O Mercador de Auschwitz

[dropcap]T[/dropcap]odos assistimos a um recrudescer ficcional do Campo de Extermínio mais doloroso que a mente humana pôde alguma vez conceber, que o Gólgota ao pé dele fora uma colina amena. Em grandes destaques o insólito mantém-se com narrativas e ousadas manobras de “diversão” para os embotados leitores que morrem de fausto fastio numa sociedade onde o capital das contas púbicas e públicas, acentuam a desgraça de leituras improváveis com uma gritante ausência de vergonha. Misturado com isto ainda há muito “ligth” muito Hitler, que agora a sua obra maior e única está por todos os escaparates, disparates, dispositores, editores… Na visão paradisíaca deste amontoado de «super-lixo» logo nos apercebemos das graves estruturas mentais, este anacronismo existe na lógica da usura que frouxamente interpreta riscas, meninos a brincar no dito Campo e pais mártires que tudo fazem para que não vejam onde estão: salta de lá muito improvável, como criancinhas espreitando por arames farpados e meninos bem-dispostos com tão insólitas amizades. Tudo isto à custa do terror, da mágoa calada (as grandes dores assim se manifestam) como se estivéssemos enlouquecidos, ou, pior ainda, incapazes de saber dos limites das coisas. E estamos em directo para o Mundo!

Por vezes dá que pensar onde estamos metidos. Quem é esta gente que vive a nossa contemporaneidade, os nossos concidadãos aqui tão perto, o nível de suporte mental prestativo dos ensinos, as teorias, e a grande questão disto tudo, a usura.- Que mercadores são estes que ao lado Shylock, tão poético… agiota, fino como brasas ardentes, contemplado na obra como a vítima de uma voraz sociedade que catalogando e catolizando, mais não fez que dar corpo a uma ganância grosseira, oprimente e de pacotilha?! O curso da História também se inverte produzindo a obscenidade da mais valia à custa de uma época e de um local que devia não ser mencionado em vão, quanto mais alarvemente usado para fins comerciais! O oportunismo das sociedades “felizes” que viveram ao lado de um povo que teima em desconhecer, ou se o fez, foi apenas para confiscar-lhe os bens que as teorias mais tortuosas impulsionaram para sossego das inconcebíveis barbáries.

O ouro nazi que andou de Banco em Banco por esta Europa fora produzindo tijolos em quilate, foi, por insuficiência mental de muitos nacionais dos países, tido como uma arte mágica de alguns dos seus líderes, e os pobres povos a eles oravam ainda como se fossem Midas. Era uma espécie de edição sobre Auschwitz, mas sem nada para dizer, tudo para arrecadar. Seja como for, este foi um massacre que ainda rende! O mais tenebroso é o inqualificável despudor que nos ficou de uma supremacia qualquer que ousa tratar este tema para fins comercias e não haja ninguém que repare que estamos muito perto do inenarrável.

O sombrio instante de tempo que nos é dado viver, chega-nos também por aqui, que até aqui, fôramos naturalmente silenciados por um mecanismo de respeito e dor que tal acontecimento nos trouxera. Se um povo, cinematograficamente usou e abusou de o mostrar, dar a conhecer, transfigurar, só eles o puderam ter feito com toda a legitimidade, aos outros, impõem-se-lhes reservas. Os becos sombrios de Veneza ainda têm dentro a alma de Shylock que tem guardadas as suas mágoas e rancores, que perdoar é a última coisa a ser feita perante aqueles que pior que nos quererem mal, desdenharam dos nossos poderes e da ajuda que lhes foi dada, e perante assassinos não devemos ter nenhuma vontade de o fazer. A complexidade psíquica é um atributo de Shakespeare nesta sua obra que a suporta nos tons evanescentes de uma poeticidade sem par, e seria muito mau para o usufrutuário não ter a noção da sua falta no meio de um clima de falsos espelhos.

Querem parecer maiores e melhores à custa dos excluídos e dos que foram assassinados.- Pois não o serão!- Este é também um tema de integração e de reposição da justiça, da falsa riqueza insuflada e do ardil dos canibais. É um tema de que não desejei falar, e só a sobreposição alarmante de uma realidade me permite fazê-lo. Seremos ambivalentes no tabuleiro das estratégias, mas deixaremos de o ser quando se nos depara o interdito. -Também não gostaria que se estivesse a ganhar fama e proveito com as cinza dos meus avós, dos meus filhos, dos meus amigos- Que a usura não pode ser tanta que faça de Shylock um aguadeiro ao lado destes embustes por onde passou uma religião que tudo fez para mostrar também o que não tinha.

Para Auschwitz também não irei. Mas quem quiser ser transportado poderá experimentar a “lúdica” equivalência das suas narrativas em tratados de abjecção consentida. Na vertente mais sinistra há ainda a assinalar a voz que entoa, a tendência para negação do Holocausto, o que provavelmente incita em acabá-lo de maneira mais ficcional. E com duas vertentes probabilísticas estas coisas ainda podem indicar o mote àquelas que haverão de resultar em laboriosas tentativas editoriais. Mercadores e mercadoria falhos de perspectiva, pois que em pouco tempo recuámos depressa: mas, como depressa e bem há pouco quem, acontece que as guelras deixadas há muito num mar de antanho começam a manifestar-se. Em Veneza é assim, um Dilúvio a puxa para baixo! E o ar do mundo é o que agora se vê.

Posto isto, desejo boas leituras, que afinal talvez as coisas até nem sejam tão más como as “pintaram” que pintar certas coisas é descrença, e compor outras, um amontoado de lixo para as enciclopédias do esquecimento, talvez dos livros em chamas. Estamos em contramão para o mais improvável Humano. Se dele não ficar nada, ainda assim, a esperança de que venha uma máquina insuflada de alma, e se converta num ser em novas formas. Parece que vem ainda qualquer coisa do espaço a reboque de uma queda prometida, que seja em cima das cabeças humanas e que os faça esquecer tudo, desde a subida a bípede que produziu uma continuada dor de costas. Se nada houver para vender e para transacionar, a alma também já não é passível de ser adquirida pelo Diabo, que cansado disto tudo, foi pregar para freguesias mais sedutoras da Galáxia.

Numa mensagem aos Vindouros acrescentemos que tudo não passou de ficção, e que a realidade, essa, foi como os segredos, não conseguimos contá-la.

17 Nov 2020

Assalto ao “Reichstag”

[dropcap]B[/dropcap]erlim. 30 de Agosto de 2020. Uma manifestação contra as medidas sanitárias impostas pela Covid-19 reuniu facções da Afd (Alternativa para a Alemanha) de extrema-direita. “Horror – escalada de violência nas escadas do Reichstag” lê-se no site do canal ARD. Na página do FB da AfD, lê-se, porém: “Assalto ao parlamento (Sturm auf den Reichstag)”. O título no site da ARD foi, entretanto, corrigido para “Ataque ao coração da nossa democracia (Angriff auf das Herz unserer Demokratie)”. Um eufemismo tão grave não podia passar despercebido.

Há uma invisibilidade mais difícil de detectar do que todas as outras. É quando tudo se faz às claras. Os prestidigitadores, os mágicos, os desportistas exímios e como é óbvio os políticos mais hábeis são os grandes mestres da simulação e da camuflagem.

A finta consiste em dar a entender uma acção ou um movimento com um sentido contrário do que vai acontecer. Para simularmos é preciso sermos capazes de fazer crer ao outro que a nossa intenção está absolutamente expressa na nossa acção, no nosso movimento, na nossa palavra. O desportista finge que vai para um lado e vai para outro, que sobe e afinal desce. Dá a sensação que vai avançar e recua ou que vai recuar e avança. Adia até ao limite ou antecipa-se. O pugilista finge bater no rosto do adversário com uma mão para bater no tronco com a outra. O nosso olhar absorvido pelas mãos do mágico não tem folga para percebermos como tira o coelho da cartola. O que acontece na simulação, na finta, é trabalhado tecnicamente. Os diálogos de Platão desmascaram a sofística por ser isso mesmo que faz: prestidigitação. Mas é na vida que a dissimulação se forma. Esperamos que se deem coisas que não acontecem. Há outras que, contra a expectativa, acontecem mesmo. O próprio modo como as coisas se dão é diferente do modo como esperávamos que fossem. Há um jogo complexo entre o que achamos que está visível no horizonte e depois o que vem a acontecer. A invisibilidade mais difícil de detectar é a que se dá às claras. Podemos não querer acreditar no que estamos a ver, quando é isso mesmo que está a acontecer. O elemento fundamental da simulação é o tempo. O futuro iminente cria a pressão necessária para termos uma percepção errada do que está a acontecer. Tudo pode mudar para ficar na mesma. Tudo pode parecer que está na mesma e existe em metamorfose.

A verdade engana. O povo sabe do que está a falar. Um povo é levado pela verdade, sobretudo pelo poder eficaz com que as verdades são ditas. Elevamos quem nos diz as verdades mesmo que com a aura da impopularidade. Mas quais são as verdades que sempre foram ditas pelos demagogos.

A história repete-se quando o povo baixa a guarda. A frustração da desilusão faz baixar a guarda. Ergue-se o ideal de beleza, de triunfo, da juventude, e também o que é anómalo e anormal, o que não cabe dentro desses parâmetros. Nesse ideal de beleza, triunfo e juventude, da “beautiful people”, “jet set” internacional dos célebres e famosos desta vida, não cabem, por exemplo, os judeus ou os homossexuais (Otto Weininger, George L. Mosse), como se pode compreender pela história recente da Europa nem os negros em nenhum lado do ocidente. Mas não são apenas os descendentes da colonização os únicos “apetrechos dotados de alma” – na definição de escravos de Aristóteles – podem ser crianças, mulheres, todos aqueles a quem lembramos sempre que vieram à existência pela porta dos fundos.

Os migrantes para a extrema-direita não chegam do norte de África. Existem já nos seus países. São até cidadãos nacionais desses países. Tiveram foi o azar de não pertencerem à étnia da maioria, terem uma pele de cor diferente, outra religião e, quando não, orientações sexuais diferentes, a idade errada. A vida não é para miúdos nem para velhos.

O discurso da transparência não usará de subterfúgios. Dirá a verdade. Não poupará palavras na denúncia. Fundará um partido para defesa da “nova ordem” das coisas.

Quem manda no partido pode ser um ressentido ou não. Sabe, contudo, para quem fala. Apela ao ressentimento de que todos nós somos portadores e elege um bode expiatório. É que estar vivo é sentir-se ressentido, porque se queremos ter a possibilidade de ter tudo a que temos direito, por outro lado, houve sempre alguém que não nos deixou ter sucesso. Para o homem do ressentimento a força de bloqueio não é apenas quem detém privilégios, a gente bela, as pessoas de sucesso, os que triunfaram. São os outros como eu que estão a mais. O paradoxo é que todos sem excepção estão a mais se não forem os meus. Os outros não têm direito a nada.

O ressentimento pode adormecer mas é acordado. Os poderosos sempre souberam acicatar os ânimos. A Krypteia, a polícia secreta espartana, actuava como rito iniciático para os jovens. Abatiam hilotas (a casta dos escravos que trabalhavam a terra) em “raides”. Desde sempre soubemos espalhar o terror. Não pensava Calígula “odeiem-me à vontade desde que me temam (oderint dum metuant)”?

Às claras, alastram pela Europa, Portugal não é excepção, manifestações de apego à tradição e ao caracter puro, enraizado das etnias. A alemã AfD (Alternative für Deutschland) voltou a dar sentido às “Mahnwachen (vigílias)”, numa manipulação clara do descontentamento da população contra as medidas sanitárias provocadas pela Covid-19. As manifestações “contra” têm um sentido completamente novo, porque procuram negar a evidência da presença de um mal. Negar as medidas contra o Coronavírus é negar a existência do vírus, como negar as manifestações contra o racismo é negar o racismo. As manifestações destes partidos são anti-manifestações. Não são afirmações da realidade. São formas de perpetuação do escondimento da realidade.

Os novos demagogos não têm, como Giges, anéis que os tornam invisíveis. Não precisam deles já. Dizem tudo às claras. Quando o mal é dito às claras, já não estamos perante uma afirmação. Estamos perante uma ameaça, e há ameaças que devemos levar a sério.

4 Set 2020

Os dias não podem continuar

[dropcap]N[/dropcap]athalie Delacroix já sabia muito bem que a tristeza é o céu que se avista da terra quando escreveu o seu romance «Estes Dias Não Podem Continuar». Com apenas vinte e sete anos viu os nazis invadirem a França, a sua mãe morrer de apoplexia e nunca tivera pai. Para piorar as coisas, desde a adolescência que sempre gostara de mulheres que nunca gostaram dela. No seu livro, escreve de modo mais universal: «Não é novidade nenhuma gostarmos de quem não gosta de nós. Foi assim que viemos ao mundo.

A história do mundo é a história de alguém que não de outro. Foi assim com Eva e Adão, embora poeticamente tenham falado de uma cobra, e foi assim com deus e os homens, embora estupidamente tenham falado de livre arbítrio.» Embora se trate de um livro político, no sentido em que fala da ocupação alemã em França, de uma mudança impensável no mundo – «Só faltava agora começarmos a não podermos sorrir uns para os outros, a não nos podermos abraçar. O medo não pode ser a coleira com que alguém nos leva à rua […]» –, é acima de tudo um livro que fala da impossibilidade do humano ser feliz. Escreve à página 56: «Há apenas três modos de se ser escritor e o resto são subdivisões: aqueles que escrevem porque gostam muito de si mesmos; aqueles que escrevem porque se detestam; e aqueles que escrevem em busca de uma redenção de não gostarem de si. Os primeiros são alucinados, os segundos realistas e os terceiros ingénuos. Infelizmente suspeito fazer parte deste último grupo.» Nathalie, como é sabido, morreria numa rua de Par Há uma passagem muito conhecida deste livro de Nathalie – como ela é nomeada em França –, que Beauvoir costumava citar: «Será que de olhos fechados e coração aberto seríamos capazes de identificar o sexo de um beijo bom que nos fosse dado? Será que de olhos fechados e coração aberto seríamos capazes de identificar a cor da pele cujo toque nos extasiasse? Será que de olhos fechados e coração aberto seríamos capazes de identificar a religião de alguém que dissesse “amo-te”? Será que de olhos fechados e coração aberto seríamos realmente capazes de viver?»

Não se entende bem porque um autor passa a não ser lido, esquecido. E menos ainda quando ele tem tudo o que precisamos, não apenas o nosso tempo, isso é evidente, mas também os nossos corações. Nathalie Delacroix tem tudo o que precisamos de ouvir, mas também tem muito do que não gostamos e esse é o problema, principalmente nos dias de hoje onde tudo precisa «ser sexy» para ser escutado ou visto. Nathalie não fala apenas dos escritores de modo rude e desencantado, fala também de nós, ao falar dela. No seu livro acerca de Nathalie, Beauvoir escreve uma passagem das Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, «A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento da linguagem.», à qual Beauvoir acrescenta: «e assim também a vida de Nathalie.»

«Os Dias Não Podem Continuar» é uma espécie de auto-ficção em que a autora proclama não apenas o fim do mundo – evidente ao tempo da escrita com o nazismo e o comunismo –, mas a completa ilusão que temos acerca do humano. Escreve: «Como não quer saber quem é, por medo, por suspeitar que há um mal terrível que o habita, inventa tudo o que pode para esquecer não apenas a sua vida, mas o próprio mundo. Os humanos os futuros dinossauros.»

Há páginas do livro em que vemos a rapariga que Nathalie amava: «Jacqueline trazia sempre os seus olhos azuis a combinar com os cabelos loiros caídos sobres os ombros e sobre a testa. Abria um sorriso quando me via e dizia com aquela sua voz doce, que não existe: “Olá, bela!” E por momentos o mundo deixava de ser o que era. Eu mesma deixava de ser o que era para ser o que via nos seus olhos, no seu rosto, no seu corpo. O mundo transformava-se através da beleza diante de mim. Só se vê o mundo se o transformarmos. E, nesse tempo já o sabia, o amor é o grande transformador.» Mas não nos enganemos. O amor, embora transformador, é raro e não dura. Escreve: «Jacqueline durou o tempo de um fósforo.»

Nathalie esforçava-se por não se enganar a si mesma, isso perpassa por todo o livro e é difícil para nós leitores estarmos constantemente a lembrarmo-nos de quem tentamos não tentamos procurar, isto é, de nós. Leia-se esta passagem à página 134: «E seria possível que tentássemos de verdade ver quem somos, se não investigamos com seriedade as palavras que usamos, se não sabemos o que elas querem ou podem querer dizer? Que queremos dizer quando dizermos “amor”? Que queremos dizer quando dizemos “detesto”? Que queremos dizer quando dizemos “conheço bem”? E não me refiro a falar com os outros, que outro dê uma conotação diferente da minha, refiro-me a mim mesma, a quando penso para comigo acerca do que penso.» Como também outro filósofo escreveu acerca dela, E. M. Cioran: «Nathalie aproximava-se de Kierkegaard, mas sem Deus. Aproximava-se de si mesma sem Deus e consciente de não saber quem era.

Não procurava sequer, como Kierkegaard, ser honesto, procurava a solidão perfeita. Que conseguiu nas páginas do seu livro.»

«Estes Dias Não Podem Continuar» não é apenas um livro sobre a ocupação nazi, é fundamentalmente um livro sobre a ocupação do humano, pela indiferença, pela incultura, pelo desconhecimento e, desconfia-se, pelo contínuo crescimento desta ocupação que, contrariamente à nazi, parece não ter fim.

26 Ago 2020

Efeméride | Paris foi libertada da ocupação nazi há 75 anos

Domingo celebrou-se o 75º aniversário da entrada triunfante das forças aliadas em Paris e da libertação da capital francesa. Depois de quase uma semana de batalha sanguinária, que custou a vida a 1600 membros da resistência francesa, 130 soldados da 2.ª divisão blindada e mais de 3 mil militares germânicos, terminava a ocupação de mais de quatro anos da cidade das luzes. Entre os libertadores de Paris estiveram portugueses

 

Com agências

[dropcap]P[/dropcap]aris ultrajada! Paris destruída! Paris martirizada! Mas Paris libertada! Libertada por si mesma, libertada pelo seu povo, em sintonia com o exército francês, com o apoio e a corroboração de toda a França, da França que luta, da única França, da verdadeira França, da eterna França!” As palavras do General Charles de Gaulle, pronunciadas na tarde de 25 de Agosto de 1944 no Hôtel de Ville marcaram o fim de uma Era de trevas na cidade das luzes. Além disso, o militar e futuro estadista francês puxou para o exército francês e forças aliadas o mérito da libertação de Paris, minimizando os esforços dos resistentes que contavam nas suas fileiras muitos combatentes comunistas.

No dia seguinte, as forças aliadas entraram triunfantes e desfilaram pelos Campos Elísios, colocando ponto final a mais de quatro anos de ocupação nazi. Ontem marcou-se o 75.º aniversário desse dia que anunciava a queda do regime de Adolf Hitler.

Entre os libertadores da cidade das luzes, incluídos na coluna de republicanos espanhóis que emprestaram músculo à resistência, estiveram alguns portugueses. Aliás, presume-se que um livro sobre os portugueses que participaram na resistência francesa possibilite a sua homenagem formal em Paris, segundo um vereador lusodescendente na câmara, que espera ver a iniciativa alargada a outras cidades francesas.

“Precisamos de fazer uma verificação nos nossos serviços aqui e essa é uma prioridade para nós. Já estamos a homenagear os espanhóis que participaram na ‘La Nueve’ por já ter sido amplamente investigado. Depois de termos a absoluta certeza do nível de participação e os nomes de quem participou, partiremos para a homenagem”, disse Hermano Sanches Ruivo, vereador na Câmara de Paris, em declarações à agência Lusa.

Da sombra à luz

O livro em causa é “A sombra dos Heróis – A História Desconhecida dos Resistentes Portugueses que Lutaram contra o Nazismo”, da autoria do jornalista José Manuel Barata-Feyo, editado este ano pelo Clube do Autor em Portugal e no qual são conhecidos os nomes de quase 300 portugueses que participaram activamente na resistência francesa.

“Não houve, por parte da França, uma vontade deliberada de esquecer os portugueses. Cada um, individualmente viu reconhecidos os seus méritos. E os portugueses nunca estiveram juntos numa associação”, explicou José Manuel Barata-Feyo quando questionado pela falta de reconhecimento desta participação, embora o autor admita haver “um trauma” sobre este período na sociedade francesa.

Nos últimos anos, a participação de resistentes de outras nacionalidades na resistência francesa tem vindo a ser reconhecida formalmente pela França, com o Presidente Macron a afirmar no 75.º aniversário do desembarque de tropa na região de Provence que muitas cidades francesas deveriam ter nomes de ruas de soldados africanos que lutaram lado a lado com os soldados livres franceses. “Os nomes, as caras e as vidas destes heróis de África deviam fazer parte das nossas vidas de cidadãos livres porque, sem eles, não o seríamos”, disse Emmanuel Macron no início deste mês.

Já o papel dos espanhóis, especificamente da companhia “La Nueve”, que chegou a Paris para apoiar a libertação da cidade mesmo antes das tropas francesas, foi negligenciada até há poucos anos. “Durante muitos anos não se falou quase nos espanhóis, que foram muito importantes, e falou-se pouco do número importantíssimo de soldados africanos, como argelinos e marroquinos, que participaram na guerra a partir de 1943. A imagem que a França queria dar é que foram os próprios franceses que combateram e libertaram o país da Alemanha e que não tinham sido estrangeiros, como os espanhóis”, disse Vítor Pereira, professor de História Contemporânea na Universidade Pau e investigador da imigração portuguesa em França.

Mesmo a “La Nueve”, segundo José Manuel Barata-Feyo, tinha integrantes portugueses, que se apresentavam com nacionalidade espanhola por já terem estado ao serviço do exército republicano na Guerra Civil espanhola.

Questão de identidade

Apesar da participação confirmada dos 253 casos de homens e mulheres oriundos de Portugal que combateram o nazismo em território francês durante a Segunda Guerra Mundial, revelados pelo livro de José Manuel Barata-Feyo, muitos fizeram-no na província e não em Paris, onde há apenas alguns portugueses identificados.

O número de casos continua a crescer depois da publicação do livro, já que o autor continua a descobrir documentos que dão conta de mais participações. “Havia uma imigração portuguesa em França, até na região parisiense, mas os portugueses que participaram na resistência viviam muito mais na província, onde toda a gente se conhecia bem, já que na resistência as pessoas precisavam confiar umas nas outras”, indicou Vítor Pereira.

Em França, a possível homenagem deverá começar com uma conferência sobre o livro “A sombra dos Heróis”, a sua tradução em francês e outras iniciativas até ao final de 2019. Hermano Sanches Ruivo espera que outras cidades também procedam ao reconhecimento destes integrantes da resistência francesa que, muitas vezes, já viviam em França e continuaram as suas vidas no país após a II Guerra Mundial.

O vereador lembrou o caso de Aristides de Sousa Mendes, que, sendo cônsul em Bordéus, salvou a vida de franceses por todo o país.

José Manuel Barata-Feyo considera que também seria adequada uma homenagem em Portugal: “Morreram, pelo menos, uma centena de portugueses às mãos das milícias de extrema direita francesa e da Gestapo e sobre esses nós não dizemos nada. Temos combatentes pela liberdade de primeira, que lutaram contra Salazar e de segunda que lutaram contra nazis. E isso não tem lógica”.

O salvador de Paris

Após a queda da ocupação, a maioria dos 20 mil soldados alemães renderam-se ou fugiram de Paris antes da entrada das tropas do General Leclerc pela cidade. Nessa tarde, a mais alta patente das forças armadas alemãs em Paris, o General Dietrich von Choltitz, foi preso e forçado a assinar um documento que oficializava a rendição.

Choltitz confessou às forças francesas que havia sido instruído por Hitler para transformar Paris num monte de entulho antes que caísse nas mãos dos aliados. A ordem foi recusada, mas a execução esteve em marcha. Debaixo das muitas pontes da cidade e junto aos principais e mais emblemáticos monumentos parisienses foram colocadas cargas explosivas que nunca chegaram a ser detonadas. Aparentemente, Dietrich von Choltitz não desejava ficar para a História como o homem responsável pela destruição de uma das mais amadas cidades europeias. Aliás, nas memórias que escreveu em 1951, o ex-militar alemão confessou que à altura duvidava da sanidade mental do Führer. “Daquela vez desobedeci, porque achava que Hitler estava louco”, escreveu.

Apelidado por muitos como o salvador de Paris, com a fama de ser mais um militar de carreira do que um fervoroso nazi, uma vez que lutou pelo Exército Real da Saxónia na Primeira Guerra Mundial, Choltitz continua a ser uma figura que divide opiniões.

Numa entrevista, em 2004, ao jornal The Telegraph, o seu filho Timo referiu que “se ele tivesse salvo apenas a Notre Dame já seria razão suficiente para merecer a gratidão francesa. A França recusa oficialmente até hoje aceitar tal facto e insiste na tese de que a resistência libertou Paris com duas mil espingardas contra o exército alemão. Para o Governo francês, o meu pai foi um porco, mas a elite intelectual francesa sabe o que ele fez por eles. Tenho muito orgulho da sua memória.” A capital francesa foi libertada, após quatro anos de ocupação nazi, desde 14 de Junho de 1940.

Sarar as feridas

A população de Paris estava esfomeada, subnutrida, apesar da cidade não estar reduzida a uma pilha de destroços, como Hitler ordenara. Mais de 43 mil judeus parisienses, perto de metade da população judaica da cidade, foram deportados para campos de concentração, onde se estima que 34 mil tenham morrido.

Nos meses que se seguiram à libertação da cidade, 10 mil parisienses foram julgados por colaboração com os nazis, oito mil foram condenados e 116 executados.

A 29 de Abril e 13 de Maio de 1945, foram realizadas as primeiras eleições locais do pós-guerra, nas quais foi permitido o voto a mulheres.

O General De Gaulle permaneceu ao leme dos destinos políticos franceses durante dois governos provisórios até 1946, quando se demitiu, argumentando desentendimentos constitucionais. De Gaulle viria a ser eleito o quinto Presidente da República, cargo que ocupou entre 1958 e 1969.

O outro protagonista entre as altas patentes da libertação de Paris, o General von Choltitz, permaneceu preso durante o resto da guerra, primeiro em Londres e mais tarde no Mississippi. Não chegou a ser acusado de qualquer crime, foi libertado em 1947 e morreu em 1966 em Baden-Baden, na Alemanha, devido a um enfisema.

27 Ago 2019

FBI devolve a família judia pintura roubada há 75 anos pelos nazis em França

[dropcap]O[/dropcap] FBI devolveu esta segunda-feira uma pintura do holandês Salomon Koninck aos seus legítimos proprietários, uma família francesa judia, 75 anos após ter sido roubada pelos nazis em França na Segunda Guerra Mundial.

A peça, “Um filósofo afiando a sua pena”, pintado por Koninck em 1639, foi entregue à família Schloss, numa cerimónia realizada no consulado francês em Nova Iorque, Estados Unidos, com a presença do ministro dos Negócios Estrangeiros daquele país europeu, Jean-Yves Drian.

“Foi roubado no nosso território pela Gestapo e levado para Munique com a cumplicidade de colaboradores franceses, em 1943, e tinha sido perdido o seu rasto”, explicou Drian, que estava acompanhado pelo procurador do distrito sul de Nova Iorque, Geoffrey Berman, e um representante do gabinete de investigação criminal do FBI em Washington, Michael Driscoll.

“Finalmente que se reencontrou com os seus donos, os herdeiros de Adolphe Schloss [um coleccionador de arte francesa] e os seus cinco filhos”, acrescentou o ministro.

Presentes na cerimónia estavam também os bisnetos de Schloss, Laurent e Michel Vernay, assim como a sua nora, Eliane Demartini, que descreveu o regresso da pintura como uma “pequena vitória” e lembrou que ainda há muitas peças de arte que foram roubadas, mas que continuam desaparecidas.

O governante francês destacou que o seu país prossegue esforços para acelerar a identificação e restituição de obras roubadas durante o regime de Hitler, e observou que mais de dois terços das 100.000 peças usurpadas pelos nazis foram encontradas logo após o fim do conflito.

“Um filósofo afiando a sua pena” foi encontrado em 2017, quando o seu então proprietário, o chileno Renate Stein, contactou a casa de leilões Christie com a intenção de o vender em Nova Iorque, depois da sua família o ter adquirido na Alemanha, nos anos 50.

Drian também enfatizou o actual aumento do anti-semitismo e frisou os esforços do seu Governo para o combater, denunciando a falta de acção por parte dos Estados Unidos.

“Algo similar deve ser feito em território norte-americano, onde muita nostalgia do nazismo se esconde por detrás da Primeira Emenda para desencadear a propaganda do ódio”, sublinhou.

Por sua parte, o procurador do distrito sul de Nova Iorque observou que o que aconteceu com a pilhagem de obras de arte que se encontravam nas mãos dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial “não foi apenas injusto, mas desumano”.

“Temos um imperativo moral de agir, que é o que estamos a fazer agora e continuaremos a fazer”, acrescentou.

Por sua parte, o representante do FBI explicou as árduas investigações que têm ser realizadas neste tipo de casos para demonstrar a origem das peças, e ressaltou a importância vital da colaboração das casas de leilões na identificação e comunicação de peças roubadas.

2 Abr 2019

Trevos e trevas

[dropcap]D[/dropcap]e ora em diante deponho os trevos e quero as trevas, género perfeito. O plural da escuridão é mais que breu, e, ao afirmá-lo, ainda o faço num dia esplêndido de quase Primavera. Thomas Bernhard «Trevas» precisamente. Tão difícil mencioná-lo! Ele anda no entanto por todas as Instituições de Ensino, em palestras, colóquios, debates, e parece a cada abordagem, sempre e mais inacessível. As leituras, essas, são como os feitiços, podem subjugar-nos e por isso temos de ser vigilantes, ao revelar (velar pela segunda vez) tomamos consciência que a forte probabilidade de uma paralisação mundial possa ser feita pela leitura, feita por mentes audazes que testam a frágil inteligência humana tão repleta de anseios que pode muito bem constituir um vasto plasma para testes radicais.

Na vasta gama dos estilos o poeta escapa ileso à urdidura do ditirâmbico manancial de hipnotização colectiva, dado que obedece a leis muito estranhas, cujo objectivo não domina – nem lhe interessa- porém, não raro pode ser o mais agreste dos artesãos feiticeiros, e devolver intactas as leis que todos se amarfanham por esconder. É o irrealista resoluto na marcha da escrita, que lhe escapa, como tudo aquilo que lhe foge. Assim sendo, trabalha num bem, que ao averiguar-se perigoso, será sempre fora da sua estricta vontade de fabricante de alguma calamidade. Já os narradores, os novelistas, os ensaístas, são mais atentos na imodéstia de algum incisivo desnorteio, e alguns, tomam mesmo as rédeas do mais indómito dos poetas na saga de uma obra, que afinal, é a vida e as sociedades que as imploram.

Mas que tem Bernhard a ver com isto? Quase tudo, já que para romances temos a vida de cada um e as descrições quase sempre enfadonhas dos seus méritos, onde cada qual fala de si a partir da urdidura ilusória das múltiplas tentativas, e, é tanta a praga, que devemos ver coragem em desconhecermos tais investidas. Cada coisa destas cresce por dentro de tal forma que precisará de um assassino para que o circuito fechado abra por fim em golfada, esguicho, abertura sanguinária para fora. Por fim, a liberdade que qualquer nado morto desconhece, e muitos acordam nesse instante, exangues e lúcidos, e talvez até quem sabe, mais serenos. Quanto a mim, tocou-me sempre a vida deste homem e a sua natureza. A marca de um nascimento onde existe uma maldição que demonstra a beleza de alguns, saídos de vínculos danados e proibitivos, ao seu avô escritor, a irreverência, o trauma que carregou sublimado em brilho, a superação inigualável de um bem que durará pela vasta obra deixada aos vindouros.

Bernhard teve uma longa prática nos jornais, sabendo como assinalar para o conjunto de uma obra narrativas breves, levando-as para as novelas e peças de teatro. O seu tempo de renome chegou e culminou num grande desassossego ambiental, agreste polémica com Elias Canetti que o faz renunciar à Academia Alemã, e as obras proibidas no seu país, a Áustria, ainda que provisoriamente. «Trevas » têm dentro o seu paradoxismo pela claridade, essa superfície fria que encherá o mundo de terror, o mundo científico, visionariamente entendido nessa lâmina de aço onde a hostilidade será infinitamente mais alta que toda a imaginação: ele fala afinal da brancura que inundará os cegos e de frios muito maiores que o próprio gelo. Não parando jamais de nos interpelar durante o seu instante cósmico face a tudo aquilo que tínhamos por seguro, não foi em definitivo um contador de histórias: “as relações com o próximo? Melhor rompê-las bruscamente.” Não creio que se possa no entanto fugir ao raio de acção da sua força. Subitamente, e só para o fim, se congela em fragmentos nos seus estratos de breu e nada nos aquece mais que a pira da sua alma a arder.

Os nossos dons agonizantes que brilham timidamente no asfalto das Nações, precisam destas manobras sem freio saídas de um homem com rosto de menino a quem o nazismo tanto incomodou, prostrou e enraiveceu.

Devem os escritores reacender este tumulto? Devem, sim. Ateá-lo e continuar atentos. Os ciclos laudatórios, as imagens de bastidor, a fornalha acesa para o nazismo vindouro, a orfandade protelada em cada bocejo, o virtualismo, o virtual, precisam destas Trevas nas consciências para ultimar o propósito a haver. Por qual, ele sempre haverá mais inconsciente que consciente. Colectivo. A consciência é um marco, esse, absolutamente individual. «e seria então necessário que, por si mesmo, tudo se separasse de nós e desaparecesse sem ruído. Seria necessário sair destas trevas que é impossível, que se tornou no fim de contas impossível dominar durante a vida… precipitar a chegada das trevas, fechando os olhos para só os reabrir quando se tiver a certeza de estar absolutamente nas trevas, nas trevas definitivas».

A Europa ainda é uma assinatura de autor.

19 Mar 2019

Eva Koralnik conta como sobreviveu ao Holocausto

O fim do Holocausto assinala-se no próximo dia 27 de Janeiro. Eva Koralnik esteve ontem na Universidade de Macau para partilhar a sua história que, ao contrário de muitas, teve final feliz. Aos sete anos, altura em que começou o extermínio dos judeus que viviam na Hungria, conseguiu, com a mãe e a irmã recém-nascida, fugir para a Suíça. Com a memória ainda fresca, a sobrevivente conta como, de um dia para o outro, uma vida normal se transformou num pesadelo

[dropcap]C[/dropcap]orpos enchiam as ruas da bela Budapeste”. É assim que Eva Koralnik recorda uma parte da sua infância no momento em que decorria o extermínio de judeus na Hungria, em 1944. Na altura tinha sete anos, mas a memória não lhe falha, até porque “foi um período muito intenso”.

Filha de pai húngaro, Willi Rottenberg, e mãe suíça, Berta Passweg, Eva Koralnik nasceu na capital húngara em 1936. Durante esse período a lei suíça estava repleta de discriminações, uma delas viria a ser determinante para a história da família: uma mulher suíça que casasse com um estrangeiro perdia a nacionalidade. Um detalhe legal que se tornou fundamental quando a mãe de Eva se mudou para Budapeste, para seguir o negócio de família no sector dos têxteis, onde viria a conhecer e casar com um húngaro.

Eva Koralnik foi a primeira filha, nascida num hospital que se tornou uma recordação maldita. “Quando os russos já estavam a libertar Budapeste, os nazis foram ao hospital e mataram toda a gente: enfermeiras, médicos, doentes, bebés”, apontou perante um auditório cheio de estudantes, na Universidade de Macau.

No dia 19 de Março de 1944, o seu pai regressou do trabalho “com uma cara muito triste e disse só três palavras: eles estão aqui!”. Apesar de ter apenas sete anos, Eva Koralnik percebeu que algo terrível estaria a acontecer.

FOTO: DR

O objectivo das tropas era “matar o maior número de judeus, o mais depressa possível”. “A guerra estava quase no fim. Portanto, estavam com pressa”. Um imperativo fatal, a tempos agigantado pelo facto que “os nazis húngaros, por vezes, eram ainda mais cruéis que os alemães”, referiu.

A Hungria, que tinha uma comunidade de cerca de 800 mil judeus, foi o último território a ser ocupado pelas tropas de Hitler. Entre Maio e Julho de 1944, foram executados mais de 450 mil judeus.

Estrelas amarelas

Assim que começou a ocupação foram aprovadas várias leis, “umas atrás das outras”, que limitaram severamente a vida dos judeus. “Primeiro, todos os judeus passaram a usar uma estrela amarela. A minha mãe coseu-me uma no casaco”, recorda. Além disso, “os judeus só podiam sair à rua duas horas por dia, durante a hora de almoço, quando as lojas estavam fechadas, não se podiam sentar em parques de jardim, não podiam usar eléctricos, à excepção da última carruagem”.

A par das restrições reinava o medo. “Sabíamos que todos os camiões que ouvíamos passar levavam pessoas para uma estação ferroviária onde eram enfiadas em vagões com destino a Auschwitz e às câmaras de gás”, recorda.

A palavra “selecção” ainda ecoa na memória de Eva Koralnik nos dias de hoje pelas razões mais funestas. “Quando as pessoas chegavam a Auschwitz, eram seleccionadas para dois destinos: uns iam directamente para as câmaras de gás, em especial mulheres, crianças e idosos e outros, enquanto os homens eram escolhidos para trabalhar”, explicou.

À medida que os aliados se aproximavam de Budapeste, perto do final da guerra, os bombardeamentos tornaram-se um acontecimento diário. “Dormíamos vestidos porque a qualquer momento podiam soar as sirenes para irmos para a cave”, recorda. Nessa altura, já não havia carruagens para levar as pessoas para os campos de concentração e quem fosse encontrado pelos nazis, era atado, baleado e atirado para o Danúbio.

“A minha tia, assim como centenas de outras pessoas, fizeram a chamada marcha da morte. Como já não havia forma de os transportar, estas pessoas andaram durante dias em direcção à Áustria. Quem colapsava era logo baleado”, recordou.

Entretanto, a sua família foi separada quando o pai de Eva foi levado para um campo de trabalhos forçados. “Levaram todos os homens jovens, vestidos com uniforme e braçadeira que os identificava como judeus, para recuperar os caminhos de ferro dos comboios que levavam as pessoas para Auschwitz”, descreveu. Eva recorda ainda as palavras que ouviu mais tarde do pai sobre as mulheres que tentavam dar-lhes os seus bebés na esperança de que fossem salvos.

Rumo à Suíça

Ao mesmo tempo que o genocídio acontecia, centenas de pessoas juntavam-se em frente do consulado suíço, em Budapeste, para tentar arranjar um visto. O perigo da viagem não assustava quem preferia arriscar a travessia da Áustria, liderada pelos alemães, em busca de uma oportunidade de sobrevivência. Era neste consulado que trabalhava Harald Feller, um diplomata mais tarde reconhecido como um dos “justos entre as nações”, distinção dada àqueles, não judeus, que ajudavam as pessoas a fugir ao genocídio. Oskar Schindler e o português Aristides de Sousa Mendes são nomes que também figuram nessa lista.

“O homem do consulado que nos salvou prometeu fazer o seu melhor para negociar com os alemães a passagem segura até à Suíça para a minha mãe e mais três senhoras. Como não sabia se as conseguiria encontrar no dia em que conseguisse o visto, arranjou um esconderijo para as três”. Foi nesse local, situado no centro de Budapeste que esperaram seis semanas e onde a irmã mais nova de Eva acabou por nascer. “A minha mãe tirou a minha estrela amarela e fingimos não ser judeus porque isso poderia custar-nos a vida. O certificado de nascimento da minha irmã até hoje diz Vera Rothenberg, religião protestante. Isso salvou-nos”, recordou.

Os vistos chegaram no dia 2 de Outubro de 1944. Até à Suíça, mãe e filha tinham pela frente 800 quilómetros de terror. “As carruagens vinham cheias de soldados e a minha mãe tinha medo que eu falasse com eles e lhes dissesse que éramos judias. Estava num medo constante, com uma recém-nascida nos braços e sem comida”, apontou.

Percalços pelo caminho

Chegadas a Viena começaram os percalços. “Surgiram quatro agentes da Gestapo, perguntaram se vínhamos de Budapeste e disseram para irmos com eles”. O destino era o Hotel Metropole (sede da Gestapo), que tinha na cave uma autêntica câmara de horrores onde os presos eram torturados e mortos.

No entanto, nessa noite esperava-as um autêntico milagre: 44 mulheres judias passaram a noite nesse hotel e saíram vivas. “Os documentos falsos valeram-nos um tratamento simpático. Lembro-me bem dos agentes da Gestapo, com as suas botas brilhantes e os pastores alemães na trela. Era muito assustador. Deram-nos quartos lindíssimos e alimentação. A minha mãe estava angustiada porque não sabia se a comida estava envenenada. Eu dormi muito bem, adorei o sítio, mas as mulheres não pararam de andar de um lado para o outro cheias de medo”, descreveu Eva.

Na manhã seguinte, seguiram viagem. “Esperávamos chegar à Suíça nessa noite, mas isso não aconteceu. O comboio parou a 10 quilómetros da fronteira”. Mais uma vez, o receio de serem apanhadas e mandadas de volta instalou-se. “Muitas pessoas já ali tinham chegado antes para tentar passar a fronteira, mas acabaram por ser levadas para os campos de concentração”, disse. A noite acabou por ser passada na localidade de Feldkirach, onde contaram com a ajuda do chefe da estação. “O mestre da estação teve tanta pena de nós – devíamos ter uma aparência miserável, cansadas e esfomeadas – que nos trouxe chá e deixou-nos dormir em cima das mesas”. Na manhã seguinte conseguiram, finalmente, passar a fronteira.

O início da vida na Suíça não foi fácil. A família juntou-se à avó. O pai de Eva acabou por sobreviver ao campo de trabalho, e dois anos depois conseguiu regressar à Suíça. “Não nos queriam dar o passaporte. Éramos identificados como apátridas, mas em 1960 conseguimos obter passaporte suíço”, recorda com alegria. Eva estudou e licenciou-se em tradução, curso que lhe abriria a porta para trabalhar num processo judicial histórico que encerrou um dos capítulos mais dramáticos da sua vida.

Palavras com sentido

A palavra holocausto não existia nessa altura, acrescentou Eva Koralnik. “Estávamos apenas a vive-lo, mas não existia um nome”. As palavras conhecidas, além de selecção, eram “câmaras de gás, extermínio e deportação”. O que existia, sublinha, era o medo. “Apenas vivíamos no medo diário e as nossas ocupações era encontrar comida e esconderijo”.

Agora há um nome. Chama-se Holocausto e o seu fim é assinalado no próximo dia 27 de Janeiro. Mas as preocupações com o ressurgimento de movimentos de segregação racial não são exclusivo do passado. Esta Europa que agora se mostra cada vez mais virada para a extrema-direita é uma preocupação para quem passou por um dos lados mais escuros da história do velho continente.

“Enche-me de medo que tenhamos esta tendência de viragem à extrema-direita por toda a Europa”, confessou a sobrevivente. Para Eva, o que se está a passar neste momento “não é uma acção contra os judeus, mas é dirigira a todos os estrangeiros”. “Isto é uma situação assustadora”, rematou referindo-se às conquistas de poder e de popularidade de Le Pen na França, Órban na Hungria, aos movimentos que ganham protagonismo na Polónia e em Itália.

A única forma de fazer frente a esta situação, considera, é estudar história e saber o que a Europa passou de maneira a que não se repita. “Temos que estar muito atentos para que não se volte a repetir o que aconteceu no Holocausto”, sublinhou.

O processo Eichmann

Em 1961, durante o julgamento histórico, em Jerusalém, de Adolf Eichmann, conhecido como um dos “arquitectos” do Holocausto, Eva Koralnik trabalhou como tradutora na sala de imprensa do tribunal. “Foi um trabalho muito duro”, apontou enquanto recordava o momento em que traduzia as palavras do responsável pela deportação de milhões de judeus para campos de concentração. “Eichmann estava numa cela de vidro para que as pessoas não o matassem a tiro, ou tentassem agredi-lo, mas o pior era quando chamavam as testemunhas que tinham escapado dos campos, mas que tinham de ir a tribunal contar o que lhes tinha acontecido”, apontou. Tratavam-se de depoimentos de pessoas que viram os filhos serem assassinados. A determinada altura, o arguido tentou defender-se referindo que nunca havia visto sangue e que, como tal, estava inocente. “Não viu o sangue porque fez tudo a partir da secretária”, apontou Eva Koralnik. Adolf Eichmann foi condenado à morte por enforcamento.

18 Jan 2019