Contas Públicas | Despesa ultrapassa 55 mil milhões até Agosto João Santos Filipe - 11 Set 2020 Até ao final do mês passado, as contas da RAEM tinham um superavit de 19,5 mil milhões de patacas. No entanto, sem a injecção de 39 mil milhões da reserva financeira, o resultado seria um défice público de 19,5 mil milhões [dropcap]E[/dropcap]ntre Janeiro e Agosto a despesa pública foi agravada em 11,9 por cento face ao período homólogo, de 49,6 mil milhões de patacas para 55,5 mil milhões de patacas. Os números foram revelados ontem pela Direcção dos Serviços de Finanças (DSF). Apesar do aumento das despesas, os cofres públicos apresentam um superavit de 19,5 mil milhões de patacas nos primeiros oito meses do ano, o que não deixa de ser uma redução de 49,1 por cento face ao ano passado, quando o superavit tinha sido de 38,2 mil milhões de patacas. No entanto, este “ganho” só é possível porque o Executivo aprovou uma rectificação orçamental que permitiu injectar nas contas deste ano cerca de 39 mil milhões provenientes das reservas financeiras. Sem esta injecção, seria registado um défice de 19,5 mil milhões de patacas. O agravamento das contas públicas resulta principalmente do impacto da indústria do jogo, como fica bem demonstrado pela redução das receitas nesta área. Nos primeiros oito meses, os impostos do jogo geraram 22,8 mil milhões de patacas, o que representa uma quebra de 70,2 por cento face ao período homólogo. Entre Janeiro e Agosto do ano passado as receitas do Executivo com o jogo tinham chegado a 76,5 mil milhões de patacas. A quebra com os impostos do jogo não são uma surpresa, uma vez que também as receitas brutas dos casinos registaram um rombo de 81,6 por cento, de 198,2 mil milhões, no ano passado, para 36,5 mil milhões, nos primeiros oito meses de 2020. Outras quedas Em relação aos impostos directos e indirectos, no final de Agosto o Governo tinha recebido 3,5 mil milhões e 2,2 mil milhões, respectivamente. Estes valores representam igualmente uma redução para os cofres públicos, uma vez que no período homólogo o acumulado tinha sido de 3,7 mil milhões, em impostos directos, e 3,3 mil milhões, em indirectos. Ainda no que diz respeito às despesas, o principal aumento prende-se com as “transferências, apoios e abonos” cujos gastos subiram de 29,3 mil milhões de patacas para 37,4 mil milhões, ou seja de 27,6 por cento. Por outro lado, as despesas de capital caíram de 7,33 mil milhões para 4,60 mil milhões patacas, ou seja, uma redução de 37,2 por cento. Neste capítulo, as despesas com o PIDDA (Plano de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração) também foram reduzidas de 4,9 mil milhões de patacas para 3,9 mil milhões. Segundo as previsões iniciais do Governo, a RAEM ia registar um superavit de cerca de 20,8 mil milhões de patacas até ao final do ano.
Sistema político | Deputados divergem sobre separação de poderes Salomé Fernandes - 11 Set 2020 O sistema político de Macau levantou ontem opiniões díspares na Assembleia Legislativa, com Sulu Sou a defender a separação de poderes, enquanto Fong Ka Chio frisou que a liderança executiva não pode ser questionada [dropcap]Q[/dropcap]ualquer poder público tem de sujeitar-se ao controlo e equilíbrio eficazes, sob pena de acabar por gerar corrupção e tirania e por prejudicar a liberdade, segurança e interesses do povo”, defendeu ontem Sulu Sou na Assembleia Legislativa. Para o deputado, não basta haver distribuição de poderes: é preciso a sua divisão, controlo e fiscalização. “A enfatização da ‘articulação entre os três poderes’ tem por objectivo nada mais do que tentar forçar os órgãos legislativos e judiciais a serem chancelas plásticas, de modo a que quem está no poder possa actuar a seu bel-prazer, para que as pessoas privilegiadas possam ficar acima do interesse público, ou até mesmo não assumam qualquer consequência em caso de destruição do sistema jurídico”, concluiu. Para o democrata, é preciso evitar o excesso de poder do Governo, para garantir que age em prol do interesse público e de acordo com a vontade da população. Por outro lado, frisou o papel dos tribunais na salvaguarda de direitos fundamentais. Descreveu que os magistrados judiciais do Ministério Público e dos tribunais devem actuar com independência e de acordo com a lei, recusando actos administrativos ilegais governamentais. “Um Governo que não foi eleito por sufrágio universal domina todo o ambiente político, o que tem sido criticado pela sociedade como ‘arrogância executiva’, e o desequilíbrio de poderes também desencadeou conflitos sociais incessantes”, observou Sulu Sou. Rejeitar preconceitos Apesar de Fong Ka Chio – que falou também em representação dos deputados Ma Chi Seng e Wu Chou Kit, todos nomeados pelo Chefe do Executivo – ter intervindo na sessão antes do jovem democrata, as suas palavras estiveram em oposição directa às ideias defendidas por Sulu Sou. “Enquanto região administrativa especial, a Lei Básica define claramente o seu estatuto constitucional e as características da liderança executiva na estrutura política, e isto não pode ser posto em dúvida”, lançou, frisando a “posição nuclear” do Chefe do Executivo. No entender do deputado, é preciso “eliminar preconceitos” sobre a estrutura política com predominância do poder executivo, dando como exemplo que há quem aponte para desequilíbrio de poderes ou até “arrogância executiva”. Uma expressão que deputado descreve como “exagero”. Na óptica de Fong Ka Chio, os órgãos executivo e legislativo controlam-se mutuamente e cooperam entre si. E frisou que apesar de definir uma estrutura política com predominância do poder executivo, a Lei Básica dispõe de mecanismos e controlo, tais como o direito de interpelação dos deputados e o direito de moção de censura. “Na estrutura política com predominância do poder executivo, em Macau existe divisão de trabalho entre os poderes executivo, legislativo e judicial, mas isto não pode ser equiparado ao sistema de separação de poderes praticado pelos estados soberanos”, disse. O legislador não deixa, porém, de considerar que os órgãos judiciais trabalham “sem quaisquer interferências”. Outras vozes aderiram a este ponto de vista. Lao Chi Ngai, nomeado pelo Chefe do Executivo, comentou que partilhava a opinião da interpelação conjunta vocalizada por Fong Ka Chio. E Chan Wa Keong, também nomeado para o hemiciclo pelo Chefe do Executivo, considerou que a separação tripartida de poderes podia “prejudicar” o desenvolvimento de Macau, e “desvirtuar” o conceito de predominância do poder executivo subjacente à Lei Básica. O sistema político de Macau levantou ontem opiniões díspares na Assembleia Legislativa, com Sulu Sou a defender a separação de poderes, enquanto Fong Ka Chio frisou que a liderança executiva não pode ser questionada “Qualquer poder público tem de sujeitar-se ao controlo e equilíbrio eficazes, sob pena de acabar por gerar corrupção e tirania e por prejudicar a liberdade, segurança e interesses do povo”, defendeu ontem Sulu Sou na Assembleia Legislativa. Para o deputado, não basta haver distribuição de poderes: é preciso a sua divisão, controlo e fiscalização. “A enfatização da ‘articulação entre os três poderes’ tem por objectivo nada mais do que tentar forçar os órgãos legislativos e judiciais a serem chancelas plásticas, de modo a que quem está no poder possa actuar a seu bel-prazer, para que as pessoas privilegiadas possam ficar acima do interesse público, ou até mesmo não assumam qualquer consequência em caso de destruição do sistema jurídico”, concluiu. Para o democrata, é preciso evitar o excesso de poder do Governo, para garantir que age em prol do interesse público e de acordo com a vontade da população. Por outro lado, frisou o papel dos tribunais na salvaguarda de direitos fundamentais. Descreveu que os magistrados judiciais do Ministério Público e dos tribunais devem actuar com independência e de acordo com a lei, recusando actos administrativos ilegais governamentais. “Um Governo que não foi eleito por sufrágio universal domina todo o ambiente político, o que tem sido criticado pela sociedade como ‘arrogância executiva’, e o desequilíbrio de poderes também desencadeou conflitos sociais incessantes”, observou Sulu Sou. Rejeitar preconceitos Apesar de Fong Ka Chio – que falou também em representação dos deputados Ma Chi Seng e Wu Chou Kit, todos nomeados pelo Chefe do Executivo – ter intervindo na sessão antes do jovem democrata, as suas palavras estiveram em oposição directa às ideias defendidas por Sulu Sou. “Enquanto região administrativa especial, a Lei Básica define claramente o seu estatuto constitucional e as características da liderança executiva na estrutura política, e isto não pode ser posto em dúvida”, lançou, frisando a “posição nuclear” do Chefe do Executivo. No entender do deputado, é preciso “eliminar preconceitos” sobre a estrutura política com predominância do poder executivo, dando como exemplo que há quem aponte para desequilíbrio de poderes ou até “arrogância executiva”. Uma expressão que deputado descreve como “exagero”. Na óptica de Fong Ka Chio, os órgãos executivo e legislativo controlam-se mutuamente e cooperam entre si. E frisou que apesar de definir uma estrutura política com predominância do poder executivo, a Lei Básica dispõe de mecanismos e controlo, tais como o direito de interpelação dos deputados e o direito de moção de censura. “Na estrutura política com predominância do poder executivo, em Macau existe divisão de trabalho entre os poderes executivo, legislativo e judicial, mas isto não pode ser equiparado ao sistema de separação de poderes praticado pelos estados soberanos”, disse. O legislador não deixa, porém, de considerar que os órgãos judiciais trabalham “sem quaisquer interferências”. Outras vozes aderiram a este ponto de vista. Lao Chi Ngai, nomeado pelo Chefe do Executivo, comentou que partilhava a opinião da interpelação conjunta vocalizada por Fong Ka Chio. E Chan Wa Keong, também nomeado para o hemiciclo pelo Chefe do Executivo, considerou que a separação tripartida de poderes podia “prejudicar” o desenvolvimento de Macau, e “desvirtuar” o conceito de predominância do poder executivo subjacente à Lei Básica.
A Covid19 e a resiliência Jorge Rodrigues Simão - 10 Set 2020 “Resilience is accepting your new reality, even if it’s less good than the one you had before. You can fight it, you can do nothing but scream about what you’ve lost, or you can accept that and try to put together something that’s good.” Elizabeth Edwards [dropcap]O[/dropcap] ser humano é um ser social, é isto que a evolução e a história humana nos ensinam. A socialidade é um ingrediente essencial para a sobrevivência da nossa espécie e é por isso que a solidão, o isolamento e o distanciamento social, estratégias válidas para proteger a saúde individual num momento de emergência, são experimentadas com desconforto e mal-estar emocional que despertam em todos o desejo poderoso de encontrar outros. Assim, que o distanciamento a que somos obrigados é uma estratégia defensiva que não pode ser aplicada ao extremo, porque se tornaria contraproducente para nós e para a nossa espécie. Não pode ser um novo modo de vida, também devido às numerosas evidências que vêem na socialidade e no contacto humano um elemento indispensável para o nosso bem-estar psíquico, mas também físico. Pode o medo de contágio continuar para além do fim da pandemia se é que alguma vez terá fim? O medo de contágio continuará sem dúvida para além da pandemia, tanto porque teremos de esperar pela descoberta de uma vacina (fontes fidedignas prevêem que não estará disponível tão cedo como desejaríamos pois tem de passar por várias fases de desenvolvimento) para termos nas nossas mãos uma arma definitiva contra o coronavírus SRA-CoV-2, como porque o impacto emocional desta pandemia manterá a nossa cautela durante muito tempo. Estaremos preocupados se numa sala cheia de gente alguém vai tossir ou espirrar, ou não existir distância que agora consideramos segura, ou mesmo as pessoas não serão vistas como perigosas apenas devido ao seu comportamento ou atitudes, mas simplesmente porque são potenciais veículos assintomáticos e involuntários do vírus. Estar fisicamente perto e ouvir a respiração um do outro desencadeará um alarme que nos levará a manter a nossa distância. O medo seja individual ou colectivo, permanecerá a um nível elevado e este efeito será tanto maior, quanto maior for a fase activa da propagação do vírus. Como podemos evitar que a ansiedade de contágio se torne uma obsessão que iremos carregar connosco mesmo depois da pandemia? Não se pode evitar que esta experiência incisiva não seja uma condição para nós no futuro. Mas dependerá da duração da pandemia e das consequências que esta acarretará. As experiências negativas só podem induzir uma mudança estável de comportamento se provocarem consequências graves e durarem tempo suficiente, caso contrário a mente humana tende a devolver o seu comportamento e atitudes à situação antes da experiência negativa. Sem dúvida, para muitos será uma experiência emocionalmente inesquecível como para pessoas que foram hospitalizadas, para trabalhadores da saúde directamente envolvidos na gestão dos doentes, para os que perderam um ente querido ou para os que terão dificuldade em se sustentar financeiramente. E para muitos outros que, para além do isolamento social, não sofreram consequências devastadoras, a mente poderia reiniciar estas experiências negativas e recomeçar a tentar reproduzir os padrões habituais de comportamento pré-pandémico. Quando, para se proteger do perigo, o ser humano activa emoções negativas, entre as quais o medo é certamente a rainha, priva-se de muitas liberdades, e esta defesa tem um custo muito elevado. Portanto, uma vez superado o perigo, a mente tenta naturalmente regressar à situação de bem-estar que a liberdade, a novidade e o encontro com os outros lhe garantem. No futuro, estaremos natural e automaticamente inclinados a retomar a socialidade, mesmo que esta pandemia tenha sido uma experiência forte, negativa e inesperada, sempre será uma bagagem com que teremos de carregar e lidar. A principal regra para sair do medo de contágio é adoptar uma exposição gradual e progressiva ao mundo e a outros. No início, estaremos em alerta máximo, e gradualmente conseguiremos encontrar a distância de segurança certa. Em vez de evitar, teremos de aprender a viver razoavelmente com o risco. Como vamos recuperar a propriedade das nossas relações sociais? Será fundamental para a nossa saúde física e mental recuperar a posse da nossa rede social afectiva. De facto, o isolamento crónico aumenta a activação do sistema de stress endócrino, especialmente em relação à quebra dos laços, em vez do isolamento em si. E este é precisamente o caso do que está a acontecer nesta pandemia, onde a solidão e o isolamento social não são uma escolha pessoal, mas sim a imposição ditada pelo perigo infeccioso que nos obriga, apesar de nós, a desligarmo-nos das nossas relações emocionais. Quando sairmos da fase aguda desta pandemia, será essencial ser claro sobre o valor das relações humanas e emocionais para o nosso bem-estar e não esquecer que uma possível infecção pela Covid-19 traz alguns riscos, mas o isolamento social traz outros, igualmente perigosos. O stress crónico que poderia resultar da privação de energia emocional positiva ligada a relações sociais apropriadas poderia mesmo afectar negativamente o nosso sistema imunitário, jogando negativamente no risco infeccioso. Apropriarmo-nos novamente das nossas relações sociais, dos nossos laços temporariamente quebrados, significa perceber a sua importância crucial para o nosso bem-estar psicofísico e gradualmente, em segurança, regressar a sentir a proximidade física do outro. Como podemos recuperar a intimidade com o nosso parceiro ou abrir-nos a novos encontros? Cônjuges ou parceiros que, durante a pandemia, continuaram a viver juntos, foram capazes de manter a partilha mental e física com o seu ente querido, o que é crucial para o bem-estar. É diferente quando um casal vive separado, talvez por razões de trabalho, e teve de enfrentar uma quarentena à distância, pois o peso da separação só pode ter agravado a fadiga do isolamento. A aproximação, quando a emergência terminar, será certamente um momento de alegria mas também muito delicado, devido ao medo que o contágio nos incutiu tão profundamente. O melhor é falar com o seu parceiro sobre o que sente e, sem forçar, respeitaram-se mutuamente o tempo necessário para regressar a uma nova proximidade, emocional e física. No caso de o nosso parceiro ter tido resultados positivos no COVID-19, uma vez que tenha recuperado e saiba que está curado pelos procedimentos definidos pela autoridade sanitária, deixará de ser uma fonte de perigo e poderá, portanto, ser abordado fisicamente. Os novos encontros, enquanto houver risco de contágio, são desconhecidos sob muitos pontos de vista, portanto, enquanto não tiver a garantia dada por uma vacinação, será uma boa prática permanecer protegido e limitar os riscos. E infelizmente, neste sentido, o beijo pode ser uma fonte de contágio. Contudo, há sempre a possibilidade de fazer novos conhecidos, mesmo com um rosto protegido por uma máscara, podemos estar serenos de que os nossos olhos serão sempre capazes de comunicar as nossas emoções! É importante não colocar os nossos corações em quarentena; não esqueçamos que as emoções positivas são capazes de nos tornar fisicamente mais fortes e, portanto, mais capazes de nos defendermos dos riscos físicos. Como podemos enfrentar o medo de consequências económicas causadas pelo encerramento? As consequências económicas serão inevitáveis mas, numa sociedade avançada como a nossa, não devem levar a uma falta do que é essencial para a sobrevivência. Não seremos os únicos a enfrentar as dificuldades, e muitas são e serão as medidas postas em prática pelos governos para ajudar os seus cidadãos. Talvez as renúncias que esperam muitos de nós afectem as áreas da vida que não são realmente necessárias. Este momento de disponibilidade económica reduzida poderia permitir-nos seleccionar melhor o essencial do supérfluo, ensinando-nos que a vida é o bem mais precioso que temos. Voltar a comer coisas simples, ler livros, apreciar o nascer e o pôr-do-sol, caminhar ao ar livre, tomar banho no mar, respirar bom ar de montanha são aspectos da vida que devem ser reconsiderados. A ansiedade e o medo de um futuro económico mais pobre devem ser combatidos com a reflexão sobre o valor real das coisas e a certeza de que não perderemos o que é essencial para viver. Pelo contrário, talvez tenhamos mais tempo para nos dedicarmos às actividades “económicas” ou mesmo de custo zero que negligenciámos no moedor de carne da vida moderna… pré-pandemia. Se por um lado os nossos filhos são arrancados dos seus hábitos escolares e sociais, e do benefício de uma Primavera ao ar livre, por outro lado experimentam um momento muito especial de partilha de tempo com os seus pais e irmãos, e caberá aos pais dar valor a este momento único. Atenção, brincadeira, afecto, ajuda nos compromissos escolares são alguns dos aspectos centrais para fazer deste momento uma fonte de alegria para os nossos filhos e netos. Os nossos jovens têm a sorte de serem a geração web capaz de preencher intuitivamente a sensação de solidão através das redes sociais, da partilha de jogos online, mas não devem certamente ser deixados sozinhos com os seus tablets ou smartphones, pois mais do que nunca nestas semanas podem precisar de um guia ou de uma comparação diferente da dos seus pares. Se expressarem claramente medo, ou o fizerem indirectamente com atitudes agressivas ou, pelo contrário, fechando-se demasiado sobre si, é preciso estar pronto a captar estes sinais para lidar com eles com paz de espírito, tranquilizando-os tanto quanto possível e que, tomando as devidas precauções, tudo correrá bem e passará. Durante a quarentena e após, mas especialmente para os mais pequenos, o scanning do dia em horários bem definidos e fixos é muito importante, com momentos dedicados ao trabalho escolar e espaços para jogos. Isto é para evitar repercussões no ritmo de sono/vigília. É importante manter bons hábitos alimentares, de modo a não se deparar com comportamentos negativos que são difíceis de eliminar posteriormente. O trabalho inteligente neste sentido torna-se uma excelente oportunidade para nós adultos descobrirmos uma nova forma de conciliar o tempo de trabalho com o tempo familiar. O que podemos aprender com esta pandemia Quando confrontamos o medo e a ansiedade que nos acompanha, tendemos a esquecer e a negligenciar um aspecto extraordinário do nosso ser humano que é a resiliência. A resiliência não é simplesmente a capacidade de resistir à adversidade, mas a habilidade de usar a adversidade para se tornar mais forte. Esta extraordinária capacidade de adaptação está potencialmente presente em todos nós; pode ser aprendida, treinada e activada durante situações difíceis. O desenvolvimento evolutivo do ser humano moldou este poder adaptativo em todos nós e o nosso sistema imunitário, que foi aperfeiçoado ao longo do tempo, é capaz de nos proteger de muitas infecções, incluindo a da COVID-19 que, na grande maioria dos casos, é assintomática ou dá sintomas ligeiros. O medo é combatido com confiança na nossa força como indivíduos e na da nossa sociedade, embora imperfeita, para responder a perigos como o actual. A ausência de medo é um sinal de inconsciência que é a antecâmara da extinção da nossa espécie. Sem medo não pode haver coragem e esta consiste em aceitar os nossos limites, de não nos sentirmos invencíveis, a de todos os médicos e enfermeiros que lutam pela vida das pessoas afectadas pela Covid-19, colocando as suas vidas em risco; a coragem de aceitar o desafio que o futuro nos apresentará depois desta pandemia que nos deve dar a consciência da nossa força como seres humanos e sociais. A coragem de voltar a abraçar-nos com confiança deve ser o antídoto para o medo do mundo que está para vir. Certamente a pandemia lembrou-nos que não somos super-heróis. Colocou a vulnerabilidade do ser humano aos fenómenos naturais de volta ao centro da nossa existência. Não é por acaso que ultimamente, na linguagem da média, ouvimos muitas vezes a metáfora do tsunami a ser usada para descrever o impacto que a propagação do vírus tem tido na nossa vida diária, económica e social, e no nosso sistema de saúde. A pandemia lembrou-nos que somos frágeis, que somos um pequeno habitante deste universo, não somos os seus governantes. Mas certamente a emergência mostrou como os seres humanos são capazes de activar todos os seus melhores recursos, não só psicológicos, mas também técnico-científicos. Médicos e investigadores de todo o mundo estão a trabalhar para obter uma vacina o mais depressa possível. A instrumentação de saúde existente, e a que foi inventada ou retrabalhada nestes tempos por engenheiros e médicos, são o resultado da nossa criatividade, inteligência e capacidade de adaptação. A pandemia não é a renúncia de uma sociedade moderna, mas antes traz à luz o que é útil e construtivo para o ser humano, em comparação com o que não é. Se no final desta emergência nos tornarmos mais conscientes do valor das relações sociais, dos nossos limites e dos nossos preciosos recursos cognitivos e psicológicos, então teremos dado um passo de gigante. Se tivermos visto a face do medo e as nossas emoções mais negativas, se as tivermos reconhecido e usado a nosso favor, estaremos mais fortes e prontos a deixar as nossas casas para enfrentar o que nos espera em pequenos passos. Se isto acontecer, então mesmo um evento tão dramático adquirirá grande valor para nós e para as gerações futuras. Será “um pequeno passo para a humanidade, mas um grande passo para a humanidade”.
As canções de Bilitis Amélia Vieira - 10 Set 2020 [dropcap]V[/dropcap]erões que nos dão tanto azul levam-nos sempre para o mítico espaço do Mediterrâneo, que este Mar é sempre Antigo, sempre povoado de corpos e lendas que a saudade recria e inventa, e é nestas margens que nos vamos demorar no alto Estio que agora começa a amadurecer: Pierre Louys um nome grande da literatura francesa do final do século XIX é autor da obra assim titulada que diz ter traduzido do grego Antigo quando da sua publicação em 1894 – diz- ter encontrado no túmulo da poeta Bilitis os seus poemas o que para os helenistas da época provocou um enorme impacto e a Pierre um prodigioso sucesso, contemporânea de Safo cuja poesia o nosso autor escandiu com elevada mestria, mas também – diz- terem sido encontrados nas paredes de uma sepultura no Chipre e tanto disse da estranha aparição de tais poemas, circunstâncias e lugares, que o desdisse perto da morte que ocorreu em 1925 afirmando no último sopro que tudo era afinal dele, e só dele, o grande estudioso da antiguidade grega embrenhado em vestir a pele das mais inspiradoras gregas. «E Bilitis nunca existiu»! A mistificação que o norteou está plena de um gozo indizível mas que fornece o tamanho de um registo poético absolutamente delicioso, talvez fosse ele a antecâmara da sua personagem numa inusual forma que fez todos acreditarem na versão criada sem um pestanejar de olhos até às mais altas instâncias das Academias, que também é certo, que toda o trabalho feito em prol do imaginário helénico e da sua paixão por Safo lhe tivessem dado amplos poderes de heteronimizar a personagem sonhada. Nada que um poeta não faça na posse completa das suas faculdades, antecipando o sistema criticista dos estudiosos, que lendo, pouco entendem, e não lendo, na mesma ficam. Mas é lendo-o que conseguimos aplanar alguns encontros com os artefactos, dado que estamos aqui num mundo feminino, de Gineceu, de imensos dotes germinais e poder de evocação, Pessoa fez isso muito bem em várias ocasiões, mas há «O Último Sortilégio» onde vamos encontrar sem esforço esta Bilitis. Se ainda acharmos que este tamanho das coisas nos confunde, talvez, e em vez de orientar o esforço para o um certo lesbicismo autoral, tenhamos então que perguntar pela qualidade do amor dos homens e não para uma opção orientada por estranhas resoluções fisiológicas: e foi nesse reino de homens ébrios e ausentes nas guerras, demasiado afastados da exigência das musas, que cresce e se dá uma civilizada e amorosa forma de cantar o amor, de viver a vida, de sentir facetas complexas que é apanágio dos melhores. Mas muitos destes versos embora fruto de um trabalho individual também foram reelaborados a partir da Antologia Palatina e seus epigramas – esta poesia era na época antiga basicamente epigramática- e nem todos foram escritos na mesma época e da mesma maneira, usando até o soneto, mas o conjunto é de uma grande harmonia interna e nunca deslocado da personagem que o inspira. A versão portuguesa chegaria em 1927 apresentando Bilitis como uma personagem real na tradução, e digamos, que para tal obra foi bastante bom o tempo que até nós levou a chegar. Pierre Louys levantou polémica, e o seu nome foi por um lado associado a um equívoco que envergonhara alguns, por outro lado proliferaram a partir dele traduções de textos da Antiguidade que os grandes autores começaram a compor . As duas partes de uma moeda. Creio no entanto terem sido ambas muito válidas na medida em que o imaginário está intacto e a extrema sedução desta poesia é o mais perto que temos do Mar dos deuses, das ninfas e dos sonhos. Todos gostaríamos de ter estado mergulhados nestas paragens como em vasto universo paralelo não dando conta do que é necessário para ser “real” realíssimo é este instante de aves soltas, jovens, belos, pastores, rebanhos e ilhas encantadas, trazemos a lembrança grega nos calcanhares e Aquiles por estas paragens é ainda o mais desejado. Uma infiltração poética que o deixa à beira do seu estado mais puro, o que para factual, tanto faz. Descrever isto sem recurso aos aspectos apreendidos requer sortilégios perto do homem que percorreu as várias fragmentações do ser, e que por isso mesmo considerámos completo, perfeito e inultrapassável. Pessoa. Foi um homem singular, Pierre Louys, o que ele não amava não existiu, foi um grande trabalhador da escrita, nada que fosse exterior ao seu interesse o deixaria interessado mesmo trazendo-lhe vantagens, foi rico, pobre, amante, boémio, amigo e inventivo na relação amorosa, é possível que tivesse sido alguém muito livre e desleixado com o seu próprio fim, mas intensamente forte e terno para nos deixar este seu testemunho e salvaguardar a lenda feminina do martírio de existir. Neste mundo belo as mulheres são tão veneradas e livres como os próprios sonhos, os homens servem as suas causas, que pela intuição finíssima do autor, se assim não for, passam também eles a não existir. Também há homens que as fazem sonhar. De uma grande tensão erótica é ainda ele mesmo que afirma que o desejo não é “natural” mas uma criação poética e humana. Não somos capazes hoje mesmo de entender, como pode ser bela, também, a voz de um homem. Debussy musicou ainda «Trois Chansons de Bilitis». Uma mulher se envolve em lã branca. Outra se veste de seda e ouro. Outra se cobre de flores, folhas verdes e uvas Quanto a mim, não saberia viver senão nua. Meu amante, Toma-me como eu sou: sem vestes, nem jóias, nem sandálias eis Bilitis sozinha.
Dormir com Lisboa António Cabrita - 10 Set 2020 04/09/20 [dropcap]“A[/dropcap] explicação órfica da terra é o único dever do poeta.”, Mallarmé. Um encolher de ombros, um leve enfado: tudo o que me provoca hoje este tipo de sentenças peremptórias e redutoras. Imagine-se: o único. E logo “patrocinado” por Orfeu que, ao contrário de Alceste, não teve os tomates para trocar a sua alma pela da amada, ou de deixar a sua lira como penhor no Hades. Há muito de burguês e de balofo nesta pretensão mallermeniana. Para que lhe servia então o dom, se face à morte recuou? Puro ilusionismo de feira. Que o poeta reivindique esse desígnio para si é magnífico (foi o caso de Herberto, entre outros), que o torne condição sine qua non para toda a poesia é excrável. Há muitos raios para chegar ao núcleo da roda. 05/09/20 A este selo com dois cudos a correrem, desenhados com esmero e dinâmica, posso garantir que Pessoa não o teria na sua colecção porque a sua emissão só teve lugar dez anos após a sua morte. Perdeu-se a sua colecção de selos, reunida com tanto empenho, ainda que tenha chegado até nós o seu álbum. Quem lhe teria extraviado os selos, como? Tê-los-ia trazido consigo, no regresso a Lisboa desde Durban, ou já considerava isso coisas de menino? Qual foi a medida do impulso coleccionista em Pessoa? Há imensas zonas de penumbra que a investigação (felizmente) não tem conseguido dilucidar, aspectos que na vida de um homem reaparecem com uma irrelevância quotidiana, mas sem desfalecimento. Por exemplo, o umbigo de Fernando Pessoa seria do tipo dos que atraem a formação de cotão ou não? Nesse caso, quantos quilos de cotão produziu o poeta em vida? Todas as coisas de molde inaparente, menores, que podem reger a vida de um homem sem ele dar conta. A primeira vez que Sir Walter Raleigh se despiu diante da Rainha Isabel esta, percorrendo-lhe com o olhar o tronco escorreito, largou uma gargalhada ao dar-se conta de que Raleigh estava nu em todos os lugares menos no umbigo, onde repontava uma bola de cotão. Essa gargalhada, que Raleigh nunca recebera de qualquer mulher sinalizou para Elizabeth uma superioridade que a fez ter sobre o seu amante um ligeiro ascendente. 07/09/20 A gafe foi monumental. A empregada enganou-se na panela e aqueceu a errada, servindo à mesa a sopa que estava azeda. Apressar-nos a contar que foi imediatamente despedida não salva um jantar liquidado à nascença. Recomecemos agora a narrativa por um ângulo à Claude Chabrol e mais afim do imaginário da luta de classes: a criada fez a ronda da mesa, vertendo colher e meia de sopa por prato, e os convidados aguardaram cerimoniosos que o anfitrião fosse servido. Este colocou o guardanapo sobre as pernas e acabou de contar a anedota de um anão que fora dormir à alma do canhão do circo, antes de num gesto magnânimo, sugerir, Comam, façam favor de começar antes que arrefeça, e para dar o exemplo foi o primeiro a levar a colher à boca. Foi também o primeiro a baquear, envenenado. 09/09/20 Dois livros sobre Lisboa retiveram-me a atenção nas últimas semanas. O primeiro é de fotografias, Lisboa Deserta, de Maria Margarida Chaves Marques, um álbum com design de Ivone Ralha. Eis o testemunho de uma Lisboa em puro insílio, nua, despojada de gente. Tinha ouvido falar por familiares desse período de isolamento obrigatório por causa do Covid e das suas regras quase militares, mas nunca se imagina quanto. O livro mostra-nos e ganha um relevo quase sociológico. Uma cidade sem ninguém é um organismo em ferida, constata-se neste “belo” álbum que percorremos com a inquietação que antecede os sismos. Um alerta que não nos deixa esquecer de quanto o rosto de uma cidade depende da sua fosforescência humana. Outra curiosidade interessante: as fotografias deste álbum foram todas tiradas com um telemóvel, sendo a prova de que, como queria Paracelso, é a mente quem faz ver os olhos. Uma boa foto só depende de se ter um ponto de vista – e desta carência o livro não sofre. Encontra-se à venda na Livraria Snob. O outro é um romance da Fausta Cardoso Pereira, Dormir com Lisboa. Um belíssimo livro que foi obrigado a um percurso sinuoso por causa da sua peculiaridade narrativa: o protagonista é a própria cidade. Como “supostamente” lhe faltava um personagem com quem o leitor se identificaria (o que é falso, aqui como em Manhatthan Transfer, de John dos Passos, retrata-se a cidade com um ritmo, uma riqueza de perspectivas e uma pulsação orgânica que nos leva a não abandonar a leitura) o livro foi sendo rejeitado até que ganhou na Galiza o Prémio Antón Risco de Literatura Fantástica e vários encómios após a sua edição, pelas virtudes que em Lisboa lhe negaram. Agora vai ser finalmente editado em Portugal, por uma editora portuguesa mais sensível à eficaz estrutura coral do livro e menos arreigada à uniformidade do mainstream. A edição galega é de 2017 mas o covid e as ausências da mole humana na cidade devido à pandemia deram a esta narrativa um carácter quase profético. A trama é simples: quebrando a sua rotina, numa aleatoriedade que desafiará a criatividade de cientistas chegados de todo o mundo para estudar o fenómeno, a calçada de Lisboa ganha hábitos de bivalve e engole alguns cidadãos comuns. O desconforto, a desorientação e o pânico tomam conta da urbe, que ameaça desertificar. É a “alma” da cidade que se revolta contra a indiferença e as equívocas políticas urbanas dos seus edis? Será algum tipo novo de “doença” urbana? Que espécie de cataclismo e de assombramento ameaçam Lisboa? Um romance imperdível com um enredo imaginativo e uma escrita ágil, que ameaça ser um dos livros do ano. Pelo menos, a singularidade ninguém lho tira.
Cálice e Ciclone Luís Carmelo - 10 Set 2020 [dropcap]A[/dropcap]cabei há dias o segundo romance do “Díptico das origens”, intitulado ‘Ciclone’. Deverá ser publicado no próximo ano e fará companhia a ‘Cálice’, que foi editado pela Abysmo e lançado a público nas Correntes d´Escritas de Fevereiro passado, mesmo antes de a pandemia nos ter confinado. Depois da “Trilogia do Sísifo” (2015-2017) que integrou ‘Gnaisse’, ‘Por Mão Própria’ e ‘Sísifo’, romances que perseguiram temáticas como as do amor, da perda e da iniciação, este novo díptico debate-se com as figuras do pai e da mãe. Trata-se de isotopias fortemente mitológicas e, ao afirmá-lo, sustento-me na visão de Hans Blumenberg, para quem o mito não é uma instância colada a um passado arcaico, mas antes um devir que reocupa todos os presentes, tal e qual como uma onda persistente que nunca passa à fase da rebentação e que, portanto, não deixa incólume nenhum areal da nossa existência. Foi um repto muito difícil e literariamente complexo, até porque impôs uma evasão da experiência subjectiva na direcção de um campo aberto que pudesse permitir identificação, reconhecimento e alteridades várias. O percurso de escrita implicou uma poética da biografia, baseado em dados concretos (mas perecíveis e fluidos no seu domínio referencial), aliada a uma ética do intangível que pressupôs, por sua vez, uma projecção de vidas e de acontecimentos que poderiam ter sido possíveis (e que na ficção encontrarão decerto um justo eco de realização). As palavras “mãe” e “pai” remetem para um imaginário infantil. Desde logo porque espelham uma fonética das origens (as bilabiais “m” e “p” são as primeiras a ser proferidas pelos bebés) e aliciam a melancolia, a saudade e o narcisismo. Nelas estão inscritos tabus sexuais, identitários e genealógicos. Razão por que um pai e uma mãe não têm nome. Ninguém trata uma mãe e um pai pelo seu próprio nome, mas sim pela designação da função. Jamais me teria dirigido à minha mãe dizendo “Olá, Maria Bárbara!”, ou ao meu pai dizendo “Olá, José Geraldo!”. Os nomes instauram naturezas específicas, conotam sagas e logros e povoam metáforas (muitas delas sem tradução nas palavras). Os nomes são, pois, amplitudes excessivas e merecem recato, quando o que está em causa são as figuras que nos deram origem. Daí a reverência que se assemelha bastante à questão teológica dos nomes nos monoteísmos, já que, estando deus, ao mesmo tempo, acima de toda a criação e nela implicado (enquanto causa primeira), não pode ser tratado por um nome, epíteto reservado apenas às entidades e aos seres criados. ‘Cálice’ e ‘Ciclone’ recriam e repõem em cena evidências passadas, a partir de relatos que se foram constituindo como uma dramaturgia dos primeiros anos de vida, para depois se mesclarem em cursos de acção que teriam sido muito desejados, mas jamais efectivados. Creio que este pas de deux se aproxima muito da noção “mimesis” que, ao invés de decalcar ou de pretender representar (como se existisse no mundo uma realidade que pudesse ser representada!), se traduz num sobrevoo que convida sobretudo ao reexame do que somos, do que herdamos, do que perdemos e, em primeiro lugar, do que almejamos. Toda a arte se consuma nesta atitude especular que instiga o ‘outro’ a não se confundir com as suas imagens mais imediatas, obrigando-o a saltar (a sair de si) para um lugar ainda inabitado. É nessa linha de fuga que a ficção pode recolher os frutos para que foi criada, do mesmo modo que toda a imaginação é uma convulsão sem geografia e sem tempo próprio. Já escrevi muitos livros, talvez demasiados. Mas desta vez, senti que este “Díptico das origens” me levou a superar uma fasquia até há pouco completamente desconhecida. Numa palavra: percebi o lugar antes inabitado a que agora cheguei. Para melhor elucidar esta sensação deixo-vos as últimas linhas do capítulo 45 (cinco antes do final do romance): “O corpo da mãe tinha a madrugada colada à pele. Acontecia antes de tudo. Depois de cada concerto havia sempre uma segunda-feira de manhã muito cedo. Um bulício cristalizado que recomeçava lentamente após o silêncio da mais apetecida das mortes. E então a mãe sentava-se no muro. E sabia, por fim, que era ali o seu lugar.”.
Automobilismo | Motores fazem-se ouvir do outro lado da fronteira Sérgio Fonseca - 10 Set 2020 Enquanto deste lado das Portas do Cerco aguardamos por novidades sobre como será o programa da 67ª edição do Grande Prémio de Macau, do outro lado, onde o automobilismo está a retomar a normalidade a conta gotas, há uma aproximação ao projecto da Grande Baía [dropcap]U[/dropcap]ma das novidades este ano do Campeonato da China de Carros de Turismo (CTCC na sigla inglesa) foi a constituição este ano de uma Taça da Grande Baía (nota: não confundir com a Taça GT da Grande Baía do Grande Prémio de Macau). “A região da Grande Baía é composta pelas duas regiões administrativas especiais, Macau e Hong Kong, e nove cidades do Delta do Rio das Pérolas de Guangdong, que criaram condições únicas para o estabelecimento da Taça da Grande Baía em termos históricos e culturais”, era possível ler na comunicação daquele que é ainda a mais popular competição automóvel da China Interior. O CTCC é dividido em dois campeonatos diferentes que têm corridas em separado – a Super Taça (que é a categoria rainha e onde corre o piloto português de Macau Rodolfo Ávila) e a Taça China (que é para viaturas mais próximas daquelas que andam nas nossas estradas). A Taça da Grande Baía é um sub-campeonato, ou categoria, com um regulamento técnico muito próximo daquele usado pelas corridas de carros de Turismo de Macau e em que os seus participantes competem dentro do pelotão da Super Taça. Interpretando o comunicado emanado pela organização do CTCC, na sua génese, esta categoria permitirá a participação no campeonato da China de carros muitos semelhantes, ou mesmo iguais, àqueles usados pelos pilotos de Macau e Hong Kong nas suas competições internas. “Quando o conceito da Taça da Grande Baía avançou, este recebeu respostas positivas de muitos concorrentes, que deram confiança ao CTCC que, apesar das dificuldades, ainda investiu fundos e pessoal para apoiar a formação de uma equipa (para se dedicar ao projecto)”, podia ler-se no comunicado da apresentação deste conceito. “A constituição da competição para esta categoria não só se refere apenas à tendência da aplicação de regulamentos internacionais populares, mas também junta o feedback e sugestões entusiásticas de muitos concorrentes de Hong Kong, Macau e da área da Grande Baía, que irão trazer uma nova situação ao sector das corridas”. Na primeira prova da temporada, disputada em Zhuzhou, início de Agosto, esta categoria teve apenas três concorrentes à partida. Este número, talvez aquém das expectativas, em muito se deveu ao facto deste projecto ter sido apenas dado a conhecer uma semana antes do primeiro evento e porque, na altura, nem os residentes de Macau, nem os de Hong Kong, podiam deslocar-se à província de Hunan com facilidade de hoje, devido às restrições de viagens causadas pela pandemia da COVID-19. Contudo, esta foi a primeira pedra lançada numa iniciativa que se crê ter sido pensada para dar frutos a médio e longo prazo. Uma uniformização de regulamentos técnicos no futuro (p.e.: de forma a que um carro construído para um campeonato de Macau possa também correr num campeonato nacional da China) poderá simplificar a natureza do próprio do desporto e criar condições para atrair novos participantes. “Nós acreditamos que a nova categoria e as novas regras poderão providenciar mais entusiastas das corridas com a oportunidade de entrarem na arena e conduzirem nas pistas, obtendo serviços de apoio mais profissionais nos eventos, ao mesmo tempo que se promove o desenvolvimento da indústria dos desportos e dos desportos motorizados, com um aumento das oportunidades de emprego durante esta situação epidémica”, explica-nos o promotor da ideia. Xangai proibido e F4 mais próxima Depois das corridas realizadas em Zhuzhou, o CTCC, assim como o campeonato TCR China Series, previam continuar este fim-de-semana a sua atribulada temporada de 2020 no Circuito Internacional de Xangai. O gigantesco circuito de Fórmula 1 da República Popular da China tem estado aberto a testes privados e a “track-days”, mas ainda não organizou qualquer evento desportivo desde o início da pandemia e também não será este fim-de-semana. Também o Campeonato da China de GT e o Campeonato de Endurance da China foram forçados a renunciar aos seus eventos na pista desenhada pelo arquitecto alemão Hermann Tilke. Entretanto, o Campeonato da China de Fórmula 4, a única competição de monolugares do país, já decidiu que fará apenas três provas este ano: duas no Circuito Internacional de Zhuhai e uma outra a anunciar. Esta última, cujo nome não foi divulgado, a organização chinesa afirma ser um circuito “mundialmente conhecido”, com um traçado “que tem várias curvas”, que está “situado numa área montanhosa com diferença significativa de alturas”, e onde se “realizam muitos eventos internacionais e testemunhou muitos momentos clássicos do automobilismo”. Ora bem, pela descrição, não haverá em Macau quem não conheça esta pista.
Shenzhen | Advogado pressionado para abandonar caso de jovens detidos Hoje Macau - 10 Set 2020 O HM falou com o advogado de um dos detidos em Shenzhen que admitiu ter sido pressionado para não representar o seu cliente. Já em Portugal, o partido Iniciativa Liberal questionou o Governo sobre o caso do estudante com nacionalidade portuguesa, considerando que Lisboa deve intervir para assegurar a sua defesa [dropcap]U[/dropcap]m advogado do Interior da China que está a tentar representar um dos detidos que seguia no mesmo barco que Tsz Lun Kok disse ao HM que foi abordado pelas autoridades chinesas para se afastar do caso. Ren Quanniu terá recebido um telefonema de um funcionário do Departamento de Justiça questionando se já foi a Shenzhen para representar o detido envolvido no caso de travessia ilegal de Hong Kong. Segundo o causídico, o funcionário que o abordou disse que podia deixar antes advogados oficiosos de Shenzhen assumirem o caso. “Disse que é o caso muito sério e é melhorar não participar. Achava que eu ainda não tinha contactado os familiares do detido”, declarou. Num cenário pessimista, em que a China não queira que os detidos sejam transferidos para Hong Kong, Ren Quanniu acredita que o Governo vai recorrer a “todas as razões” para recusar a interferência dos advogados. “Já começaram as ameaças, ou [dito] de outra forma, avisos de boa-fé. Não vou desistir”, disse Ren Quanniu. Além disso, o advogado revelou que vai reunir-se com agentes do Departamento de Justiça no domingo, antecipando “mais pressão”. O HM questionou o Consulado Geral de Portugal em Hong Kong e Macau sobre se a representação legal do português também tinha sido contactada pelas autoridades chinesas no sentido de desistir da causa em prol de um advogado oficioso, mas o Consulado respondeu não ter informações. Pressões liberais Em Portugal, o partido Iniciativa Liberal considera que Lisboa deve intervir no sentido de assegurar a defesa do estudante de Hong Kong de dupla nacionalidade, portuguesa e chinesa, detido na China sem acesso a advogado, noticiou a Lusa. “Tsz Lun Kok é um cidadão português, e o facto de residir noutro país não pode servir de justificação para que o Estado Português se demita de exigir para este jovem um tratamento digno, com garantias de defesa e de um processo penal justo”, pode ler-se na questão apresentada pelo deputado único do Iniciativa Liberal (IL), João Cotrim Figueiredo, dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). Para o deputado do IL, “não existem notícias que façam crer que tenham existido desenvolvimentos quanto às condições de detenção de Tsz Lun Kok, que aparentemente permanecerá ainda em isolamento”. O jovem foi detido em 23 de Setembro juntamente com um grupo de activistas de Hong Kong, a caminho de Taiwan numa embarcação que acabou por ser interceptada. Está preso em Shenzhen por suspeita de “travessia ilegal”, e terá visto o acesso a um advogado recusado na última sexta-feira. O deputado considerou “especialmente preocupante” que o Consulado “se encontre apenas a ‘acompanhar o caso’, e que não disponha de informação relativa à situação do jovem, mesmo quando este já se encontrava detido e isolado há 12 dias”. João Cotrim Figueiredo considera que Portugal tem de defender os direitos humanos, questionando se o MNE pode “assegurar que Tsz Lun Kok se encontra a ser dignamente tratado desde a sua detenção” e se está a trabalhar para que o jovem tenha acesso ao seu advogado. Além disso, o deputado que ainda saber que medidas estão a ser ponderadas pelo gabinete de Augusto Santos Silva para “garantir um julgamento justo” ao jovem, “tendo em conta o historial da China relativamente à negação e à ‘interpretação alternativa’ sobre os Direitos Humanos”, bem como “a opacidade do sistema judicial”.
Fotografia | Gonçalo Lobo Pinheiro e João Miguel Barros distinguidos nos Paris Photo Awards Andreia Sofia Silva - 10 Set 2020 Os trabalhos fotográficos de Gonçalo Lobo Pinheiro e João Miguel Barros foram distinguidos na edição deste ano dos Paris Photo Awards. O projecto “Jamestown”, feito no Gana, deu a João Miguel Barros o primeiro prémio de ouro na categoria “Press/Other”. A covid-19 em Macau e os protestos em Hong Kong deram a Gonçalo Lobo Pinheiro duas menções honrosas [dropcap]O[/dropcap]s fotógrafos portugueses Gonçalo Lobo Pinheiro e João Miguel Barros, radicados em Macau, viram o seu trabalho distinguido nos Paris Photo Awards (PX3). Os resultados da edição deste ano dos prémios foram ontem publicados. No caso de João Miguel Barros, o projecto “Jamestwon”, fotografado em Acra, capital do Gana, venceu o primeiro prémio de ouro na categoria de “Press/Other (non-professional)”. Trata-se de um projecto fotográfico feito em Jamestwon, nome de um bairro de Acra onde a pesca é ainda um modo de vida e de sobrevivência para muitas famílias. Numa nota publicada no website dos prémios PX3, lê-se que “o lugar, construído sob um aglomerado de centenas de moradas que formam um informal bairro de lata, é um microcosmos de vida onde apenas se entra com as pessoas certas”. “As imagens seleccionadas focam-se na actividade destes pescadores durante a época baixa, uma pausa importante para eles tomarem conta das ferramentas necessárias para o seu trabalho”, acrescenta a mesma nota. O trabalho de João Miguel Barros foi ainda distinguido com quatro menções honrosas, uma delas atribuída ao projecto “Akuapem”, também feito no Gana. Todos os anos, no mês de Setembro, acontece o tradicional festival Odwira em Akuapem, no Gana. No website do PX3 lê-se que é um festival que abarca “múltiplas actividades culturais, religiosas e tradicionais”, onde o boxe também se destaca. “Este projecto inclui dois grupos de imagens de várias lutas ocorridas junto a uma praça cheia de pessoas. O primeiro consiste em imagens que foram recicladas e transformadas numa narrativa abstracta que revela os movimentos e dinâmicas da luta. O segundo grupo ilustra de forma perceptível alguns detalhes das pessoas que viram e que vibraram com as diversas lutas”, lê-se. Os PX3 distinguiram também o projecto “Buddhism faith” (categoria Press/Travel/Tourism), sobre templos em Macau, “Net” (categoria Press/Sports) e “Monk” (categoria Press / Travel /Tourism). Numa nota enviada às redacções, João Miguel Barros destaca o facto de esta ser a primeira vez que recebe o primeiro prémio de ouro. “Não é a primeira vez que o meu trabalho foi reconhecido no PX3. Em 2018 foi atribuído o segundo lugar de bronze na categoria “Press/Sport” (Non-Profissional) ao projecto “Blood, Sweat & Tears”, relacionado com o projecto do boxe centrado na figura do Emmanuel Danso. Em 2019 foi atribuído outro segundo lugar de bronze, na categoria Portrait /Children Non-profissional, à fotografia que faz a capa da Zine.Photo #03. Chama-se “Child’s Dream”. Este ano, enfim, um ‘Gold’, com ‘Jamestown’”. Covid-19 e Hong Kong Gonçalo Lobo Pinheiro, fotojornalista radicado em Macau, viu o seu projecto ligado aos cuidados prestados à terceira idade em tempos de covid-19 obter uma menção honrosa na categoria Press/Feature Story. As imagens foram capturadas no lar da Santa Casa da Misericórdia de Macau. A reportagem fotográfica dos protestos de Hong Kong de 2019 também foi distinguida na categoria Press / General News. “Esta história foi feita no dia 1 de Outubro, Dia Nacional da República Popular da China. Em Hong Kong este dia tornou-se num dos mais violentos e os protestos começaram a espalhar-se por todo o território. Há uma Hong Kong antes e depois deste dia. Este foi o dia em que “os manifestantes confundiram a polícia, entraram em centros comerciais e barricaram-se em universidades”. “O problema de Hong Kong não tem fim à vista”, acrescenta a nota publicada no website do PX3. Ao HM, Gonçalo Lobo Pinheiro declarou que “as menções honrosas no PX3 são muito importantes, pois trata-se de um concurso com alguma notoriedade, tanto na vertente amadora como na profissional, que é naquela que concorro”. “O facto de os prémios terem incidido em duas reportagens de dois principais eventos mundiais dos últimos dois anos – uma sobre os protestos de Hong Kong e outra sobre a Covid-19 -, deixa-me ainda mais satisfeito. É a terceira vez que sou agraciado nestes prémios (2017, 2018 e agora)”, acrescentou o fotojornalista, que trabalhou no HM, onde foi jornalista e editor. “O caminho faz-se caminhando e continuo a percorrer o meu caminho sem prejudicar ninguém. Desejo as maiores felicidades a todos os vencedores, em especial ao Rui Caria, Luís Godinho, Alexandre Manuel Viegas e João Miguel Barros, pela amizade. Obrigado ao júri do PX3 por ver qualidade no meu trabalho”, rematou.
PJ | Homem de 30 anos detido por aliciamento e abuso de menores Hoje Macau - 10 Set 2020 [dropcap]A[/dropcap] Polícia Judiciária (PJ) deteve na segunda-feira, na Taipa, um homem de 30 anos oriundo do Interior da China, por suspeita de abuso sexual e aliciamento de menores a participar na produção de material pornográfico. De acordo com dados da PJ citados pelo canal chinês da TDM- Rádio Macau, no domingo, depois de abordar dois menores na Rua de Guimarães, o homem terá convidado um deles para jogar alguns jogos online no Parque Central da Taipa, acabando por lhe pedir para se acariciar para fazer um vídeo. Depois de ter sido notificada para o caso, a PJ deteve o homem no dia seguinte, depois de consultar os registos da videovigilância. Segundo a polícia, o homem admitiu a prática do crime, tendo sido encontrados no seu telemóvel e em discos externos, cerca de 17 mil fotografias e 2 mil vídeos de índole pornográfica, vários deles contendo intervenientes menores. O suspeito confessou ainda ter tentado aliciar nove outros menores, através do mesmo método. O caso foi transferido para o Ministério Público.
Encontradas 239 garrafas de plástico na costa de Macau Salomé Fernandes - 10 Set 2020 Nem só de paisagem natural é composta a costa. A Ocean Conservancy revela que no ano passado se encontraram mais de nove mil toneladas de lixo por todo o mundo. Nas praias de Macau foram encontrados 1.999 itens, que perfazem um total de 133 quilos de lixo [dropcap]A[/dropcap]s embalagens de comida foram o lixo mais comum encontrado nas praias em 2019. Foram recolhidas por mais de 900 mil voluntários cerca de 4,7 milhões destas embalagens, espalhadas por mais de 100 países e regiões. Os dados são do relatório de 2020 da Organização Não-Governamental Ocean Conservancy, que no caso de Macau revela que as garrafas de plástico foram o lixo mais encontrado. Na RAEM, participaram 110 pessoas na limpeza anual das praias no ano passado, mais dez do que no ano anterior. Limparam 0.4 quilómetros de costa, ao longo dos quais encontraram 1.999 itens, que representam 133 quilos de lixo. Em 2018, em 0.5 quilómetros tinham sido recolhidos 358 quilos. O relatório agora divulgado revela que foram encontradas na costa de Macau 239 garrafas de plástico, 198 pacotes de comida, 184 tampas de garrafas de plástico e 108 embalagens de take-away. Mas o top 10 de produtos que dão à costa também abrangem pontas de cigarro, palhinhas, sacos de compras e outro tipo de lixo de plástico. Há elementos que remetem para a actividade humana a ser encontrados por praias de todo o mundo, e que não se cingem ao plástico. Entre os objectos mais invulgares, a Ocean Conservancy dá conta de um gnomo de jardim encontrado no Japão, uma boca de incêndio na Indonésia, uma tábua de passar a ferro na Venezuela, um saco de golfe na Noruega, um sofá no México e uma bota de esqui no Canadá. Acção colectiva No geral, o lixo encontrado no ano passado representa mais de nove mil toneladas. Foram recolhidos talheres de plástico suficientes para servir uma refeição de três pratos a 66 mil pessoas, linha para pescar a 55 milhas (cerca de 88 quilómetros) acima da superfície e um número astronómico de palhinhas. A curta distância geográfica está a terceira localização com mais participantes no programa. Só em Hong Kong, 63.125 voluntários recolheram 4,56 milhões de quilos das praias. Um valor que representa 48 por cento do total. Por sua vez, uma extensão de 86 quilómetros de costa na China ficou mais limpa, com a recolha de mais de 143 mil itens. As garrafas de plástico foram a presença mais comum. “O Dia Internacional de Limpeza da Costa foi sempre sobre comunidade, e o poder da acção colectiva em fazer a diferença. Em média cada voluntário recolhe [cerca de 10 quilos] de lixo, mas juntos enquanto Equipa Oceano, removemos milhões”, escreve a directora executiva da Ocean Conservancy, Janis Searles.
DSSOPT diz que fendas no edifício Mei Lok Garden não são estruturais Andreia Sofia Silva e Nunu Wu - 10 Set 2020 [dropcap]O[/dropcap]s moradores do edifício Mei Lok Garden, na zona da Ilha Verde, estão preocupados com o surgimento de enormes fendas no prédio e que podem pôr em causa a sua segurança. Segundo o jornal Exmoo News, as fendas, com uma largura de cerca de três centímetros, surgiram entre o primeiro e quinto andar do prédio. Vários moradores temem que as obras de construção do posto operacional provisório dos bombeiros da Ilha Verde estejam a causar estragos na estrutura do edifício, de três torres habitacionais. Numa nota ontem divulgada, a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) informa que, com base numa inspecção preliminar, está em causa “um problema relacionado com uma junta de dilatação e não uma fissura estrutural”. Quanto às obras em curso “os dados mantêm-se estáveis e não têm havido alterações significativas”, pelo que “a monitorização continuará a ser feita”. A DSSOPT realizou ontem uma “inspecção mais aprofundada” ao edifício e fica a promessa de proprietários e empreiteiros vão manter a comunicação. Negligência? Chan Ka Seng, presidente do condomínio, disse que as obras adjacentes têm obrigado à extracção de areia e a mexidas no solo, o que pode pôr em causa a segurança. Apesar disso, Chan Ka Seng também admitiu que as fendas podem dever-se à negligência dos construtores do prédio. Chan Fong, moradora no Mei lok Garden há cerca de 20 anos, disse que os moradores já alertaram o Instituto da Habitação, o Corpo de Bombeiros e a DSSOPT, tendo já ocorrido algumas reuniões com o presidente do condomínio e responsáveis da empresa construtora. O Exmoo News escreve que o construtor alegou que os dados de monitorização da segurança revelam que não existe qualquer perigo de queda, mas o presidente do condomínio declarou que os dados não correspondem à situação real. O Governo pediu, entretanto, a suspensão da perfuração do solo, tendo sugerido aos moradores taparem as fendas com pedaços de lona para evitar infiltrações com água da chuva.
Plano Director | Aumento de área para o comércio para colmatar “défice” Salomé Fernandes - 10 Set 2020 A área do território com finalidade comercial vai aumentar para quatro por cento, uma medida que o secretário para os Transportes e Obras Públicas considera necessária à diversificação [dropcap]O[/dropcap] secretário para os Transportes e Obras Públicas disse ontem que a área comercial foi a única que se considerou estar “em défice”. O Plano Director abrange uma área de aproximadamente 36,8 quilómetros quadrados, e aumenta para quatro por cento a percentagem com finalidade comercial. Os conteúdos do plano, que está em consulta pública até 2 de Novembro, foram ontem apresentados ao Conselho do Planeamento Urbanístico. A Venceslau de Morais e a antiga zona administrativa judiciária em frente ao MGM Macau, estão entre as zonas que o Governo considerou poderem “ter alguma vocação” para o comércio, algo que o secretário diz que contribui para a política de diversificação económica. Quando um terreno é destinado em mais de 65 por cento a uma finalidade, é essa que fica categorizada. No entanto, há flexibilidade no aproveitamento do terreno. “Em Macau, há muitos edifícios em que mais de 65 por cento são habitacionais e por baixo têm lojas. (…) Não impede que haja algum comércio”, disse o secretário. Mak Tat Io, chefe do Departamento de Planeamento Urbanístico da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) explicou que vão ser incluídas lojas de comércio para criar turismo histórico na zona costeira com o objectivo de “melhor mitigar os problemas causados pela concentração dos turistas num só lugar”. O documento de consulta prevê o desenvolvimento de círculos comerciais para apoiar o desenvolvimento de “novos núcleos industriais de alta tecnologia” e de aproveitar oportunidades económicas derivadas da Ponte do Delta. Possíveis ajustes Em relação ao Metro Ligeiro, o foco é na Linha Leste, mas o secretário indicou que no futuro podem ser consideradas outras opções. “Por enquanto, no Plano Director temos esta linha de metro, mas não descartamos a possibilidade de no futuro fazermos outra linha no Porto Interior. Cinco anos depois podemos ter uma revisão e outra alternativa”. Perante preocupações de um membro do Conselho do Planeamento Urbanístico sobre a capacidade deste transporte face à procura no futuro, o presidente da Comissão Executiva do Metro Ligeiro disse que a frequência do Metro Ligeiro pode ser ajustada. Por outro lado, questionado sobre o Alto de Coloane, Raimundo do Rosário remeteu informações para os planos de pormenor, que vão ser criados depois do Plano Director. “O limite exacto, (…) densidade ou altura do edifício só com o plano de pormenor”, disse o secretário.
UNESCO pede clarificações à China sobre Farol da Guia Pedro Arede - 10 Set 2020 Três meses depois, a UNESCO respondeu às cartas enviadas pelo Grupo de Salvaguarda do Farol da Guia em Junho e Julho. Na volta do correio, o organismo diz ter tomado nota das preocupações sobre a zona envolvente ao Farol e pedido esclarecimentos à China sobre o caso. A questão será analisada na próxima reunião do Comité do Património Mundial, em 2021 [dropcap]A[/dropcap] UNESCO pediu esclarecimentos à China sobre as questões levantadas pelo Grupo de Salvaguarda do Farol da Guia acerca da protecção da integridade visual da paisagem do Farol, considerado património mundial deste 2005. É o que consta da resposta divulgada ontem e assinada pelo director-geral adjunto para a Cultura da UNESCO, Ernesto Ottone. “O Secretariado da Convenção do Património Mundial pediu esclarecimentos ao estado-membro [China] acerca da informação recebida por parte da vossa organização em Junho e Agosto de 2019 e Junho e Julho de 2020, relativamente à construção de edifícios de altura elevada, na zona envolvente da propriedade considerada património mundial”, pode ler-se na resposta da UNESCO, partilhada pelo Grupo de Farol da Guia. Recorde-se que a resposta da UNESCO vem no seguimento da chamada de atenção por parte do grupo para alguns problemas que já duram há vários anos, nomeadamente o facto de existir um prédio que estava em construção na Calçada do Gaio, entretanto embargado por já ter ultrapassado o limite máximo de altura, e o projecto de construção da Avenida Dr. Rodrigo Rodrigues, que prevê a existência de edifícios com 90 metros. “Ao fim de 12 anos, o Governo da RAEM ainda não cumpriu a promessa de reduzir a altura do edifício inacabado da Calçada do Gaio. Em vez disso, tem justificado a decisão de manter a altura do edifício nos 81 metros, numa clara violação do limite permitido de 52,5 metros”, consta da carta enviada em Junho pelo grupo, à directora do Centro do Património Mundial da UNESCO, Audrey Azoulay. Na nota divulgada ontem, a UNESCO informa já ter recebido “informação e documentação” da China sobre as questões levantadas, estando agora a proceder à sua análise. Contudo, o organismo das Nações Unidas lembrou ainda que está a aguardar um relatório sobre o estado de conservação dos edifícios do património cultural de Macau, que deverá ser apresentado pela China até ao dia 1 de Dezembro. Esse documento também será analisado na próxima reunião do Comité do Património Mundial, a acontecer em 2021. Notas e garantias Ao contrário da solicitação do Grupo de Salvaguarda do Farol da Guia, a UNESCO não vai avançar com qualquer tomada de posição urgente para avaliar a gravidade dos danos na integridade visual e paisagem do Farol da Guia. Recorde-se que, numa das cartas enviadas à UNESCO em 2020, o grupo sugeria a tomada de “medidas urgentes” para implementar a Convenção para a Protecção do Património Mundial em Macau e o envio de uma equipa de peritos “com a máxima prioridade”. Quase a fechar a resposta, a UNESCO afirma ter tomado nota do encontro realizado em Julho entre Grupo para a Salvaguarda do Farol da Guia e o Instituto Cultural (IC) e ainda, que tudo fará para preservar a especificidade do património cultural em questão. “Não duvidem que a UNESCO continuará a trabalhar em estreita colaboração com as autoridades e órgãos consultivos chineses, para assegurar que o valor universal excepcional do património cultural é totalmente preservado”, garantiu o organismo.
Imposto de Selo | Contratos de cedência de espaço fora da “zona cinzenta” Pedro Arede - 10 Set 2020 [dropcap]V[/dropcap]ai passar a ser mais difícil contornar a lei, nos casos em que é exigido o pagamento de imposto de selo durante a realização de contratos de cedência de uso de espaço em imóvel. Foi esta a principal conclusão a que chegou ontem a 3ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa (AL) que se encontra a analisar a proposta de lei sobre o regulamento do Imposto de Selo. Se em reuniões passadas, a comissão presidida por Vong Hin Fai mostrou preocupação com o facto de não existir uma definição jurídica clara para os contratos de cedência de uso de espaços em imóveis, colocando-os numa “zona cinzenta”, o novo texto de trabalho entregue pelo Governo, passa a delimitar que os acordos dizem apenas respeito aos espaços dos centros comerciais. “Na versão mais recente vemos que há uma melhor definição do conceito (…), passando a delimitar esses espaços como sendo centros comerciais, para evitar que alguém depois possa fugir à responsabilidade de pagamento do imposto de selo”, explicou o deputado. Já sobre a realização de leilões, que implicam também a cobrança de imposto de selo, foram introduzidas melhorias na proposta de lei. No entanto, os deputados levantaram questões sobre a realização de licitações online e o respectivo enquadramento legal da cobrança do imposto de selo. “Há a possibilidade de esta matéria não estar regulamentada na actual proposta de lei. O Governo respondeu que ia ponderar a melhor forma de melhorar o regime com o objectivo de fiscalizar estes eventos online”, partilhou Vong Hin Fai.
Forças de Segurança | Wong Sio Chak evoca confidencialidade para não divulgar casos Andreia Sofia Silva - 10 Set 2020 O secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, negou dar informações sobre processos em investigação pela Comissão de Fiscalização da Disciplina das Forças e Serviços de Segurança de Macau, alegando confidencialidade dos casos. Em resposta ao deputado Sulu Sou, Wong Sio Chak frisou a independência da comissão face à sua tutela [dropcap]O[/dropcap] Governo recusou dar informações sobre processos que estão sob investigação por parte da Comissão de Fiscalização da Disciplina das Forças e Serviços de Segurança de Macau. Em resposta a uma interpelação escrita de Sulu Sou, Wong Sio Chak, secretário para a Segurança, garantiu que a comissão é totalmente independente e que não devem ser divulgadas informações sobre casos em investigação por serem confidenciais. “A informação pedida pelo deputado requer confidencialidade e está relacionada com casos que estão sob investigação segundo a lei”, lê-se na resposta. “O secretário para a Segurança não deve divulgar informações que envolvem questões de privacidade, segredos governamentais ou segredo de justiça em nome da segurança do público e do sigilo a que estão sujeitas as forças de segurança”, acrescenta o documento. Wong Sio Chak argumentou ainda que a comissão presidida pelo advogado e ex-deputado Leonel Alves “funciona sob alçada do Chefe do Executivo desde Novembro de 2019 e de forma independente face ao gabinete do secretário para Segurança”. “As autoridades de segurança devem respeitar a independência da comissão e não devem interferir de nenhuma forma com os seus trabalhos. Devem também cooperar com a comissão no exercício de supervisão de poderes”, frisou a resposta do secretário. Silêncio absoluto Na sua interpelação, Sulu Sou defendeu a concessão de mais poderes à referida comissão, alertando para a ocorrência de vários processos disciplinares e de violação da lei no seio das Forças de Segurança. “Os relatórios da comissão enumeram várias deficiências na aplicação da lei por parte das forças de segurança e fornecem algumas sugestões de melhoria. Será que a Administração aceitou e implementou essas sugestões?”, questionou o deputado. Sulu Sou disse ainda que a “imprudência” das autoridades prejudica a relação de confiança entre a população e as forças policiais. Um dos exemplos mencionados foi o episódio da noite de 4 de Junho, aniversário de Tiananmen, quando houve uma “distribuição inadequada” de polícias no Largo do Senado. “Será que a comissão tem poderes para realizar investigações mais específicas, relacionadas com denúncias de ‘abuso do poder policial’ ou ‘uso indevido da força’, além de ouvir as declarações dos queixosos? Vão ser revistas [pela comissão] as informações e provas apresentadas pelas autoridades de segurança?”. Questões às quais Wong Sio Chak não deu resposta.
Disney | Entidades acusadas de abusos de direitos humanos nos créditos de “Mulan” Hoje Macau - 10 Set 2020 Estreia amanhã nos cinemas chineses “Mulan”, o filme da Disney que multiplica polémicas e contratempos. Primeiro, foram as críticas que chegaram ao Global Time, de falta de autenticidade revelada no trailer, seguido do apoio público da protagonista, Liu Yifei, à polícia de Hong Kong e finalmente do adiamento da estreia devido à pandemia. Agora, aumentam apelos ao boicote devido à presença de entidades oficiais de Xinjiang nos créditos do filme [dropcap]C[/dropcap]ada vez existem mais preocupações éticas no comportamento dos consumidores, até mesmo no entretenimento, numa extensão da “cancel culture”. A grande produção dos estúdios da Disney “Mulan” é um dos mais recentes campos de batalha política, principalmente depois de o filme ter estreado na plataforma de stream Disney+. Nos créditos finais, a Disney agradece a agências do Governo chinês acusadas de abusos contra os direitos humanos na província de Xinjiang pela ajuda dada na produção. Entre as organizações está o departamento de segurança pública da cidade de Turfán ou o departamento de propaganda do Partido Comunista Chinês na região. Turfán é uma cidade da periferia de Ürümqi, a capital da província onde se suspeita estar em curso um genocídio cultural. Este departamento público foi incluído pelo Governo norte-americano numa lista de organizações envolvidas em violações e abusos de direitos humanos. O filme, que já havia gerado controvérsia, voltou assim a provocar uma onda de críticas e apelos ao boicote, algo inimaginável quando foi anunciado que os estúdios da Disney iriam produzir uma adaptação em filme da animação com o mesmo nome lançada em 1998. Até agora, a Disney ainda não comentou o caso publicamente. Não se sabe ao certo “quanto” do filme foi rodado em Xinjiang, mas de acordo com inúmeras publicações nas redes sociais, e em entrevistas, de pessoas ligadas à produção sabe-se que a produção teve lugar em vários pontos da província. Desde que o filme ficou disponível na plataforma Disney+, na sexta-feira, a ligação entre a obra e o poder político em Xinjiang tornou-se incendiária nas redes sociais. O caso levou várias organizações de defesa dos direitos humanos a exigir a divulgação de acordos entre o Governo chinês e a Disney firmados na sequência da autorização para filmar na província, uma das zonas mais vigiadas do mundo. “É profundamente perturbante que a Disney tenha julgado normal entrar em parcerias, e agradecer a departamentos de propaganda e de segurança pública envolvidos em genocídio”, referiu à CNN Isaac Stone Fish, da Asia Society, uma organização sem fins lucrativos sediada em Nova Iorque. Montanhas de problemas O projecto de readaptar “Mulan” para filme de acção tinha tudo para ser um sucesso de bilheteira, em particular na China, o segundo maior mercado do mundo no consumo de filmes produzidos por Hollywood. No ano passado, as críticas começaram quando ficou disponível o trailer do filme, levando a queixas em vários quadrantes chineses em relação à falta de rigor histórico e ao excesso de estereótipos na forma como se retratavam as personagens. Um artigo publicado em Julho de 2019 no jornal oficial Global Times deu voz a várias opiniões negativas, nomeadamente do crítico de cinema Shi Wenxue que referiu que as casas, maquilhagem e guarda-roupa eram característicos da Dinastia Tang. Apesar de temporalmente deslocada da data em que se desenrola a narrativa, os estúdios da Disney preferiram usar “o imaginário mais conhecido da China antiga”. Porém, um dos aspectos mais criticados foi o facto de nas cenas de luta serem usados técnicas e movimentos típicos dos ninjas japoneses. Outra presença nipónica está no estilo do mobiliário usado em algumas cenas. O mesmo crítico, citado pelo Global Times, apontava “Mulan” como um exemplo perfeito de como o Ocidente não entende e deturpa a China, socorrendo-se de estereótipos que apelam à imaginação ocidental. Ao longo do artigo são enumeradas razões para duvidar que “Mulan” seja uma obra apelativa ao público chinês. O contra-ataque da Disney chegou em forma de entrevista a outro órgão de comunicação oficial do Governo Central. Em discurso directo à agência Xinhua, o presidente da Walt Disney Studios Motion Picture Production, Sean Bailey, garantiu o empenho da equipa em ser fiel à história. “Passámos muito tempo, no início da produção, com académicos, especialistas e pessoas da região. Estivemos muito tempo na China”, revelou. Bailey acrescentou que não só o elenco é chinês, como também foi contratado um produtor chinês para fazer “Mulan”. Aliás, o compromisso da Disney com o público e as autoridades chinesas pode-se aferir a partir das múltiplas entrevistas dadas à Xinhua, de Bailey, ao realizador Niki Caro, à actriz principal, Liu Yifei, até chegar ao CEO da Disney Bob Chapek. Opiniões virais Tudo indicava que a Disney tinha em mãos um sucesso garantido. Em Agosto do ano passado, vários activistas pró-democracia apelaram ao boicote a “Mulan” depois de a actriz principal, Liu Yifei, ter demonstrado nas redes sociais o apoio à polícia de Hong Kong. Isto numa altura em que as autoridades da região vizinha enfrentavam acusações de violência policial. “Apoio a polícia de Hong Kong. Podem-me atacar agora. Que vergonha, Hong Kong”, partilhou Liu na sua conta de Weibo, um post originalmente publicado pelo Diário do Povo. Depois da publicação da actriz, de nacionalidade norte-americana, #BoycottMulan subiu na lista dos mais populares hashtags do Twitter. Após a polémica, que o departamento de marketing da Disney com certeza dispensava, chegou a pandemia do novo tipo de coronavírus. Sem condições para haver público nas salas de cinema, a Disney viu-se forçada a adiar a estreia em Março. Os pedidos para a companhia de estúdios ser transparente quanto aos acordos estabelecidos com o Governo Central chegaram de vários quadrantes. Yaqiu Wang, um investigador chinês da Human Rights Watch, pediu à Disney para revelar que tipo de assistência recebeu das autoridades de Xinjiang e que acordos firmou com as autoridades da província. Stone Fish, da Asia Society, realça em declarações à CNN que é comum as empresas fazerem pequenas concessões ao Governo Central para acederem ao mercado apetecível chinês. “Os estúdios entendem que têm de se comprometer com Pequim, que podem censurar ligeiramente os filmes para aceder ao mercado chinês, mantendo a integridade. Não é necessário dar os passos extra que a Disney deu, e pelos quais agora está a ser, e bem, criticada”, rematou o activista. Sequelas políticas Em Outubro do ano passado, o Governo norte-americano elaborou uma lista negra de organizações políticas em Xinjiang proibidas de comprar produtos aos Estados Unidos. Até ao dia de ontem, ainda não era claro se a Disney seria investigada pelas autoridades norte-americanas devido às ligações ao poder provincial da região do noroeste chinês. Ainda assim, a empresa foi alvo das críticas de alguns políticos norte-americanos. O republicano Mike Gallagher, do Wisconsin, escreveu no Twitter que “enquanto o PCC comete crimes contra a humanidade em Xinjiang, a Disney agradece a quatro departamentos de propaganda que mentem sobre esses crimes. Também agradece ao departamento de segurança pública da cidade de Turfán, uma entidade apontada como responsável por essas atrocidades”. Importa recordar que no ano passado, Mike Pence criticou empresas norte-americanas por tentarem silenciar opiniões sensíveis para aceder ao mercado chinês. Por exemplo, o vice-presidente norte-americano acusou a Nike de “deixar a consciência à porta”, assim como jogadores e empresários da NBA, por alinharem com o PCC contra os movimentos pró-democracia de Hong Kong.
Vibra, vibra, vibrador! Tânia dos Santos - 9 Set 2020 [dropcap]A[/dropcap] controvérsia que normalmente gira em torno dos vibradores começa logo na história da sua génese. A assumpção comum – e que já está bem integrada na cultura popular (até em peças da Broadway) – é de que os vibradores terão sido criados pelos médicos vitorianos para o alívio da tão malfadada maleita da altura, a histeria. Estes médicos estariam carentes por um utensílio que os auxiliassem na intensa tarefa de massajar todas as detentoras de vulvas que precisavam do alívio de sintomas. Reza a lenda que os vibradores conheceram o seu grande propósito orgásmico porque os médicos precisavam de descansar os pulsos, de tanto trabalho que teriam. Acontece que esta versão da história não é assim tão precisa. Foi Hallie Lieberman que recentemente contestou esta suposta teoria com a sua mais recente obra Buzz: The Stimulating History of the Sex Toy. Não há qualquer evidência/relatos/factos que o início dos vibradores terá sido esse – não deixem que a internet ou a academia vos indique o contrário. Os vibradores terão sido um auxílio médico, sim, mas nada indica que terão sido usados nos tratamentos de histerias, muito menos usados nos genitais em contexto médico – por mais caricata e curiosa que esta imagem seja. Os primeiros vibradores terão sido usados no tratamento de problemas nos rins, surdez, ou dores de cabeça. Ninguém pode dizer com certeza que o uso nos genitais estivesse a acontecer de facto. A história da sexualidade tem destes problemas, ninguém sabe ao certo o que se fazia porque os relatos sobre tudo o que envolvia sexo ou genitais, não eram muitos. Foi só nos anos trinta que se começou a ver os vibradores a interagir com vulvas, nos vídeos pornográficos da altura. E a partir daí tornou-se mais fácil acompanhar a sua evolução. Nos anos 60 tornaram-se num ícone de empoderamento feminino, especialmente em contexto norte-americano, onde se viu o surgimento de empresas com uma abordagem diferente da tradicional sex-shop. Um vibrador à antiga – e às vezes nos dias de hoje – implicava a interacção com o senhor de meia idade da loja de produtos sexuais local, que, acompanhado por comentários pouco agradáveis, podia oferecer informação pouco útil sobre os produtos. Agora há consultoras capazes de informar as pessoas com vulvas das possibilidades do mercado. Até os estudos de marketing e design têm relatado e incentivado a proliferação de produtos sexuais, agora com ares mais modernos e apetecíveis e até com maior consciência ambiental sobre os materiais utilizados. Assim parece-se normalizar cada vez mais a utilização do vibrador como um utensílio comum à descoberta do prazer individual e/ou em companhia. O vibrador já não é um objecto para as solteironas desesperadas, como tantos filmes e séries quiseram vender. Re-significaram-se os vibradores para todas e todos, de qualquer sexo, género, orientação, idade e estado civil. Apesar da ideia ser recorrente, os vibradores não são uma ameaça à sexualidade saudável, ou um sinal de comportamento desviante, nem são um competidor direito ao pénis. Os defensores de uma educação sexual com foco no prazer sugerem que os brinquedos sexuais devem ser incluídos, explicados e contextualizados porque são poderosos complementos a uma consciência plena do corpo. Claro que os vibradores ainda têm um logo caminho a percorrer para uma aceitação mais tranquila. Ainda há desconforto, vergonha e mal-entendidos. Há pénis que, ingenuamente, ainda se sentem ameaçados por um pedaço de borracha que vibra, se estende e se manipula. Já para não falar no difícil acesso a produtos de qualidade (são caríssimos!), na generalidade. O vibrador pode ser um objecto de auto-conhecimento e de empoderamento, mas também se arrisca a tornar-se numa forma de comercialização do prazer sem uma narrativa coerente e contestadora das normatividades que atrapalham. Por isso é que vale a pena reflectir sobre o progresso do vibrador e para que lados caminha, e se as promessas de libertação sexual que o vibrador traz sempre se concretizam.
Hospitalidade (1997) – Julia Kristeva Hoje Macau - 9 Set 202010 Set 2020 [dropcap]P[/dropcap]osso hoje dizer que vivi alguns dos melhores momentos da minha vida pessoal e profissional em solo americano. Porém, nada me destinava a essa afeição. Escusado será dizer que, na minha Bulgária natal do pós-guerra, o Tio Sam não estava na moda: dificilmente era apreciado por distribuir leite em pó nas escolas; zombavam dele pelo seu culto à Coca-Cola, que a propaganda comunista apresentava como uma droga; odiavam-no devido à Guerra da Coreia. Quando cheguei a Paris, a guerra do Vietname estava no auge e manifestávamo-nos contra os bombardeamentos americanos. Foi então que René Girard, que me ouviu apresentar Bakhtin no seminário de Roland Barthes, me convidou para ir ensinar na Universidade de Baltimore. Não me via a colaborar com os “polícias do mundo”. E apesar do conselho fortemente dialéctico do meu mestre, Lucien Goldmann, que me dizia: “Minha pequena, o imperialismo americano deve ser tomado a partir de dentro”, francamente, não me senti com forças: fiquei em França. Estávamos em 1966. Alguns anos mais tarde, em 1972, conheci o professor Léon Roudiez, da Universidade de Columbia, no colóquio de Cerisy sobre Artaud e Bataille. Fiz a minha primeira viagem a Nova Iorque em 1973, e desde 1976 sou Permanent Visiting Professor no Departamento de Francês desta universidade – o que pode não ter ajudado na qualidade do meu inglês, mas permitiu-me encontrar muitos amigos e cúmplices nesse tão particular mundo das universidades americanas. De toda esta experiência sobre a qual tentei escrever o essencial nas páginas do meu romance Os Samurais [1990], gostaria apenas de reter aqui duas imagens-símbolo que são inseparáveis da minha vida psíquica, e que podem dar uma ideia do meu apego aos Estados Unidos. A primeira é uma pequena foto a preto e branco, tirada por Léon Roudiez, onde me vêem a bordo de um ferry em aproximação aos arranha-céus de Manhattan; sou uma estudante e uso o cabelo comprido. Como não tenho foto da minha chegada a Paris, é este, para mim, o único e melhor vestígio do meu re-nascimento n’«o mundo livre». A segunda imagem é a do meu apartamento em Morningside Drive; com vista para o vizinho Parque de Harlem, fico lá muitas vezes quando ensino em Columbia; é inundado por esta estranha e acolhedora luz, escrevi lá páginas, a meu ver essenciais, de Histórias de Amor (1983) e de Sol Negro (1987); este apartamento continua a ser, na minha mitologia pessoal, o lugar perfeito para a solidão feliz. Quando, com Philippe Sollers, dedicámos o n.º 71-73 da Tel Quel (Outono de 1977) a Nova Iorque, muitos leitores ficaram surpresos. Continha nada menos do que uma apologia da democracia americana, em contraponto à centralização francesa, estatal e jacobina. Na verdade, foi, e ainda é para mim, um reconhecimento do que me parece ser a primeira qualidade da civilização americana, e que explica o meu apego ao trabalho que a universidade americana me propôs (daqui em diante, devo incluir no adjectivo «americano» os seus vizinhos do Norte: o Canadá e as universidades canadianas): essa qualidade é a hospitalidade. Chamo hospitalidade à capacidade que possuem certos seres humanos para oferecer um lar a quem não o tem ou está temporariamente privado dele. Exilada do comunismo e acolhida em França, não foi em França que experimentei tal hospitalidade, ainda que a França me tenha concedido a nacionalidade francesa, pela qual eu nunca saberia agradecer o suficiente. Cimentado pela tradição administrativa e cultural, o meu país adoptivo gera, para delas se distanciar, novidades excessivas (como as várias vanguardas artísticas, filosóficas, teóricas) que me seduziram e que fazem a sua glória no exterior; mas também violentas rejeições, quando não mesmo os ódios ferozes contra estas inovações. A América, pelo contrário, parece-me uma terra que acolhe e incentiva a enxertia – talvez em excesso. Quando a xenofobia deste velho país me fere, dou por mim a acalentar a ideia de me instalar definitivamente nos Estados Unidos, ou possivelmente no Canadá, mais europeu e francófono. No nosso mundo moderno, não possuímos realmente uma definição positiva do que caracteriza a humanidade (não no sentido de «género humano» mas de «qualidade humana»). Contudo, somos mesmo levados a perguntar «o que é a humanidade?», mais que não seja quando nos deparamos com… «crimes contra a humanidade». A minha experiência pessoal leva-me a pensar que a definição minimalista de humanidade, o «grau zero», como diria Barthes da humanidade, é justamente a sua capacidade de hospitalidade. Além disso, os Gregos não se enganaram ao escolher a palavra ethos para designar a aptidão mais radicalmente humana, a aptidão agora designada de ética e que consiste em fazer uma escolha – a escolha entre o bem e o mal, mas também todas as outras escolhas. Ora, esta palavra ethos (donde provém ética) significa residência habitual, abrigo de animais; e como derivação desse sentido de habitat, significou progressivamente hábito, carácter, aquilo que é específico de um indivíduo, de um grupo social. Diria, pois, que dar refúgio, acolher, abrigar, abrir a sua porta, as suas universidades, as suas editoras, mas também o seu pensamento, a sua maneira de reflectir, as suas preocupações profissionais e pessoais, à existência e ao trabalho de um estrangeiro, em suma, a hospitalidade que os americanos têm praticado comigo, é o grau zero do ethos. A América encarna para mim esta atitude moral, que se torna hoje essencial – ao mesmo tempo que problemática –, quando a migração massiva de populações torna imprescindível o acolhimento do estrangeiro, mas exige ao mesmo tempo uma legislação realista e uma moralidade adequada. Quaisquer que sejam as suas dificuldades intrínsecas, ou mesmo os seus ostracismos relativamente aos estrangeiros, no continente americano sinto-me uma estrangeira com outros estrangeiros. E tenho a sensação de que com essa solidariedade podemos fazer algo, já que pertencemos a uma humanidade futura, e essa humanidade futura será, como nós, formada por estrangeiros que tentam entender-se. A hospitalidade que os Americanos me ofereceram dirige-se, antes de mais, às minhas ideias, ao meu trabalho. Trouxe-lhes – e não páro de trabalhar nisso – uma memória cultural, francesa e europeia, na qual se misturam as tradições germânica, russa e francesa: Hegel e Freud, o formalismo russo, o estruturalismo francês, as vanguardas do Novo Romance e da Tel Quel. Talvez achassem que a minha personalidade de migrante fosse menos frenchy, fechada e, às vezes, arrogante ou desdenhosa, conforme o sentido que atribuem a essa palavra. E que, por intermédio da estrangeira que sou, pudessem igualmente aceder a esta cultura francesa, mas também europeia, que se mostra amiúde inacessível e ciosa da sua pureza. Seja como for, algumas das minhas pesquisas encontraram hospitalidade na América – quero dizer ressonância e desenvolvimento –, o que me encantou e encorajou sobremaneira. Por vezes, a imagem que os Americanos me devolvem surpreende-me, não me reconheço nela. Mas nunca tive nem terei a tentação de polemizar. Porque estou convencida tratar-se de uma de duas coisas: ou essas interpretações são contra-sensos estéreis que se esgotam por si próprios – como certas recuperações militantes ou politicamente correctas – ou fazem parte da busca pessoal de homens e mulheres americanos, originais e inventivos, que absorvem o meu trabalho no seu e que, portanto, enfrentam os riscos das suas próprias obras; o que é seguramente, apesar dos mal-entendidos, uma excelente forma de praticar a hospitalidade. Não é a «enxertia» uma adopção com consequências imprevisíveis? O exacto contrário da «clonagem»? KRISTEVA, Julia – “L’avenir d’une révolte, Paris, Calmann-Levy”, 1998, pp. 86-91
O Tédio sempre existiu Nuno Miguel Guedes - 9 Set 2020 «- Don’t tell me Venice has no lure! – Just a town without a sewer!» It ’s a bore!, canção de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe para o filme Gigi. [dropcap]N[/dropcap]o musical Gigi, retirado do romance maravilhosamente amoral de Colette e transportado para cinema por Vincent Minelli, o protagonista masculino sofre de uma enfermidade que não vê maneira de curar. Bonito, jovem e rico, um dândi ocioso que tem Paris aos seus pés, reuniria todas as condições para uma existência tranquila e livre. Mas não: sofre de um tédio profundo. Tudo: desde cidades, pessoas, amores, beleza,… – tudo o aborrece de morte. E de facto, atacado por esse mal, é a vida que desaparece. Lembrei-me dele (e para variar na canção que sei de cor) quando estava a ler um magnífico artigo-ensaio de Margaret Talbot, publicado na revista The New Yorker com o título What Does Boredom To Us – And For Us ? A própria escolha do tema deixou-me curioso e com algumas perguntas. Será possível existir tédio nos nossos dias? Quando a velocidade de informação é tanta, os acontecimentos parecem chegar em catadupa, o ritmo de obrigações quotidianas nos obriga a não estar quieto por um segundo que seja? Catástrofes sortidas, ditadores em flor, identitarismos de faca na liga, praga em acção. Haverá tempo para estar maçado? Um conceito tão novecentista, tão fin-de-siécle… Ou não? Nas últimas duas décadas houve um surto de estudos e ensaios sobre o tédio, vistos de uma perspectiva psicológica, clínica e até política. É evidente que o assunto não é novo – a filosofia e a literatura têm-no sob observação há milénios. Mas é o advento da modernidade que dá sentido e palco a este inefável sentimento, «um desejo por desejos», como o definiu Tolstoi. Heidegger, por exemplo, dedicou-lhe bastante atenção e chegou a classificá-lo em três géneros: o tédio mundano, que acontece por exemplo quando se está à espera de um comboio; um mal-estar mais profundo que associa à condição humana; e o estado mais grave e incompreensível que resulta da falta de algo que não conseguimos nomear mas que nos é familiar. Mais sisudo e ainda menos solar, Schopenhauer já tinha antes avisado que a vida não era mais do que um movimento pendular entre o desejo e o tédio. E por aí fora: até o punk usou o tédio como arma de arremesso (os Clash, por exemplo) e, noutro nível, são famosas as considerações de Adorno sobre a estreita ligação entre o tédio e o capitalismo moderno, que oferece teoricamente mais ócio mas não o resolve. O tédio não tem o chique da melancolia e muito menos do ennui. É um sentimento cinzento, de uma ausência qualquer que se percebe mas não se lamenta. E em resposta às perguntas que fiz no início da crónica existe ainda em plena pandemia, como uma força e uma permanência inesperada. Vários estudos feitos em países muito afectados pela COVID-19, como a Itália, demonstraram que o tédio segue-se logo à angústia da incerteza sobre o que irá acontecer com a doença. Não irei aqui arriscar nenhuma explicação , preferindo remeter para a já vasta bibliografia sobre o tema. Mas para não entediar mais o leitor, termino com uma nota sobre o que o tédio pode fazer por nós. Reclamar e praticar o direito à resmunguice, à queixa. Parece pouco em tempos trágicos e difíceis como só de agora mas devolve-nos a familiaridade e variedade da vida. E de facto, muitas vezes é o resmungar que nos ajuda a sobreviver.
Dias canhestos João Paulo Cotrim - 9 Set 2020 Horta Seca, Lisboa, sexta, 28 Agosto [dropcap]E[/dropcap]stranho esta ideia de férias em plena pandemia. O mundo está a acabar, mas convém continuar a pôr óleo nas engrenagens do costume. Devidamente autorizado a sair, brinco com as minhas rotinas, que sempre misturaram prazeres e deveres, os diversos calendários, horários e agendas. Talvez explique este andar feito num oito. Tanto tempo parado e não me atrevi à planificação que tenho de fazer com uma urgência de sede. Antes há decisões por tomar, talvez realinhamentos de direcção, muito tacteamento de sentidos, quem sabe desdobramentos, mas também murros na mesa. Para já, alegro-me por poder contar com dois novos nomes. Logo o de Luís Cardoso, que há muito se empenha em criar uma cosmogonia, literária convém sublinhar, para um país perdido nos mitos, Timor. E tem-no feito com uma língua na qual a água soa de muitas maneiras e discorre com uma elegância muito própria. Este romance será pedrada no charco, pelas personagens e acontecimentos que evoca, com extrema maturidade e polida palavra. Depois o Nuno Bragança, outro daqueles autores que me justificam a criação de uma editora. Excluo o fascínio pela personagem, que interessa aqui e agora o seu texto-laboratório, ferramenta de constante alinhamento das perspectivas e dos seres. Para já trataremos dos ensaios sobre cinema, que revelarão muito do fascínio pelas imagens projectadas, pela construção da narrativa, pelo alcance máximo da vida. Temos mais (com) que contar. Convém confundir a realidade com a literatura, dispersar uma na outra. Ou não valerá a pena. Mouriscas, Abrantes, terça, 1 Setembro Vejo a morte anunciada da Cotovia e o lamento dialogado da Fernanda [Mira Barros], nas redes: « – Imagino como se sente. – Não. Não imagina.» E discordo: imagino, sim! A editora não é a nossa vida. A editora pode bem ser uma vida inteira. Tendemos a fazer coincidir a editora com o seu criador, mas seria injusto atribuir o essencial da Cotovia ao André Jorge, pois também a Fernanda foi asa do pássaro. E teve a desventura de a herdar, com tudo o que acarreta. Na medida da solidão de cada um, consigo aproximar-me deste senso comum da perda. Devo à Cotovia parte do que fui sendo. Não seria este corpo sem aqueles livros, aqueles autores, aquelas escolhas. E tive a sorte de subir os degraus daquela editora em espiral, de cumprimentar gatos e beber café em chávenas altas, de aprender ofícios e visões e sabores. Sinto muito perder o cantar de bicho que ainda agora nos trouxe monumental «Eneida». Quem sabe se não regressará rouxinol. Não terá sido a primeira vítima da crise, não será a última. Estranhamente, o acontecido e o anunciado devia aproximar uma certa raça de editores, na busca de territórios partilhados, de respostas comuns, de associações livres para além do nos possa dividir. Será caminho difícil de trilhar em terra árida de cidadania e em tempo que celebra a vilania escudada na mais patética celebração da individualidade. Mouriscas, Abrantes, quinta, 3 Setembro Tenho poucas histórias partilhadas, mas bastam-me duas para sentir a perda de Francisco Espadinha, isto além da admiração pela obra como editor, pautada por equilíbrios dignos de estudo, que soube criar sucessos com a ficção em português, não esqueceu a poesia e soube trazer para esta língua autores do mundo inteiro. Devo à Presença parte do que fui sendo. Lançámos em conjunto, ele o mais recente romance do Helder [Macedo], eu uma antologia da poesia do mesmo autor, atravessada pela óptica do Paulo [José Miranda]. A meio da função, com exacta descrição, veio dizer-me o quanto lhe agradava esta colaboração, sobretudo por ser rara no panorama nacional. Meses depois, aquando da falência da Urbanos, a distribuidora que então (mal) nos servia, foi um dos dois editores que me ofereceu ajuda (sendo o outro também da sua geração). Fiz mal em não ter aceitado. Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 6 Setembro Dizem que as Feiras do Livro estão a correr bem, mas não se tal será sinónimo de venda de livros ou de adesão de públicos. São mais os passeantes que os compradores, disso estou certo, e o interesse destes parece estar, antes do mais, nos preços. Saldos, eis o segredo. Vender pelo mínimo, em hora h, esmagando por completo essa ideia tontas de valor, de custo aceitável ou sustentável. Pouco importa o sustento, apenas o circo sanguinolento da produção: imprimir novidades a cada minuto, em ritmo estonteante que a só aproveita à facturação. A ninguém interessa enfrentar os modos de fazer, velhos e cegos. Por razões diversas, do preço à saúde, a abysmo não tem pavilhão próprio, sendo acolhida, em Lisboa e no Porto, pelo pavilhão da Afrontamento, afinal o da nossa distribuidora-armadilha. O ano passado, em Lisboa, fomos atirados para uma canto agradabilíssimo, de sombra e verde, mas arredado das rotas de circulação. No Porto foi pior: ficámos a comer o pó e o ruído das obras do pavilhão ex-Rosa Mota, no fim de uma rua que dava para um lago. Continuamos entre assombração e charco. Horta Seca, Lisboa, segunda, 7 Setembro O envelope vem duplamente fechado, com uns rectângulos de fita castanha a marcar o triângulo da abertura no verso, para que não se solte a não ser pela faca o que transporta desde o Oeste. (Uma impressão dourada e em relevo de uma águia de asas abertas sobre o globo diz de um tempo em que as viagens eram a grande paisagem, sentido para uma vida inteira). Extraído a golpe de rasgo, eis objecto feito de texto a envelopar caderno de corpos que se desdobram, múltiplos e uno: «como falharam cortar-me a cabeça talharam-me um corpo mais pequeno». O texto é circular como seiva e faz de corpo protector das folhas frágeis, cada uma tornada palco-tela de suavíssimo bege onde corpos inteiros e assexuados se deixam intervir pelo traço. Cada traço um rasgo, até que o líquido explode em dupla página, uma dupla sombra aguarelando-se em posição mais aberta, deitada e posta à disposição. «Para me suster neste corpo encolhido, sobre mim desdobrei-o, e ao fabricar um corpo duplamente canhestro consegui ficar de pé porque,». A vírgula, pequeno rasgo, diz volta ao início, «como falharam cortar-me». Uma simples frase, talvez poema de versos por montar, pele de figura, faz as vezes de manifesto. Ecoa: sobre mim desdobrei-o. Mudam-se assim os dias por força de uma ideia. Fulgurante que nem raio. A Isabel Baraona vai oferecendo obra assim, com cortante singeleza (detalhe algures na página). Os envelopes e os pincéis são lâminas de talhar corpos. À medida dos dias.
Indústrias culturais | FIC já está a aceitar candidaturas para prémios de excelência Hoje Macau - 9 Set 2020 Desde ontem que o Fundo das Indústrias Culturais está a aceitar candidaturas para a primeira edição dos “Prémios na área das indústrias culturais”. Serão atribuídos dez prémios com montantes pecuniários que variam entre as 100 mil e 500 mil patacas [dropcap]O[/dropcap] Fundo das Indústrias Culturais (FIC) começou ontem a aceitar as candidaturas para a primeira edição dos “Prémios na área das indústrias culturais”, destinados a empresas e projectos específicos que se tenham destacado neste segmento. Segundo um comunicado, as candidaturas podem ser apresentadas até ao dia 9 de Novembro, estando prevista a atribuição de dez prémios com montantes que variam entre as 100 mil e 500 mil patacas. Esta iniciativa inclui os “Prémios de excelência de empresas na área das indústrias culturais” para a área de design criativo e os “Prémios de excelência de projectos na área das indústrias culturais” para a área de exposições e espectáculos culturais. As recompensas destinadas às empresas “visam premiar [as que] tenham melhor capacidade nas operações financeiras e industrialização”. Já os prémios destinados a destacar o que de melhor se faz na área das exposições e espectáculos culturais “visam premiar os projectos desta área com maior potencialidade de desenvolvimento no mercado, conseguindo promover a marca de Macau”. Caberá à Comissão de Avaliação das Candidaturas a Prémios a análise de todas as propostas apresentadas, uma entidade é composta maioritariamente por deputados e académicos. A escolha da secretária para os Assuntos Sociais e Cultura, Elsie Ao Ieong U, recaiu sobre nomes como Ip Sio Kai, Wang Sang Man e Dominic Sio Chi Wai, entre outros. Os critérios usados para a avaliação das candidaturas passam pelo crescimento das empresas, a inovação e o seu impacto na sociedade. Quanto aos prémios que distinguem projectos, os critérios seguidos são “a originalidade e conteúdo cultural, o benefício económico, os efeitos no impulso da indústria e benefícios sociais, bem como os efeitos na construção da imagem da marca”. Presença de mercado Para se candidatarem a estes prémios, as empresas devem pertencer à área de design criativo e ser constituídas antes ou até 31 de Dezembro de 2016, com uma operação contínua entre os anos de 2017 e 2019. Os candidatos-alvo dos “Prémios de excelência de projectos” da área de exposições e espectáculos culturais incluem empresas, personalidades ou associações, cujos projectos devem ser os mesmos espectáculos, realizados pelo menos cinco vezes entre os anos de 2017 e 2019, com a venda de bilhetes ao público. O FIC irá atribuir até dez prémios, incluindo uma medalha de ouro, prata e bronze do Prémio da Flor de Lótus, com valores que variam entre as 200 mil e 500 mil patacas. Serão atribuídos sete prémios de distinção com o prémio pecuniário individual de 100 mil patacas. Os “Prémios de excelência de projectos” dividem-se em grupos de empresas, personalidades e associações, sendo atribuída uma medalha de ouro, prata e bronze do Prémio da Flor de Nenúfar a cada grupo, com os valores pecuniários a variar também entre as 200 mil e 500 mil patacas. Haverá ainda sete prémios de distinção em que será atribuído a cada um o valor de 100 mil patacas. O número máximo de prémios por cada grupo é de 10.
Ministério Público | Novo delegado vindo de Portugal tomou ontem posse Salomé Fernandes - 9 Set 2020 O novo delegado do Procurador do Ministério Público, Jorge Duarte, defende que os sistemas jurídicos estão sempre em construção e que devem ter capacidade para aceitar críticas justas dos cidadãos e melhorarem. Como a sociedade muda, assim devem mudar as leis e os ordenamentos jurídicos [dropcap]J[/dropcap]orge Duarte tomou ontem posse como delegado do Procurador do Ministério Público (MP). À margem da cerimónia, frisou o papel das críticas dos cidadãos na evolução do sistema de justiça. O magistrado foi nomeado por dois anos, a partir do dia 1 de Setembro. “No dia em que um sistema jurídico, qualquer que ele seja, diga ‘nós somos fantásticos, funcionamos tão bem que não sentimos pressão’, nesse dia esse sistema de justiça está fechado em si mesmo e não está ao serviço dos cidadãos. É bom que os cidadãos critiquem, objectiva e justamente, e que o sistema tenha capacidade de aceitar essa crítica quando ela é justa e melhorar em função [dela]. Essa pressão tem de existir”, declarou. Na sua óptica, a pressão faz parte do progresso. O magistrado reconheceu que vai sentir uma pressão acrescida em Macau, “pelo menos nos primeiros dias”, mas que “isso é excelente”. Durante o período de adaptação espera perceber não só como o exercício legislativo funciona na prática, mas também como as pessoas se relacionam no tribunal, por exemplo. “Os sistemas jurídicos, nunca podem considerar-se perfeitos e acabados. São sempre uma obra em construção. Porque a sociedade muda, a sociedade evolui, e as leis e os sistemas jurídicos, se estão ao serviço das populações têm de acompanhar essas mudanças”, explicou. Jorge Duarte acrescentou ainda desejar “para a RAEM, para toda a China, para Portugal, e o resto dos sítios onde a humanidade vive sob um sistema jurídico, que esses sistemas estejam em permanente evolução porque isso é um sinal que estão realmente preocupados em servir os respectivos cidadãos”. Experiência de vida O novo delegado fez licenciatura e mestrado em Direito, na Universidade Católica Portuguesa. Jorge Duarte desempenhou funções de auditor de justiça no Centro de Estudos Judiciários desde 1991, foi nomeado magistrado auxiliar na Comarca do Porto em 1993 e Procurador da República em 2009. Do seu currículo consta também a coordenação do círculo judicial de Vila Nova de Gaia, bem como da formação nos tribunais na região Norte, do Centro de Estudos Judiciários. Sobre a necessidade de experiência profissional para a candidatura ao curso e estágio de formação para ingresso na magistratura em Macau, disse que tem uma “opinião ambivalente”. Considera que se podem perder alguns talentos, mas que há a vantagem de ter pessoal com experiência de vida. “Alguém que sabe muito Direito, é excelente a ler as leis, mas não sabe perceber a realidade das pessoas que estão à volta dele é um bom técnico, pode ser um bom jurista, mas é capaz de não ser um grande magistrado”, observou. Jorge Duarte chegou a Macau a 23 de Agosto e cumpriu os 14 dias de quarentena. Separação de poderes “Acho que a Lei Básica é clara quando diz que as instituições de Macau são lideradas pelo Executivo. É isso que está na Lei Básica e é isso que tem sido feito. É o Executivo que tem o papel preponderante, embora nós queremos acreditar que os tribunais são independentes”, referiu o presidente da Associação dos Advogados à margem da cerimónia, sobre a separação de poderes em Macau. No entanto, Jorge Neto Valente recordou um presidente do Supremo Tribunal Popular que “exortou os magistrados a apoiarem o Governo”, em Macau. “Portanto, com certeza na maneira de ver dele não serão tão independentes assim”, acrescentou.
Jogo | Receitas diárias de Setembro duplicam em Agosto Pedro Arede - 9 Set 2020 As receitas brutas de jogo dos primeiros seis dias de Setembro praticamente duplicaram a média diária do mês de Agosto. Segundo a Bernstein, a subida de 94 por cento em termos mensais, resulta do aumento de turistas que chegaram depois da retoma de emissão de vistos de Guangdong [dropcap]S[/dropcap]ão os primeiros sinais positivos de que os efeitos da retoma de emissão de vistos podem vir a ser sentidos de forma significativa no final do mês. De acordo com dados divulgados na segunda-feira por analistas da Sanford C. Bernstein Ltd e citados pelo portal GGR Asia, as receitas médias diárias dos casinos de Macau nos primeiros seis dias de Setembro são praticamente o dobro do registo de todo o mês de Agosto. Detalhando, de 1 a 6 de Setembro, a receita bruta diária foi em média de 83 milhões de patacas, quando a média diária do mês de Agosto foi de 43 milhões de patacas, representando uma subida de 94 por cento, segundo a Bernstein. “A média diária, comparada com o mesmo mês do ano passado, caiu 89 por cento, mas subiu 94 por cento em relação a Agosto de 2020”, constatam os analistas. A consultora norte-americana estima ainda que, no final de Setembro, as receitas brutas dos casinos de Macau registem perdas anuais acima dos 80 por cento, dado que “os valores semanais estão cada vez melhores” devido ao aumento da emissão de vistos a partir da província de Guangdong. De notar que o impacto da retoma de emissão de vistos turísticos, individuais e de grupo, a 12 de Agosto desde Zhuhai e a 26 de Agosto desde a província de Guangdong, não se reflectiu nas receitas de jogo do mês passado, tal como previram alguns especialistas do sector. Recorde-se ainda que a China planeia autorizar a emissão de vistos turísticos para Macau a todo o país, a partir de 23 de Setembro. No entanto, o impacto começa agora a ser visível já que só no dia 3 de Setembro, o número de visitantes a entrar em Macau foi de 14.600. Isto, quando no início de Agosto, o número de médio de visitantes foi de aproximadamente 5.000. “Com o calendário da retoma de emissão de vistos em marcha, acreditamos que os impulsionadores da recuperação assentem agora nos níveis de confiança dos clientes para viajar e gastar em Macau, na abertura das fronteiras com Hong Kong e no aumento da frequência de voos entre o Interior da China e os aeroportos de Guangdong, Hong Kong e Macau, para facilitar as viagens de longo curso”, apontam os analistas da Bernstein, Vitaly Umansky, Tianjiao Yu e Kelsey Zhu, citados pelo GGR Asia. A pouco e pouco Recorde-se que Agosto foi o terceiro pior mês de 2020 para a indústria do jogo, com as receitas brutas dos casinos a caírem 94,5 por cento relativamente ao mesmo período do ano passado, totalizando cerca de 1.330 milhões de patacas. Isto, dado que em Agosto de 2019, as receitas brutas mensais foram de 24.262 milhões. Na altura do anúncio da retoma de emissões de vistos no início de Agosto, analistas citados pela agência Lusa avisaram que, apesar de ser “uma grande notícia” para o sector, a recuperação seria demorada.