Soldado desconhecido

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 7 Julho

 

[dropcap]B[/dropcap]em sei, acumula-se para ali uma lista de leituras por cumprir, de respostas por distribuir, de nós por desatar. As circunstâncias nem por um momento apaziguaram ansiedades, pararam desejos, travaram projectos, antologias, volumes, obras completas. O futuro, portanto, a dizer presente. Bem sei dos afazeres, mas por portas travessas estou noutra. (Surrealismo é, para mim, portas atravessadas pela travessura. Aliás, de qualquer maneira, chaleira.) Regressei a Tardi, o das trincheiras art nouveau, do sangue a vestir corpos e a desenhar cidades. Fui directo ao «120, Rue da la Gare» (ed. Casterman), transescrito, que é como quem diz, transporto do policial homónimo de Leo Malet. De tantos me receitarem policiais mal traduzidos tratei de ir a um original. O homem faz da arquitectura personagem e convinha-me o perfume de Paris, que no caso é sobretudo Lyon. Queria perder-me nas janelas, nas varandas, mas não me apareceram tantos espelhos assim. Uma leitura psicanalítica travessa poderia dizer que foi o nevoeiro que me atraiu, com voz off e cava. De tanto ouvir, e até escrever, que atravessávamos longa noite, no meu caso mais pelo mistério do que pelo maléfico, afinal a boa descrição dos dias mais longos está na descida das nuvens para diluir os contornos, as esquinas, as arestas. Poderia ter saltado noutra direcção, mas desci ao campo arqueológico onde se arquivam os ensaios titubeantes das figuras e domínios e temas que farão de Tardi um autor. Passei por «Adieu Brindavoine» (ed. Casterman), mas, estava escrito, era só etapa nas cores do deserto para chegar ao preto e branco propício de «La Véritable Histoire du Soldat Inconnu» (ed. Futuropolis). Aviso chaleira, de qualquer maneira: para efeitos do ao que venho terei que desfiar a narrativa, mas sem talento, estou descansado, para reduzir o que Tardi faz acontecer às palavras que o descrevem. A sobrecapa oferece figura nua branca, com reforço subtil de verniz, rodeado de estátuas tumulares, uma delas segura a coroa da glória, mas parece em desequilíbrio. Quase nu, melhor dizendo, por estar o escanzelado de bigode de óculos e chapéu de coco a aparecer das águas negras, como negros são os céus, uns e outras divididos por nuvens vermelhas. Negro sobre negro, com subtil reforço de verniz, estão as garrafais «TARDI» (coisa tonitruante de obra a vender-se completa). A figura, há que dizê-lo, é um autor. Na capa esconde-se figura esquelética e desdentada, careca e de minúsculos olhos, vestida no rigor dos começos do século das grandes guerras, em posição de grito, branca a camisa, os dentes esparsos, a minusculeza dos olhos, cinzas a dizer o resto, vermelha a língua e o grito em AAAR arredondado. É o editor. (Com umas palavras antes da aventura, Tardi conta da Futuropolis e Étienne Robial, nos idos de 1970, laboratório onde a as palavras autor e editor não eram ditas por sugerirem desconsiderações contratuais. Curioso, no momento em que o nome procurava romper com a indústria, afirmar a criação por detrás da máquina.) Estamos agora no cemitério onde tudo começa. Assim pensa a personagem perdida: «Encontrava-me de novo nas trevas mais profundas, onde o meu temperamento ansioso tantas vezes me levava.» Os mausoléus fazem-se ilhas e estas palácios nos quais a deriva da personagem principal, entretanto despida como convém nas viagens primordiais, vai reencontrar e matar velhos conhecidos e recém reconhecidos. Até que uma inevitável aeronave o resgata para o transportar à enorme e labiríntica casa do editor, enlouquecido como acabam todos. «Reconheci a decoração característica, de extremo mau gosto». Só ali a personagem perdia se descobre enquanto autor.

Não um qualquer, mas de «romances de aventuras a dez tostões, simplistas e aflitivos, mas que logo conheceram vivo sucesso popular». O que foi enfrentando, em modos sonhados e eróticos, foram as suas criações, que com ele discutem neste instante as minúcias não apenas das narrativas e do acontecido, mas dos perfis, qualidades e destinos. O editor, por exemplo, tinha aparecido como tiranossaurus, de cérebro minúsculo inversamente proporcional à sua ferocidade. A morte, piloto de aeronaves, oriunda do seu primeiro romance é quem o atinge e atira para as trincheira da grande guerra de onde lhe recolhem as ossadas que estão sob o Arco do Triunfo na qualidade de soldado desconhecido. Marquei já com o meu futuro psicanalizador: vamos trocar umas ideias sobre o assunto?

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 17 Julho

O Expresso de hoje entrevista Isa Gomes, a professora de português tornada figura mediática por ter aparecido na televisão (os tempos estão tão confusos que soa regresso aos anos 1980 e as pastilhas Pirata).

Por ter alguma coisa a dizer? Só para a conhecermos melhor. Que andará ela a ler? Responde, logo com surpresa e interrogação: «Leituras? Nunca fui muito de ler livros, mas sempre adorei tê-los.» Esta afirmação quase subtil acerca da leitura de livros e do que cada um é muito de ser está longe de morrer sozinha, e tenho algures guardada resposta semelhante de escritora e, se pior pudesse ser, com responsabilidades.

Tenho-o dito em debate por várias vezes e logo com reacções aflitas e assertivas: com honrosas excepções, os nossos professores não lêem, sendo que a doença é mais grave nos que supostamente ensinam a língua.

Há-de haver estudos, mas basta fazer contas às tiragens, andar pelas escolas e ouvir as apresentações dos convidados, enfim, ler as «poesias». Basta estar atento. O país não lê, por que raio (de trovoada) se poderia exigir isso à profe? Será preciso a um engenheiro saber da evolução dos materiais? As pontes romanas foram feitas a olho e pedra e ainda se atravessam, que nem portas ou chaleiras. E que vos dizia eu? Omnipresente está a radioactividade do simbólico: «sempre adorei tê-los!». Convém ter por perto um livro, assim uma vela na dispensa, para quando falta a luz. O Plano Nacional de Leitura tem um pilar no professorado, mas dará para fazer pontes em cima dele? Também vos tinha dito, ancião que vou sendo, que o meu melhor professor foi de português, com língua e muito mais? Ponho-me depois a pensar em que páginas de livros tocaram por estes dias as mãos que apedrejam a professora que se está a esforçar para ler até ao fim do Verão um livro de contos. Aaaarh, dizia o editor enlouquecido.

23 Jul 2020

52º Retrato do soldado desconhecido

01/12/2017

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]efendia Derrida, em 1998, que a transformação tecnológica é um dos factores essenciais da aceleração política e que um regime totalitário não sobreviveria a uma certa densidade da rede telefónica, a uma certa densidade de informação televisiva, de mails, etc. Vinte anos depois constata-se uma torção na aprendizagem dos valores e também a qualidade da democracia cede ao influxo da informação e à densidade das redes sociais. A democracia padece do seu sucesso.

Pelos motivos mais simples, o pendor dos meios de comunicação de massas para a nivelação da experiência, a) foi nublando a separação entre representação e realidade efectiva, e, dada a redundância informativa, b) instalou-se uma atmosfera de imediatez e esquecimento que favorece a ilusão apriorística, a qual tem na opinião o seu grande instrumento.

Eis o conhecimento preterido pelo espectáculo da opinião, pela flutuação das pertinências. E foi-se tornando claro que o meio é (mesmo) a mensagem, à medida que perdeu relevo a qualidade ou a substância das opiniões.

Ora, ao arrepio da ideia dominante é preciso afirmar: nunca fomos todos iguais. Esta ilusão que uma utópica e generosa cultura de esquerda propagou e o multiculturalismo cavalgou, ganhou metástases na esfera da razão comunicacional. Mas é preferível a lucidez de Bloch, ao elaborar o seu conceito de não-contemporaneidade: «Nem todos existem no mesmo presente. Estão só exteriormente, porque podem ser vistos no dia de hoje. Mas nem por isso vivem o mesmo tempo dos outros», ou seja, – a discriminação é de José Jiménez, cujos argumentos cito – há um desnível entre o tempo exterior, a época e o tempo interior.

Mesmo vivendo na mesma época, porque tiveram oportunidades cognitivas diferentes ou vêem de tradições distintas nem todos os homens vivem o mesmo tempo.

Daí que apesar do esplendor da tecnologia emergente o enxamear das opiniões, tão histericamente reclamadas, não reflicta uma pauta de valores satisfatórios.

E invertendo a lógica libertária que impulsionou as utopias da internet, hoje ao reinado da opinião, tão rés ao mundano, foi reservado o mesmo papel dos Silenciadores oficiais na corte dos imperadores bizantinos – cuja função era calar os perturbadores de toda a ordem, para que reinasse apenas o pensamento estabelecido. Hoje silencia-se com a algazarra da opinião e o hábito de postar sentenças em vez de debater argumentos ou com a arrogância performativa do ignorante.

Ainda julgo com Jerome Bruner, que só a educação pode transformar a sociedade. Porque, demonstrou ele, até as revoluções não são melhores do que as ideias que personificam e que os meios que estas mobilizam para realizar tais ideais.

É porém inescamoteável: temos de lidar com as patologias do sistema de ensino, que se demite do seu papel de transmissor de cultura humanística e cede à pressão mediática e à cultura de massas – a tal que nivela tudo por baixo.

Contemos um episódio com uma filha. No 12º ano a professora de português pediu aos alunos que escolhessem um autor português que não fosse contemplado pelo currículo escolar e redigissem um trabalho sobre ele. Passei-lhe uma dúzia de livros e ela, para minha felicidade, escolheu o Carlos de Oliveira. A surpresa veio depois: a professora não fazia ideia de quem fosse. A mesma professora que eu havia encontrado em férias com exemplares de Dan Brown e de Gonçalo Amaral nas mãos.

Fiquei boquiaberto, mas não devia. Tal como Trump esta professora era já um fruto transgénico, com código de barras, dos códigos e limites da cultura de massas, ao que se aliou o desacerto dos currículos pedagógicos.

Todorov escreveu um livro sobre esta situação: A Literatura em Perigo. Aí lembra que a missão da escola desde o Iluminismo reflectia a vocação do ser humano em aprender a pensar por si mesmo, «em lugar de se contentar com as visões do mundo previamente prontas, encontradas em seu redor». Esta missão foi desvirtuada desde que também a Escola visa alimentar o Mercado, como função primeira, vendo-se arredada dos seus corredores a formação de um pensamento crítico.

Paralelamente – o que, se não é de propósito, parece – o estudante deixou de estar em contacto directo com a literatura, remetida para um lugar periférico e substituída pela Teoria da Literatura e por métodos de análise, esquecendo-se que a literatura é, em primeiro lugar, «a encarnação de um pensamento e de uma sensibilidade» que interpretam o mundo. A literatura passou a ser não o lugar da fruição como «a ilustração dos meios necessários à sua análise». Será por isso que a professora da minha filha prefere a “literatura” que prescinde totalmente de crivo hermenêutico?

Eis a contradição: as escolas não preparam os alunos para lerem Alberto Pimenta ou Herberto Helder, ou António Franco Alexandre, ou Manuel Gusmão. Totamente desfa-sados os programas escolares e as novas sensibilidades e códigos. Esteve um poeta excelente quase a ganhar o Prémio Oceanos, o Helder Moura Pereira. Faça-se um inquérito aos professores: quantos conhecem?

Ademais, a heterogeneidade manifesta em poetas como Fernando Pessoa, Haroldo de Campos, Carlos de Oliveira, João Miguel Fernandes Jorge, ou Luís Quintais, torna difícil explicar a experiência da poesia a quem não a experimenta. Por isso a poesia perdeu leitores e os professores vão-se apegando às receitas que o mercado fornece. É o pronto-a-vestir. Embora no difícil é que esteja o ganho.

Dantes havia o pronto-a-vestir e os alfaiates, a escola agora é a primeira a admitir que o fast food alimenta da mesma maneira. É uma mentira, ou o novo hábito dos fake news, apenas o mecanismo perverso do celebrado poder das redes sociais, meras instâncias da informação em autototelia.

06/12/2017

Faço um ano de crónicas no Hoje Macau. Gramo maningue. Por isso, meu (caro) leitor, meu hipócrita, meu irmão (Baudelaire), só me resta dizer como ao smart guy que tentava quebrar a última resistência da miúda à sua sedução: «…se não nos viermos entretanto, então até à próxima!».

7 Dez 2017