, nem toda a gente está apta ou quer trabalhar neles. E nesse sentido, tanto a Grande Baía como a plataforma [com os PLP] trouxeram essas oportunidades. Penso que nos próximos 30 anos, para os jovens, é na Grande Baía que estão as oportunidades praticamente todas. Quem quiser apostar e trabalhar na China e em Macau, sem ser nos casinos, tem de olhar para a Grande Baía, porque tem aquilo que nos falta: um mercado de cerca de 100 milhões de pessoas, espaço e pessoas para trabalhar. A Grande Baía ajuda a direccionar os investimentos, porque são 11 cidades muito próximas que estão agora a definir quais as suas vantagens. Se Macau, para além do jogo, se conseguir definir como plataforma dos países de língua portuguesa, então as outras cidades têm de vir a Macau para esses negócios específicos. Se Hong Kong, que está agora a passar por mau bocado, não se definir e perder as suas vantagens, vai ficar para trás e alguma outra cidade irá tentar tomar-lhe o lugar. Isto é a competição, ou seja, o Governo central traçou a Grande Baía mas depois também dá liberdade a cada cidade de melhorar e de se tornar “campeã” nas áreas que conseguir.
Então considera que Macau poder vir a assumir uma posição importante como centro financeiro?
Em algumas áreas acho que é possível e é fácil tornar-se num centro económico para os PLP, até porque as leis são muito parecidas mas, fazendo de advogado do Diabo e sendo franco, substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro é impossível. Para isso acontecer seria necessário modificar a lei e a forma de passagem de bens e acções das empresas, que é muito importante para os empresários. Em Hong Kong, baseado na common law, é muito fácil haver transacção e passagem das acções das empresas e é por isso que as pessoas gostam muito de usar as leis e os tribunais de Hong Kong. Para nós modificarmos estes tópicos, que estão tão bem entranhados na lei continental europeia, seria extremamente difícil.
Para quem fica para os próximos 20 anos, que futuro esperar?
O futuro é sempre incerto, mas tanto por parte do Governo central como do Governo de Macau, há vontade de manter a estabilidade sociológica, política e económica e dar as oportunidades devidas à população. Se utilizarmos as nossas vantagens que passam por aproveitar as duas línguas que temos, aproveitar tudo o que relaciona a China com os PLP em termos de negócio, cultura e economia, vamos ser campeões nessa matéria. A partir dessa área podemos alastrar a outras áreas complementares e trabalhar muito, porque a sorte também vem para aqueles que estão bem preparados e prontos para agarrar as oportunidades.

Lam U Tou, presidente da Associação da Sinergia de Macau: “Não me sinto restringido em termos de liberdade de expressão”

Lam U Tou, um dos mais jovens líderes chineses de Macau, partilha a sua visão acerca dos assuntos que marcaram a região nos últimos vinte anos, fala de liberdade de expressão e antevê as principais questões e desafios do novo Executivo

 

Como foram os últimos vinte anos após o retorno de Macau para administração chinesa?

[dropcap]N[/dropcap]asci em Macau e nunca pensei que em vinte anos pudessem existir tantas mudanças. Ainda me lembro dos dias em que o Hotel Presidente e o Hotel Lisboa eram os mais luxuosos e em que, ao abrir a janela, podia olhar directamente para o mar, sem ver outros edifícios pelo meio. 15 anos depois, apareceram resorts como o Sands, o Wynn ou o MGM, que me impressionam muito. Outra parte interessante foi que, a partir de 2007, foi realizado pela primeira vez o NBA China Game no Fórum de Macau, até mesmo antes de ir para Hong Kong. Tudo isto foram para mim sinais de que o desenvolvimento económico de Macau se estava a tornar cada vez melhor, mas isso não significa que não tenhamos sofrido. Em 2003, por exemplo, por causa da epidemia do Síndroma Respiratório Agudo Severo (SARS), a economia ressentiu-se muito, sendo que o salário era apenas de 3.000 patacas para um administrativo recém-licenciado ou de 3.800 patacas para um engenheiro. Muito diferentes eram também a maioria dos procedimentos relacionados com o Governo, que eram complicados e confusos. Na época da administração portuguesa, aqueles que não sabiam português, não se atreviam a apresentar as suas dúvidas aos funcionários públicos e era assim o ambiente na altura. Depois do retorno de Macau para a administração chinesa, voltando a usar o cantonês, tudo se tornou mais cómodo.

Na sua opinião, quais os assuntos que mais preocupam os cidadãos de Macau?

A maioria dos problemas são derivados do crescimento acelerado, feito sem pensar no bem-estar da população e da questão da habitação. Apesar de não ser tão preocupante quando comparada com Hong Kong, a questão da habitação não permite aos jovens, adquirir a sua própria casa no futuro. O preço de uma residência semi-nova é bastante elevado, não sendo compatível com os seus salários. Falando sobre a lei das habitações públicas, às vezes parece que é preciso lutar para ver quem é o mais miserável ou quem tem mais sorte, para obter uma habitação. Para evitar este tipo de problemas, o Governo deve ter uma política e um planeamento específico para as habitações públicas, disponibilizando uma quantia anual de fracções aos cidadãos. Acho que o Governo tem sempre dificuldade em ver a realidade na discussão das suas políticas, pois defende que o arrendamento das habitações sociais, podem ter lucros. No entanto, os custos de operação, recursos, reparação e manutenção das instalações, entre outros elementos que é preciso manter para assegurar o seu normal funcionamento, custam ao Governo mais de mil milhões de patacas, valor esse, não recuperado pelo baixo valor da renda recebida mensalmente. Já a situação da habitação económica é totalmente oposta, pois os custos de construção do edifício, estacionamento, valor do terreno, despesas relacionadas com a consulta de especialistas, avaliação ambiental, e todos os outros gastos necessários para a concretização de uma fracção são mais baixos, sendo que a área da obra tem apenas o custo de 1600 patacas por metro quadrado. Além disso, existem, no total, 40 mil habitações públicas que podem ser construídas nos terrenos recuperados pelo Governo. No entanto, nos últimos anos, foram apenas construídas 4.100 fracções. Por isso, espero que as autoridades possam acelerar o processo de planeamento dos terrenos, de forma a construir 4 mil habitações por ano, e ter as 40 mil fracções públicas prontas ao fim dos próximos 10 anos. Outro problema que é urgente resolver diz respeito à expansão da linha do metro ligeiro. Nos próximos cinco anos Ho Iat Seng deve ser capaz de construir a linha leste do metro ligeiro juntamente com a quarta travessia marítima Macau-Taipa.

O que pensa sobre a juventude de Macau ao nível do sentido patriótico?

Licenciei-me na Universidade de Jinan e fiz o meu mestrado na Universidade de Pequim. Não rejeito o patriotismo, sou de Macau, mas também sou chinês. Não vou rejeitar a minha identidade chinesa e os trabalhos de educação sobre o amor patriótico. No entanto, os jovens têm agora de saber quais são os prós e contras do país, e ser eles a avaliar o que é bom e o que é mau, para depois, decidir a sua própria visão do país. Mas tenho de dizer que é inegável que a China está a fazer esforços para liderar a população rumo ao crescimento social e está a conseguir. Ainda assim existem problemas que devem ser resolvidos o mais rapidamente possível, relacionados com a justiça social e a extrema disparidade entre ricos e pobres.

O que espera dos próximos 30 anos?

Não sei o que vai acontecer nos próximos trinta anos, mas temos de enfrentá-los com optimismo. Actualmente existem políticas que não acompanham a evolução dos tempos e que podem estar na base da origem de conflitos sociais semelhantes à situação de Hong Kong. Mas é positivo pensar que, se forem lançadas políticas favoráveis neste período de transformação social, muitas situações negativas poderão ser evitadas. Espero, por isso que o futuro governo, possa construir um sistema baseado na mudança da regulamentação em vigor.

O que mais contribuiu para a sua decisão de concorrer às eleições legislativas?

Comecei a trabalhar, primeiro, como assistente de Kwan Tsui Hang, ex-deputada à Assembleia Legislativa e, a partir daí, tanto a Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM) como a ex-deputada ofereceram-me muitas oportunidades. Fui aos bairros para falar com os cidadãos e conhecer quais os problemas a que a sociedade deve prestar atenção. Mas durante os anos em que estive na FAOM, descobri que existem temas que não estão a ser abordados, portanto, achei que era importante ter um espaço independente das associações e decidi criar a Associação da Sinergia de Macau. Foi tudo decidido rapidamente. Comecei a falar com os interessados em Dezembro de 2016, tendo a associação sido estabelecida logo em Março do ano seguinte. Depois, candidatei-me às eleições legislativas. Confesso que não esperava garantir um lugar no hemiciclo, mas sinto-me muito grato pelos 7.162 votos que obtive. Revelámos somente o nosso programa político à imagem das “linhas de acção governativa”, o qual tinha mais de 18.000 caracteres chineses, fornecendo formas de resolver os problemas sociais.

Sente que existe liberdade de expressão em Macau?

Em Macau, não me sinto restringido em termos de liberdade de expressão, mesmo falando inúmeras vezes sobre assuntos onde considerei a acção do Governo insuficiente. Eu sei que há pessoas que pensam que existe “terror branco” ou um “tecto transparente” na cidade que não permite que as pessoas expressem livremente as suas opiniões sobre o Governo ou outros temas relevantes. Mas tenho de dizer que, até agora, ainda não recebi nenhuma chamada ou alerta para não falar acerca de casos específicos. Talvez seja porque estou mais preocupado com os factos e não particularmente com os indivíduos. Para mim, o mais importante é alcançar medidas para solucionar as questões. Sobre a liberdade de expressão, desconheço situações de censura mas, de facto, nunca me senti visado. O nosso papel na sociedade é servir de ponte entre os cidadãos e o Governo para, juntos, encontrarmos soluções. É impossível resolver um problema apenas por nós próprios.

António Júlio Duarte, fotógrafo de Macau em mudança: “Era uma terra adormecida… parada no tempo…”

Primeiro fotografou Macau durante os anos 90, quando o pequeno território lhe pareceu parado no tempo à espera de algo. No ano da transferência de administração de Macau, António Júlio Duarte voltou para registar com a lente um ano especial que ficaria para a História. Mais tarde, publicou livros de fotografia sobre o desenvolvimento que Macau conheceu, sem esquecer a campanha eleitoral protagonizada por Chui Sai On em 2009, que cobriu para o Hoje Macau

 

[dropcap]N[/dropcap]ão estava previsto, mas a vida profissional do fotógrafo António Júlio Duarte ficou ligada a Macau. Desde as primeiras fotografias, tiradas na década de 90, às imagens captadas no ano da transferência de soberania, sem esquecer a era RAEM, o trabalho de António Júlio Duarte tem acompanhado a evolução do território.

Em Lisboa, o fotógrafo recorda o primeiro momento em que pisou Macau. “A primeira vez que fui a Macau foi em 1990 e um bocado por acaso: fui por mim. Tinha interesse em viajar e trabalhar no Extremo Oriente, na altura tinha pessoas conhecidas em Macau e decidi ir. Depois de Macau fui para outros lados. Tinha pessoas lá e isso era bom para um primeiro contacto com o Oriente.”

António Júlio Duarte recorda-se sobretudo da melancolia. “Fotografei essencialmente pessoas nos jardins. Na altura pareceu-me uma terra um bocado adormecida, perdida no tempo, mas isto é relativo, porque a Ásia está sempre um bocado à frente daquilo que se passa no resto do mundo. Deve ser uma das razões pelas quais trabalho lá.”

“Mas, dos contactos que tive com a comunidade portuguesa, havia ali uma certa melancolia que não é comum ao resto da Ásia, talvez por causa dessa presença portuguesa, que é uma coisa que me irrita profundamente”, acrescentou.

Em 1995 o fotógrafo publicaria o livro “East West”, com fotografias de Macau, um território “que se tornou numa espécie de sítio onde gosta de trabalhar”. À época, achou “o território triste, e as fotografias que fiz nessa altura são todas muito melancólicas”. “Estava a aproximar-se uma grande mudança, talvez fosse por isso”, frisou.

António Júlio Duarte acabaria por protagonizar, ainda antes da transferência de administração, uma exposição em Macau com o apoio da Fundação Oriente (FO).

Formado na escola Ar.Co, em Lisboa, e no Royal College of Arts de Londres, António Júlio Duarte acabaria por ser novamente convidado pela FO para fotografar o último ano da administração portuguesa, liderada pelo Governador Vasco Rocha Vieira.

Na década de 90, António Júlio Duarte diz ter ficado surpreendido com o distanciamento entre as comunidades chinesa e portuguesa. “Era quase como se houvesse duas cidades paralelas que raramente se tocam. Essa é uma das razoes pelas quais Macau me fascina, por causa dessa estranheza que vem daí, de haver dois povos que raramente comunicam com uma grande barreira linguística grande, num espaço tão pequeno como é Macau.”

Quando regressa, em 1999, António Júlio Duarte depara-se com uma cidade em constante mutação. “Havia a conclusão de obras grandes, uma preocupação do Governo português em deixar obra feita, a fim de permitir que Macau tivesse uma maior autonomia. Mas também foi uma altura conturbada em Macau, com o fim do monopólio do jogo.” O fotógrafo recorda “clima de inquietação no ar”.

Depois de 1999, António Júlio Duarte dedicou-se a fotografar os casinos de Macau, símbolo de um fulgor económico, imagens que constam no livro “White Noise”, publicado em 2011. “O território já se tinha tornado noutra coisa qualquer, e foi isso que me interessou”, aponta.

Fotografar Chui Sai On

Em 2009, o fotógrafo abraçou um projecto político ao fotografar a campanha eleitoral de Chui Sai On para o cargo de Chefe do Executivo, para o qual foi eleito para um primeiro mandato. Daí nasceu o livro “O Candidato”, graças a um trabalho realizado na redacção do HM.

“Entre 2008 e 2011 fui com mais frequência a Macau por causa de um colectivo de fotógrafos que existia em Lisboa na altura que era o KameraPhoto, em que produzíamos mais trabalho ligado à prática jornalística. Havia essa campanha eleitoral e achei que era bom trabalhar sobre isso pelo lado quase ficcional que tinha, pelo facto de ser um único candidato fazer uma campanha de sensibilização à população como se fosse uma campanha eleitoral com todo o aparato de uma campanha em qualquer outro ponto do mundo.”

O que atraiu o fotógrafo foi “esse lado de figura inatingível”. “Havia todo um mecanismo de segurança à volta da campanha e do próprio candidato que para mim não fazia nenhum sentido, sendo Macau pequeno e seguro. Havia a construção dessa máquina mediática e de segurança à volta de uma coisa que na realidade não existe. Por isso é que no trabalho eu fotografo quase sempre Chui Sai On de costas, porque não quero trabalhar sobre ele mas sobre esta figura, do aparato, e sobre o candidato, numa coisa mais abstracta”, recorda.

“Mercúrio” nasceria em 2015 enquanto projecto fruto de uma parceria com a Galeria Pedro Alfacinha e produzido pela Galeria Zé dos Bois. “Foi feito sempre em ambientes nocturnos mas são coisas muito abstractas, não necessariamente documentais. Esse foi um fechar de ciclo, e de momento não tenho planos para Macau.”

RAEM, 20 anos | Ao Man Long, Ho Chio Meng e Sulu Sou: os processos que abalaram o território

Em duas décadas de existência da RAEM, os governos de Edmund Ho e Chui Sai On tiveram de lidar com os efeitos da condenação do ex-secretário Ao Man Long e do ex-Procurador Ho Chio Meng. Foram processos que mudaram a percepção da sociedade face à Administração e a agenda política em relação à corrupção, mas que também expuseram as falhas da justiça. O caso da suspensão do deputado Sulu Sou, diz o seu advogado, teve um lado pedagógico

 

 

2006 – A prisão do ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long

[dropcap]E[/dropcap]stávamos a 5 de Dezembro de 2006 quando o ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long, foi detido em casa. Dava-se assim início a um longo processo que viu à lupa as grandes obras públicas e privadas feitas entre o período de 2002 e 2006 e que teve vários processos conexos, com julgamentos em Hong Kong. A condenação de Ao Man Long aconteceu a 30 de Janeiro de 2008, tendo sido condenado a 27 anos de prisão efectiva por 57 crimes, a maioria deles de corrupção passiva e branqueamento de capitais.

João Miguel Barros, advogado e defensor do empresário Pedro Chiang, condenado num processo conexo, recorda um caso que trouxe à tona vários problemas do sistema judicial, a começar pelo facto de Ao Man Long, por ser titular de um principal cargo, não ter direito a recurso. Se fosse hoje condenado, o ex-secretário poderia ter recorrido para o Tribunal de Última Instância (TUI), uma vez que a lei de bases da organização judicial foi alvo de uma revisão.

“Este processo foi marcante porque, pela primeira vez, estava em causa um alto dirigente político e estavam em causa também situações jurídicas extraordinariamente importantes relativamente às garantias e ao funcionamento do próprio sistema”, recordou ao HM.

João Miguel Barros recorda muitos outros problemas, a começar pela actuação do Comissariado contra a Corrupção (CCAC), que começou por investigar o caso.

“Na altura fui muito crítico da actuação do CCAC, pois existiram obviamente grandes violações de garantias processuais. Uma das coisas que sempre coloquei em cima da mesa foi o facto de as buscas em casa de Ao Man Long não terem sido feitas de acordo com a lei e com o código. A validade das buscas afectaria claramente o resultado final do processo.”

O causídico explica que Ao Man Long teria de estar presente ou representado nestas buscas, o que não aconteceu. “O CCAC tinha Ao Man Long detido nas suas instalações e foi buscar a chave da vivenda onde vivia, que estava armazenada no Governo, abriram a porta e fizeram as apreensões que quiseram. Isto é motivo de todas as suspeitas”.

O segredo de justiça

João Miguel Barros recorda que a prisão de Ao Man Long chamou também a atenção para a questão do segredo de justiça. “O CCAC tinha de mostrar à sociedade que não era uma entidade sem relevância e quis criar ali um caso, dando conferências de imprensa em que se violava o segredo de justiça, porque se identificavam as fontes, mostravam partes do processo. Fiz uma queixa sobre isso que foi colocada olimpicamente numa prateleira durante algum tempo e depois foi arquivada.”

Além disso, o processo obrigou a sociedade a olhar para as competências e poderes do CCAC, mas João Miguel Barros frisa também uma situação relacionada com a defesa de Pedro Chiang.

“Foram cometidas ilegalidades graves ao declararem a nulidade de uma notificação ainda no âmbito da investigação para não apreciarem os recursos que eu tinha colocado, mas ao mesmo tempo isso já não serviu para evitar que ele fosse julgado. Uma coisa que serve para não apreciar o recurso mas já não serviu para dar continuidade ao julgamento.”

Portugueses de fora dos colectivos

O processo Ao Man Long não só foi “muito rico em mostrar tudo o que eram fragilidades ou falta de experiência das autoridades judiciárias em lidar com processos desta dimensão”, como obrigou a um outro olhar em relação ao crime de branqueamento de capitais.

“Houve interpretações que os tribunais fizeram para condenar empresários por esse crime quando não havia nenhum precedente que justificasse o branqueamento de capitais. Foi muito claro para todos os advogados que não era possível ninguém sair inocente, ou melhor, ainda que houvesse inocentes, era obrigatório acusar e também condenar.”

Também aqui se notou as diferenças na “cultura jurídica” entre juízes portugueses e chineses. “Nos julgamentos que fiz logo na primeira instância foi sintomático que os arguidos eram normalmente absolvidos do crime de branqueamento de capitais, porque havia uma percepção muito clara da parte dos juizes portugueses que era preciso distinguir muito bem a tipologia dos crimes e as molduras penais. As pessoas foram condenadas em crimes de corrupção e de abuso de poder, mas passou a haver uma diminuição significativa das condenações por branqueamento de capitais, porque a cultura jurídica é diferente.”

Para João Miguel Barros, houve uma “consequência prática” advinda do caso Ao Man Long, que é o facto de “os juízes portugueses terem deixado de fazer parte dos colectivos do crime”. “Ou isto é uma coincidência muito grande ou então é uma consequência do modo como esses colectivos julgaram o processo Ao Man Long”, acrescentou.

Os atropelos

Apesar de não ter estado ligado ao caso Ao Man Long, o advogado Jorge Menezes recorda “os atropelos processuais” ocorridos. “Desde logo, o caso do famoso caderno de ‘clientes’ seus, cujo original nunca foi junto ao processo e tinha folhas rasgadas, o que foi interpretado como uma maneira de proteger pessoas cujos nomes lá estavam.”

Para o causídico, “ficou a imagem de uma pessoa que devia ter sido condenada, mas acabou sendo-o com atropelos às leis e ao sistema”. “E a pena foi um exagero: foi aplicada a pensar nos outros, para dar o exemplo, não para fazer justiça”, acrescentou.

Para o analista político Larry So, a prisão de Ao Man Long teve um efeito directo na relação entre a sociedade e o Governo.

“Estes processos de corrupção foram muito significativos para Macau. Em primeiro lugar, foi a primeira vez que um titular de um alto cargo foi condenado por tal crime. Nessa altura foi um alarme para Macau descobriu-se que a corrupção poderia chegar aos lugares cimeiros do Governo. Claro que o Governo teve de limpar a sua imagem e puxar pela moral dos funcionários públicos. Afectou toda a Administração e as campanhas anti-corrupção atingiram um outro nível.”

 

2016 – A prisão do ex-Procurador Ho Chio Meng

Por ironia do destino, dez anos depois surgiria um segundo caso de corrupção. Em Fevereiro de 2016, Ho Chio Meng, à data Procurador do Ministério Público (MP) da RAEM, foi preso preventivamente suspeito de corrupção na adjudicação de obras e serviços. O magistrado foi acusado e respondeu por 1.536 crimes, nomeadamente burla, abuso de poder, branqueamento de capitais e promoção/fundação de associação criminosa.

Para Jorge Menezes, este caso foi ainda mais grave do que o de Ao Man Long. “Temos o mais alto responsável por todas as investigações criminais, acusado de centenas ou milhares de crimes de corrupção, sem que nunca se tivesse aberto um inquérito alargado aos processos crimes que decorreram sob a sua alçada. Ninguém de bom senso acreditaria que o motivo daquela galopada processual assentou em camas de massagens e obras na procuradoria.”

Neste sentido, “a imagem pública que restou de uma vontade institucional de branquear eventuais actos de corrupção na própria magistratura do MP. Sem terem aberto um inquérito, dificilmente nos convencerão do contrário”.

Menezes recorda, apesar de não ter provas, de sentir “os atropelos e facilitações no MP daquela época”, lembrando que não foi feito um levantamento de eventuais práticas ilegais nas investigações do MP em processos-crime.

“Alguma instituição responsável acusaria o mais alto investigador de milhares de crimes de corrupção, mas já não investigaria se ele foi corrompido onde mais interessava e onde tinha poder efectivo – nos inquéritos criminais?”, questionou.

Nesse sentido, “ao não ordenar um inquérito alargado a processos crime de relevo com percursos processuais suspeitos dirigidos sob a alçada de Ho Chi Meng, o sistema judicial falhou grosseiramente e perdeu muita credibilidade”.

Oriana Pun, advogada defensora de Ho Chio Meng, lamenta que o ex-Procurador não tenha tido a possibilidade de recorrer da pena, algo que hoje também seria possível. “Um dos problemas que foi realçado é o facto de o caso ser julgado pelo Tribunal de Última Instância como primeira instância. Todos devem ter oportunidade para reclamar e recorrer, pelo menos uma vez. E como acontece com todos os processos, a sentença pode acarretar defeitos e vícios, que só podem
ser corrigidos mediante recurso.”

Para João Miguel Barros, este foi “um processo das maiores perplexidades”, tendo em conta também a forma como a acusação foi feita, e marca os 20 anos da RAEM pelo facto de o ex-Procurador ser a figura principal. Larry So destaca o facto de a prisão de Ho Chio Meng ter revelado que a corrupção podia chegar a toda a Administração, incluindo ao órgão de investigação criminal.

“Percebeu-se que o problema era ainda mais profundo. O processo trouxe a ideia de que era fácil aos funcionários públicos e titulares dos principais cargos serem corrompidos com uma ligação aos vários interesses da sociedade, incluindo casinos e empresários.”

Larry So considera que, depois destes dois casos, o Governo de Chui Sai On tem colocado a luta pela transparência governativa no topo da agenda, algo que promete também ser a bandeira do Executivo de Ho Iat Seng.

“No passado a corrupção não era um assunto muito abordado ou não se discutia de forma profunda. Mas agora é um dos assuntos mais discutidos e uma das características mais importantes que os funcionários públicos devem ter”, lembrou Larry So.

 

2017 – A suspensão do mandato de Sulu Sou no hemiciclo

Não foi um caso de corrupção, mas mexeu com a sociedade. Eleito pela primeira vez para a Assembleia Legislativa (AL) em Setembro de 2017, Sulu Sou veria o seu mandato suspenso temporariamente por decisão dos seus próprios colegas do hemiciclo, perdendo a imunidade parlamentar. Tal votação levou-o a ser julgado pelo crime de desobediência qualificada pelo Tribunal Judicial de Base em Maio do ano passado, de onde saiu com a obrigação de pagar uma multa de 120 dias. O caso envolveu também Scott Chiang, activista da Associação Novo Macau, defendido por Pedro Leal.

Jorge Menezes, advogado defensor de Sulu Sou, esta foi “uma das duas recentes páginas negras da AL”. “Os atropelos dos seus direitos e da lei cometidos pela Mesa da AL foram pueris, revelando descontrolo. Foi triste ver a fábrica de leis violar as suas próprias leis, demonstrando a cada passo um desconhecimento de princípios elementares de direito”, acrescentou.

O causídico português destaca ainda o facto de o Tribunal de Segunda Instância (TSI) ter recusado o recurso apresentado por Sulu Sou a esta suspensão de mandato, considerando estar em causa um processo político.
“O processo judicial em si foi outra decepção. O TSI errou ao não compreender que a violação da lei é matéria do domínio judicial, pois ninguém está acima da lei: nem o fazedor da lei a pode violar. O acto político, matéria de discricionariedade elevada, esse não é para os tribunais decidirem. Mas ninguém pediu ao Tribunal que dissesse se os deputados deviam ou não votar a favor da suspensão: o que pedimos foi que analisasse a violação da lei, pois é precisamente para isso que existem os tribunais.”

Além disso, Jorge Menezes destaca o facto de “os próprios actos políticos entrarem na competência dos tribunais se violarem direitos fundamentais”, algo que aconteceu com o processo de suspensão organizado pela Comissão de Regimentos e Mandatos e pela Mesa da AL, defende.

Um lado pedagógico

Jorge Menezes não tem dúvidas de que o caso Sulu Sou acabou por ter “um enorme efeito pedagógico na comunicação social e na comunidade em geral, que se interessou, comentou e envolveu como observador activo”. Além disso, foi um processo que “contribuiu para uma consciencialização acrescida da importância do Direito como instrumento de limitação dos poderes e moralização da actividade pública, para a ideia de que devemos ser governados por lei, regras e princípios, não por interesses, políticos ou outros.”

Larry So assegura que o caso Sulu Sou deu início a uma nova fase na AL. Sulu Sou voltou ao seu lugar, mas isso não quer dizer que seja adorado pelos seus pares. “Mudou um pouco as coisas na AL, porque temos um deputado jovem. Mas este foi um caso sobretudo ligado à questão da justiça social. Muitos deputados do campo pró-Pequim não gostam dele mas têm de o aceitar na AL, porque ficou provado que Sulu Sou não cometeu qualquer crime”, rematou.

RAEM, 20 anos | Ao Man Long, Ho Chio Meng e Sulu Sou: os processos que abalaram o território

Em duas décadas de existência da RAEM, os governos de Edmund Ho e Chui Sai On tiveram de lidar com os efeitos da condenação do ex-secretário Ao Man Long e do ex-Procurador Ho Chio Meng. Foram processos que mudaram a percepção da sociedade face à Administração e a agenda política em relação à corrupção, mas que também expuseram as falhas da justiça. O caso da suspensão do deputado Sulu Sou, diz o seu advogado, teve um lado pedagógico

 
 

2006 – A prisão do ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long

[dropcap]E[/dropcap]stávamos a 5 de Dezembro de 2006 quando o ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long, foi detido em casa. Dava-se assim início a um longo processo que viu à lupa as grandes obras públicas e privadas feitas entre o período de 2002 e 2006 e que teve vários processos conexos, com julgamentos em Hong Kong. A condenação de Ao Man Long aconteceu a 30 de Janeiro de 2008, tendo sido condenado a 27 anos de prisão efectiva por 57 crimes, a maioria deles de corrupção passiva e branqueamento de capitais.
João Miguel Barros, advogado e defensor do empresário Pedro Chiang, condenado num processo conexo, recorda um caso que trouxe à tona vários problemas do sistema judicial, a começar pelo facto de Ao Man Long, por ser titular de um principal cargo, não ter direito a recurso. Se fosse hoje condenado, o ex-secretário poderia ter recorrido para o Tribunal de Última Instância (TUI), uma vez que a lei de bases da organização judicial foi alvo de uma revisão.
“Este processo foi marcante porque, pela primeira vez, estava em causa um alto dirigente político e estavam em causa também situações jurídicas extraordinariamente importantes relativamente às garantias e ao funcionamento do próprio sistema”, recordou ao HM.
João Miguel Barros recorda muitos outros problemas, a começar pela actuação do Comissariado contra a Corrupção (CCAC), que começou por investigar o caso.
“Na altura fui muito crítico da actuação do CCAC, pois existiram obviamente grandes violações de garantias processuais. Uma das coisas que sempre coloquei em cima da mesa foi o facto de as buscas em casa de Ao Man Long não terem sido feitas de acordo com a lei e com o código. A validade das buscas afectaria claramente o resultado final do processo.”
O causídico explica que Ao Man Long teria de estar presente ou representado nestas buscas, o que não aconteceu. “O CCAC tinha Ao Man Long detido nas suas instalações e foi buscar a chave da vivenda onde vivia, que estava armazenada no Governo, abriram a porta e fizeram as apreensões que quiseram. Isto é motivo de todas as suspeitas”.

O segredo de justiça

João Miguel Barros recorda que a prisão de Ao Man Long chamou também a atenção para a questão do segredo de justiça. “O CCAC tinha de mostrar à sociedade que não era uma entidade sem relevância e quis criar ali um caso, dando conferências de imprensa em que se violava o segredo de justiça, porque se identificavam as fontes, mostravam partes do processo. Fiz uma queixa sobre isso que foi colocada olimpicamente numa prateleira durante algum tempo e depois foi arquivada.”
Além disso, o processo obrigou a sociedade a olhar para as competências e poderes do CCAC, mas João Miguel Barros frisa também uma situação relacionada com a defesa de Pedro Chiang.
“Foram cometidas ilegalidades graves ao declararem a nulidade de uma notificação ainda no âmbito da investigação para não apreciarem os recursos que eu tinha colocado, mas ao mesmo tempo isso já não serviu para evitar que ele fosse julgado. Uma coisa que serve para não apreciar o recurso mas já não serviu para dar continuidade ao julgamento.”

Portugueses de fora dos colectivos

O processo Ao Man Long não só foi “muito rico em mostrar tudo o que eram fragilidades ou falta de experiência das autoridades judiciárias em lidar com processos desta dimensão”, como obrigou a um outro olhar em relação ao crime de branqueamento de capitais.
“Houve interpretações que os tribunais fizeram para condenar empresários por esse crime quando não havia nenhum precedente que justificasse o branqueamento de capitais. Foi muito claro para todos os advogados que não era possível ninguém sair inocente, ou melhor, ainda que houvesse inocentes, era obrigatório acusar e também condenar.”
Também aqui se notou as diferenças na “cultura jurídica” entre juízes portugueses e chineses. “Nos julgamentos que fiz logo na primeira instância foi sintomático que os arguidos eram normalmente absolvidos do crime de branqueamento de capitais, porque havia uma percepção muito clara da parte dos juizes portugueses que era preciso distinguir muito bem a tipologia dos crimes e as molduras penais. As pessoas foram condenadas em crimes de corrupção e de abuso de poder, mas passou a haver uma diminuição significativa das condenações por branqueamento de capitais, porque a cultura jurídica é diferente.”
Para João Miguel Barros, houve uma “consequência prática” advinda do caso Ao Man Long, que é o facto de “os juízes portugueses terem deixado de fazer parte dos colectivos do crime”. “Ou isto é uma coincidência muito grande ou então é uma consequência do modo como esses colectivos julgaram o processo Ao Man Long”, acrescentou.

Os atropelos

Apesar de não ter estado ligado ao caso Ao Man Long, o advogado Jorge Menezes recorda “os atropelos processuais” ocorridos. “Desde logo, o caso do famoso caderno de ‘clientes’ seus, cujo original nunca foi junto ao processo e tinha folhas rasgadas, o que foi interpretado como uma maneira de proteger pessoas cujos nomes lá estavam.”
Para o causídico, “ficou a imagem de uma pessoa que devia ter sido condenada, mas acabou sendo-o com atropelos às leis e ao sistema”. “E a pena foi um exagero: foi aplicada a pensar nos outros, para dar o exemplo, não para fazer justiça”, acrescentou.
Para o analista político Larry So, a prisão de Ao Man Long teve um efeito directo na relação entre a sociedade e o Governo.
“Estes processos de corrupção foram muito significativos para Macau. Em primeiro lugar, foi a primeira vez que um titular de um alto cargo foi condenado por tal crime. Nessa altura foi um alarme para Macau descobriu-se que a corrupção poderia chegar aos lugares cimeiros do Governo. Claro que o Governo teve de limpar a sua imagem e puxar pela moral dos funcionários públicos. Afectou toda a Administração e as campanhas anti-corrupção atingiram um outro nível.”
 

2016 – A prisão do ex-Procurador Ho Chio Meng

Por ironia do destino, dez anos depois surgiria um segundo caso de corrupção. Em Fevereiro de 2016, Ho Chio Meng, à data Procurador do Ministério Público (MP) da RAEM, foi preso preventivamente suspeito de corrupção na adjudicação de obras e serviços. O magistrado foi acusado e respondeu por 1.536 crimes, nomeadamente burla, abuso de poder, branqueamento de capitais e promoção/fundação de associação criminosa.
Para Jorge Menezes, este caso foi ainda mais grave do que o de Ao Man Long. “Temos o mais alto responsável por todas as investigações criminais, acusado de centenas ou milhares de crimes de corrupção, sem que nunca se tivesse aberto um inquérito alargado aos processos crimes que decorreram sob a sua alçada. Ninguém de bom senso acreditaria que o motivo daquela galopada processual assentou em camas de massagens e obras na procuradoria.”
Neste sentido, “a imagem pública que restou de uma vontade institucional de branquear eventuais actos de corrupção na própria magistratura do MP. Sem terem aberto um inquérito, dificilmente nos convencerão do contrário”.
Menezes recorda, apesar de não ter provas, de sentir “os atropelos e facilitações no MP daquela época”, lembrando que não foi feito um levantamento de eventuais práticas ilegais nas investigações do MP em processos-crime.
“Alguma instituição responsável acusaria o mais alto investigador de milhares de crimes de corrupção, mas já não investigaria se ele foi corrompido onde mais interessava e onde tinha poder efectivo – nos inquéritos criminais?”, questionou.
Nesse sentido, “ao não ordenar um inquérito alargado a processos crime de relevo com percursos processuais suspeitos dirigidos sob a alçada de Ho Chi Meng, o sistema judicial falhou grosseiramente e perdeu muita credibilidade”.
Oriana Pun, advogada defensora de Ho Chio Meng, lamenta que o ex-Procurador não tenha tido a possibilidade de recorrer da pena, algo que hoje também seria possível. “Um dos problemas que foi realçado é o facto de o caso ser julgado pelo Tribunal de Última Instância como primeira instância. Todos devem ter oportunidade para reclamar e recorrer, pelo menos uma vez. E como acontece com todos os processos, a sentença pode acarretar defeitos e vícios, que só podem
ser corrigidos mediante recurso.”
Para João Miguel Barros, este foi “um processo das maiores perplexidades”, tendo em conta também a forma como a acusação foi feita, e marca os 20 anos da RAEM pelo facto de o ex-Procurador ser a figura principal. Larry So destaca o facto de a prisão de Ho Chio Meng ter revelado que a corrupção podia chegar a toda a Administração, incluindo ao órgão de investigação criminal.
“Percebeu-se que o problema era ainda mais profundo. O processo trouxe a ideia de que era fácil aos funcionários públicos e titulares dos principais cargos serem corrompidos com uma ligação aos vários interesses da sociedade, incluindo casinos e empresários.”
Larry So considera que, depois destes dois casos, o Governo de Chui Sai On tem colocado a luta pela transparência governativa no topo da agenda, algo que promete também ser a bandeira do Executivo de Ho Iat Seng.
“No passado a corrupção não era um assunto muito abordado ou não se discutia de forma profunda. Mas agora é um dos assuntos mais discutidos e uma das características mais importantes que os funcionários públicos devem ter”, lembrou Larry So.
 

2017 – A suspensão do mandato de Sulu Sou no hemiciclo

Não foi um caso de corrupção, mas mexeu com a sociedade. Eleito pela primeira vez para a Assembleia Legislativa (AL) em Setembro de 2017, Sulu Sou veria o seu mandato suspenso temporariamente por decisão dos seus próprios colegas do hemiciclo, perdendo a imunidade parlamentar. Tal votação levou-o a ser julgado pelo crime de desobediência qualificada pelo Tribunal Judicial de Base em Maio do ano passado, de onde saiu com a obrigação de pagar uma multa de 120 dias. O caso envolveu também Scott Chiang, activista da Associação Novo Macau, defendido por Pedro Leal.
Jorge Menezes, advogado defensor de Sulu Sou, esta foi “uma das duas recentes páginas negras da AL”. “Os atropelos dos seus direitos e da lei cometidos pela Mesa da AL foram pueris, revelando descontrolo. Foi triste ver a fábrica de leis violar as suas próprias leis, demonstrando a cada passo um desconhecimento de princípios elementares de direito”, acrescentou.
O causídico português destaca ainda o facto de o Tribunal de Segunda Instância (TSI) ter recusado o recurso apresentado por Sulu Sou a esta suspensão de mandato, considerando estar em causa um processo político.
“O processo judicial em si foi outra decepção. O TSI errou ao não compreender que a violação da lei é matéria do domínio judicial, pois ninguém está acima da lei: nem o fazedor da lei a pode violar. O acto político, matéria de discricionariedade elevada, esse não é para os tribunais decidirem. Mas ninguém pediu ao Tribunal que dissesse se os deputados deviam ou não votar a favor da suspensão: o que pedimos foi que analisasse a violação da lei, pois é precisamente para isso que existem os tribunais.”
Além disso, Jorge Menezes destaca o facto de “os próprios actos políticos entrarem na competência dos tribunais se violarem direitos fundamentais”, algo que aconteceu com o processo de suspensão organizado pela Comissão de Regimentos e Mandatos e pela Mesa da AL, defende.

Um lado pedagógico

Jorge Menezes não tem dúvidas de que o caso Sulu Sou acabou por ter “um enorme efeito pedagógico na comunicação social e na comunidade em geral, que se interessou, comentou e envolveu como observador activo”. Além disso, foi um processo que “contribuiu para uma consciencialização acrescida da importância do Direito como instrumento de limitação dos poderes e moralização da actividade pública, para a ideia de que devemos ser governados por lei, regras e princípios, não por interesses, políticos ou outros.”
Larry So assegura que o caso Sulu Sou deu início a uma nova fase na AL. Sulu Sou voltou ao seu lugar, mas isso não quer dizer que seja adorado pelos seus pares. “Mudou um pouco as coisas na AL, porque temos um deputado jovem. Mas este foi um caso sobretudo ligado à questão da justiça social. Muitos deputados do campo pró-Pequim não gostam dele mas têm de o aceitar na AL, porque ficou provado que Sulu Sou não cometeu qualquer crime”, rematou.

Garcia Leandro, ex-Governador de Macau (1974-1979): “Macau foi a antecipação do futuro”

A sua Administração criou as bases para muito do que Macau tem hoje, incluindo a composição da Assembleia Legislativa. O trabalho foi tanto, com a implementação do Estatuto Orgânico de Macau, que o General Garcia Leandro teve um esgotamento. Duas décadas depois da transição, o ex-Governador defende que houve um certo desconhecimento por parte de alguns negociadores chineses face às especificidades de Macau, enquanto que, da parte dos portugueses, houve falta de estabilidade política. Hoje é presidente da Fundação Jorge Álvares

 

 

[dropcap]O[/dropcap] início desta fundação ficou marcado por uma polémica, pois Jorge Sampaio não concordou com a sua criação. 20 anos depois, a fundação ainda vive à sombra disso?

Tenho muito pena que essa polémica tenha existido, principalmente por ter envolvido duas pessoas que trabalharam muito por Portugal: o último Governador, general Vasco Rocha Vieira, e o ex-Presidente da República, Jorge Sampaio. Mas a fundação também sofreu com o que vinha detrás, ou seja, a polémica com a Fundação Oriente (FO). Mas não me incomodam nada essas coisas conjunturais de há 20 anos. O que me interessa são os objectivos da fundação e estes passaram por criar um conjunto, composto pela fundação e outras instituições, que permitisse reforçar as ligações com Macau e com a China para o futuro. Na perspectiva do último Governador de Macau, [a fundação olhava para] o trabalho que foi feito até ao dia 20 de Dezembro de 1999, mas também servia projectar o futuro. Até porque, de todos os antigos territórios ultramarinos, Macau foi aquele cuja saída foi feita da melhor forma e com mais dignidade, com uma relação óptima entre Portugal e a China que foi um exemplo para o mundo. Não tem comparação com o que se passou em Hong Kong. Criou-se uma uma instituição científica, histórica e académica aqui, [o Centro Cultural e Científico de Macau], o Instituto Internacional de Macau (IIM) e a fundação. Temos vindo a reforçar muito as relações com a China e Macau. Os chineses, na Administração da RAEM, têm estado todos connosco. A senhora O Tin Lin [chefe da delegação económica e comercial de Macau em Lisboa] trabalhou connosco, e agora vem o novo representante da RAEM em Lisboa, o doutor Alexis Tam, que tem uma influência local muito importante. Macau foi, ao longo da história, a antecipação do futuro, porque foi sempre uma mistura de toda a gente. Fazia parte do império comercial do Oriente, composto por Goa, Malaca, Macau, Cantão e o Japão. Durante muito tempo só se entrava na China através de Macau, e não se passava de Cantão. Isso só se perde quando os ingleses, depois da Guerra do Ópio, em 1841 ou 1842 ocupam Hong Kong e começa-se a perder a influência portuguesa, e Macau começou a perder importância. O que é espantoso é que volta a ganhar importância depois do 25 de Abril de 1974.

Como?

Foi o que eu vivi, numa época muito, muito difícil politicamente, financeiramente… tudo era difícil. Havia instabilidade, medo. O Estatuto Orgânico de Macau (EOM) de 1976 é o que dá a grande estabilidade porque deu autonomia administrativa, política, financeira e económica a Macau. Criaram-se condições para localmente se poder gerir os interesses de Macau sem ter de pedir tudo a Lisboa. Isso através do Governador e da Assembleia Legislativa (AL).

Isso fez de Macau um novo interposto comercial.

Sim. Por exemplo, as corridas de cavalos, a universidade, ambos na Taipa. Foram ambos contratos meus. Eu não tive de pedir a Lisboa, mas se tivesse de pedir nunca mais tínhamos cavalos nem a universidade. O EOM nunca foi alterado e teve sequência ao longo dos anos através dos governadores portugueses e muita coisa nunca foi alterada pelos chineses. O EOM trouxe uma AL semi-eleita, com o presidente eleito pelos seus pares. Fez-se a indexação da pataca ao dólar de Hong Kong e foi a questão da Autoridade Monetária e Cambial. E fiz uma reforma tributária, em 1977 e 1978, que não cheguei a acabar. Quando fui lá em 2011 ainda não tinham mudado. As forças de segurança também continuam com as mesmas bases. Mesmo a Lei Básica foi beber muito ao EOM, com as devidas actualizações. A grande alteração que o Governo da RAEM fez foi a liberalização do jogo. O Governo da RAEM não resolveu todos os problemas sociais, nomeadamente a habitação, que ainda é muito complicado, porque ou há um tecido urbano que está muito envelhecido ou há um tecido urbano mais moderno sujeito a uma grande especulação imobiliária.

Numa recente palestra em Lisboa, onde esteve presente, Jorge Rangel, presidente do IIM, falou da possibilidade de ocorrência de protestos em Macau caso não haja soluções para a habitação.

É. Ele aqui já tinha alertado para o facto de os problemas de Hong Kong serem, antes dos estudantes e da lei da extradição, a especulação imobiliária e o descontentamento daquelas pessoas perante a impossibilidade de pagar rendas. Esse problema pode surgir em Macau se não for resolvida a questão da habitação e julgo que o Governo de Macau já percebeu isso, tal como também não vai fazer uma proposta de lei da extradição. São coisas que perceberam que não podem fazer.

Voltando ao EOM. O deputado Sulu Sou chegou a defender o fim da composição do hemiciclo instituída com a sua Administração. Vinte anos depois haverá espaço para um aumento dos deputados eleitos pela via directa?

Não me quero meter em assuntos que são responsabilidade do Governo local. Mas posso explicar porque é que fiz daquela maneira. Quando se dá o 25 de Abril e depois se faz o EOM, há um grande choque, com a comunidade portuguesa e chinesa. Em primeiro lugar a comunidade chinesa não estava habituada a entrar na vida política activa.

Não havia votos, na altura?

Havia um partido único, a Acção Nacional Popular, e antes do 25 de Abril a União Nacional, e apenas os portugueses votavam. Quando disse “vamos votar”, consultei todos os que podia consultar e diziam-me que as pessoas não iam votar a sério se fosse pelo sufrágio directo, que tinha de se inventar outra maneira de levar os chineses para a política. Os chineses têm uma grande actividade associativa, e foi através das associações que se conseguiu trazer as pessoas para votar. Arranjaram-se então uns votos por sufrágio directo, outros votos pelas associações em representação de interesses económicos, culturais. Depois sou avisado de outra coisa, de que não iriam aparecer jovens, mulheres ou pessoas independentes em relação ao poder económico”. Para os lugares que ficaram para o Governador nomear, escolhi pessoas realmente independentes. Mas isso foi feito no tempo da Administração portuguesa quando aquela gente não estava habituada a votar e os portugueses estavam habituados a um partido único. Isso manteve-se até final da Administração portuguesa, e a diferença que fizeram foi aumentar o número de deputados. A estrutura é a mesma. Com a Administração chinesa é mais uma situação que ainda não mudaram. Porquê? Não vou comentar porque é estar a meter foice em seara alheia. Vamos esperar.

Muito se fala das diferenças em termos de civismo e cultura política entre Macau e Hong Kong. Essa ausência de eleições foi o grande contributo para esse alheamento existente em Macau?

Em Hong Kong era pior, não havia votos. Os membros dos Conselho Legislativo e Executivo eram todos nomeados por escolha do Governo ou por inerência, só havia dois lugares eleitos nas câmaras municipais. Fizemos o EOM em 1976 e quando Hong Kong tenta ter um parlamento eleito é 20 anos depois, quando os ingleses estão quase a sair de lá.

Então como explica estas diferenças?

Hong Kong tem uma maior massa crítica pois são sete milhões de pessoas. Além disso, Hong Kong tem uma grande presença de empresas estrangeiras e de turistas. A população jovem na China, Macau e Hong Kong está a ser cada vez mais educada. E os jovens são relativamente fáceis de mobilizar para ideais colectivos e sentem que querem ter alguma independência da China. Eles têm uma autonomia mas não deixam de ser parte da China. O acordo assinado entre o Reino Unido e a China, bem como entre Portugal e a China, determina que os territórios são China, com autonomia, mas isso não significa que não se devam ter boas relações com o país. A China evoluiu muito rapidamente e deu um salto muito grande com “Um País, Dois Sistemas”. Não só começa a afirmar-se como potência mundial, com a política “Uma Faixa, Uma Rota”, como começa a ter inimigos e a China percebe isso.

Como deve ser a resposta a isso?

Nunca houve na história mundial um Governo a governar 1,4 milhões de habitantes. E como raciocinam? De uma maneira simples: a China pensa que ninguém vai atacar o país frontalmente, mas podem actuar nos pontos fracos, que são as economias mistas e autonomias mistas, e aí Macau e Hong Kong aparecem como áreas sensíveis. Os chineses estão extremamente preocupados com o que pode acontecer aí. Tudo estava bem até o Governo de Hong Kong decidir apresentar a proposta de lei da extradição. Querem eleger também o Chefe do Executivo pelo sufrágio directo e universal. Tudo bem, mas é um problema que não é nosso, nem temos de andar a fazer comparações ou a extrapolar.

Até porque a Lei Básica de Macau não prevê o sufrágio universal.

A de Hong Kong também não. Aliás, as negociações sobre o futuro de Macau começaram depois das de Hong Kong. Os chineses quiseram copiar muitas coisas do processo de Hong Kong e foi através de nós que as coisas foram corrigidas, mas aí não se deixou de manter o sistema de que não eram eleitos. [O Chefe do Executivo] pode vir a ser [eleito pelo sufrágio universal], mas dentro de regras que não sabemos quais são. Mas uma coisa é certa: a China vai-se enquadrando cada vez mais no mundo e adaptando-se.

No período de descolonização, em 1975, consta que elaborou um relatório sobre o facto de algumas forças partidárias em Portugal defenderem a entrega de Macau. Confirma isso?

Comigo não houve diálogo nenhum. Não produzi qualquer relatório sobre o assunto. Nunca o assunto foi falado comigo, nunca Macau entrou na comissão de descolonização da ONU, onde havia representantes para o antigo Ultramar. Há mais de 40 anos que ando a tentar saber quem é que teve essas conversas. Não sei, não encontro. Um dia falei com duas pessoas que estão citadas no meu livro, o professor Veiga Simão, embaixador da ONU em 1974-1975, e perguntei-lhe se tinha tratado de alguma coisa. Disse-me que não. Anos mais tarde, em 2009, apareceu um professor chinês do Canadá que me parecia ser um especialista sobre o assunto, e perguntei se existia alguma conversação. Ele disse-me que não sabia de nada. Se houve alguma coisa foi de modo informal na ONU. Até porque os representantes portugueses tinham bem a noção, quer Almeida Santos quer o General Costa Gomes do caso muito específico de Macau. E a China, em 1972, tinha dito que Macau e Hong Kong não eram assunto para o comité de descolonização, que eram um assunto para resolver com o tempo, através das relações bilaterais entre Portugal e a China. O dizer que não entrava para o comité de descolonização queria dizer: “isto [Macau e Hong Kong] não será independente, é nosso”. Os dois casos de Macau e Hong Kong são completamente diferentes, até na sua história.

Em que sentido?

Entrámos em Macau no século XVI, a maioria da população era chinesa, mas Hong Kong foi ocupada depois de uma guerra. Não existia nada em Macau, era terra de ninguém. Pagávamos renda e em 19877 deixámos de pagar e ficámos sem futuro definido. Quando é que aquilo acabava? Não estava escrito. Os ingleses conquistaram Hong Kong e depois Kowloon mas esse espaço era relativamente pequeno, então ocuparam os Novos Territórios. Mas deixaram no contrato com a China de que a sua permanência nos novos territórios só durava até 1 de Julho de 1997. A senhora Tatcher, em 1982, vai a Pequim pedir para continuar além deste período, mas Deng Xiaoping deu-lhe a resposta óbvia: “nem pense nisso”. As duas histórias de Macau e Hong Kong são completamente diferentes, até no relacionamento com a população, não tem nada a ver. Por isso é que as nossas negociações correram melhor, também porque nós Portugal não tínhamos grandes interesses económicos a defender em Macau. Não tínhamos grandes empresas portuguesas, apenas tínhamos o BNU. Mas os ingleses tinham muitos interesses económicos e por isso são mais difíceis as negociações.

A transição fez-se então no momento certo.

Os chineses estavam muito interessados em resolver o problema de Taiwan, Hong Kong e Macau. E por uma questão de respeito e consideração pelos mais pequenos, a vontade deles era resolver Taiwan primeiro, mas as coisas não correram bem porque foi muito apoiado pelos americanos, muito desenvolvido economicamente e armado e tornou-se muito autónomo da China. Com Hong Kong tinham o limite de 1997. Quando as negociações começam, o doutor Mário Soares, na altura Presidente da República, queria passar o final para o ano 2000. Os chineses disseram que tudo aquilo tinha de acabar antes do ano 2000. Foi na altura possível, dentro de uma lógica histórica que são as mudanças da história, que não é imutável.

Se tivesse de apontar erros de parte a parte, quais apontaria, no processo de transição?

Os erros que houve da nossa parte foi alguma instabilidade da governação. Alguns escândalos que houve.

O caso do fax de Macau, por exemplo.

Sim, mas antes disso. O Governador Almeida e Costa dissolveu a AL, Pinto Machado esteve lá pouco tempo. Houve vários problemas e houve sempre um certo rumor e desconfiança de escândalos financeiros, corrupção. Da parte da China houve estabilidade mas houve um erro de percepção, pois os negociadores queriam tratar do processo da mesma maneira que trataram em Hong Kong, mas foram corrigindo a pouco e pouco. Nós mantivemos, com os últimos governadores, começando por mim, uma sequência de governação. Depois com acidentes de percurso, as pessoas e os problemas mudam. A China tratou cuidadosamente de Portugal mas com algum desconhecimento de qual era a especificidade de Macau e dos portugueses e estavam a tentar copiar o modelo de Hong Kong.

Ficou sempre essa ideia de uma administração portuguesa corrupta em Macau?

Há muita coisa feita pela comunicação social. Pode-se ter 40 pessoas muito boas, mas se tiver duas ou três que falham são essas que aparecem nos jornais. Isso passou-se em Macau e em Portugal também. A imprensa é livre, e controlar a imprensa é das piores coisas que se pode fazer, porque acaba sempre mal.

RAEM, 20 anos | O relatório “secreto” sobre os meses que antecederam a transferência

Em Outubro de 1999 dois representantes da Casa Civil do Presidente da República deslocaram-se a Macau para acompanhar os preparativos da cerimónia e avaliar o ambiente vivido às portas da transição. O relatório oficial revela laivos de esperança, uma redução do “clima de intriga” e a possibilidade de os chineses poderem aguardar pelos julgamentos dos líderes das seitas para “ensaiarem avaliações públicas negativas” sobre o sistema de justiça deixado pelos portugueses

[dropcap]A[/dropcap] dois meses do dia 20 de Dezembro de 1999 ainda muito havia a fazer para que a cerimónia da transferência de soberania corresse sem sobressaltos. Para se ter uma ideia, entre os dias 11 e 17 de Outubro desse ano, faltavam questões como, por exemplo, fechar a lista de convidados nacionais e estrangeiros para a cerimónia, entre outras questões protocolares.

A informação consta num relatório, intitulado “Notas sobre a deslocação a Macau”, assinado por Pedro Reis e António Manuel, da Casa Civil do Presidente da República, e que consta nos arquivos da Presidência da República, em Lisboa. O documento, consultado pelo HM, revela ainda que nessa visita esteve também presente a primeira dama, Maria José Rita, mulher de Jorge Sampaio.

“O doutor Eurico Pais foi nomeado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) como o ‘Mestre de Cerimónias’ e responsável por toda a parte protocolar. Chamou-nos a atenção para algumas dificuldades que têm fundamentalmente a ver com a definição urgente da lista de convidados, nacionais e estrangeiros, para iniciar o respectivo ‘seating’ de todas as cerimónias.”

O relatório da Presidência dá ainda conta que “a parte logística não era um ‘ponto forte’ do MNE”, pelo que “talvez fosse bom perceber o que se espera da Presidência e, mais importante, definir o que realmente da nossa parte há a fazer.”

“Ficámos com algumas preocupações em relação à parte protocolar. Julgamos que poderá ser, neste sector, que os problemas surjam”, acrescenta-se. Houve também duas reuniões com João Costa Antunes, à data responsável pelo Gabinete da Transferência.

“Tivemos a sensação de que o gabinete funciona bem, sabe, em rigor, o que tem de fazer, e as obras relativas às infra-estruturas necessárias estão a decorrer dentro de todos os prazos. Houve o cuidado de contratar como consultor o responsável pelas cerimónias de Hong Kong que, segundo o gabinete de cerimónias de Macau, tem sido uma ajuda preciosa em termos de informações, evitar erros cometidos e melhoramento de aspectos específicos”, aponta o relatório.

Menos “intriga”

Mas nem só de questões protocolares se fez esta visita. O relatório dá conta da realização de encontros não apenas com o gabinete do Governador, Vasco Rocha Vieira, mas com jornalistas do território. Os responsáveis da Casa Civil dizem ter percepcionado uma mudança de ambiente junto da comunidade portuguesa.

“Destes contactos resultou uma ideia geral de que a situação está bastante mais distendida e o clima de intriga abrandou substancialmente. ‘Há menos portugueses’, ironizou José Rocha Dinis”, época director do Jornal Tribuna de Macau, hoje seu administrador.

O documento dá também conta que, à época, “era muito comum a ideia de que o facto de os chineses terem reforçado as medidas de controlo da fronteira contribuiu para o desaparecimento do clima de insegurança que, de algum modo, alimentava o mau ambiente do território”.

“Uma mudança muito significativa em relação ao ambiente que se vive é a de um grande cepticismo em relação ao futuro ter sido substituído por uma moderada esperança”, lê-se ainda no relatório.

A justiça e as seitas

Outro ponto destacado pelo documento dá conta do início dos julgamentos “dos principais acusados das seitas”, onde se inclui de Wan Kuok Koi, também conhecido como o “Dente Partido” e ex-líder da 14K, detido em Maio de 1998 e condenado a 23 de Novembro de 1999.

Estes julgamentos fizeram com que, em 1999, a justiça fosse o tema que alimentava “as principais controvérsias”.

“Numa ‘terra de advogados’ é natural que as questões de justiça sejam sempre muito discutidas e, raramente, de forma isenta. É evidente que o ideal seria o decurso dos julgamentos ter um ritmo tão rápido quanto possível para assegurar justiça e um desfecho inquestionável face às provas reunidas (que aliás não parecem ser tão impenetráveis quanto seria desejável)”, refere o relatório.

O documento deixa ainda um aviso: “Os chineses parecem muito atentos ao decurso destes julgamentos para ensaiaram avaliações públicas negativas quanto ao sistema de justiça que deixamos no território.”

No encontro com os jornalistas foi também levantado o problema da Teledifusão de Macau (TDM), uma vez que a estação, apesar de ter contratos assinados até 2004, acumulava “prejuízos muito sérios”, além de que “o nível de audiência dos canais portugueses é residual”.

Uma questão de presidentes

No encontro com os funcionários da Casa Civil os jornalistas presentes também discutiram presença de Jorge Sampaio na cerimónia de transferência. “Ninguém duvida [dela]”, lê-se.

“[Os jornalistas] percebem o ‘esforço’ de negociação face aos chineses. Não garantem que essa pressão seja suficiente, mas acreditam que os chineses estão dispostos a ‘fechar’ bem o processo, pelo que haverá acordo e visita do Presidente da República.”

No encontro com o Gabinete do Governador, foram discutidas questões colocadas pela Presidência da República Popular da China (RPC). Questionava-se “se o Presidente da República de Portugal estará à chegada do Presidente da RPC, dando-se o inverso na cerimónia de partida  do Presidente português”. O Gabinete de Vasco Rocha Vieira afirmava que seria “de ponderar esta hipótese”, em nome da “amizade luso-chinesa”.

As autoridades chinesas sugeriram também “o estudo da hipótese de um encontro entre os dois presidentes, bem como a possível participação do presidente chinês na cerimónia portuguesa. Sendo desejo dos chineses a presença do Presidente da República na cerimónia chinesa, então deveria a delegação chinesa estar, igualmente, presente na cerimónia portuguesa”.

Num documento datado de 10 de Dezembro de 1999, já se encontrava definido o programa oficial a cumprir por Jorge Sampaio, que chegou a Macau no dia 17, partindo já no dia 20, às 00h30, para Banguecoque.

Nesse dia, Jorge Sampaio falaria numa cerimónia que constituía “um momento essencial e único da História de Macau”. Para Portugal não se tratava “apenas, de realizar, de forma solene, a transferência para a RPC do exercício de soberania sobre Macau, mas de com essa transferência reafirmar, perante a comunidade internacional, o seu empenho solidário no futuro do território, no quadro do estatuto de autonomia garantido pela Declaração Conjunta Luso-Chinesa”.

Vasco Rocha Vieira despedia-se do território com poesia. “Saudade de Macau. Saudade do seu futuro. Até sempre.”

RAEM, 20 anos | O relatório “secreto” sobre os meses que antecederam a transferência

Em Outubro de 1999 dois representantes da Casa Civil do Presidente da República deslocaram-se a Macau para acompanhar os preparativos da cerimónia e avaliar o ambiente vivido às portas da transição. O relatório oficial revela laivos de esperança, uma redução do “clima de intriga” e a possibilidade de os chineses poderem aguardar pelos julgamentos dos líderes das seitas para “ensaiarem avaliações públicas negativas” sobre o sistema de justiça deixado pelos portugueses

[dropcap]A[/dropcap] dois meses do dia 20 de Dezembro de 1999 ainda muito havia a fazer para que a cerimónia da transferência de soberania corresse sem sobressaltos. Para se ter uma ideia, entre os dias 11 e 17 de Outubro desse ano, faltavam questões como, por exemplo, fechar a lista de convidados nacionais e estrangeiros para a cerimónia, entre outras questões protocolares.
A informação consta num relatório, intitulado “Notas sobre a deslocação a Macau”, assinado por Pedro Reis e António Manuel, da Casa Civil do Presidente da República, e que consta nos arquivos da Presidência da República, em Lisboa. O documento, consultado pelo HM, revela ainda que nessa visita esteve também presente a primeira dama, Maria José Rita, mulher de Jorge Sampaio.
“O doutor Eurico Pais foi nomeado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) como o ‘Mestre de Cerimónias’ e responsável por toda a parte protocolar. Chamou-nos a atenção para algumas dificuldades que têm fundamentalmente a ver com a definição urgente da lista de convidados, nacionais e estrangeiros, para iniciar o respectivo ‘seating’ de todas as cerimónias.”
O relatório da Presidência dá ainda conta que “a parte logística não era um ‘ponto forte’ do MNE”, pelo que “talvez fosse bom perceber o que se espera da Presidência e, mais importante, definir o que realmente da nossa parte há a fazer.”
“Ficámos com algumas preocupações em relação à parte protocolar. Julgamos que poderá ser, neste sector, que os problemas surjam”, acrescenta-se. Houve também duas reuniões com João Costa Antunes, à data responsável pelo Gabinete da Transferência.
“Tivemos a sensação de que o gabinete funciona bem, sabe, em rigor, o que tem de fazer, e as obras relativas às infra-estruturas necessárias estão a decorrer dentro de todos os prazos. Houve o cuidado de contratar como consultor o responsável pelas cerimónias de Hong Kong que, segundo o gabinete de cerimónias de Macau, tem sido uma ajuda preciosa em termos de informações, evitar erros cometidos e melhoramento de aspectos específicos”, aponta o relatório.

Menos “intriga”

Mas nem só de questões protocolares se fez esta visita. O relatório dá conta da realização de encontros não apenas com o gabinete do Governador, Vasco Rocha Vieira, mas com jornalistas do território. Os responsáveis da Casa Civil dizem ter percepcionado uma mudança de ambiente junto da comunidade portuguesa.
“Destes contactos resultou uma ideia geral de que a situação está bastante mais distendida e o clima de intriga abrandou substancialmente. ‘Há menos portugueses’, ironizou José Rocha Dinis”, época director do Jornal Tribuna de Macau, hoje seu administrador.
O documento dá também conta que, à época, “era muito comum a ideia de que o facto de os chineses terem reforçado as medidas de controlo da fronteira contribuiu para o desaparecimento do clima de insegurança que, de algum modo, alimentava o mau ambiente do território”.
“Uma mudança muito significativa em relação ao ambiente que se vive é a de um grande cepticismo em relação ao futuro ter sido substituído por uma moderada esperança”, lê-se ainda no relatório.

A justiça e as seitas

Outro ponto destacado pelo documento dá conta do início dos julgamentos “dos principais acusados das seitas”, onde se inclui de Wan Kuok Koi, também conhecido como o “Dente Partido” e ex-líder da 14K, detido em Maio de 1998 e condenado a 23 de Novembro de 1999.
Estes julgamentos fizeram com que, em 1999, a justiça fosse o tema que alimentava “as principais controvérsias”.
“Numa ‘terra de advogados’ é natural que as questões de justiça sejam sempre muito discutidas e, raramente, de forma isenta. É evidente que o ideal seria o decurso dos julgamentos ter um ritmo tão rápido quanto possível para assegurar justiça e um desfecho inquestionável face às provas reunidas (que aliás não parecem ser tão impenetráveis quanto seria desejável)”, refere o relatório.
O documento deixa ainda um aviso: “Os chineses parecem muito atentos ao decurso destes julgamentos para ensaiaram avaliações públicas negativas quanto ao sistema de justiça que deixamos no território.”
No encontro com os jornalistas foi também levantado o problema da Teledifusão de Macau (TDM), uma vez que a estação, apesar de ter contratos assinados até 2004, acumulava “prejuízos muito sérios”, além de que “o nível de audiência dos canais portugueses é residual”.

Uma questão de presidentes

No encontro com os funcionários da Casa Civil os jornalistas presentes também discutiram presença de Jorge Sampaio na cerimónia de transferência. “Ninguém duvida [dela]”, lê-se.
“[Os jornalistas] percebem o ‘esforço’ de negociação face aos chineses. Não garantem que essa pressão seja suficiente, mas acreditam que os chineses estão dispostos a ‘fechar’ bem o processo, pelo que haverá acordo e visita do Presidente da República.”
No encontro com o Gabinete do Governador, foram discutidas questões colocadas pela Presidência da República Popular da China (RPC). Questionava-se “se o Presidente da República de Portugal estará à chegada do Presidente da RPC, dando-se o inverso na cerimónia de partida  do Presidente português”. O Gabinete de Vasco Rocha Vieira afirmava que seria “de ponderar esta hipótese”, em nome da “amizade luso-chinesa”.
As autoridades chinesas sugeriram também “o estudo da hipótese de um encontro entre os dois presidentes, bem como a possível participação do presidente chinês na cerimónia portuguesa. Sendo desejo dos chineses a presença do Presidente da República na cerimónia chinesa, então deveria a delegação chinesa estar, igualmente, presente na cerimónia portuguesa”.
Num documento datado de 10 de Dezembro de 1999, já se encontrava definido o programa oficial a cumprir por Jorge Sampaio, que chegou a Macau no dia 17, partindo já no dia 20, às 00h30, para Banguecoque.
Nesse dia, Jorge Sampaio falaria numa cerimónia que constituía “um momento essencial e único da História de Macau”. Para Portugal não se tratava “apenas, de realizar, de forma solene, a transferência para a RPC do exercício de soberania sobre Macau, mas de com essa transferência reafirmar, perante a comunidade internacional, o seu empenho solidário no futuro do território, no quadro do estatuto de autonomia garantido pela Declaração Conjunta Luso-Chinesa”.
Vasco Rocha Vieira despedia-se do território com poesia. “Saudade de Macau. Saudade do seu futuro. Até sempre.”

Carlos Gaspar: “Tínhamos garantias de que Pequim estava preparado para cumprir ‘Um País, Dois Sistemas’”

[dropcap]O[/dropcap] actual presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, e ex-assessor de Jorge Sampaio para a questão de Macau, Carlos Gaspar, recordou ao HM que, apesar de Portugal ter “aceite livremente” o acordo que deu origem à transferência de poderes de administração do território de Macau para a China, “foi difícil” para o país “ter perdido” o território.

“Há uma história que contam para explicar porque é que a Rainha de Inglaterra não foi a Hong Kong. É uma frase prosaica, de um oficial da armada britânica, que diz que o seu soberano não gosta de dar coisas a ninguém. E nós também não”, acrescentou Carlos Gaspar.

Carlos Gaspar assegurou ainda que, não fosse a abertura económica da China, não haveria a transferência de administração de Macau e Hong Kong. “A transferência de poderes em Macau e Hong Kong foi possível porque houve um período de liberalização do regime comunista na República Popular da China com Deng Xiaoping, e é nesse contexto que essa transferência de poderes é admissível.”

“Quando assinámos os acordos que definem o princípio ‘Um País, Dois Sistemas’, tínhamos garantias suficientes de que o regime político em Pequim estava preparado para cumprir esse princípio, e continuamos a acreditar que seja assim”, frisou Carlos Gaspar.

Macau no conflito sino-soviético

No seu mais recente livro, “O Regresso da Anarquia – Os Estados Unidos, a China, a Rússia e a ordem internacional”, Carlos Gaspar recorda como Macau era uma questão “relevante” no conflito sino-soviético.

“Os soviéticos acusavam os chineses de permitirem, ao contrário dos indianos, que tinham expulsado os portugueses de Goa pela força, que a China tolerava os colonialistas portugueses em Macau e era uma questão sensível.”

No entanto, aquando do 25 de Abril de 1974, a que se seguiu um período de descolonização em África, “nunca houve forças políticas portuguesas que defendessem a devolução de Macau à China”.

“O Partido Comunista Português (PCP) poderia ter levantado essa questão para embaraçar a China, pois estávamos em pleno conflito sino-soviético, mas o PCP não o fez de forma aberta. Não temos nenhuma indicação de que pessoas concertas defenderam essa posição em Macau ou que tivessem instruções políticas para o fazer. Mas talvez um dia venhamos a ter”, frisou Carlos Gaspar.

Carlos Gaspar: "Tínhamos garantias de que Pequim estava preparado para cumprir ‘Um País, Dois Sistemas’”

[dropcap]O[/dropcap] actual presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, e ex-assessor de Jorge Sampaio para a questão de Macau, Carlos Gaspar, recordou ao HM que, apesar de Portugal ter “aceite livremente” o acordo que deu origem à transferência de poderes de administração do território de Macau para a China, “foi difícil” para o país “ter perdido” o território.
“Há uma história que contam para explicar porque é que a Rainha de Inglaterra não foi a Hong Kong. É uma frase prosaica, de um oficial da armada britânica, que diz que o seu soberano não gosta de dar coisas a ninguém. E nós também não”, acrescentou Carlos Gaspar.
Carlos Gaspar assegurou ainda que, não fosse a abertura económica da China, não haveria a transferência de administração de Macau e Hong Kong. “A transferência de poderes em Macau e Hong Kong foi possível porque houve um período de liberalização do regime comunista na República Popular da China com Deng Xiaoping, e é nesse contexto que essa transferência de poderes é admissível.”
“Quando assinámos os acordos que definem o princípio ‘Um País, Dois Sistemas’, tínhamos garantias suficientes de que o regime político em Pequim estava preparado para cumprir esse princípio, e continuamos a acreditar que seja assim”, frisou Carlos Gaspar.

Macau no conflito sino-soviético

No seu mais recente livro, “O Regresso da Anarquia – Os Estados Unidos, a China, a Rússia e a ordem internacional”, Carlos Gaspar recorda como Macau era uma questão “relevante” no conflito sino-soviético.
“Os soviéticos acusavam os chineses de permitirem, ao contrário dos indianos, que tinham expulsado os portugueses de Goa pela força, que a China tolerava os colonialistas portugueses em Macau e era uma questão sensível.”
No entanto, aquando do 25 de Abril de 1974, a que se seguiu um período de descolonização em África, “nunca houve forças políticas portuguesas que defendessem a devolução de Macau à China”.
“O Partido Comunista Português (PCP) poderia ter levantado essa questão para embaraçar a China, pois estávamos em pleno conflito sino-soviético, mas o PCP não o fez de forma aberta. Não temos nenhuma indicação de que pessoas concertas defenderam essa posição em Macau ou que tivessem instruções políticas para o fazer. Mas talvez um dia venhamos a ter”, frisou Carlos Gaspar.

RAEM, 20 anos | Os grandes desafios para o novo Governo de Macau

[dropcap]M[/dropcap]acau inicia 2020 com um novo Governo que terá de estancar as perdas no jogo, a recessão económica e dotar efectivamente o território para a aventura da Grande Baía. Com o ano a acabar e depois de dois anos consecutivos de subida das receitas em mais de uma décima, as previsões apontam que a capital mundial do jogo, e único local na China onde os casinos são permitidos, registe perdas a rondar os 2,5%.

A diminuição do crescimento chinês, a guerra comercial travada entre China e Estados Unidos e a diminuição do investimento justificada pela incerteza do fim das licenças de jogo em 2022 contribuíram para que Macau registasse uma contração nos três primeiros trimestres do ano, entrando assim em recessão técnica.

A este quadro junta-se a recessão económica sentida no vizinho Hong Kong, um dos principais centros financeiros mundiais, provocados por mais de seis meses de protestos pró-democracia que desafiam diariamente Pequim e o Governo local.

É este o cenário que dá as boas-vindas ao novo executivo liderado por Ho Iat Seng, que toma possa no dia 20 de dezembro, o mesmo dia das celebrações dos 20 anos da passagem da administração do território de Portugal para a China.

Apesar destes números pouco animadores, Ho Iat Seng não vai receber ‘um presente envenenado’ do seu antecessor que esteve dez anos à frente do executivo, Chui Sai On: Macau tem significativas reservas orçamentais (suficientes para sustentar cerca de sete anos de despesa pública), uma taxa de desemprego de cerca de 1,8%, um PIB per capita de mais de 82.000 dólares (73.940 euros) em 2018, uma sociedade apolítica e genericamente satisfeita com estabilidade social, económica e segurança pública e, por isso, com um risco reduzido de ser contagiada com o ‘vírus pró-democracia’ da vizinha Hong Kong.

Licenças para jogar

Em relação ao jogo, a única indústria que faz mover a economia do território, Ho Iat Seng já se comprometeu a rever a legislação e a definir o número de licenças de concessão pós-2022, data em que terminam as actuais licenças (seis operadores exploram o jogo em Macau, três concessionárias e três subconcessionárias, metade chinesas e outra metade com maioria de capital norte-americano).

A obrigação de diversificar

Enquanto a indefinição sobre o futuro da indústria do jogo permanecer, a diversificação económica, um dos chavões dos anos recentes que na prática não saiu do papel, será uma figura importante na política do novo Governo.

O objectivo passa pela diversificação da estrutura industrial, apoiar as pequenas e médias empresas, melhorar a qualidade dos recursos humanos, fomentar indústrias de alta tecnologia e incentivar o regresso de talentos a Macau e reforçar a aposta do território como plataforma entre a China e os países de língua portuguesa.

Para esta função, Ho nomeou um novo titular da pasta para a Economia e Finanças, Lei Wai Nong.
Apesar de um dos objetivos passar por melhorar os indicadores das atividades não associadas ao jogo, Ho Iat Seng já assumiu a primazia aos ‘resorts’ integrados do território – apostando em gastronomia, entretenimento, festivais, conferências e exposições, de forma a tornar Macau num destino turístico mais alargado.

Uma tarefa que se avizinha difícil, já que o jogo representou em 2018 mais de 90% das receitas das concessionárias (37,44 mil milhões de euros) que controlam os ‘resorts’ integrados do território.

Baía da sorte

Para 2020, a Grande Baía deverá também ser uma das grandes apostas do elenco governativo para tomar as rédeas da diversificação económica. “Espero e acredito que o Executivo se unirá para liderar Macau e todos os sectores da sociedade a aproveitar as oportunidades trazidas pela construção da Grande Baía, visando acelerar o desenvolvimento diversificado de Macau”, afirmou o futuro líder do executivo, em Setembro, à saída de Pequim, depois ter sido nomeado chefe do executivo da Região Administrativa Especial de Macau pelo primeiro-ministro chinês, Li Keqiang.

O projecto da Grande Baía, apresentado oficialmente nos primeiros meses de 2019, pretende criar uma metrópole mundial que integra Hong Kong, Macau e nove cidades da província de Guangdong, numa região com cerca de 70 milhões de habitantes e com um Produto Interno Bruto (PIB) que ronda 1,2 biliões de euros, semelhante ao PIB de Austrália, Indonésia ou México, países que integram o G20.

Em paralelo, a tónica do discurso do próximo líder do executivo tem-se centrado no combate à corrupção, “na edificação de um Governo transparente” e ainda na reforma da Administração Pública através da racionalização de quadros e da simplificação administrativa, reformas essas que deverão ser iniciadas a partir de abril de 2020, data do período espectável para que seja aprovado o Orçamento retificativo.

Segurança para que te quero

Por fim, o reforço da segurança, numa das cidades mais seguras do mundo, vai ter também um papel importante no novo Executivo, que mantém Wong Sio Chak como secretário para a Segurança.

Analistas apontam que Macau tem mostrado sinais de querer continuar a ser ‘o bom aluno’ do princípio “Um País, Dois Sistemas” e Ho Iat Seng já afirmou que não haverá qualquer desvio nas “linhas vermelhas” definidas por Pequim: desrespeito pela soberania nacional e pelos símbolos do país, pelo desafio à autoridade do Governo central e à lei fundamental do território.

As recentes proibições de entrada no território a políticos ligados ao movimento democrático em Hong Kong, a jornalistas e líderes da Câmara Americana de Comércio (Am Cham) de Hong Kong, a proibição de manifestações contra a brutalidade policial no território vizinho e a detenção de dois jovens que colavam cartazes de apoio aos protestos na ex-colónia britânica comprovam isso mesmo.

Para já, a partir do primeiro trimestre de 2020, mais 800 câmaras de videovigilância vão ser instaladas e será iniciado um teste com câmaras de videovigilância com reconhecimento facial.

RAEM, 20 anos | Os grandes desafios para o novo Governo de Macau

[dropcap]M[/dropcap]acau inicia 2020 com um novo Governo que terá de estancar as perdas no jogo, a recessão económica e dotar efectivamente o território para a aventura da Grande Baía. Com o ano a acabar e depois de dois anos consecutivos de subida das receitas em mais de uma décima, as previsões apontam que a capital mundial do jogo, e único local na China onde os casinos são permitidos, registe perdas a rondar os 2,5%.
A diminuição do crescimento chinês, a guerra comercial travada entre China e Estados Unidos e a diminuição do investimento justificada pela incerteza do fim das licenças de jogo em 2022 contribuíram para que Macau registasse uma contração nos três primeiros trimestres do ano, entrando assim em recessão técnica.
A este quadro junta-se a recessão económica sentida no vizinho Hong Kong, um dos principais centros financeiros mundiais, provocados por mais de seis meses de protestos pró-democracia que desafiam diariamente Pequim e o Governo local.
É este o cenário que dá as boas-vindas ao novo executivo liderado por Ho Iat Seng, que toma possa no dia 20 de dezembro, o mesmo dia das celebrações dos 20 anos da passagem da administração do território de Portugal para a China.
Apesar destes números pouco animadores, Ho Iat Seng não vai receber ‘um presente envenenado’ do seu antecessor que esteve dez anos à frente do executivo, Chui Sai On: Macau tem significativas reservas orçamentais (suficientes para sustentar cerca de sete anos de despesa pública), uma taxa de desemprego de cerca de 1,8%, um PIB per capita de mais de 82.000 dólares (73.940 euros) em 2018, uma sociedade apolítica e genericamente satisfeita com estabilidade social, económica e segurança pública e, por isso, com um risco reduzido de ser contagiada com o ‘vírus pró-democracia’ da vizinha Hong Kong.

Licenças para jogar

Em relação ao jogo, a única indústria que faz mover a economia do território, Ho Iat Seng já se comprometeu a rever a legislação e a definir o número de licenças de concessão pós-2022, data em que terminam as actuais licenças (seis operadores exploram o jogo em Macau, três concessionárias e três subconcessionárias, metade chinesas e outra metade com maioria de capital norte-americano).

A obrigação de diversificar

Enquanto a indefinição sobre o futuro da indústria do jogo permanecer, a diversificação económica, um dos chavões dos anos recentes que na prática não saiu do papel, será uma figura importante na política do novo Governo.
O objectivo passa pela diversificação da estrutura industrial, apoiar as pequenas e médias empresas, melhorar a qualidade dos recursos humanos, fomentar indústrias de alta tecnologia e incentivar o regresso de talentos a Macau e reforçar a aposta do território como plataforma entre a China e os países de língua portuguesa.
Para esta função, Ho nomeou um novo titular da pasta para a Economia e Finanças, Lei Wai Nong.
Apesar de um dos objetivos passar por melhorar os indicadores das atividades não associadas ao jogo, Ho Iat Seng já assumiu a primazia aos ‘resorts’ integrados do território – apostando em gastronomia, entretenimento, festivais, conferências e exposições, de forma a tornar Macau num destino turístico mais alargado.
Uma tarefa que se avizinha difícil, já que o jogo representou em 2018 mais de 90% das receitas das concessionárias (37,44 mil milhões de euros) que controlam os ‘resorts’ integrados do território.

Baía da sorte

Para 2020, a Grande Baía deverá também ser uma das grandes apostas do elenco governativo para tomar as rédeas da diversificação económica. “Espero e acredito que o Executivo se unirá para liderar Macau e todos os sectores da sociedade a aproveitar as oportunidades trazidas pela construção da Grande Baía, visando acelerar o desenvolvimento diversificado de Macau”, afirmou o futuro líder do executivo, em Setembro, à saída de Pequim, depois ter sido nomeado chefe do executivo da Região Administrativa Especial de Macau pelo primeiro-ministro chinês, Li Keqiang.
O projecto da Grande Baía, apresentado oficialmente nos primeiros meses de 2019, pretende criar uma metrópole mundial que integra Hong Kong, Macau e nove cidades da província de Guangdong, numa região com cerca de 70 milhões de habitantes e com um Produto Interno Bruto (PIB) que ronda 1,2 biliões de euros, semelhante ao PIB de Austrália, Indonésia ou México, países que integram o G20.
Em paralelo, a tónica do discurso do próximo líder do executivo tem-se centrado no combate à corrupção, “na edificação de um Governo transparente” e ainda na reforma da Administração Pública através da racionalização de quadros e da simplificação administrativa, reformas essas que deverão ser iniciadas a partir de abril de 2020, data do período espectável para que seja aprovado o Orçamento retificativo.

Segurança para que te quero

Por fim, o reforço da segurança, numa das cidades mais seguras do mundo, vai ter também um papel importante no novo Executivo, que mantém Wong Sio Chak como secretário para a Segurança.
Analistas apontam que Macau tem mostrado sinais de querer continuar a ser ‘o bom aluno’ do princípio “Um País, Dois Sistemas” e Ho Iat Seng já afirmou que não haverá qualquer desvio nas “linhas vermelhas” definidas por Pequim: desrespeito pela soberania nacional e pelos símbolos do país, pelo desafio à autoridade do Governo central e à lei fundamental do território.
As recentes proibições de entrada no território a políticos ligados ao movimento democrático em Hong Kong, a jornalistas e líderes da Câmara Americana de Comércio (Am Cham) de Hong Kong, a proibição de manifestações contra a brutalidade policial no território vizinho e a detenção de dois jovens que colavam cartazes de apoio aos protestos na ex-colónia britânica comprovam isso mesmo.
Para já, a partir do primeiro trimestre de 2020, mais 800 câmaras de videovigilância vão ser instaladas e será iniciado um teste com câmaras de videovigilância com reconhecimento facial.