“Complexo de Trump”: Primeiro Caso

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho uma rotina matinal, abro a net, vou ao Google e digito: Trump notícias. Nunca me desilude, é um verdadeiro circo. Nunca fica nenhuma mulher barbuda por revelar.

E como o Trump é um génio e pelo meu lado nunca ganhei nenhum jogo de xadrez na vida, estudo todos os casos de hirsutismo (a doença que lhes faz crescer os pêlos ao triplo da velocidade), a ver se topo como ele acerta à primeira.

A semana passada fui assombrado por dois sinais hirsutos no seu olho vivo.

O primeiro. Disse Trump aos fuzileiros navais em San Diego: “O espaço sideral é um domínio de guerra, bem como a terra, o ar e o mar.” E continuou, “talvez precisemos de uma nova força a que chamaremos “Força Espacial” – fez um silêncio, após o qual comentou o que acabara de dizer – “… bem, eu não estava a falar a sério, mas esta é uma ideia fantástica!”.

Fala alguma vez a sério, o Donald? E quais são as unidades de peso que usa para as suas palavras, ou brinca consoante o vento? O espaço sideral é um domínio de guerra? Donde lhe chegam aquelas ideias sempre em madrepérola? Com que clareza detecta os indícios de guerra entre Júpiter e Urano, por exemplo? Os Stephen Hawkings deste mundo procuram sinais de vida inteligente no espaço, Trump já divisa rasto de lança-chamas entre os meteoros, o rebentamento de mísseis no focinho dos selenitas e o sulco dos submarinos nos anéis de Saturno. Os antigos falavam da “música das esferas” (os planetas) para contrapor a harmonia do mundo à disparatada propensão para a discórdia entre os homens e Trump vê cowboys na ponta dos telescópios a laçarem os chineses e os russos de um planeta tão vermelho como Marte.

Só encontro uma explicação. Ele entrou uma vez numa sala de cinema, em Philadelphia, ainda no primeiro episódio da Guerra das Estrelas e o seu clone foi resgatado pelos bombeiros de Hong-Kong vinte anos depois, perdido entre a “Força” e o “Buraco Negro” (os “pequenos lábios” e os “grandes lábios!) de Annie Jones, a hirsuta galáctica (cf. foto) – daí o cabelo ionizado que ele carrega. Provação mais grave do que andar perdido nos sonhos de Darth Vader. E agora só vê camuflados nas poeiras galácticas.

De qualquer dos modos, a notícia ajudou-me a deslindar um enigma. Havia guardado esta notícia, do ano passado:

«Uma tragédia chocou os moradores de Rubiataba, interior do Goiás (Brasil). Um adolescente de 16 anos morreu após se masturbar 42 vezes.

Segundo relatos, ele teria começado por volta da meia-noite, e masturbou-se toda a noite sem intervalo. Terminava uma e começava outra. A mãe do menino já desconfiava de sua compulsividade por praticar o acto: “Era de hora em hora”, contou a mãe do jovem.

No computador do adolescente foram encontrados cerca de 17 milhões de vídeos eróticos e de 600 milhões de fotos.»

É chocante este jovem não ter chegado pelo menos às cinquenta. Há metas que não se devem falhar. Teria lido que o Hércules desvirginou as 50 filhas de Téspio numa noite? Era esta façanha que ele queria imitar? É improvável. Já ninguém lê as mitologias gregas.

A sermos rigorosos, o seu feito é irrelevante se comparado com a cópula do gafanhoto, que dura 16 horas… E se ao menos tivesse sido previamente treinado para a ejaculação prematura teria sido tudo mais leve e o coração ficaria menos exposto. Mas as mães hoje não educam os filhos.

Por outro lado 600 000 000 de fotos é o suficiente para atapetar um pequeno país como a Suazilândia. Este detalhe impressionou-me.

Contudo, et voilá!, num acervo de 16 milhões de vídeos é impossível que não estivessem lá todos os filmes com a actriz Stormy Daniels, a diva porno que o Trump quer silenciar. A causa da morte é-me evidente: o ingénuo quis imitar a potência do presidente americano e impressionar a actriz.

Foi abatido pelo «complexo de Trump». Os seus espermatozóides entraram em guerra uns contra os outros e ejectaram-lhe o coração para o espaço sideral.

Foi o primeiro a querer imitar a virilidade titânica de Donald e a ser emulado no teatro de guerra onde se representa o Poder da Imitação.

Eis agora o segundo momento hirsuto, que me deixou de cara à banda: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, gabou-se de ter inventado dados estatísticos sobre comércio numa conversa com o primeiro-ministro do Canadá.

Para ilustrar a mentira de que havia um desequilíbrio na balança comercial entre os EUA e o Canadá, Trump inventou uns números e depois gabou-se disso, de ter sido um espertalhão.

Desde Maquiavel que este tipo de manobra não será incomum na retórica política, às vezes inventa-se no fito de baratinar o outro. A novidade é que o manhoso a seguir se gabe, publicamente, e sobretudo se é o presidente da maior potência do mundo, o qual devia parecer, aos olhos de todos, não impoluto mas confiável.

A minha alma está burra – dizia a minha avó.

Este jogo é mais perigoso que o de sugerir batalhas galácticas num espaço sideral que ele nunca terá o prazer de sulcar, porque deita às favas qualquer moral política e vai induzir mil oportunistas sem escrúpulos, por todo o mundo, a imitá-lo.

O René Girard há cinco décadas que adverte sobre a imitação como mecanismo (inconfessadamente) privilegiado na pauta de produção de valores. Foi sempre subestimado, embora demonstrasse as suas teses em várias áreas, da análise literária aos estudos societárias. Creio que começa a ser urgente ouvi-lo (agora em mesa pé-de-galo) mais que não seja porque, como o sabia Nietzsche, quando nos falta uma tradição respeitável é preciso inventá-la: “dar-se modelos para saber o que buscar” – e nos últimos tempos rodeiam-nos ferozes felinos disfarçados por orelhas de lebre.

22 Mar 2018

Introito

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omeça pelo fim este título qual chamada de atenção para qualquer início que se deseje entendível, na medida em que o mote define a primícia do vocábulo gerado para a contemplação de um rito. O FIM é uma “arrastadeira” de silogismos que compostos dão os categóricos, e que partindo de premissas várias tiram então conclusões derradeiras, começo então neste fim de tempo imprevisto que é o derrame gelado das Nações que pairam em meu redor.

Isto tudo porque o Ártico está ameno e a Europa gela. Por lá, a fina camada de gelo que se alastra pode inundar de receios este frio que, por ser tanto, já não guarda mais nada que a nossa estupefação. Não estávamos a aquecer? – Sim – aquecemos muito e esfriamos ainda mais. Por onde começar nesta deriva é assunto de monta e pode transformar os nossos simples cálculos em espantosas derrocadas, mas não sabemos onde começar a ler o Livro, que dizem ter a conclusão da parábola do Tempo e definidos os graus da mudança dele. Uma firme explicação científica seria mais tranquilizadora que todas as interpretações descodificadas da enciclopédia dos mistérios e essa, por temor ou educação formal, escusa-se a fornecer respostas.

Na nossa massa, feita de dias e muitas horas, giramos no imponderável das intempéries, somos reféns atmosféricos e pensamos desviar todas as rotas com a nossa opulenta permanência em terreiro tão impróprio como se fosse normal dilatar e encolher num só ano o que as marés não conseguem em ciclos de evolução, e de tal ordem nos aplicamos à causa, que saímos incólumes deste estado. Estamos acossados e não sabemos por onde começar, quando começamos parecemos findar, ao findar, temos ainda um receptáculo de imortalidade gerado pelo medo; por aqui, entre vozes e grandes demonstrações de “eficácia” para se influenciar a matéria cósmica, vamos deslizando suavemente para a completa e mais impressionante indefinição.

As leis mecânicas são poderosas e nada se pode fazer a um vasto corpo que firma agora a olhos vistos os seus reequilíbrios enquanto organismo vivo e complexo, habitamos a superfície, e mesmo assim, fundámos o mito da exclusividade e da pertença. O que nos resta de tudo o que temos é uma visão bastante interessante pois que na deriva de tal “embarcação” somos tidos – somos quem é tido – por mais que nos esforcemos na conquista. Creio chegado o momento de se encetar procuras por aí… no Espaço… no Universo. Pode ser que tenhamos de repor o sentido do Êxodo num momento em que as águas podem inundar os caminhos do velho Noé mas, ao invés de um esforço de investimento e de procura, fazemos coisas que estamos a ver não durarem o tempo de uma Alvorada. Permanecemos agrestes e agrários nos nossos postes de combate como se nada disto estivesse de facto a acontecer, como se as águas congeladas não tivessem dado o «Introito» da sua marcha, e, o tempo fosse agora mais um Quaternário tão longo que não o vamos ver. Mas, uma das leis da mecânica, chamada velocidade, arrebata esta época e o volume de tempo já se confunde com a quantidade da massa: somos renascidos por processos que nem nos damos conta e seria imprópria a surpresa.

Os elementos radicalizaram-se, nós estamos mais pluralistas do que nunca, dormita uma incompatibilidade que fere, não nos aguentamos de pé mais que uma corrida pelas cidades e marchamos cansados a trote da energia fóssil. – Somos fósseis – mas mutáveis. Comparados a toupeiras saímos na rota do círculo do sol e assim somos guiados, temos urgências e destinos a cumprir numa dimensão que sabemos passar em muito este estado de coisas que são afinal os nossos mais tirânicos guias. Creio que estamos atrasados face à grande trepidação e demasiado entretidos nas reformas daquilo que já devia ter sido anulado: fazemos como o judeu em espera na fila da morte, corrigindo um livro, pois que para ele, o último minuto de vida é ainda vida, e talvez que esta dádiva de sabedoria nos tivesse agora inundado as tarefas quase póstumas.

Gilgamesh virá reescrever a funda história…? Sempre no alto de uma montanha aguardava recomeçar, as montanhas têm destes seres que ainda hoje nos povoam os sonhos. A Barca de Caronte navega nas margens litorais… caminhamos com a mulher jovem e a petrificada, estamos inundados de saberes que são sempre novos quando enfrentados e estamos perto dos futuros náufragos. Podemos navegar em cápsulas por muitos dias, meses e até anos, até chegar a terra firme, e não soltaremos pombas, nem subiremos às altas montanhas para as libações. Os deuses partiram e não levaram ninguém a não ser a sua imortalidade, que desconhecemos, mas não tarda saberemos programar.

Antes de recomeçar a história pelo fim seria melhor ela continuar noutro lugar.

22 Mar 2018

Geometrias variáveis

[dropcap style=’circle’] F [/dropcap] acebook, Lisboa, 10 Março

O uso das fotos de perfil no livro das caras merecia umas horas de reflexão mais ou menos divertida. A mim interessa-me o gozo de compor suposta identidade da forma mais disparatada, comentando, representando, homenageando, espelhando, jogando, revelando, escondendo. Tenho repetido amiúde leões e agora volto a chamar Peyroteo ao rosto. Faria cem se fosse vivo, o jogador recordista de golos que gostava de ópera, coisa só assinalável nesta época de tão rica carestia (tanta oferta, tão pouco desejo). O Peyroteo continua a jogar comigo em conversas sem conta, tanto que gostava de lhe publicar biografia a sério, assim à maneira de Ruy Castro. Chamaram-lhe stradivarius, por ser o mais letal dos Cinco Violinos. Que instrumento gostaria de ser se fosse grande?

 

Horta Seca, Lisboa, 10 Março

Felinos escondem-se no verde da paisagem, em belo desenho da Inês Machado, logo na primeira página. Mais adiante a banda desenhada e mais desenhos, além de poema e texto solto. «Abyssal», revista de edição limitada e impressa em risografia, será o resultado mais duradoiro da primeira Festa Abyssal, uma mini-feira que queremos periódica, e neste querer incluem-se as vontades do Gonçalo [Duarte] e do Xavier [Almeida]. Além editores e/ou autores de projectos afins, como a Triciclo, a mostrarem os seus trabalhos de ourivesaria gráfica, teremos exposição convidada, no caso foi o Bruno Borges, com as suas massas dançantes, concertos e o mais que nos aprouver. Por exemplo, cerveja, numa proposta da Trevo, do João [Brazão] que alegrou a tarde chuvosa. «Abyssal» deu que ver, dá para ler e pode-se beber. Dura apenas um dia de cada vez.

 

Musicbox, Lisboa, 10 Março

Ainda não tinha tido oportunidade de ouver Beat Hotel, o projecto do André [Gago] em torno da poesia da Beat Generation. O trocadilho justifica-se pelo lado performativo do concerto, com a imagem a somar-se à voz e aos outros instrumentos, navegando ondas alterosas de rock, o propriamente dito, além do progressivo e do sinfónico, mas ainda de blues e jazz. Os poemas de Kerouac, Corso, Ginsberg, Ferlinghetti e Burroughs chegam quase a ser cantados, numa dança que me põe a pensar na geometria variável que a poesia dita vai desenhando. Onde começa a canção? Muita riqueza anda a acontecer por aqui. E pensar rima com dançar.

 

  1. Jorge, Lisboa, 16 Março

Ao contrário do que planeara, consegui apenas, e a muito custo, ir à sessão de competição das curtas portuguesas da Monstra, sinal maior da vontade do [Fernando] Galrito em nos pôr a ver animação. A qualidade do trabalho nacional não é nova para mim e este lote, sobretudo na variedade, comprova-o. A surpresa deu-se nos temas: a solidão e o trabalho infantil, a doença nas crianças, a agorafobia, a desertificação ou a crise económica foram alguns dos assuntos abordados, com mais ou menos densidade, com mais ou menos humor. O premiado «A Sonolenta», da Marta Monteiro, e a menção honrosa, «Água Mole», de Laura Gonçalves e Xá, são excelentes exemplos. Um conto de Tchekhov serviu para a Marta desenvolver uma narrativa encantatória e sensível sobre vidas condenadas desde cedo ao trabalho. O final não é feliz. «Água Mole» parte do real, as vozes, para contar da resistência ao esquecimento do nosso interior. Um careto tornado personagem acendeu-me uma esperança, a de que somos ainda capazes de revisitar a nossa tradição. Ainda me emocionei com o «Surpresa», do Paulo Patrício, também ele partindo de uma voz real para desenvolver fantasia gráfica sobre doença, hospitais e afecto. Noto agora que os sons foram presença forte, muito por causa de «Das Gavetas Nascem Sons», de Vitor Hugo Rocha, que fez sonoplastia da memória. «Razão Entre Dois Volumes», da Catarina [Sobral], compõe personagem que perde uma memória, um pensamento, uma emoção. Trata-se do sr. Cheio, parceiro do sr. Vazio que não encontra nada que preenche e por isso parte em viagem. Será menos real que as outras, esta história?

 

Horta Seca, Lisboa, 17 Março

Vou vivendo vários livros ao mesmo tempo, a pensar na cadência da frase, na profundidade de uma observação, a conversar com personagens, a dialogar, em silêncio ou não, com o autor, a vislumbrar a sombra do objecto. Matuto ainda no detalhe, nas inúmeras combinações a convocar para que se torne material um espírito volátil suscitado pelas letras. Depois, a urgência obriga-me a mergulhar como âncora em um apenas, aquele e não outro. Nos últimos dias foi «Poetas Portugueses de Agora», da Lisbon Poetry Orchestra. Primeiro foi a música do Tiago Inuit, Luís Bastos e Filipe Valentim, capitaneada pelo Alex Cortez a partir de busca da voz dos poetas, Cláudia R. Sampaio, Daniel Jonas, Filipa Leal, Paulo José Miranda e Valério Romão. Seguiu-se a harmonização das vozes deles com a dos diseurs, Paula Cortes, Nuno Miguel Guedes, André Gago e Miguel Borges. Muitas afinações depois, o papel começava a ser horizonte desenhado pelo Daniel Moreira, através de aproximações esboçadas em objectos e seres fragilizados pelo lápis, fragmentos de natureza, minerais e madeira, paisagens melancólicas, céus e paredes com sujidades, correcções a branco (exemplo algures na página). O livro chegou ontem, também ele concebido pelo Daniel como caderno de campo, diário de viagem, com páginas em branco para serem desenhadas pelos leitores a partir da experiência dos inúmeros concertos anunciados, ou do cd com vozes e música ou das palavras ou do silêncio. Hoje celebramos a exposição, não apenas de desenhos, mas da ideia que os sustentam, móveis que permitem aos que queiram sentar-se, ouvir, ler, desenhar. Uma janela apenas abre para outras linguagens, uma caixa com vista para a oficina do artista. , «Caderno de um Mundo Inacabado», assim se chama. O Daniel interpretou bem a força que se solta desta fragilidade, a palavra como ferida no joelho nascida do tropeção durante a corrida. Desenhou sobre o abysmo uma montanha que se pode tocar, subir com os dedos.

 

Horta Seca, Lisboa, 18 Março

O Ricardo [J. Rodrigues] que há muito me desafiara, resolveu em semana de aniversário extrair-me «lições de vida», coluna da Notícias Magazine hoje publicada. Perturba sempre qualquer coisa encarar a nossa imagem reflectida no olhar dos outros. A banda desenhada fez-se segunda pele da qual não mais me livrarei. Não me incomoda e atrevo-me a achar que percebo. O ziguezague do meu percurso não permite grandes conclusões, a não ser esta em me encontro e à qual cheguei para desbloquear crise da meia-idade: o editor no olho do furacão, ponto impróprio da geometria descritiva, que faz convergir no infinito os paralelos do aqui e agora.

 

21 Mar 2018

LEVINAS – terceiro movimento

[dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ara Levinas, toda a filosofia é a história do egotismo. A filosofia pensa o si mesmo, o Mesmo e não o Outro, a Totalidade e não o Infinito. A filosofia moderna e contemporânea, desde Descartes, é uma filosofia da subjectividade do Eu. A subjectividade em Levinas parte do Outro. E, segundo o filósofo lituano, só uma filosofia que se funde na alteridade absoluta pode dar resposta ao enigma da existência no existente. O que mais atormenta o humano é ser. Levinas escreve em De l’Existence à la Existant: “O medo do nada não é senão a medida do nosso envolvimento no Ser. A existência de si mesmo abriga algo trágico que não deriva apenas da sua finitude. Algo que a morte não pode resolver.” Não é pelo horizonte da nossa morte que o nosso medo do nada aparece. O nosso medo do nada aparece porque, antes de mais, o Ser nos sopra a sua existência. Antes do nada ou da morte, sentimos em nós o Ser. O Ser faz-se sentir em nós anonimamente, através daquilo a que Levinas chama “il y a”, o há. Há coisas, há pessoas, há o mundo. Este há indefinido cai-nos em cima como se fosse um fim do mundo. Levinas diz mesmo que as expressões “o mundo a acabar” ou “o mundo ao contrário”, apesar de banais, são expressões que mostram um sentimento que é autêntico. A vertigem do há vai empurrar-nos, não para um “puro ego” ou para a morte, mas para um estado anónimo de ser. A existência não é sinónimo de relação com o mundo; ela é antecedente ao mundo. Na situação de um fim do mundo, a relação primária que nos liga ao Ser torna-se palpável. O mundo a acabar depõe-nos não na nossa morte, isto é, na inevitabilidade da nossa morte, mas no anonimato do ser. A imagem que Levinas encontra para descrever esta situação é a da noite. Na noite não há formas, pois é a luz do dia, com a sua claridade, que possibilita a visibilidade das formas. Mas “à noite todos os gatos são pardos”. Levinas recorda a noite na infância, o medo do quarto escuro, que com o seu silêncio aterroriza a criança. O ser anónimo, o “il y a” (há) é como a noite que aterroriza a criança. Traça-se aqui a luta pela entre existência e existente, a luta pela individualidade, pela saída do anonimato e assumir o seu nome próprio. Passamos a ser através de uma evasão de ser. Ou seja, passamos a existir através de uma evasão do há. A consciência de si é uma primeira evasão. Um evasão do há através da consciência de que é. Outra evasões irão ocorrer ao longo da existência. A existência, aliás, é a história pessoal de contínuas evasões. A primeira é a evasão do anonimato, da noite onde todos os gatos são pardos. A evasão do anonimato para se ser o nome e o corpo que se é.

Evasão é um termo fundamental em Levinas, e embora o tenhamos usado aqui antes, ele será cunhado somente depois de De L’ existence à la Existant, no livro Da Evasão. Mas aqui já vamos encontrar outras evasões. Aqui o humano já não luta contra o anonimato, mas contra si mesmo, contra o seu sujeito. O humano quer evadir-se de si mesmo, à imagem do prisioneiro que quer evadir-se da condição de prisioneiro de guerra. Efectivamente há um movimento prévio a esta filosofia, uma experiência pré-filosófica, como Fernanda Bernardo nos transmite, no seu artigo “A Assinatura ético-metafísica da experiência do cativeiro de Emmanuel Levinas”: “(…) a experiência do cativeiro terá sido a experiência pré-filosófica que terá determinado e decidido a orientação filosófica de Emmanuel Levinas – ela terá ditado ou inspirado a Levinas, quer a orientação ético-metafísica que ele virá a imprimir à sua filosofia e à filosofia – orientação que tem implícito um repensar meta‐ontológico‐filosófico da própria ética, lembremo‐lo também, que vai no sentido de repensar a própria eticidade da ética dela fazendo a prima philosophia –, quer a incondição ético-metafísica que ele outorgará ao humano verdadeiramente humano.” (Revista Filosófica de Coimbra – nº 41, 2012, p. 120) E aquele que deseja evadir-se não procura uma evasão no espaço, uma mudança de lugar, mas uma mudança de si mesmo, literalmente um deixar de ser. Deixar de ser, para que possa aceitar o infinito que o visita. Deixar de ser no sentido em que aceita o apelo do além como estrutura fundamental do si mesmo. Aquele que se evade não sabe para onde vai, sabe apenas que vai, que quer ir.

Há dois modos de evasão: o movimento que nos remete continuamente para um lá fora, que não é pura exterioridade, mas tão somente ilusão de exterioridade; e o movimento que nos remete continuamente para a interioridade que, paradoxalmente é pura exterioridade, pois nos lança no Infinito, que é exterioridade pura. Esta exterioridade pura é o desejo metafísico a manifestar-se no humano.

O rosto, podemo-lo dizer agora, significa o Infinito. E o desejo metafísico, que nos lança na direcção de além mais, não ambiciona um regresso a casa, um regresso ao rosto da origem. “O desejo metafísico tem outra intenção – deseja o que está para além de tudo o que pode simplesmente completá-lo.” (TI, p. 20) O Rosto lança-nos para o absolutamente Outro através do desejo metafísico. Porque “a metafísica deseja o Outro para além das satisfações sem que da parte do corpo seja possível qualquer gesto para diminuir a aspiração, sem que seja possível esboçar qualquer carícia conhecida, nem inventar qualquer nova carícia. (…) Morrer pelo invisível – eis a metafísica.” E metafísica, está bem de ver, não é interioridade, mas pura exterioridade, porque o ser se vê a si mesmo como irredutível a si, transcendente. Aliás, que há de mais exterior do que o que não se vê, do que o que não há, se não em forma de querer? Estamos face a um projecto de pensamento da exterioridade – tal como o subtítulo de Ética e Infinito diz: Ensaio Sobre a Exterioridade –, de uma exterioridade radical, como Levinas nos alerta logo no prefácio do livro. A metafísica é exterioridade radical e esta é outra face de transcendente. “A exterioridade absoluta do termo metafísica, a irredutibilidade do movimento a um jogo interior, a uma simples presença de si a si, é pretendida, se não demonstrada, pela palavra transcendente. O movimento metafísico é transcendente e a transcendência, como desejo e inadequação, é necessariamente uma trans-ascendência.” Já na República, Platão se refere a esta trans-ascendência, ainda que com outras palavras: “Sou incapaz de admitir que haja outro estudo que faça a alma olhar para o alto, a não ser o que se refere ao real que é o invisível.” (529b) O humano é “puxado” para cima pelo desejo metafísico, para o infinito, para o Outro absoluto. Não é Deus que puxa o humano para cima, mas o desejo do que não há, o desejo do que não chega, o desejo de infinito, que não cabe em nós, porque vem do Outro. E este absoluto Outro não faz número comigo, é Outrem. “A colectividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum. Nem a posse, nem a unidade do número, nem a unidade do conceito me ligam a outrem.” (p. 25) O Outro é irredutível a mim, assim como o é o infinito. O que está aqui em causa é pensar o infinito, Deus, a transcendência para além do mundo. Por conseguinte, Deus também não é Deus, isto é, não é o Deus que usualmente pensamos como Deus, quer seja em sentido filosófico quer seja em sentido religioso. Deus tem de ser pensado fora do mundo, fora da relação de causalidade. Deus não é causa do mundo. Ser causa do mundo é ser parte do mundo. Deus é o absolutamente outro, irredutível ao mundo e ao seu significado. E pensar “para além do mundo” – expressão que remete para o conceito de Bem em Platão – é pensar eticamente.

 

20 Mar 2018

A fábrica de radicais

[dropcap style=’circle’] H [/dropcap] á regras que nunca passaram por uma fase de redação e de concordância e que, ainda assim, são comummente reconhecidas e implicitamente aceites. Uma delas, e de que damos conta todos os dias e cada vez mais expressivamente, é a que consiste na impossibilidade de ter uma conversa ou discussão minimamente civilizadas no Facebook.

Paradoxalmente, quando o Facebook surgiu fê-lo com a promessa implícita de que seria uma comunidade; um lugar ideal para a troca de ideias, usando a quase omnipresença da internet para encurtar a distância entre pessoas para a medida mínima que medeia o espaço entre os olhos e o ecrã e entre os dedos e o teclado. Formalmente, não se pode dizer que não tenha resultado. Nunca estivemos tão próximos, de um ponto de vista técnico, e os smartphones foram decisivos na consolidação desta ideia de acessibilidade constante.

No que diz respeito ao que o Facebook pode ter acrescentado à qualidade da discussão, muito pouco. Ou melhor, antes pelo contrário. Da esquerda à direita, dos assuntos mais vagos aos mais concretos, o mínimo denominador comum parece ser a radicalidade na qual cada posição é expressa. A conversa deixou de acontecer na zona cinzenta que separa, de modo mais ou menos difuso, uma posição da outra, e que é, por excelência, a zona do consenso. Ou seja, o local onde duas posições antagónicas encontram espaço para negociar o que é necessário e o que é acessório para cada uma delas. No fundo, a posição da política.

No Facebook, que prometia tornar-nos todos agentes políticos com a força potencial das multidões, o que acontece, pelo contrário, é um estranho fenómeno de deturpação da gravidade do debate: duas posições extremadas atraem a maior parte dos interlocutores e, no meio, de onde poderia surgir a superação que algumas conversas profícuas geram, existe apenas vazio ou, no melhor e simultaneamente mais trágico dos casos, três ou quatro moderados a quem aqueles que estão nos extremos chamam traidores. E estranho tempo este no qual a posição moderada ou do bom senso se constituem como as mais radicais possíveis.

Seja o tema o turismo em Lisboa, o conflito israelo-palestiniano ou a canção merecedora de ir à Eurovisão, as posições são quase sempre radicais e imbuídas de uma força que a causa, muitas vezes, ora por ser distante ora por ser aparentemente menor, não parece merecer convocar.

Dir-se-á que o meio não ajuda. Um sujeito atrás de um ecrã tem uma confortável distância de segurança e não precisa de ser moderado na conversa, ao contrário do provavelmente teria de acontecer acaso a conversa acontecesse no mundo real. Ou mesmo que não fosse moderado, saberia que as consequências da radicalidade na esfera física são distintas e obrigam uma avaliação muito mais cuidada do modo como cada um se expressa.

Apesar de aborrecido e, de certo modo, até violar os termos contratuais que assinámos com a Internet (um mundo melhor por via da possibilidade de comunicação praticamente instantânea), se este fenómeno ficasse circunscrito à parte do mundo que é virtual, e mesmo que esta se tornasse cada vez mais a mais frequentada, bastaria ao sujeito ser parcimonioso na frequência das estádias no continente do digital para se manter a salvo desta maré de bílis.

O problema, porém, é que o imenso reservatório de ácido produzido pela interacção das pessoas nas redes sociais tem tendência a não ficar contido no espaço onde foi originado. Pouco a pouco, vai pingando sobre a sociedade e sobre os laços que lhe conferem forma, sobre a política e sobre as suas formas de criar consensos e sobre a própria família.

A promessa da comunicabilidade da escala global e de esta fazer com que nunca mais estejamos sós concretizou-se da forma mais trágica possível: o nazi do Uganda pode agora falar com o nazi do Uruguai; os terroristas mudaram-se para a internet; os racistas passeiam despudoradamente as suas convicções em grupos fechados que lhes fornecem a sensação de legitimação que procuravam.

A internet, no fundo, uniu-nos, é verdade. Mas mais por aquilo que odiamos do que por aquilo que amamos.

20 Mar 2018

Ideia para fazer uma ampla avenida

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Sociedade de Geografia de Lisboa, fundada em 1875, propôs em 1896 que fosse celebrado o quarto centenário da partida de Vasco da Gama para a Índia e tal ideia encontrou eco tanto na população como no governo, que logo apoiou a iniciativa e por um decreto formulou o programa das festividades.

Pretendia-se estimular o brio dos portugueses, cujas esperanças se encontravam bastante abatidas após a perda da soberania nos territórios entre Angola e Moçambique, hoje Zimbabué e Zâmbia, inseridos no Mapa Cor-de-Rosa de 1886, e de onde, pelo Ultimato de 11 de Janeiro de 1890, os britânicos exigiram a Portugal retirar-se. Tudo consequência da Conferência de Berlim de 1884-85, quando os países europeus dividiram entre si o Continente Africano, tendo daí Portugal perdido para estes muito do seu território ultramarino.

Colocava-se a imperativa necessidade de trazer à memória as grandes viagens marítimas portuguesas e se nos princípios de Março de 1894 se comemorara no Porto o V Centenário do nascimento do Infante D. Henrique, festas que se estenderam a todo o país, nada melhor do que celebrar o dia 7 de Julho de 1497, quando Vasco da Gama embarcando em Lisboa no São Gabriel partira para a Índia, onde chegou à costa do Malabar a 20 de Maio de 1498. Estava encontrado o tema de gloriosa grandeza, o IV Centenário da partida de Vasco da Gama para a Índia. Querido pois, ensinado desde tenra idade à volta da lareira e aprofundado como História nas escolas, dera aquela viagem início ao território ultramarino espalhado pelo mundo desde há 400 anos e como tal, muito animaria também a alma aos portugueses do Ultramar.

 

PROGRAMA DAS FESTIVIDADES

Seria uma celebração nacional e extensiva a todo o território português, abrangendo todas as classes. A comissão central constituiria no reino, nas ilhas adjacentes e no ultramar, comissões especiais destinadas a promover tal festividade e marcavam-se para 8, 9 e 10 de Julho de 1897 os dias de gala em todo o território português. <Na alvorada de 8, os Paços do Concelho, as fortalezas e navios de guerra nacionais arvorarão a bandeira portuguesa, saudando-a com uma salva de cem tiros de peça, queimando-se grandes girândolas e foguetes e os sinos das igrejas deverão repicar. Os edifícios e estabelecimentos públicos, para além de hastear a bandeira nacional, deverão iluminar as suas fachadas durante esses três dias, tal como ficam convidados os cidadãos para adornar e iluminar as fachadas das suas residências. As autoridades, as corporações administrativas e comissões locais promoverão nas respectivas localidades toda a espécie de demonstrações festivas e muito especialmente as de um carácter geral e popular, como iluminações, arraiais, romarias, danças, cantos e jogos populares>. Além deste programa, aqui reduzidamente exposto, ainda se pretendia cunhar moedas comemorativas de 1000, 500 e 200 réis, medalhas em ouro, prata e outros metais, assim como selos postais. <Em Lisboa realizar-se-ão exposições nacionais, como a de agrícola e pecuária, de caça e pescaria, a de etnografia, a de belas artes e a Exposição colonial Vasco da Gama. Promover-se-á a elaboração de memórias, monografias e outros trabalhos literários e científicos, assim como históricos>. Pretendia-se convidar os governos das nações marítimas, bem como as grandes empresas de navegação a fazer-se representar, pois previam-se para Lisboa regatas, concursos de tiro e de velocípedes, congressos e conferências.

Estava assim lançado o repto. Mas no ano seguinte, quando chegou a data, nada parece ter ocorrido pois nos jornais de Macau não há dela referência. Com Amadeu Gomes de Araújo ficamos a saber as razões, “A morte de Pinheiro Chagas, em 1895, fez adiar os preparativos, só retomados em Maio de 1896. Em 1897, terminou o governo de Hintze e foi já o novo ministério, presidido por José Luciano de Castro, que decidiu concentrar os festejos em 17, 18 e 19 de Maio de 1898, dias de gala nacional”. Reinava D. Carlos, o Diplomata, que foi Rei entre 1889 até 1908.

 

PLANO do Eng. Abreu Nunes

Em Macau, a extensa várzea do Tap Seac, a estender-se até à Praia de Cacilhas, era um vale com aproximadamente cem hectares, sempre alagado, numa cota muito inferior às estradas que o circundavam e a situação piorava com a água das chuvas a escorrer de ambas as encostas dos montes da Guia e de S. Miguel, sendo por isso, um dos principais focos de infecção da cidade. Para sanear essa várzea, o Director das Obras Públicas Eng. Augusto Abreu Nunes planeou ir buscar terra ao campo da Vitória, separado da várzea do Tap Seac pela Estrada da Flora (actual Sidónio Pais), na encosta da Colina da Guia.

Em meados do ano 1896 decorria o trabalho de terraplanagem no sítio do Tap Seac com a terra retirada do campo da Vitória, ficando assim também este terreno aplanado, a um nível de dois metros inferior ao que tinha antes. Constava ir ser o triângulo da Guia nivelado, para o colocar ao mesmo nível da Praça da Vitória, o que daria ao local uma esplêndida esplanada. De uma superfície bastante irregular e com grandes desníveis criou-se um terreno plano, sendo os cortes de forma a regularizar o campo e os caminhos que o circundavam.

Quando apareceu a ideia das comemorações de 1898, lembrou-se o Director das Obras Públicas construir nesse planalto uma ampla avenida, como não havia em Macau e assim criar a Alameda Vasco da Gama, desde a Calçada do Gaio até à Praça da Vitória. O Eng. Abreu Nunes pretendia aí erguer uma estátua a Vasco da Gama e inserir a já existente Praça da Vitória com o seu monumento.

O Monumento da Vitória fora inicialmente projectado com a imagem de S. João Baptista, pois a vitória sobre os holandeses, calhara no seu dia, 24 de Junho. Para construir o monumento a S. João Baptista, que desde 1622 ficara como padroeiro de Macau, o Senado nos inícios dos anos 60 do século XIX avançou sugestões para obter a verba, ou por lotaria ou subscrições voluntárias. No entanto, o projecto foi substituído e a 1 de Fevereiro de 1869, o Presidente do Senado Félix Hilário de Azevedo comunicava ao Governador Sérgio de Sousa a existência no Senado de um fundo de 400 patacas destinado ao monumento a S. João Baptista, mas, devido a problemas políticos, vingara um outro projecto e assim propunha ser esse fundo aplicado ao novo Monumento da Vitória, segundo o Padre Manuel Teixeira. Tal monumento, proveniente de Lisboa das oficinas do escultor Manuel Maria Bordalo Pinheiro, foi inaugurado em 1871 conjuntamente com a Praça da Vitória.

Governador de Macau desde 12 de Maio de 1897, Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo ao chegar de Lisboa para iniciar funções tinha já à sua espera o programa definitivo do grande jubileu, enviado a 3 de Maio de 1897 pelo presidente da comissão executiva nacional para organizar os festejos, o Almirante Francisco Joaquim Ferreira do Amaral (filho do ex-governador de Macau João Maria Ferreira do Amaral), presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa e que fora Ministro da Marinha em 1892.

16 Mar 2018

A Palavra e o Silêncio

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]urante a minha infância vivi com uma tia surda, que me levava à missa. O verdadeiro enigma, para mim, tornou-se o da distribuição da Palavra de Deus. Como é que o Sopro de Deus lhe chegava aos ouvidos? E, se ela lia nos lábios do padre, como mensurar o quilate da Palavra nessa comunicação semi-adivinhada?

A partir desta minha experiência deixei de considerar o silêncio como algo de mítico para o qual toda a palavra conflui, ou de reduzir a palavra a um trampolim deficitário para a expressão do inefável. Eu tive uma educação pelo silêncio, como uma experiência material, inapelável, concreta, que ainda por cima se mesclava com o afecto, e essa relação fez-me perceber que existem modos de comunicação que estão fora da consciência, no sentido de prescindirem de verbalização, intuindo aí o que dizia o Bateson sobre a impossibilidade de existir a não-comunicação.

O silêncio pode bem ser uma comunicação ainda sem mensagem, da mesma forma que há pensamentos que procuram os seus pensadores-veículos, e nele não se manifesta o oposto do som ou da palavra mas antes uma posição embrionária, que prepara e antecede a expressão.

Por outro lado, a circunstância de ter vivido com alguém que fazia as consoantes com o corpo e as vogais com os olhos mas a quem poucas palavras saíam claramente articuladas, ensinou-me que a palavra é um luxo que não se pode desperdiçar, nem pela mentira, nem pela frivolidade, e que nos cabe a responsabilidade ética de não deixar por formular uma única palavra que seja necessária.

A partir daí o que me interessa não é tanto o esforço de definir o silêncio, mas, de modo mais prático, como acomodar-lhe a cama, a transpiração e o trajecto que o silêncio faz em nós. O americano David Thoreau iluminou tudo o que eu desejaria dizer: «Não é a forma que o escultor dá à pedra que importa mas o que a escultura faz ao escultor».

Até porque só há inefáveis relativos e não absolutos e como acredito que começamos de uma maneira e acabamos de outra impõe-se uma nova dimensão anteriormente indiscernível em cada ciclo da nossa evolução ontológica. Passamos da madeira, ao ferro, para usar uma metáfora, e nesta passagem, ao mudarmos de configuração atómica isso ocasiona que não reconhecemos as constelações, pelo que precisarmos periodicamente de uma nova carta astral.

Falo metaforicamente, mas alvitro, como dizem alguns antigos, que o caos é quase sempre uma ordem por decifrar, a ventania que despenteia a estatística. E sublinho o «quase» porque, por uma questão de sanidade mental, devemos conservar uma margem de liberdade para o aleatório e para nunca nos esquecermos dos limites da racionalidade.

Do que advém, no meu caso, que o silêncio seja o outro nome com que se nomeia o acto mediante o qual a concentração nos esvazia. Do mesmo modo que a dança se intensifica quando se apodera do corpo, ou a sonata soa mais expressiva quando o seu intérprete se esquece de si mesmo no acto, o silêncio é o acto de esvaziar, e de nos pôr à escuta, e a partir daí a palavra e o silêncio retroalimentam-se e todo o real potencia-se no processo desse engendramento recíproco, diria até, desse entusiasmo recíproco.

Entusiasmo que gerou males-entendidos e que Platão escrevesse: «o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão». Confesso que só lhe perdoo porque quando vou ao talho, aponto a máquina do fiambre, e digo sempre a mesma piada, “corte-me cem gramas de Platão mal passado, por favor!”.

Mas incompatibilidades com o Platão à parte, por muito que quisesse não posso escamotear que sou agido pelo silêncio de uma forma concreta, fertilizadora, sendo que nesse estado de fluidez só existe o perigo de o entravar, quando, estupidamente, desato a perguntar pelo sentido do que estou a escrever.

Para que nos continue a nutrir, o silêncio necessita de encontrar em nós um pouco de inocência e diria até de idiotia. Dado haver um kairos do silêncio, um sentido de oportunidade em relação ao momento de calarmos.

Talvez não seja o melhor modo de acabar, reconhecer que às vezes se desprende uma tal bazófia, uma tal solenidade no uso e na evocação do silêncio que me vem logo à cabeça, em contraponto, um verso de Haroldo de Campos: “O redondo oceano ressona taciturno”.

E por isso, para apalpar o território movediço do silêncio sem nos colocarmos em bicos de pés, lembremos que em todo o século XX houve uma valorização estética do silêncio, seja pelo lado da desconstrução como no movimento Dada, seja pelo inescapável fascínio que fazia da arte uma disciplina votada ao silêncio, condensando-se neste uma meta inatingível mas sempre almejada, como se fosse o silêncio o propulsor que nos ejecta na região inefável. Em ambos os casos o silêncio é uma ferida em aberto.

Talvez pelo facto de sermos portadores da palavra e de estarmos convencidos que o pensamento é linguagem, alheados de que não pensamos exclusivamente por palavras, embora pensemos às vezes em palavras, sendo estas arquipélagos flutuantes e esporádicos.

Vezes há em que me interrogo como nos expressaríamos se não houvesse uma palavra para designar o silêncio e fico receoso. Pode aí o desejo libertar-nos destes embargos, tal como se deduz neste poema de Brecht: REMO; DIÁLOGO: «Fim de tarde. Passam deslizando/duas canoas, dentro/ dois jovens nus. Lado a lado remando/ Conversam. Conversando/ Remam lado a lado.»

Nada foi dito, tudo permanece na sombra do sugerido, na ambiguidade que o silêncio também requer e, contudo, que a minha tia surda desvie os olhos neste momento grave, imaginem os meus amigos, como se pega nos remos, e na pesada analogia de tal gesto, embora o poema explicitamente silencie o que mete em presença.

E agora, se me permitem, vou andar à vela.

15 Mar 2018

Papéis no parapeito

Horta Seca, Lisboa, 3 Março
O fecho da Pó dos Livros, em Lisboa, e da transferência da livraria do Miguel Carvalho do centro de Coimbra para o nenhures da internet, anunciados no mesmo dia, suscitaram intervenções abrindo talvez um debate. O tom de Pacheco Pereira (https://www.publico.pt/2018/03/03/culturaipsilon/opiniao/o-combate-civilizacional-pelos-livros-e-pela-leitura-1805167) vem tintado de catastrofismo, a que António Guerreiro (https://www.publico.pt/2018/03/09/culturaipsilon/opiniao/o-saudavel-odio-aos-livros-1805548) acrescenta uma pincelada de tremendismo anarquista. Muitos assuntos se embrulham neste, a suposta morte do objecto livro, a crise da leitura ou uma indústria escrava das armadilhas económicas em que se deixou enredar. Dou-lhes razão aqui e ali, sobretudo na crítica às análises preguiçosas, à ausência de estratégias colectivas, do estado e não apenas, às ideias feitas que se propagam à velocidade da luz.
«O problema não é substituir os livros por um ecrã de um telefone inteligente ou de um tablet – o problema é o mito perigoso de que a “leitura”, mesmo numa forma diferente, está a emigrar de um meio para outro, porque não está», diz Pacheco, que continua. «O que se está é a ler diferente, pior e menos, como se está a “saber” demasiado lixo – meia dúzia de performances rudimentares com as novas tecnologias – e pouco saber. A morte das livrarias é um aspecto desse soçobrar no lixo, mas infelizmente estão demasiado acompanhadas pela morte de muitas outras coisas, do valor do conhecimento, do silêncio, do tempo lento, da leitura, da verdade factual, e da usura da democracia.» Contudo, a democracia deu passos importantes para ir apagando o ódio à cultura da ditadura. Basta pensar na rede pública de bibliotecas, ou na outra de bibliotecas escolares, que deram passos enormes na defesa daquilo a que Pacheco chama valor civilizacional: «caminhar do fim do analfabetismo para uma qualificação da leitura como modo de dominar melhor o mundo e a vida de cada um.»
Perdida que foi a lentidão e o silêncio, editam-se títulos de mais, com tiragens cada vez mais reduzidas. Tem razão, Guerreiro: «não é o livro que está em perigo (esse, é produzido em abundância); o que está em perigo (e não faltam no últimos anos os gritos de alarme, um pouco por todo o lado) é precisamente o sector da literatura, do ensaísmo, da ciência e das humanidades, que foi, até ao momento em que a edição seguiu o modelo do consumo e da produção industrial, o tronco da actividade editorial. Tanto livro, tanto livro, mas a maior parte do património literário está completamente ausente da edição e, ainda mais, das livrarias. Podemos dizer que os livros gozam hoje de um prestígio que, na generalidade, já não merecem; e que não há maior injustiça do que o triunfo deste canibalismo do lixo editorial que, ainda por cima, se alimenta do capital simbólico daqueles que ele devora.» E sugere então, à maneira de Bakunine, «destruição que faça tábua rasa da ordem existente. Aguardamos com impaciência e pouca esperança um assalto total perpetrado por grandes destruidores.» Contudo, ainda há quem se esforce por construir património e memória, mesmo sendo difícil colocá-lo nas livrarias-vampiros de novidades, que são sempre a mesma habitualidade. E a edição tem conseguido manter-se algures lugar de resistência e laboratório de pensamento. Ainda que se esteja a ler pior, em país que não ama os livros, não creio que a solução seja baixar os braços, mas procurar criativamente, e usando as tecnologias, formas de encontrar leitores para os livros que interessam. Sim, não basta ser livro para ser bom. O embaratecimento da oficina gráfica e a democratização do ensino fez explodir a vontade de cada um se ver publicado. Eis um dos múltiplos charmes do livro, a ilusão de posteridade. Por outro lado, têm surgido algumas livrarias, apesar dos pesares, como a Leituria, a Tigre de Papel, a Menina e Moça ou a da Cossoul, para citar quatro, só em Lisboa, de personalidades bem distintas. Será um combate, e, por mim, destruía já a figura da consignação, mas também não acredito na ideia romântica de grandes destruidores. Não me rendo e por isso continuarei a contar a anedota da diferença entre o optimista e o pessimista. O primeiro acredita que este é o melhor dos mundos. O segundo também teme que sim.

Horta Seca, Lisboa, 5 Março
Pela mão amiga da Ana [Matos] sou recebido por um pequeno catálogo cheio de céu azul. E nuvens! «Luz Cega», do Cláudio [Garrudo], catálogo da exposição homónima na Travessa da Ermida, traz ainda uma edição especial, a 13/50, de um altocumulus a estender-se horizonte sobre o qual projectarei os dias seguintes. Este azul contém uma intensidade que nos interroga, que nos perturba, que nos humaniza. Nem o céu nos limita. A matéria da nuvem toca-me, de tão concreta.

Casa Fernando Pessoa, Lisboa, 7 Março
Esperava pela reunião e o dia estava chuvoso, mas o relâmpago aconteceu ali dentro. A meu lado, com a discrição e minúcia do ourives, brilhava o pequeno desenho no qual Mário Botas faz atravessar banqueiro careca e caixa d’óculos de anarquismos vários, um cavalo, uma casa, a cadeira de cerimónia, documento ou jornal debaixo do braço, um chapéu-de-chuva, inclinando-o em resposta à gravidade da situação. Veio do passado o momento em que conheci o anartista, em exposição de Pessoas seus, na Biblioteca Nacional onde entrei clandestino, por ser menor, para me extasiar a ponto de pedir autógrafo. Anda por perto, o singelo postal, cópia do original que agora me perturba. Por, de súbito, me surgir como possível retrato meu no papel de doido empreendedor? Espreitei outras peças do acervo da casa múltipla escolhidas pelo António Viana para «Os Deuses Debruçam-se do Parapeito da Escada», mas só aquela continuou a vibrar em mim.

Casa da Cultura, Setúbal, 9 Março
Antes de subir à sala José Afonso, para conversa animada pela Rosa [Azevedo] sobre as quedas para dentro do Valério [Romão], tive tempo para experimentar a peça que a Estelle [Valente] encenou para rosto-palco da Carla [Maciel]. Não custa explicar a ideia por detrás de «Carla no Papel»: a actriz faz de outras actrizes, Marilyn, Marlene e Greta, personagens suas. (Exemplos nesta página.) Diz a Carla que foi «procurar nestes rostos míticos, que ascendem ao inatingível, a verdadeira essência destas heroínas.» Custa um pouco mais explicar a beleza explosiva disto. Os grandes formatos apresentam-se muito simplesmente, em jogo de espelhos, como ícones: estão ali os corpos e as almas daquelas figuras. Não tanto por força da máscara, da pose ou de qualquer outro artifício, mas pelo trabalho de personagem e a entrega da Carla que o olhar cúmplice da Estelle captou para esculpir com luz. Uma actriz pode bem ser fotografia, o papel onde deixa que se imprima o rosto das suas personagens, um céu de ler destinos. Carla no papel de Greta, de Marlene ou de Marilyn diz ainda que o abstracto tende a acontecer onde menos se espera.

14 Mar 2018

Não destruas os teus amigos

Por António Garcia Pereira

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ncontra-se hoje em muito lado (cartazes de rua, facebook, etc.) uma promoção publicitária de um jogo (Clash Royale) disponibilizado pela empresa de telecomunicações Moche, a qual reza assim: “Destrói os teus amigos sem gastar net”. Ora, esta campanha de publicidade, dirigida essencialmente aos mais jovens, é bem representativa dos dias de hoje e diz muito mais do que à primeira vista poderia parecer.

Com efeito, sob a capa de um “inocente” jogo, o que aqui se divulga é a ideologia e a corrosão do carácter (de que fala Richard Sennett), próprias da época do grande capitalismo financeiro e que se caracterizam pela individualização máxima, pela desvalorização e negação do colectivo, da solidariedade, da amizade e, entre outros, pela substituição dos ideais mais nobres pelos conceitos do poder, da fama e do dinheiro.

Trata-se de uma verdadeira “missa hipnótica” com que todos os dias somos lambuzados e narcotizados, designadamente através dos grandes órgãos de comunicação e instrumentos de publicidade de massa (como as televisões, as redes sociais, etc.) e dos quais, precisamente devido ao seu importante papel de “acarneiramento” e de adormecimento da grande massa dos cidadãos, o grande capital não abre mão, mesmo que não sejam imediatamente lucrativos.

Essa ideologia pegajosa e entorpecente prega pelas mais variadas formas, das mais directas às mais subtis, a substituição dos ideais e dos princípios (apresentados como coisa ultrapassada pelos novos tempos) pelo “pragmatismo”, leia-se oportunismo mais repugnante. A substituição da atenção e consideração para com o outro (que fez Gabriel Garcia Marquez escrever no seu “testamento político” essa frase magnífica de que um homem só tem o direito de olhar para outro de cima para baixo quando o ajuda a levantar-se) pelo individualismo mais feroz. A substituição do respeito pela verdade pelo uso mais descarado e pérfido da mentira. A substituição da elevação dos meios pela tese de que a pretensa legitimidade dos fins justificaria todos os meios, mesmo os mais reprováveis e ignóbeis. A substituição da amizade pela actuação interesseira e pelo rasteirar ou acotovelar do colega mais próximo para assim conseguir ultrapassá-lo. A substituição dos sentimentos mais nobres e elevados pelo apelo aos instintos mais baixos e primários. Enfim, a contínua habituação à ideia do atropelo da cidadania e da sã convivência entre iguais pela política do medo e do apelo à eliminação do “concorrente”.

A questão é, pois, bem mais séria e profunda do que poderia à primeira vista parecer.

A banalização da eliminação física ou cívica daqueles de que discordamos ou de que não gostamos, a apresentação da sociedade como um conjunto atomístico de pessoas das quais só sobreviverão os mais fortes e os mais “puros” que tiverem a capacidade de afastar todos os que estão a seu lado, a normalização do “vale tudo” para atingir um dado objectivo e a permanente pregação de que “a sociedade é assim” e nada podemos fazer para a alterar, constituem assim o cimento ideológico justificador da humilhação, da submissão e da sujeição às mais violentas formas de opressão e de exploração.

Já não estamos de facto no Portugal dos anos 30 ou 40 do século XX em que, por lei, se impunha a obrigação de os livros da instrução primária conterem frases tão significativas como estas: “É Deus quem nos manda respeitar os superiores e obedecer às autoridades”, “Na família, o chefe é o Pai; na escola, o chefe é o Mestre; no Estado, o chefe é o Governo” ou “se tu soubesses o que custa mandar, gostarias mais de obedecer toda a vida”.

Como também já não estamos no tempo de Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler que proclamava que “uma mentira mil vezes repetida acaba por se tornar verdade”, e que em Junho de 1941 escreveu: “O Führer disse que temos de vencer, seja justo ou não. É o único meio, e é justo, moral e necessário. E quando tiveres vencido, ninguém nos pedirá contas”.

Mas, por exemplo e mesmo nos dias de hoje, as cerimónias iniciáticas de grande parte das praxes universitárias (significativamente ressuscitadas ou mesmo criadas a partir dos anos 80) não representam qualquer mecanismo de integração social, mas antes são a iniciação à sujeição, sem reservas nem protestos, à prepotência hierárquica e a toda a sorte de abusos e humilhações. Um autêntico treino para os aceitar na Escola, no trabalho e na sociedade em geral.

Por outro lado, revela-se igualmente bastante interessante constatar como as grandes inovações tecnológicas, precisamente porque apropriadas por uma ínfima minoria (em 2017, 1% da população mundial arrecadou 80% de toda a riqueza produzida, enquanto 50% da população mundial ficou com 0%!…), são transformadas em terríveis instrumentos de violenta exploração e opressão contra os quais a ideologia peganhenta e retrógrada, mas omnipresente, do capitalismo financeiro prega a impotência e a inacção.

Um jovem jornalista e escritor inglês, James Bloodworth, está a editar um interessante livro – de que o “New York Times publicou entretanto uns excertos – intitulado “Hired: six months in undercover low-wage Britain” (“Contratado: seis meses infiltrado na Grã-Bretanha dos baixos salários”). Tendo trabalhado durante meio ano em várias empresas, como a Uber, mas sobretudo durante um mês na gigante Amazon, ele descreve o ambiente de exploração e de terror extremos vividos na dita empresa, como por exemplo: os cerca de 1200 trabalhadores, quase todos bastante jovens, recebem salários muito baixos e vivem numa autêntica prisão; os tempos para se deslocarem à cantina para tomarem as refeições não contam como tempo de trabalho e são controlados ao segundo; chegam a levar 15 minutos para passarem por gigantescos detectores de metais; são obrigados a usar um aparelho electrónico que regista todos os passos no interior da empresa; estão sujeitos, a todo o momento, a humilhantes revistas pessoais levadas a cabo por seguranças.

O conjunto de mudanças tecnológicas que estão hoje em curso, e que se baseiam sobretudo em inteligência artificial, robótica e novas tecnologias de comunicação e informação (tal como sucedeu no início do século XIX com a introdução das máquinas a vapor, em particular no sector da fiação e tecelagem) decerto que irá fazer desaparecer diversas profissões, mas decerto também que irá contribuir para a criação de outras, mais qualificadas e complexas. E deveriam permitir a criação de uma relação bem menos dura e violenta com o trabalho, possibilitando, desde logo, a redução do número de horas diárias e semanais e o aumento das condições de segurança, saúde e dignidade no desenvolvimento da actividade produtiva humana, quando estão é a conduzir à crescente expropriação dos saberes mais qualificados e à crescente proletarização dos seus titulares.

Mas, para isso, as relações sociais de produção não poderão ser mais aquelas que precisamente permitem a brutal acumulação de riqueza por parte de quem tudo tem e nada faz, ou seja, relações de escravidão do trabalho assalariado.

E eis que regressamos ao ponto inicial. É que é exactamente para reproduzir e perpetuar essas mesmas relações de produção que serve a afirmação, tão aparentemente “neutral” quanto eficaz, da ideologia do individualismo, do oportunismo, do golpe baixo e da negação do colectivo, da solidariedade e da amizade.

Não! Não queiramos destruir os nossos amigos e os nossos companheiros! Não aceitemos vê-los como concorrentes que deveremos eliminar a todo o custo e por qualquer meio, mesmo que traiçoeiro e ignóbil, para assim podermos alcançar sucesso. Não ponhamos o joelho em terra perante a humilhação, a barbárie e a malfeitoria, nem aceitemos que nos imponham o estatuto de carneiros a caminho do açougue.

O Mundo pode e deve ser melhor! E se nos unirmos e nos batermos por ideais justos e correctos será possível alcançá-lo.

Recordemos que quando em 12 de Outubro de 1936, na abertura oficial do ano lectivo da Universidade de Salamanca, o General fascista Milán Astray gritou o atroz lema da Legião “Viva a morte!”, o poeta e Reitor Miguel Unamuno respondeu-lhe com estas imortais palavras: “Vencereis porque tendes força bruta de sobra. Mas não convencereis, porque para convencer há que persuadir. E para persuadir necessitais de algo que vos falta: razão e direito na luta!”

E a História demonstrou quem tinha afinal razão…

14 Mar 2018

Levinas – Segundo movimento

[dropcap style≠’circle’]2.[/dropcap] A minha experiência do Outro, se assim podemos dizer, dá-se na morte do outro. Porque a minha própria morte é a morte do outro. O cuidado que cada um tem em tardar a sua própria morte, em cuidar de si, não deriva de nós, mas do outro. É outro quem eu vejo morrer e não eu mesmo. A minha morte, aquela que ninguém pode viver por mim – ninguém morre a morte de ninguém, cada um tem de morrer por si – vem do outro. É pelo outro que eu sei da minha morte. Na sua “Nota de Apresentação” a “Deus, a Morte e o Tempo”, de Levinas, Fernanda Bernardo diz mesmo que “a morte é agora pensada e sofrida a partir da morte do outro.

A partir da mortalidade inscrita no seu rosto que nos reclama. E que nos reclama através do grito lançado da sua vulnerabilidade extrema. (…) Um grito que solicita, em suma, a nossa responsabilidade ou o nosso amor.” (p. 27) Esta solicitação levantada pelo outro, pela sua vulnerabilidade extrema faz também ver o sentido do amor. Levinas escreve: “Aquilo a que, através de um termo um tanto gasto, chamamos amor é, por excelência, o facto da morte do outro me afectar mais do que a minha. O amor do outro é a emoção da morte do outro. É o meu acolhimento de outrem, e não a angústia da morte que me espera, que é a referência à morte. Encontramos a morte no rosto de outrem.” É indissociável, em Levinas, este pensamento filosófico acerca do outro do pensamento religioso judaico.

Em conversa com um amigo e escritor judeu, Ricardo Ben-Oliel, ele diz-me: “O problema do Outro assume no judaísmo a maior das importâncias. O monoteísmo vem substituir os deuses por um só que não se vê, que não se ouve, mas que está. É, no fundo, o absolutamente Outro. A relação religiosa passa a ser, em grande medida, uma relação ética e de respeito para com a Criação, obra desse Deus que não se vê, do absolutamente outro. Ora a maior das criações será o próprio homem, o Outro, que tem de ser estimado e respeitado como a mais significante das criações divinas.

O judaísmo assume, assim, um carácter fundamentalmente ético; é uma religião para adultos, como diz o próprio Levinas. A importância do Outro assume no judaísmo uma tão grande dimensão que nem Deus desculpará no dia de Yom Kippur [– Dia do Perdão ou Dia da Expiação, é o mais sagrado de todos os dias do ano judaico, durante o qual se faz jejum absoluto, se reza pelo perdão das ofensas contra a lei divina e se pede perdão àqueles a quem ofendemos –] as faltas que alguém tenha cometido para com o Outro. Deus desculpará, sim, as faltas cometidas para com Ele, no desrespeito pelos princípios da Tora. Mas Deus não intervém para desculpar as faltas que alguém tenha cometido para com Outro.

Só o Outro, o ofendido, o poderá fazer. Deus, o Todo Poderoso, vê a sua ‘competência’ limitada, pois transferiu parte dela para o Homem. E nessa qualidade, tem o homem o poder de não perdoar. Mas já o perdão humano devera ser concedido se o ofensor sinceramente o solicitar.” De facto, podemos ler na Mishna: “As faltas do homem para com Deus são-lhe perdoadas no Dia da Expiação; as faltas para com os outros não lhe são perdoadas no Dia da Expiação se não se apaziguou com os outros.”

Esta relação do Outro connosco, pois é do Outro que vimos, quer seja os pais ou Deus, assume uma concretude no Rosto. O Rosto é a parte visível do infinito, e a palavra que o dá a ver é responsabilidade. A responsabilidade é a estrutura essencial, primeira, fundamental da subjectividade. Deve entender-se a responsabilidade como responsabilidade por outrem, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou que não me diz respeito. Levinas, em Ética e Infinito, cita uma passagem fundamental de

Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros.” E continua, Levinas, “Não devido a esta ou àquela culpabilidade efectivamente minha, por causa de faltas que tivesse cometido; mas porque sou responsável de uma responsabilidade total, que responde por todos e por tudo o que é dos outros, mesmo pela sua responsabilidade.

O eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros. Sou eu que suporto outrem, que dele sou responsável. (…) De facto, trata-se de afirmar a minha própria identidade do humano a partir da responsabilidade.” (p. 82 e 84) Esta filosofia é uma ética. Mas é uma ética muito distante da deontologia, do utilitarismo ou de uma moral virtuosa. A ética aqui é uma filosofia primeira, como ele mesmo a define.

13 Mar 2018

Juan de La Cruz

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uito me apraz este instante na imagem de Juan de La Cruz como um efeito lendário de sombras, luzes e rectidão. Nascido em Ávila em 1542 amigo e aliado de Teresa de Ávila na reforma Carmelita que o levou a um duro cárcere, ele foi um poeta imenso que herdou a beleza dos Cânticos de Salomão – cantar e orar serão assim uma e a mesma coisa pois tal como a música apaziguara as feras, os cantares são regras de gratidão.

Foi pelo reinado de Filipe II, na Contra-Reforma portanto, que a vida deste carmelita teve lugar entre votos de silêncio, estoicismo e impressionante resistência pela sua transbordante necessidade de transcender o suplício da prisão a que foi condenado pela reforma que fez na Ordem, orientando-a para um estado demasiado ideal que lhe angariou sérias inimizades. Em condições duríssimas, o seu sentido de missão não soçobrou aliando a sua vastíssima cultura a um grau de intensa perfeição. Ficarão para sempre alguns dos seus poemas como o melhor da língua castelhana.

A superação é um passo gigantesco em cada ser humano, se dele se esperam realizações a este nível teremos que aludir a cada interstício de uma frase como se de ranhuras que se consideram de nenhures, saíssem então para uma segunda leitura, aquele espanto que as ilumina: essa sombra, esse enleio, essa dissipação na grande poeira cósmica do poema, é um exercício imenso que deixa exaurido o agente da transformação e lhe permite continuar em cada instante mais renascido, a essa intensa alegria se chamará ascese. Há sempre aqui detalhes de rigorosa estruturação que visam três etapas – purgativa, iluminativa e unitária. A sua obra “Teoria de la expresion poética” abre esse atalho a uma estrutura formal que se consolida na solidez da inventividade linguística e desoculta o que de inconcluso existe numa língua. É um trabalho espantoso! Um nevoeiro espesso fechou estes legados, áreas do cérebro talvez as tivessem já esquecido: a palavra já não salva, sendo agente de combate e de disputa estéril.

O cérebro pode ser bem uma central de portas que à medida que umas se abrem se fechem outras, podendo não dar provas de capacidade associativa dentro de um corpo que dirige. Daí que sem alimento de uma fonte ela progrida para uma outra, dado que interagir com a sua complexa natureza implique um outro armazenamento do tempo e esse para cada um é medida limitada impondo prioridades. Hoje seria impossível uma “Noite Escura” na voz de um poeta, pois que também a fímbria poética é uma espécie de termómetro do tempo e o tempo em que vivemos retirou a película envolvente das sombras e não desagua nele nenhuma luz que transcenda o finito da consciência. Estamos envolvidos em fontes várias que nos tiram a dinâmica diamantina face ao estado da nossa vigília.

Podemos ainda encarar as versões do texto como uma exegese, uma forma de intenção apologética, outra como imanando de um caudaloso manto lírico. No entanto, creio não haver um estado de festa mais conseguido do que a substância destes cânticos. Nada aqui se castiga. Não soçobra à dor infligida, não difama, nem uma queixa. É uma alma luminosa! Estrofe de cinco versos, a lira, foi o pentágono, a estrela métrica do seu brilho – antiquíssimo Cântico dos Cânticos – aqui reanimado. Acrescente-se um memorável incentivo ao desenvolvimento poético que Espanha em plena forma do seu labor eclesiástico imprime com o “contrafactum” que consiste em adaptar um texto profano e onde toda a obra de Juan de La Cruz vai incidir, nessas coplas ” à lo divino”, atravessada agora de aforismos não vacila face à sua matriz herética. Também os Cancioneiros são matéria de desocultação. As notas que desenvolveu para os comentários aos seus poemas ultrapassam em muito a sua obra poética que ocupa umas quarenta páginas. Mas, até aí, nessa sempre exegese bíblica de si mesmo, ele o fez com a mestria de um raro poeta. Penso que ao desviar-se até da matéria de facto, como hoje juridicamente se designa, ele criara uma nova forma de domínio onde vamos buscar qualquer matéria onírica e ontológica que estão plasmadas neste sopro.

Todas as Luas-Novas prestava tributo como aqueles cegos que vão por caminhos milagrosos à sua «Noite Escura» e a Lua tinha como fonte a Casa e a Casa era algo que nascia como as alvoradas. Ao prestar culto, sentia que era assim entendível a grave Lua, aquela que na fonte ainda brilha em cada um de nós no silêncio tranquilo de uma alma. Ela era então tão Nova nesse Novilúnio, que nunca tinha nascido, e como propósito, cabia assim nos sonhos que me deu Juan de La Cruz. Brilhava então a secreta paz.

 

Em uma noite escura

com ânsias, em amores inflamada,

oh ditosa ventura!

saí sem ser notada, estando minha casa sossegada.

Às escuras, segura,

pela secreta escada, disfarçada,

oh ditosa ventura! às escuras e emboscada,

estando minha casa sossegada.

 

Nessa noite ditosa, secretamente, que ninguém me via,

de nada curiosa, sem outra luz nem guia

senão a que no coração ardia.

Só esta me guiava mais segura que a luz do meio-dia.

aonde me esperava quem eu já sabia,

em parte onde ninguém aparecia.

 

Oh noite, que guiaste!

Oh noite, amável mais que a alvorada!

Oh noite que jantaste

Amado com amada,

amada em seu Amado transformada!

 

Em meu peito florido,

que inteiro só para ele se guardava,

ficou adormecido,

e o leque de cedros brisa dava.

 

A variação da ameia,

enquanto eu seus cabelos espargia,

com sua mão que enleia

o meu colo feria,

e meus sentidos todos suspendia.

 

Fiquei e olvidei-me,

o rosto reclinei sobre o Amado;

cessou tudo, e deixei-me,

deixando o meu cuidado

por entre as açucenas olvidado.

13 Mar 2018

Os nossos minúsculos virtuosos

[dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]esta feita é Feliciano Barreiras Duarte, recém-empossado secretário-geral do PSD. Ao que parece, este terá não somente mentido no currículo – que já se prontificou a rectificar – como terá forjado uma carta que Deolinda Adão, Professora e Directora Executiva do Programa de Estudos Portugueses na Universidade da Califórnia, embora reconheça a sua assinatura, diz nunca ter escrito.

Na missiva, em Português, a Professora Deolinda Adão afirma, em nome da Universidade da Califórnia, Berkeley, que “Feliciano Barreiras Duarte se encontra inscrito na Faculdade como visiting scholar” – um estatuto concedido a professores ou estudantes que visitam a universidade com o propósito de dar aulas, conferências ou investigar em tópicos nos quais o seu trabalho seja de reconhecido mérito. Diz ainda a carta que a mesma Deolinda Adão planeia ser orientadora da tese de doutoramento de Feliciano Barreiras Duarte.

O problema dessa carta é que nem dez porcento é verdade, se quisermos glosar Manoel de Barros. A única coisa que a Professora Deolinda Adão reconhece no documento, aliás, é a assinatura. Tudo o mais parece ter sido forjado. Feliciano Barreiras Duarte confessa-se surpreendido. Reitera a sua incompreensão perante as declarações da Professora Deolinda Adão, afirmando que a carta – que ele próprio produziu enquanto prova – terá mesmo chegado dos Estados Unidos, tendo este sempre confiado na sua autenticidade.

Percebe-se ao longo das declarações que este tem dado à comunicação social, que o seu estatuto de visiting scholar na Universidade de Califórnia nunca passou de uma ideia avançada pelo próprio e por Manuel Pinto de Abreu (também este professor na Lusófona, onde Feliciano igualmente lecciona). Manuel Pinto de Abreu pertence ao PSD, como Feliciano. Surpresas? Nenhuma. A pedra de toque do despudor total surge quando Feliciano Barreiras Duarte afirma ter pensado em ir para Berkeley mas que nunca pôde concretizar o projecto por não lhe ser economicamente viável.

Se atentarmos ao currículo presente no site do parlamento e o compararmos com o aquele que está no DeGóis – um repositório de dados relativos a académicos e investigadores portugueses – notamos algumas diferenças de monta. No currículo que enviou para o parlamento, Feliciano menciona ter um Mestrado em Direito, na vertente de Ciências Jurídicas e Políticas. Naquele que podemos consultar no site do DeGóis, o Mestrado em Direito não existe. O que existe, outrossim, é uma frequência no Mestrado em Sociologia na Universidade de Évora, na variante Poder e Sociedade. Qual destas informações corresponde à verdade? Não sabemos.

Na realidade, o comportamento de Feliciano Barreiras Duarte é tudo menos original. Estamos decerto lembrados de José Sócrates e da sua Licenciatura domingueira, só para dar um exemplo. As Autónomas, Independentes e Lusófonas desta vida parecem ter sido criadas não para disponibilizar, por via privada, cursos nos quais os alunos com médias menos satisfatórias poderiam ver realizadas aspirações académicas e profissionais, mas para dar guarida a políticos que, de outro modo, teriam de se conformar com uma titularidade académica abreviada.

Se pensarmos que estas criaturas – para além de assumirem competências pedagógicas em áreas nas quais a sua formação é tudo menos clara – mostram uma inteligência tão débil que pensam viver numa época anterior ao Google e têm como aspiração governar-nos, é difícil não sentir um arrepio na espinha. E, simultaneamente e como que numa epifania, compreender uno tenore a história recente do rectângulo, transformado simultaneamente em coutada e em chiqueiro.

Feliciano Barreiras Duarte, no fundo apenas um subproduto clássico do pós 25 de Abril, representa aquilo que de mais pernicioso existe na política contemporânea, moldada conceptualmente pela sociedade do espectáculo e do entretenimento: o aparecer tem primazia ontológica sobre o ser e, para quase tudo, como diria o Raposão do Eça, basta ter “a ousadia de afirmar”.

12 Mar 2018

Da medicina antiga II

[dropcap style =’circle’] E [/dropcap] m “Sobre os ares, as águas e os lugares”, texto do corpo hipocrático, lemos a complexidade dos elementos que intervêm no diagnóstico médico. O conjunto de elementos que formam o alfabeto dos médicos: temperatura, alta e baixa, quente, frio, húmido, seco, as diversas fases do dia e do mês, as diversas estações do ano, as idades da vida, sexo, localidade de habitação, naturalidade, mas também as operações que alteram um extremo no outro: aquecimento, arrefecimento, deslocação, alteração da localidade de habitação, mudança da dieta, regime alimentar e actividade física, permite perceber que os factores de análise, diagnóstico e prognóstico de uma determinada doença não se circunscreve a um indivíduo, mas o indivíduo é “visto” num contexto absolutamente complexo e, ainda assim, claro. O interior côncavo do corpo humano, para suar a formulação do médico, contem um sistema “hidráulico” complexo de quatro líquidos fundamentais: a bílis negra, bílis amarela, fleuma e sangue. Há uma mistura que pode ser desequilibrada destes líquidos e não tem que ver com a diferente quantidade com que um líquido está presente no sistema. As quantidades são qualitativas. Mas todos os fluídos, humores ou líquidos do corpo estão sujeitos a condições estruturais que os alteram: aquecem ou arrefecem, fazem-nos deslocar para zonas diferentes do corpo com consequências determinadas. Um dos pontos fundamentais é que depende da “alteração da estação” (“ek metabolês tôn horôn”). A hora em grego não corresponde a 60 minutos. Nem necessariamente ao conceito de estação do ano. É uma qualificação temporal que integra em si dois estados, um de partida que é o que se tem verificado, e outro de chegada, que é o estado no qual o primeiro se transforma. A alteração no interior do corpo humano depende desses factores mais e mais abarcantes e que transformam campos que lhes estão subordinados e nós estamos subordinados ao equilíbrio complexo de tudo o que está envolvido na manutenção e conservação da vida. “Sobre as estações do ano, temos de poder determinar, como é que vai ser o ano, pouco saudável ou saudável. Os sinais são dados pelo ocaso e nascimento das estrelas, se o outono traz chuva, o inverno moderado, se cai uma quantidade moderada de chuva na primavera tal como no verão”. Assim, as próprias regiões do globo que são afectadas diferentemente pelo céu estrelado na sua mudança sazonal produzem seres humanos de compleições diferentes. Mas este não é oponho mais interessante. Se há falta de força de vontade ou de coragem num ser humano, há um elemento atmosférico, fluvial e local a contribuir para que tal aconteça. Se não houver grandes mudanças climatéricas, as pessoas tendem a ser suaves e gentis. Só a exposição a grandes alterações climáticas abala o espírito e estimula a paixão nos seres humanos. São as alterações que sobretudo despertam o espírito no ser humano.

Se percebemos a influência exterior do meio ambiente que nos envolve, do clima, atmosfera e meteorologia e geografia particulares que nos acontecem, percebemos também a dinâmica complexa destes factores transformadores num processo temporal ao longo da vida admitindo alterações ao longo do dia, mês, estações do ano, idades da vida. Mas mais interessante e absolutamente contemporâneo é pensar que a disposição do espírito, a compleição do carácter, o modo de ser, a vida que levamos resulta ou é concomitante a essas mesmas pressões climatéricas.

A análise final seria a de procurar perceber se a partir do interior do ser humano, também não haverá uma contaminação estrutural e intrínseca que altere o sítio em que vivemos, invertendo assim a lógica de subordinação do humano às forças cósmicas.

 

9 Mar 2018

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] s casas dos poetas são locais estranhos que devemos ter como sentinelas de energias cósmicas, pois dormitam lá os veios que desaguam dos seus lençóis freáticos. São espaços consagrados que nem sempre sabemos definir como espaços singulares. Impunemente não foram ocupados e deixaram um lastro de encanto na sua decadência que não tem preço, não se deve profanar e de todos os lares é este o mais enigmático e o que produz mais encanto nas nossas tenções emocionais. Se para tanto acrescer, as suas vidas difíceis, nem por isso perturba esse chão que parece mergulhado de um silêncio desconhecido de uma manifesta antecâmara de iniciados, pois tal como disse Safo: vedado é o choro na casa de um poeta/ nunca tal pesar se apartará de nós.

Na volúpia das transacções imobiliárias que fazem agora das populações de uma cidade seres em via de uma grande debandada para dar lugar a moradores que nada têm a ver com a terra, os hábitos e sabemos que a cidade, se lhes acrescentarmos as casas em ruínas dos poetas que ao abandono são escombros em plena via citadina, é bem mais que uma moldura para negócios imobiliários. E é da casa do grande simbolista que agora falo que em ruína está prostrada no meio da multidão, talvez que nada saiba já do seu antigo habitante, pois que a mesma Nação que vende todas as casas já pouco sabe dos que nelas viveram, sobretudo se foram poetas: há tantos, não é? – Não, não é. – E os que têm essas casas que para aí andam são “caseiros” do acto poético que não é o mesmo que o lar de um deles.

Saberão as gentes quando se inclinarem para transpor as portas daqueles de que agora falo, e se não souberem as casas, por mais caras que sejam, também não valerão nada. Sem um certo conhecimento destas coisas não há ninguém para habitar, nem as portas nos selam a raiz da nossa intimidade. Ao abandono ficaram muitas e se a de um Almeida Garrett deu lugar a um cubo habitacional depois de lhe retirarem os belos varandins , resvés à de Pessoa, que nem casa era, mas um quarto, onde fizeram um “filme” asséptico que o próprio desdenharia na sua configuração inapropriada. Não esqueçamos que o poeta é levemente como os gatos, gosta da casa, gosta do tempo das coisas que a desgastam e transformam. Mas estamos num país de movediços e de grandes “imóveis” de uma visão de habitat, estamos numa plataforma de gentes que não sabe honrar o seu legado mais bonito. Encheram-se de coisas para jogarem aos dados financeiros e tolheram a capacidade de reabilitar os sonhos.

António Nobre morreu cedo, não tendo deixado nas paredes da sua casa grandes vestígios de obras nem aclimatado as salas com a sua inquietação. Talvez estivesse recolhido com a saúde que sabemos frágil e «Só» lá habitasse ele e o que estava em queda simbólica no seu um tanto desesperado estado. O desencanto simbolista tem muitas cartas escritas em surdina que nem todos leram pois que para os “poetas” das casas novas não interessa a relação entre os pares. Mas talvez pudesse interessar às Instituições, aos Ministérios, agora que há o da Cultura, mas a Cultura tal como a conhecemos talvez nem precise de casas, mas sim de Festivais e estes “pequenos arranjos” sejam sem dúvida coisas de somenos.

E assim nesta perspectiva de Jogos Florais e muito imprópria para a memória nos vamos dando conta que morrer jovem num local assim, antes como hoje, talvez seja a melhor maneira de escapar a uma tremenda falta de um núcleo central, que é o da sabedoria das pedras falantes.

O saudosismo que embainha a obra não se refere à saudades do futuro, tão ao gosto de Antero de Quental, que este futuro brindado em derrocada e quase esquecimento tem pouco que contemplar, mas por cada casa de um destes poetas em ruína e desabamento há um anátema gigantesco que ninguém vê. E que tanto dá lembrar. O mundo nunca lhes pertenceu e agora é mais que tempo de não existirem. E quando tudo isto terminar, assim, como se a corrente da era fosse só isto, e desta maneira, as casas de todos desabarão de formas imprevistas. Não se pode atingir o esqueleto de altares sem uma manobra na atmosfera ao redor, e, se quase ninguém pode estar nas casas uns dos outros devido à magnitude das vidas impróprias, conservam-se no éter lembranças de vivas fontes e sentidas saudades quando nos damos conta daquilo que já foram.

Também se pode colocar António Nobre no sanatório, mas lá estariam muitos e insanáveis seres que deixaram as suas casas para não contaminarem os outros habitantes, quem está a mais deve ser removido para locais onde não seja factor de perturbação, e, não havendo tença, não há direito a chão, quanto mais à reabilitação de relíquias! Era um grande inovador da linguagem poética do seu tempo e uma língua precisa dos seus xamãs ou será uma artilharia mecânica com bases na Lua – idem – a colocação das vozes para se dizer o banal com o palato em forma e as ideias sem fórmula …

Mas este tão «Só» para não ficar confinado a coisa nenhuma, até foi editado em Paris quando o seu autor era jovem no ano de 1892. Convém reabilitá-los a todos, todos nos dão a Casa que esperamos ver reerguida, interlaçar simbolismo e saudosismo para a construção das nossas muralhas, porque podemos vir a não saber entrar mais nos nossos Templos. É que as nossas vidas precisarão sempre de um secreto amor. Mas nem tudo é triste na visão do poeta, nem a tristeza que deles irrompe, é, ou foi alguma vez teia de servidão, por isso há ainda uma alegria à Cesário e uma noção de festa que não pode ser arrecadada no esquecimento.

 

Georges! anda ver meu país de romarias e procissões!

Olha essas moças, olha estas Marias!

Caramba! dá-lhes beliscões.

……………………………

…………………………..

Que lindos cravos para pôr na botoeira!

Tísicos! Doidos! Velhos a ler a sina!

Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires!

Cães! Dálias de pus! Olhos fechados!

Reumáticos! Anões! Deliriuns- tremens! Quistos!

………………………………..

Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!

E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar…

Qu´é dos pintores do meu país estranho,

Onde estão eles que não vêm pintar?”

 

 

Como deixar cair esta deslumbrante forma manifesta, esta imensa lira de inventividade? Vamos para tua Casa!

 

9 Mar 2018

Rua Camilo Pessanha

[dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ublicado no artigo anterior a parte inicial do discurso do então Presidente do Senado, Dr. Luiz Gonzaga Nolasco da Silva, que com “breves e sentidas palavras” falava a 3 de Março de 1926 na secção do Leal Senado da Câmara de Macau. Nessa reunião camarária, propôs um voto de profundo pesar pelo passamento de Camilo Pessanha e dar o nome desse ilustre cidadão a uma rua. Em homenagem, “dando-se o caso de o ter conhecido e convivido com ele longos anos, primeiro como seu aluno e depois, colega durante o percurso deste como professor e advogado”. Discurso que aqui continuamos, após ter descrito a acção do advogado dos advogados, versa agora sobre as outras facetas do distinto poeta.

“Como juiz, foi Pessanha de uma austeridade e de uma probidade inconcussas. Lembro-me de que uma vez um nababo chinês tinha uma questão cível pendente da sentença de Pessanha: esse litigante foi visitá-lo algumas vezes, e da última, ao despedir-se, deixou-lhe um envelope sobre a mesa… Pessanha deu pela incorrecção do homem e, obrigando-o a recolher o vil metal, correu-o à bofetada até à porta da rua. Foi assim que Pessanha castigou aquela tentativa de corrupção. Era intransigente em pontos de honra profissional, mas temperava a sua austeridade de julgador com a bondade do seu coração. Todas as vezes que o seu dever lhe impunha uma condenação, procurava aplicar ao réu a menor pena que por lei, podia aplicar-se.

Na situação de juiz substituto em exercício, teve ensejo de revelar, por mais de uma vez, os seus eruditos conhecimentos.

Está ainda na memória dos seus colegas e da família judicial, uma extensa sentença por ele escrita num processo de crime por venda de menor, sustentando que, segundo a idiossincrasia chinesa, tal facto não era criminoso.

Outra vez em que manifestou a pujança do seu intelecto com uma retentiva nunca vista, foi no processo de extradição do mandarim Pui-Keng-Foc, em que esteve seguramente quinze dias a ouvir as declarações do extraditando e outros quinze ditando-as, sem se socorrer dum único apontamento escrito, e sem pôr um ‘digo’ ou fazer qualquer emenda. Quando terminou o seu ditado, com tanta clareza e fidelidade como elegância e vernaculidade, pediu ao intérprete que traduzisse uma a uma as palavras por ele ditadas, e o mandarim Pui, que era também um literato e um poeta, ao acabar de ouvir a tradução da última linha, pediu licença ao juiz, para o cumprimentar por aquele record de assimilação e de retentiva que o fez admirar das faculdades intelectuais do juiz português. E lá da sua prisão na Fortaleza do Monte, escreveu num leque uns versos que dedicou a Camilo Pessanha.

Acham-se dispersos nos arquivos dos tribunais de Macau e da Secretaria do Governo da Província, muitos trabalhos jurídicos de Camilo Pessanha, e é pena que não se faça deles uma edição in memoriam”.

 

De jornalista a coleccionador

 

“Pessanha foi também jornalista, e eu tive a honra de o ter tido por meu colaborador no jornal que fundei, intitulado O Macaense. Neste jornal publicou Pessanha a tradução em versos portugueses, de umas elegias chinesas, seguida de eruditas notas explicativas das passagens ou palavras mais interessantes, e por ventura menos compreensíveis da história e da literatura chinesa. Pena foi que tivesse ficado em meio, ou a menos de meio, aquela tradução, que Sua Excelência com tanto entusiasmo encetara, e que pensava remeter para Portugal para que Dona Ana de Castro Osório fizesse dela uma edição portuguesa. Porém, os bocados de ouro que ficaram arquivados em O Macaense servem para dar aos estudiosos uma ideia da erudição de Pessanha em assuntos da literatura chinesa – pois é bom que se saiba, e que fique escrito, que Pessanha, apesar de não ter tido um único exame de língua chinesa, estudara esta língua, e bem assim as fontes da sua literatura, que bem se podia considerar um bom sinólogo português.

Quantas vezes, em dias calmosos, em que a maior parte da população procura nas distracções fáceis e nas brisas das praias um alívio aos calores da época, quantas vezes, nesses dias, não vi eu Pessanha, com o mestre china ao lado, aprendendo os caracteres chineses e repetindo com o professor os tons e sons da língua sínica! E que Pessanha só se recreava com coisas de espírito, e a civilização chinesa era para ele uma fonte inexaurível de estudo e de recreação do espírito.

Pessanha foi, ainda, um coleccionador de coisas de arte chinesa, as suas salas eram uma exposição permanente de muitos objectos artísticos da China, e na aquisição deles, consumiu Pessanha, estou certo, a maior parte dos seus proventos da advocacia.

Várias vezes, fez Pessanha doação ao Governo Português, do que melhor tinha na sua colecção de arte chinesa, e até ultimamente, um mês antes de morrer, doou ao Estado mais objectos artísticos. Eu lembro-me muito bem de ter visto em Lisboa, no Museu das Janelas Verdes, várias pinturas chinesas, doadas por Camilo Pessanha ao Governo Português. Nestas sucessivas doações, manifestou Pessanha o seu patriotismo”.

 

Nome para uma Rua

 

“Enfim, a morte de Camilo Pessanha veio, como disse, abrir uma lacuna entre os advogados de Macau. O país inteiro o pranteará, porque perdeu um poeta, um jurisconsulto, um artista, e um patriota.

Proponho, pois, que, além do voto de sentimento na acta e da remessa de uma cópia deste parágrafo a seu filho, Sr. João Manuel de Almeida Pessanha, se dê o nome do grande cidadão a uma das vias públicas de Macau. Tenho dito”.

Após a sentida homenagem do Dr. Luiz Gonzaga Nolasco da Silva, seguiu-se o Vice-Presidente do Leal Senado que se associa “com a maior dor e comoção à proposta de sentimento pela morte da grande individualidade que, em vida, se chamou Camilo de Almeida Pessanha. Já Sua Excelência, o Presidente, no admirável discurso que acabou de pronunciar, pôs em relevo as altas e inconfundíveis qualidades morais e intelectuais que caracterizaram o divino autor da Clepsydra, poema que foi com certeza idealizado num daqueles momentos de êxtase em que o espírito de Pessanha se evolava às mais belas regiões do sonho, envolvido pelo fumo do veneno destilado das rubras papoilas. Só lhe resta, pois, prestar o culto da sua homenagem a quem foi alguém na vida terrena”.

Após o vereador Damião Rodrigues dar o apoio às propostas do Presidente do Senado, associam-se também os outros vereadores, como Jacques Gracias e Pedro Lobo, que reside nesta colónia há bem pouco tempo. Assim aprovada por unanimidade, nesse dia 3 de Março de 1926 assenta-se mudar o nome da Rua do Mastro para Rua Camilo Pessanha, o que deverá acontecer para breve.

Com a construção entre 1910 a 1915 do primeiro lanço da Avenida Almeida Ribeiro, do Largo do Senado ao Porto Interior, a Rua do Mastro ficara dividida e assim o seu nome na parte Norte passava a chamar-se Rua Camilo Pessanha, o que terá ocorrido a 8 de Março de 1926, segundo Beatriz Basto da Silva e do lado “da Rua da Felicidade mantém a designação do Mastro, reduzida a Travessa”.

9 Mar 2018

Hemorróidas de Ouro

05/03/2018

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] convivência fraternal, eis um princípio que, como as bolotas, nenhum porco deixa incólume. Imagine-se o gáudio de Putin, ao anunciar que tem no seu arsenal a arma invencível. Deve ser um míssil que despoleta orgasmos à sua passagem (parece que a seis vezes a velocidade do som) e desperta na matéria inanimada as sensações de Zeus quando penetrava a alva novilha Io. E, em delíquio, os poderosos sistemas antimíssil americanos abstraem-se da sua missão. Eu também fiquei gago quando, no balcão de um café em Paris, o meu ombro se encostou à ombreira de Grace Jones, confesso.

Até compreendo a gabarolice de Putin (- Trump, nenhum twitter?). Coitado, calhou-lhe ser contemporâneo do americano intimorato e de Xi Jinping.

Trump já demonstrou que não consegue assimilar uma regra simples: às vezes para ganhar é preciso perder. (Eu vou mais longe, ainda que o jogo seja perigoso: só se ganha quando se perde. Um bom exemplo na História é a forma como os gregos perderam a sua soberania para os romanos em troca de colonizarem o espírito do império romano, até ao seu término; outro exemplo, o modo como o irrelevante Fernando se transformou na indústria Pessoa. E diga-se, ele sabia.) Este é um tipo de lucro inaceitável para Trump que só tem olho para as imediatas vantagens materiais, descura as reciprocidades, e sofre do Complexo de Midas.

Quanto ao novo imperador chinês, passou a aplicar-se-lhe tudo o que em 2011 escrevi no meu blogue sobre o anterior presidente norte-coreano:

«De acordo com a agência noticiosa da Coreia do Norte, a KNCA, novos estranhos fenómenos naturais têm sido testemunhados, agora um pouco por todo o mundo, desde a morte do Líder:

No México, um ácaro matrimoniou-se com uma lâmpada de 100 watts, resignado por, desde a morte de Kim Jong-II, ter deixado de fazer qualquer sentido a distinção entre matéria orgânica e inorgânica.

A camela (afinal era uma) que em Jerusalém atravessava há dois mil anos o buraco da agulha desatou a parir.

Um selo de dez ienes imolou-se em frente à sede da ONU, em Tóquio.

Um panda deu um concerto de bateria na messe dos soldados que guardam a fronteira com a Coreia do Sul mas estes, compungidos pela morte do Grande Líder, não arredaram o pé das guaritas.   

Na lua irromperam da terra as melancias e houve uma súbita chuva de ósculos.

Sacudido pelo luto, Deus, para afastar de si a funesta ideia do suicídio, começou finalmente a ler o Kapital do Karl Marx.

Em Lisboa, o arroz carolino mudou de sexo.

Na Califórnia, o miado dos gatos mudou para miu!

O cadáver do Michael Jackson teve uma polução nocturna.

Nevou pez no resto do mundo, só na Coreia a tempestade de neve manteve a sua alva pureza!

O fecho-éclair de Kim Jong-un quase soçobrou aos encantos da lascívia mas manteve-se firme.

Uma lágrima encetou a travessia do deserto do Saara.  

Na capital chinesa, as peças do Mahajong desataram a florir.»

O pragmático Putin, pode sentir-se seguro entre dois profetas de tal monta? Mais do que um gesto de bravata, o seu anúncio premedita a intenção de restaurar a confiança – a sua, de um volúvel homem entre imortais, embora também já se anuncie que os seus genes são de outro tipo de gema.

Por outro lado, se fosse aos russos não confiava num homem tão inseguro de si que em vez de usar o seu poder de influência para incitar os homens à fraternidade e ao diálogo insiste em querer provar-nos que Deus tem dentes cariados.

Que Este responda e na sua ira Se imole como mártir (para assinalar a loucura dos homens) frente à sede onde pontua o mano Guterres, ou, então, como no Primeiro Livro de Samuel, castigue a cupidez dos Grandes Líderes com Hemorróidas de Ouro.

06/02/2018

Entre tantas coisas que havia esquecido encontrei esta espantosa Carta de Lygia Clark para o seu filho – datada de 1970: «Meu filho,/ Você é um ser./ Existe na medida do mundo./ É pouco./ O mundo é a constatação da realidade exterior que te cerca./ É a tua medida inicial./ É o teu começo mas não o teu fim./ É o chão da tua expressividade pois você é um ser vertical./ Para cima do chão há o “invisível”./ Você pode olhar os seus pés mas não a sua própria imagem./ Esta você a percebe./ Na verticalidade está a medida da sua procura.»

No que sublinhei está para mim a chave da carta. O invisível associa-se ao que não se vê na aparência e só se capta parcialmente pela percepção que os outros adquiriram de nós e nos transmitem, porque o próprio não vê o que nele é uma propensão e não uma jactância. O homem bondoso age assim porque sim, idem para o generoso ou para o homem criativo. Porém eles não têm a certeza da sua medida. São assim porque não conseguem ser de outro modo e não por cálculo. E só este desinteresse faz a verticalidade do homem e exalta os valores e não as coisas. Só isso está “acima do chão” e molda uma dignidade sem freio.

07/03/2018

Um poema extraordinário do poeta sueco Tomas Tranströmer (a versão é minha): «Farto dos que chegam atulhados/ em palavras e nomes – uma algazarra,/ mas nada de linguagem – parto para a ilha coberta de neve.// O indomável não tem nomes. // Brancas, as suas páginas / encadeiam em todos os sentidos. /Dou de caras com as pegadas / de um cervo na neve: / nada de palavras mas uma linguagem.»

É um poema que me diz muito, neste momento.

A despropósito, esta quinta-feira 8, às 18h, lanço em Maputo um livro de poesia, que co-assino com o poeta moçambicano Mbate Pedro. Chama-se Os Crimes Montanhosos. E estão os meus amigos convidados.

8 Mar 2018

A Razão de Existir (o prazer, a alegria & a «face»)

“A maior ameaça à nossa liberdade é a ausência de sentido crítico”

[dropcap]A[/dropcap] frase é do Nobel da Literatura Wole Soyinka – pseudónimo literário de Alcinwande Oluwale, que nasceu a 13 de Julho de 1934 em Abeokuta, na Nigéria e que foi o primeiro escritor africano a receber o galardão. Criticar mas também convencionar, divergir mas também convergir, contestar mas também construir – resumindo ter um pensamento urbano!

Antes de mais, gostaria, desde logo, de fazer uma declaração de interesses. Gosto de ter uma relação com o mundo, de construção e não de destruição. Gostaria que não se criassem – ou não nos obrigassem – a viver em círculos cáusticos, nem destrutivos e gostaria, por fim, que Macau não precisasse de se distinguir negativamente de ninguém, se souber distinguir-se positivamente (a música é melhor que o caos – sem casa, nem lar).

Terra onde complacência é norma e o desleixo tradição, Não obrigado! («Temos o destino que merecemos. O nosso destino está de acordo com os nossos méritos» – Albert Einstein).

Vivemos num Território de dúvidas!

Apesar de tudo, estou feliz, por não integrar o «partido» do pensamento único, nem o «comité» do elogio mútuo e, além disso os meus pensamentos não estão agarrados a qualquer compromisso.

Eu não acredito em sociedades de admiração mútua.

“Toda a vez que estiveres do lado da maioria, é hora de parar e reflectir” – na opinião de Mark Twain -, mas cada um sabe de Si.

Gosto de leituras diversas e dispersas, a juntar à degustação matinal da imprensa escrita – as outras só por uma questão de princípios ideológicos quase abandonei – gostaria de lembrar Hegel: “A Leitura do jornal é a oração matinal do homem moderno”.

O abandono premeditado de outras formas de comunicação, já que “os factos não me interessam” – estou a parafrasear Musil, o d’ “O Homem sem Qualidades” – que acrescenta, e faço minhas as suas palavras, “só as interpretações” -, apesar destas nem sempre denotarem ambição crítica (um grave problema cultural) e sem essa cláusula não há evolução do pensamento – nem no mínimo critica moral. As palavras são acções.

Já Nietzsche dizia: “Não há factos, só interpretação de factos”. Mas interpretação dos factos sem conhecimento: Não.

Esperemos que o pensamento não autorizado nunca seja crime.

Convém, desde logo, saber separar má-língua e crítica. «A má-língua é derrotista e paralisante, ao contrário do espírito crítico, que põe em causa falsos alarmes e falsas evidências,sabe analisar, sabe avaliar, sabe destrinçar» – resumindo, decide.

O problema da crítica – segundo Nuno Júdice – “é trazer as inimizades dos ressentidos, a arrogância dos medíocres e o fechamento da corporação”. A morte da crítica corresponde essencialmente ao desaparecimento do debate político.

Criticar não é ter ódio a ninguém – é discordar.

Um outro grave denominador comum é a chamada “censura social” que não nos deixa falar verdade.

Já Confúcio apregoava, “saber o que é correcto e não o fazer é falta de coragem”. Para isso, precisamos urgentemente de um pouco mais de ambição e um pouco menos de contenção, precisamos de limitar o uso do conceito consenso e usar preferencialmente compromisso, precisamos de um pouco mais de exigência e tenacidade para acabar com a indigência – terminar com o padrão de “política de pequeno círculo” (café/mahjong, «fazendo da língua mesa de conversa») -, ter uma mudança de atitude, com uma visão aberta e não dogmática da realidade.

Temos de saber criar um diálogo civilizacional entre política e felicidade. Políticas arrojadas, com uma desconstrução do discurso assim como também de conceitos, para acabar com este tipo de sociedade cuja personalidade é fraca, pungente, imperfeita e refém, para a dotar de uma personalidade forte, gloriosa, perfeita e criadora.

Não é por acaso que a população, hoje em dia, está despida de transcendência, valores ou referências. Assim, nunca construiremos uma sociedade coesa, humanista e solidária – é preciso reforçar o sentimento de pertença e de partilha -, estar atento ao próximo.

Discursos estruturantes – com uma linguagem enxuta e drenada, em vez de técnica e factual, sem futilidades, insignificâncias e provincianismos. A comunicação é dificiente, insuficiente, tardia e às vezes nula.

Prometer e negar devem ser palavras excluídas do discurso político. Definir e aplicar políticas de transformação estrutural e modernização efectiva. Não abdicar da cultura do exemplo. Apostar na cultura cívica – competência, dedicação e empenho – e, educacional. Recuperar valores de cidadania. Reestruturar o tecido social e familiar. Transformar a paixão em carácter. Aplicar uma maior justiça fiscal (temos de saber descontextualizar os números).

Ter uma visão cultural humanista. Fazer cumprir o dever de memória, porque ao perdê-lo, perde grande parte da sua identidade (sem sentimentos de pertença) e dignidade. Criar um quadro de diálogos entre o presente e a memória. Combater privilégios. Reforçar a economia social. Promover a economia verde e 4.0 (baseada no conhecimento) e crescimento azul – «Definir um rumo e um propósito, dizer para onde vamos e por onde vamos».

Só assim se pode criar uma sociedade caracterizada pela responsabilidade, iniciativa, autonomia, liderança, disciplina, participação e, sobretudo, ambição. Daí resulta uma cultura moderna de risco, conhecimento, inovação e reforma de métodos e mentalidades. O sociólogo alemão George Simmel diz que, para se desenvolver, “uma sociedade precisa de uma certa quantidade de harmonia e desarmonia, de associação e competição”.

Temos de combater a resignação e o medo – “O medo devora a alma” – Rainer W. Fassbinder.

Precisamos de uma palavra de confiança. Já Goethe dizia: “As pessoas infelizes são perigosas”. Falta saber conciliar a política do poder com a política da razão e essa leitura passa por uma interpretação correcta da relação entre pobreza, direitos sociais e políticos. Torna-se necessário examinar e rever, cuidadosamente, os modelos de respostas às dificuldades. Não se pode, ou não se deve, oscilar entre a insensibilidade para com os mais pobres e a vassalagem para com os mais ricos.

Engolimos explicações que nunca deveriam ser aceites por uma sociedade saudável («que respire») e minimamente exigente («com poder de orientação») – devíamos de ser capazes de unir esforços e reunir interesses.
A mentira vence, sem mentiras não havia vitórias…

Até porque os últimos anos foram de sofrimento privado e letargia pública.


“E o que não presta é isto, esta maneira
Quotidiana
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste”

Miguel Torga (1907/1995), escritor
7 Mar 2018

“O Grande Domador”, de Dimitris Papionnou

Um dos primeiríssimos talentos da dança contemporânea, esteve no grande auditório do CCB no 2 e 3, integrado na programação DE ZEUS A VARAUFAKIS – A Grécia nos Destinos da Europa.

Neste séc. de reorganização geopolítica do mundo, que confirma o que desde os anos 60 do séc. XX se tornou a cada dia mais claro: “A path for redefinition and strengthening of diplomacy is assumed, in order to structure and consolidate active presence in the reformulation of World Governance; this implies the expansion of and independent Chinese policy towards the consolidation of peace”1 cuja liderança é cada vez mais a RPC, confirmando o que a 14 de Setembro de 2005 no discurso das Nações Unidas, o Presidente Hu Jintao, afirmava ; a adesão da diplomacia Chinesa ao multilateralismo, abandonando a diplomacia cautelosa e defensiva dos contactos bilaterais e pouco atuante nos fóruns internacionais que desde 1978, quando a RPC decidiu abrir-se ao mundo vinha praticado, a Europa precisa de forma urgente e decida de se repensar.

Cronos, filho de Urano – o céu estrelado e de Gaia – a terra, é de facto o grande domador e também aquele que na sua forma mais traumática representa o problema da terra do humano. É dito que Cronos, o mais iniciático e arquétipo edipiano, incitado pela mãe castrou o pai.

A Terra é desta forma separada do Céu. Podemos ver aqui um paralelismo com a expulsão do Paraíso, aí não pela castração, mas pela vivência do prazer e a ousadia da interrogação ficando para sempre impossibilitada a bem aventurada e pacata felicidade dos pobres de espírito. Cronos vive ele próprio um conflito entre a força do novo e a potencia que encerra e o saber e poder que não sendo néscio a permanência no discurso do tempo permite. Torna-se o canibal que devora os próprios filhos, o mais temível e repulsivo, mesmo que a clareza do espírito afirme que o crime não é menor se o sangue tiver outra filiação. Zeus, seu filho, foi dele escondido, cresceu, combateu o pai, expulsou-o do Olimpo e obrigou-o a vomitar os irmãos.

Mas ser expulso do Olimpo por mais doloroso que possa ser não é igual à morte. Cronos está ele próprio condenado ao tempo, outros, os Deuses não expulsos do Olimpo, tem outra imortalidade, um outro eterno, onde os lábios das abelhas é generoso no sugar e na produção do mel e o sol, é sempre quente, e no sangue nunca a anemia impede a ereção dos corpos, presume-se. Talvez vidas desocupadas em demasia. Mas deixemos os deuses dado que não temos outra possibilidade que não a de sermos homens.

Já avancei por algumas vezes a ideia da Europa pós-modernista, num modelo que retome a maturidade do pensamento clássico no contemporâneo, não um regresso ao renascimento, tempo maior na história recente da Europa com os erros hoje mais fáceis de reconhecer de um exagerado positivismo, mas um Pós- Renascimento, em que o eurocentrismo definitivamente de lugar a um olhar mais próximo do olhar de deus sobre o mundo, ou se quisermos uma referencia tecnológica, um olhar a partir do satélite, global, mas com as referencias humanistas da Grécia Antiga, sem desperdiçar toda a escola filosófica, artística, cultural científica, com que se materializa este enorme e imaterial património mundial que é o espaço europeu.

O Mestre Almada Negreiros, esse Português sem mestre, como a si próprio se definiu, viu na Ibéria a cabeça da Europa. Talvez que seja tempo de ultrapassar fantasiosas barreiras dos corpos, afinal pernas sem cabeça não passam de desenhos animados. A Europa constrói-se com o mediterrâneo no seu centro e não como hoje, com o mediterrâneo lugar de fronteira.

A Europa, ou melhor, os europeus, precisam com urgência de perceber que o tempo do Eurocentrismo terminou algures antes do meio do séc. XX , e que ser Europeu é um diálogo permanente com o mundo todo, e quanto mais em igualdade, mais feliz e produtivo.

O Grande Domador, The Great Tamer, é uma criação a todos os níveis notável. O trabalho performativo com os atores/bailarinos é um plano sequência brilhante onde o tempo é matéria e os corpos se reinventam e interrogam.

Uma maquinaria cénica invisível cria a existência de 3 planos, a superfície ou crosta espaço da representação, o em baixo ou potencia de onde surgem corpos, terra, artefactos humanos, e o acima, o manto do ar respirável onde por vezes se voa e até a outros planetas de ar mais rarefeito e outra força de gravidade. A relação entre os três territórios é permanente, fluída e mágica.

Tudo acontece como num plano cinematográfico em sequência, sem cortes, numa sucessão continua de imagens que fluem com o encantamento de um discurso alicerçado na poética da imagem, construída na acção e respiração dos corpos na relação tridimensional com o espaço e o tempo da música de John Straus.

De alguma forma o que é dado a ver, continua a mais famosa elipse temporal da história do cinema, quando Kubrick, na abertura do 2001 Odisseia no Espaço, (1968), transforma o osso de fémur humano em artefacto, ferramenta e arma, em nave espacial. É uma elipse cinematográfica com o tempo da civilização, o tempo da descoberta e realização do humano.

Aqui, em The Great Tamer, o maravilhamento e a interrogação sobre o próprio, o outro, sobre o lugar, o território onde pode acontecer o maravilhamento, permanece e continua em sucessivos quadros de visualidade poética que convoca signos e quadros da história da pintura, e do cinema, como já referido.

Os corpos experimentam outras possibilidade de corpo, o género questiona-se a si mesmo, reinventa-se em novas possibilidades. O uno e o múltiplo é um movimento imparável, e o espanto, os caminhos em potencia, múltiplos. Somos confrontados com um criação artística rigorosa na execução de uma maquinaria cenográfica, na ocupação e desenho do espaço pelos corpos , na imagética conceptual performativa. Johann Strauss, na adaptação de Stephano Droussiotis, cria a dinâmica sonora perfeita para esta metamorfose e fluidez continuada dos corpos. Duas horas de grande fruição estética que terminaram com a sala do grande auditório do CCB em pé e em entusiásticas palmas.

Concepção e direcção por Dimitris Papaioannou

Com Pavlina Andriopoulou, Costas Chrysafidis, Ektor Liatsos, Ioannis Michos, Evangelia Randou, Kalliopi Simou, Drossos Skotis, Christos Strinopoulos, Yorgos Tsiantoulas, Alex Vangelis
Cenografia e direção de arte em colaboração com Tina Tzoka
Colaboração artística para os figurinos Aggelos Mendis
Desenho de luz em colaboração com Evina Vassilakopoulou
Colaboração artística para o som Giwrgos Poulios
Desenho e operação de som Kostas Micholoupos
Música Johann Strauss II, An der schönen blauen Donau, op. 314
Adaptação musical Stephano Droussiotis
Design de escultura Nectarios Dionysatos
Pintura de figurinos e adereços Maria Ilia
Produtora criativa executiva e assistente de direção Tina Papanikolaou
Assistente de direção Stephanos Droussiotis
Assistente de direção e ensaiadora Pavlina Andriopoulou
Direção técnica Manolis Vitsaxakis
Manager de palco Dinos Nikolaou
Engenheiro assistente de som Nikos Kollias
Assistente do cenógrafo e do pintor de cenários Mary Antonopoulou
Assistentes do escultor Maria Papaioannou, Konstantinos Kotsis
Assistente de produção Tzela Christopoulou
Manager da digressão e relações internacionais Julian Mommert
Assistente executivo de produção Kali Kavvatha
Produção Onassis Cultural Centre – Atenas
Coprodução CULTURESCAPES Greece 2017 (Suíça), Dansens Hus Sweden (Suécia), EdM Productions, Festival d’Avignon (França), Fondazione Campania dei Festival – Napoli Teatro Festival Italia (Itália), Les Théâtres de la Ville de Luxembourg (Luxemburgo), National Performing Arts Center-National Theater & Concert Hall | NPAC-NTCH (Taiwan), Seoul Performing Arts Festival | SPAF (Coreia do Sul), Théâtre de la Ville – Paris / La Villette – Paris (França)
Produtor Executivo 2WORKS
Com o apoio de Alpha Bank

7 Mar 2018

As mãos que tocam a luz

Santa Bárbara, Lisboa, 17 Fevereiro

Tinha passado há dias, na RTP2, mas quem ainda vê tevê na hora da emissão? «Un vrai faussaire», de Jean-Luc Léon sobre Guy Ribes, justifica mais do que um visionamento, tantas são as nuances, pinceladas no retrato do protagonista, marteladas na construção do mercado da arte, subsídios para as técnicas de imitação dos mestres. Bastariam logo os primeiros socalcos da biografia para o verdadeiro falsário se erguer personagem, com infância espraiada em bordel e cinema familiar, disciplinada pintura de tecidos e vivência de rua em Lyon, mas a gigantesca e cuidada produção e o complexo jogo de relações e modos de fazer confirmam que se tornou, ironicamente, artista.

Tout court. Enquanto desvelava, de pincel na mão e com líquida facilidade, um Matisse, que prometeu destruir uma vez acabado, foi discorrendo sobre o tempo de estudo e preparação que investia, acerca do cuidado com materiais e gestos que aprendeu de experiência, além da fulcral criação do seu próprio gosto, onde pontuava Chagall.

(Terei gasto namoro à volta de um falso?) A quantidade e a qualidade do que foi imitando e, sobretudo, o entendimento da mecânica (quântica) do sistema de certificação dos vários valores, sendo o artístico o menos importante, contaminou o sacrossanto mercado de tal modo que se estabeleceu estranho consenso: não apurar até às últimas consequências o que pertence, de facto, a quem. Por medo de tremendo cataclismo. Afinal, como Ribes bem afirma, é o falsário quem nos dá o que desejamos. Ao nosso preço.

Horta Seca, Lisboa, 1 Março

Outro traço se interrompeu. Artur Correia (1932-2018), de tão modesto, deixa-nos frames antes de receber o Prémio Sophia de Carreira pelo seu contributo para o desenvolvimento do cinema de animação. Pena tenho de não o ter chegado a homenageá-lo da maneira que me parece melhor: mostrando e pensando obra. Conservo religiosamente os ensinamentos da Família Prudêncio e, agricultor que nunca fui, uso os pesticidas com cuidado, (https://youtu.be/e7TfXfJrueQ). Em querendo desencantar memórias sobre o que foi o 25 de Abril de 1974, ajuda sempre uma releitura de «O País dos Cágados», que Artur desenhou para o texto de António Gomes Dalmeida. Há uma edição recente da Bertrand, mas prefiro a original, no mesmo preto e branco dos Prudêncio, coisa prévia. Saravah!

Chiado 8, Lisboa, 1 Março

Muito pelo esforço de João Miguel Barros, também ele fotógrafo com exposição no CCB (Photo-Metragens), e que encontrou na Ana [Fontoura], da Fidelidade, a melhor das interlocutoras, Lisboa virou sala panorâmica da fotografia chinesa contemporânea. Chegou a vez de Yank Yankang, que pendurou na Chiado 8, O Espelho do Alma e assim transfigurou a galeria em porto de abrigo, o palacete em capela. Em pleno bulício transnacional, cegueira turística, corrupio urbano-depressivo, abrem-se visões para o Tibete íntimo dos praticantes do budismo, para o bailado da fé com o natural, janelas para a neve, a nuvem, a montanha e o pássaro.

A ideia de clássico assenta neste rasgar de passagens entre os tempos, do ontem que perdurará no amanhã. Este preto e branco apresenta-se-nos cheio de cores e vozes. E temperaturas do espírito. Um monge, de costas para quem o veja, enfrenta o vale que se desfaz em sucessivos horizontes de cinza, com as vestes ondulantes a confundi-lo mais com a paisagem.

Na mão direita, um cajado rude ergue-se sinal único do humano. Aquele braço é a fé. Crianças-monge praticam a Dança do Dharma, diz a legenda, mas são quatro putos a brincar à apanhada com as sombras. Apenas o mais próximo de nós agarrou a sua com o pé, os outros voam presos nas gargalhadas. E são tantos os pássaros que perturbam os céus e os corpos a quererem sê-los. E a luz, onde Yankang tão bem os sabe conservar.

Sobre mesa minúscula, uma criança-monge assenta os Sutras que recita. Do outro lado de uma luminosa diagonal, monge (águia ou falcão ou emberiza-das-neves?) mais velho toca o tecido. A sombra resguarda-se na luz, que permite a aproximação de cada uma das nossas idades através do olhar (nesta página). Qual o lugar da fé?

Barraca, Lisboa, 2 Março

Considere-se atirado às feras leitoras o novo do Valério [Romão], concerto de fragmentos para duas vozes em desagregação sinfónica: «Cair Para Dentro». Na cadência dos avanços e recuos, nas cavalgadas interiores ou na dança dos diálogos, no compasso da poesia, nas descidas ao mais íntimo, nas cenas de identificável exterior, estende-se em pano de fundo o perfume da musicalidade.

Talvez atonal ou minimal ou impressionista, seguramente jazzística. Quando muitos esperavam uma qualquer pirotecnia na abordagem ou na construção, o Valério apurou o que tem de melhor e aplicou-o a um tema temível (assuntos aterradores são uma das suas melhores escolhas): alzheimer.

E nele se jogou por inteiro, brincando com a filosofia que aprendeu, fazendo do verso ferramenta, sem nunca perder o humor, mas deixando em aberto um final. Inevitável. Valério pede mais leitores que banhistas da narrativa. Na magnífica apresentação, Eric Nepomuceno, para além de assinalar as qualidades do «puta romance!», inscreveu-o no coração de íntima reflexão.

Dizia ele que, sem a memória, morreria. Viu amigos próximos esquecerem-se de si, presos por filamentos de afectos, um gesto, uma canção, um poema. Que bom seria ter crítica assim, capaz de fazer íntimo o assunto do que lê, sempre à distância do conforto. Depois houve festa. E tantas, mas tantas conversas interessantes que merecia ter ficado aboborando uns dias. E escrevê-las para não esquecer. Esqueci tanto, esqueço tanto, que chego a duvidar que viva.

Horta Seca, Lisboa, 4 Março

À minha volta, cada papel diz afazer, resposta por dar, ansiedades em ferida, atrasos gritantes, resolutas irresoluções. A magia da procrastinação acontece em todo o seu esplendor de derivas, de possibilidades, de leituras sem nexo, de ideias a pedir poda e rega. Parar o rodopio, afastar-me do feicebuque, calar os papéis um a um, de modo a permitir que outra respiração se instale custa cada vez mais. Por vezes, a música ajuda.

Noutras faz-se cavalo e planície, velocidade e acolhimento, convidando à viagem. Um dos encontros deste Correntes foi o Mû Mbana, perfil de príncipe e voz cava, de onde escorre a noite. (Aliás, aconteceram-me mais vozes: a do José Luiz [Tavares], em versão morna; a do Renato [Filipe Cardoso] trocadilhando em grave a palavra-armadilha; ou a do João [Rios], ripostando e ribombando).

O seu álbum Iñén corre em loop a baralhar-me as coordenadas, alargando espaços, dando nós ao tempo. Entre o sussurro e o grito, percorre altas profundidades descalço à flor da terra, com enorme riqueza de instrumentos, muitos deles recuperados ao esquecimento, por si tangidos da mesma maneira que a voz nos toca a nós: com delicadeza e fogo. Eis que o ponto de partida acontece ser esse meu velho fascínio: mãos, «as mais poderosas ferramentas que temos».

7 Mar 2018

LEVINAS – Primeiro movimento

[dropcap style=’circle’] L [dropcap] evinas nasceu na Lituânia e passou a infância e a adolescência na Rússia. Chega a França com 18 anos, onde faz a universidade, em Estrasburgo. Aí conhece e torna-se amigo de Maurice Blanchot, uma amizade que durará a vida toda, pautada por uma enorme cumplicidade e reconhecimento mútuo. Depois, e por causa de um livro que uma colega, a senhorita Pfiffer, lhe deu (Investigações Lógicas, de Husserl), rumou à Alemanha para ser aluno de Husserl. E aí conheceu Heidegger, que mudaria a sua vida pela primeira vez (a segunda será em 1947, no encontro com o Senhor Chouchani, profundo conhecedor do Talmude e de matemática). Dirá mais tarde que Heidegger, para ele, é fundamentalmente Ser e Tempo. Não por ter sido anterior à sua filiação ao partido nazi, mas porque este livro faz realmente parte de um dos cinco momentos mais belos da filosofia, como o Fedro (Platão), a Crítica da Razão Pura (Kant), a Fenomenologia do Espírito (Hegel) e Os Dados Imediatos da Consciência (Bergson).

Há três tradições literárias e de pensamento que são fundamentais para Levinas: antes de mais, onde tudo começou, a literatura russa, principalmente Dostoievski; posteriormente Husserl e Heidegger, principalmente este último; e por fim o Talmude, embora este tenha acompanhado toda a vida de Levinas, desde a mais tenra idade, como é costume na tradição judaica. A importância do Talmude como caminho de reflexão para o seu pensamento acontece apenas a partir de 1947, depois do famoso encontro que Levinas tem com o Senhor Chouchani. A partir daqui, a reflexão talmúdica passa a integrar a sua filosofia. Em Totalidade e Infinito, a sua grande obra filosófica – Derrida dirá que não é um tratado, mas uma obra de arte – a influência talmúdica assume uma força tremenda e cruza-se com a fenomenologia husserliana e a hermenêutica de Heidegger. Embora não se vá analisar aqui esta obra magna de Levinas, é a partir dela que se fará esta curta introdução ao seu pensamento. Há um livro de 1982, Ética e Infinito, que são dez entrevistas que Levinas concede a Phillipe Nemo e onde explica o seu pensamento ao longo do tempo. Aconselho vivamente este pequeno livro para quem queira começar a aventura em Emmanuel Levinas.

Do mesmo modo que Heidegger, em Ser e Tempo, faz partir a sua análise daquilo que é o mais anterior no Dasein, o mundo, pois antes de mais nós estamos lá, lançados no mundo, Levinas parte do Outro. O Outro é aquilo que é primeiro no humano. Antes de mais, eu sou o outro. E isto é evidente através da nossa concepção. Nós somos um prolongamento do outro, que são os nossos pais. Para um pai, o seu filho é um outro modo de ele ser. O filho é um ser independente, evidentemente, é um outro, mas também é ele mesmo. É ele mesmo sendo outro. Assim, logo no nosso nascimento nós somos frutos do outro e um outro modo de ser do outro. Não é o mundo que assume a primordialidade no nosso nascimento, mas o outro. Antes de mais, para usar uma linguagem heideggeriana, estamos lançados no e pelo outro. E é daqui, deste outro que somos antes de mais, que nasce em nós o desejo metafísico. Escreve em Totalidade e Infinito: “Nenhuma viagem, nenhuma mudança de clima e de ambiente podem satisfazer o desejo que para lá tende. O Outro metafisicamente desejado não é ‘outro’ como o pão que como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo, como, por vezes, eu para mim próprio, este ‘eu’, esse ‘outro’. (…) O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro.” Aqui lembro-me sempre de um pequeníssimo livro, mas extraordinário, de Stig Dagermann, cujo título é A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer. Porque, na realidade, aquilo que nos faz continuamente tender para o Outro nunca chega, nunca se satisfaz. Nós temos mais Outro em nós do que qualquer outro subjectivo é capaz de preencher. Mas o Outro revela-se-nos através do Rosto. O Rosto é exterioridade e transcendência, isto é, Infinito. O Rosto, através do qual o Outro se nos revela, é o que nos ilumina a nossa condição, que é a de Desejo metafísico. Estamos, portanto, sem quaisquer dúvidas numa reposição ou retoma do projecto metafísico, que tinha sido interrompido por Heidegger.

Mas atentemos melhor no que é esse conceito levinasiano de Rosto. De modo geral, quando alguém se nos aparece, é o rosto que vimos. O rosto é também a parte do Outro que surge nua, completamente nua. Esse Rosto, por outro lado, não é o rosto da fotografia. O Rosto que as máquinas fotográfica ou de filmar captam e tornam o Rosto num objecto de Rosto. Aquele rosto que identificamos como sendo belo ou feio não é um rosto, mas um objecto de rosto. O Rosto a que Levinas se refere é aquele que nos interpela, que nos conduz mais a nós mesmos do que ao Outro. Esse Rosto, a que Levinas se refere, é o Outro que nos devolve a nós mesmos. No fundo, no Rosto do Outro ficamos face à nossa origem e ao nosso desejo metafísico. Origem, porque o Rosto evoca em nós uma pertença; desejo metafísico, porque o Rosto evoca também em nós um para além que nos habita. Há um além em nós mesmos, que nos habita, e que se torna visível no Rosto do Outro. O Rosto lembra-nos que há em nós um excedente de nós, que nos escapa, continuamente nos escapa.

Por outro lado, o Rosto traz até nós a responsabilidade. Já na nossa origem estamos presos à responsabilidade, pois o Outro, na dupla paternal, é responsável por nós, numa dupla conotação: responsável por nos terem posto no mundo (causa do nosso ser) e responsável por cuidar de nós (ainda que isso possa não acontecer). E esta responsabilidade, que faz parte da nossa origem, passa também para nós, nesse seu carácter duplo: responsáveis pelas nossas acções (ser-se responsável) e responsável por aquilo que causamos no Outro. Assim, o Rosto aparece também aqui, e uma vez mais, como arauto acerca de nós mesmos. E, no sentido em que o Rosto é Outro e este é onde estamos de antemão, o Rosto precede a linguagem. É precisamente na tentativa de responder ao Rosto que nos interpela, que se desenvolve em nós a linguagem. Antes mesmo de pensarmos em pensar, a linguagem é a ponte para o outro, nesse rosto que nos interpela. Esse além primeiro, que é o rosto da mãe, leva-nos à linguagem. Esse rosto, essa exterioridade primeira torna-se reflexo do infinito. O rosto da mãe é assim o início da metafísica.

Destaque: O Outro é aquilo que é primeiro no humano. Antes de mais, eu sou o outro. E isto é evidente através da nossa concepção. Nós somos um prolongamento do outro, que são os nossos pais. Para um pai, o seu filho é um outro modo de ele ser.

6 Mar 2018

Os sítios entre sítios

[dropcap style≠‘circle’]H[/dropcap]á locais cuja função inerente lhes confere a estranha propriedade de se situarem entre mundos. Os hotéis e os aeroportos são alguns exemplos possíveis desses lugares. Não se destinam a ser permanentemente utilizados ou habitados por quem os frequenta. São pontos de passagem, apeadeiros, horizontes provisórios entre locais de partida e locais de chegada.

Devido à sua natureza transitória, acabam frequentemente por revelar propriedades confessionais. Como o estranho que conhecemos num bar e a quem entregamos a guarda dos segredos que seríamos incapazes de confiar a família e amigos, estes pontos tangenciais tornam-se numa espécie de refúgio onde a vida, deixada à porta, pode ser observada de longe como se fôssemos espectadores desinteressados da sua ocorrência.

Os hotéis são intervalos habitáveis. Nunca se destinando a um uso permanente e desprovidos da familiaridade que até numa casa de férias se obtém passado pouco tempo, a impessoalidade dos quartos de hotel permite criar um enclave entre a vida e aquele que vive semelhante a um instante de silêncio numa cidade ruidosa. A ausência de marcas pessoais, de cheiros e a higienização permanente a que são submetidos os quartos retiram, de algum modo, aquilo que de humano perpassa uma casa. E essa ausência de roupagem humana e da vida a que isso corresponde transforma de facto o modo como olhamos para a nossa própria vida e, de algum modo, cria um espaço especular onde o olhar do sujeito, incapaz de se deter no somatório das coisas anónimas que compõem e pontuam o espaço, acaba por regressar ao ponto de partida e incidir sobre o próprio sujeito.

As estadias prolongadas nestes espaços intersticiais acabam por alterar a coloração da vida. Esta parece menos intensa do que é, menos real. Tal como um sonho, no qual tudo é idêntico à realidade e só se distingue desta última quando se acorda, a vida nos quartos de hotel parece-se em tudo com a vida fora deles. Mas quando o sujeito regressa a casa, o seu millieu devolve-lhe não somente a familiaridade mas também a inteireza da vida. Chegar a casa depois de uma longa estadia num hotel é, de algum modo, acordar. E acordar pode ser um alívio ou uma desilusão. Tudo depende do sonho e da realidade para onde o sujeito regressa.

Amiúde, todos precisamos de um sítio onde possamos deixar os problemas à porta como se deixam guarda-chuvas molhados à entrada de um café. Eles não desaparecem – nem os guarda-chuvas nem os problemas – mas a sua influência diminui consideravelmente e respirar volta a ser possível. Um sítio onde, afastados da azáfama de uma rotina que erroneamente acreditamos ter escolhido e que, na verdade, nos calhou, possamos fechar os olhos sem ser para dormir. Um sítio onde tenhamos um vislumbre de nós mesmos. E, por vezes, os quartos de hotel são esse sítio, esse monastério possível da pós-modernidade.

5 Mar 2018

Da Medicina Antiga Iª Parte

[dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]e Prisca Medicina (Sobre a antiga arte médica) é um dos textos mais importantes para se compreender a raiz e o desenvolvimento do pensamento humano. Nem vou fazer a distinção entre pensamento ocidental e oriental, nem vou aceitar que há pensamento oriental mas não há filosofia oriental, porque a explicação até pode basear-se em ideologia. O ponto não me interessa aqui. O decisivo é que o pensamento clássico de Platão e Aristóteles, mas também o dos chamados filósofos Pré-socráticos (Anaximandro, Parménides, Heraclito, etc., etc..) e, ainda o de Tucídides se baseia num texto médico ou sobre medicina, tenha sido produzido por Hipócrates ou por alguém da sua escola. E isto é espantoso à primeira vista mas é compreensível, se formos suficientemente secundários.

 

Uma nota sobre o título: medicina traduz a palavra grega “arkhê”. Embora também no singular no original grego, medicina quer dizer o conjunto plural de saberes, gerais e especiais, ao serviço da identificação das doenças, das curas, dos tratamentos, que estão na base da possibilidade de obtenção da saúde. Ou seja, não há uma única perícia ou saber específico, mas todo o saber reúne um conjunto de disciplinas que colabora para a compreensão do seu objecto específico. Formalmente, podemos compreender que é assim que os compêndios científicos estão organizados. Em primeiro lugar, expõem-se os princípios elementares de uma ciência. O alfabeto de cada ciência, por assim dizer. As letras no caso da gramática, os números, na aritmética, os elementos da geometria: o ponto, a linha, o plano, as figuras simples, os elementos da química, etc.. Assim, também a medicina tem os seus elementos na antiguidade: quente e frio, líquido e sólido. Tal como nas restantes ciências, também a medicina tem operações elementares. A adição e a subtracção, na aritmética e a formação de sílabas e de palavras estudada pela gramática tem fenómenos paralelos que são estudados pela medicina: aquecimento e arrefecimento, assimilação de sólidos e de líquidos, excreção de elementos não nutrientes e assimilação de nutrientes, o meio específico em que ocorrem: condições climáticas, hora do dia, época do ano, região do globo, etc., etc..

 

O ser humano não é estudado na sua anatomia nem no interior delimitado pelas fronteiras epidérmicas do corpo humano. O ser humano é estudado em relação intrínseca com o seu habitat, a familiaridade ou não com o nicho ecológico que é o horizonte estrutural onde vive a sua vida, a exposição e vulnerabilidade aos elementos não apenas meteorológicos, mas que se encontram no seu meio ambiente: a sua dieta, regime alimentar, circuito vital, actividade física e actividade profissional, não só hora a hora, dia a dia, mas em cada estação do ano e nas diversas idades da vida. Ou seja, a medicina identifica os elementos complexos da relação do ser humano com outros seres humanos num meio ambiente que é estruturante da sua própria vida. Uma vida humana não é dissociável do meio em que vive e esta relação tem de ser compreendida já ao pé da letra. Assim: o romper da aurora, a manhã, o princípio da tarde e a tarde, anoitecer e noite, mas também, as estações do ano, as idades da vida: infância, adolescência, idade adulta e velhice, fogo, ar, água e terra, os fluídos: bílis amarela e negra, fleuma e sangue, são elementos, “letras”, de um alfabeto complexo que requerem a formação de compostos agregados resultantes de operações elementares para produzirem um corpo humano bem formado que sobreviva e se conserve a si mesmo homeostaticamente.

 

Palavras simples como “ideia”, “forma”, por exemplo, que perpassam o pensamento antigo não querem dizer apenas “manifestação” (idea) e “aspecto” (eidos). São palavras usadas no diagnóstico de sintomas, no esboço da etologia, na reacção programática ao problema que a doença põe: o tratamento, as fases do tratamento, a obtenção da cura. A curva clínica pressupõe não apenas uma relação múltipla e complexa com a dieta alimentar, mas também com a temperatura do quarto, descanso ou actividade, sono e insónia. A curva clínica pressupõe uma relação simbiótica com o tempo. Não é unilinear nem homogénea, pode admitir recidivas, recuos, como obviamente pode ter sucesso. Uma ideia ou uma forma são sempre plurais. Podem querer dizer o aspecto do rosto de alguém, como quando dizemos de uma criança que “está murchinha”, pode ter que ver com o palpar da temperatura através dos lábios que tocam a testa de uma criança. Mas há também elementos “reflexivos” de apuramento do estado clínico em que de cada vez cada um de nós se encontra. Temos uma apercepção contínua do estado em que nos encontramos, depois de comer uma refeição pesado ou se não comermos nada, se bebemos água a mais ou de menos, se estamos “a chocar” uma gripe ou se apanhamos “uma carraspana”. A “autopsia” é um olhar-se a si a partir do interior mas que não requer uma abertura reflexiva. Acontece sempre de cada vez. O perigo existe sem dúvida quando não temos percepção de fenómenos que são subliminares aparentemente. Podemos estar a desenvolver doenças que nos passam despercebidas e é por isso que o diagnóstico deve ser feito através de exames regulares, porque há doenças assintomáticas.

 

Um dos outros pontos fundamentais da medicina antiga e que faz luz sobre o projecto de constituição de uma filosofia é que não é meramente teórica, o que quer que isso queira dizer, mas eminentemente prática. Fazer é saber. Quem não faz não sabe.

 

[Continua].

2 Mar 2018

Funeral de Camilo Pessanha

[dropcap style≠‘circle’]À[/dropcap]s 8 horas da manhã do dia 1 de Março de 1926, o Dr. Camilo de Almeida Pessanha, solteiro com 58 anos, faleceu de tuberculose pulmonar em sua casa, na Rua da Praia Grande 75, freguesia da Sé. A morte do poeta do Simbolismo, autor da Clepsidra, ocorreu no terceiro e último dia em que os relógios eléctricos de Macau estavam parados para limpeza dos instrumentos.

No dia seguinte, 2 de Março, já com os relógios a funcionar, seguiu o funeral do que fora professor do quarto grupo do Liceu Central de Macau para o Cemitério de São Miguel, situado no meio da cidade, com entrada na Estrada do Repouso.

O enterro, “singelo e civil, por sua vontade, como singela decorrera a sua vida, foi enormemente concorrido por pessoas de todas as condições sociais que à última jazida o acompanharam, sempre descobertos, num significativo e compungido silêncio, vendo-se aí do Governador da Colónia, [Manuel Firmino de Almeida Maia Magalhães (1925-1926)] ao mais humilde e obscuro cidadão. A pedido de Pessanha foi transportado num armão militar, o qual, coberto pela bandeira nacional, foi conduzido por sargentos, cabos e soldados e ladeado pelos estudantes do Liceu onde era professor e por alunos de outras escolas”, segundo palavras do jornal O Combate. Refere ainda que, à beira da sepultura o Reitor do Liceu, Sr. Carlos Borges Delgado pronunciou algumas palavras, dizendo, “A tua vida foi o tablado erguido no meio de esperanças perdidas!… Morreste como vivestes… sonhando… idealizando! Nesse mundo do Além o teu sonho continuará. Serás, ali, o mesmo idealista! E tu, saudoso colega, o confessaste claramente quando, para os teus rapazes disseste: <Colocando-se fronteiros dois espelhos, duas imagens se formam; qual delas mais vazia? Dissolvendo-se água límpida em água límpida, ficam ambas duma mesma limpidez>. Adeus!”.

 

Homenagem dos alunos

 

Seguiram-se as palavras de Cassiano Fonseca, representante dos alunos do Liceu: <Diante do cadáver dos que baixam ao túmulo com a consagração do seu talento ou dum relevante serviço que prestaram à causa da humanidade, proclama-se sempre que a morte pouco pode, porque, precisamente esse dia é o dia da sua glorificação. É que os grandes homens não morrem nunca porque vivem cristalizadas nas suas obras. Porque morrer não é apagar-se; transpor os umbrais da eternidade não é extinguir-se para sempre porque há espíritos de eleição que refulgem, numa visão mais nítida nas sombras do mesmo túmulo que nem tudo consome… (…) Mas, mais do que isto e acima de tudo, foste nosso professor como poucos, como raros, um artista distinto na arte de modelar o barro humano… Um educador perfeito, um obreiro mais devoto porque, espírito clarividente, inteligência rutila, conheceis com aquele vosso sentido especial, que foi o vosso apanágio, o mal dos nossos tempos, o mal que nos espera surpreender além das brumas do futuro; (…) E nós, para quem ele não morreu, faremos com que o nosso professor não morra também para o nosso país que serviu e tanto amou, porque o seu nome representa-nos o facho da luz e a lição moral da sua vida pública é para nós o farol que há-se iluminar a vereda que nos há-de conduzir para a nossa finalidade>.

Ditas estas palavras, baixou o Dr. Camilo de Almeida Pessanha à terra no Cemitério de São Miguel, na sepultura de primeira classe número 918, segundo certifica José Francisco de Sales da Silva, Secretário-Geral do Governo interino e Encarregado do Registo Civil da Província de Macau, no registo de óbito. Era uma sepultura rasa com uma laje e o brasão da família, onde, muito mais tarde, em 1971 os netos colocaram a seguinte inscrição em chinês: <Aqui jaz o advogado Pessanha, o pai Yeong Pak San e a mãe Lei Ngoi Iong>. Isto é, Camilo Pessanha (cujo nome em chinês fora Pui-Sane-Ngá), o Pessanha filho (chamado em português João Manuel de Almeida Pessanha) e a sua esposa, nora de Camilo.

 

Elogio ao advogado dos advogados

 

Na secção de 3 de Março de 1926 do Leal Senado da Câmara de Macau o seu Presidente Dr. Luiz Gonzaga Nolasco da Silva, que fora aluno de Camilo Pessanha, propôs um voto de profundo pesar pelo passamento de tão ilustre cidadão e que fosse dado o seu nome a uma das vias públicas de Macau. E como não podia deixar, <em breves e sentidas palavras>, fez uma sentida homenagem ao seu professor de Filosofia. Camilo Pessanha dedicava-se <ao culto da poesia, tão delicados e subtis eram os seus pensamentos, expressos em versos modelarmente burilados com aquele inspirado estro e paciência técnica que só raros conseguem pôr em prática. Lembro-me muito bem do sucesso que tiveram uns sonetos de Pessanha publicados no Jornal Único, de Macau, em 1898… (…) Nesse mesmo ano parti eu para Portugal a cursar Direito na Universidade de Coimbra (a mesma que Pessanha se formara), onde tive ocasião de conhecer e conviver com um seu irmão, Manuel Luís de Almeida Pessanha, tão inteligente e tão sentimental como Camilo. Ao regressar a Macau, findo o meu curso, vim encontrar Camilo Pessanha feito Conservador do Registo Predial desta Comarca. Ele que tinha sido meu professor no Liceu, foi depois meu mestre na advocacia, pois foi Pessanha quem me ensinou a fazer a primeira petição inicial>.

Na advocacia, <Pessanha foi um modelo de saber profissional, dedicação, honradez e lealdade para com os adversários. Eram vastos os seus conhecimentos gerais, mas na cultura jurídica era um especialista, mormente em direito penal e processo criminal. Apaixonava-se pelas causas que defendia, e na defesa não distinguia entre ricos e pobres, da mesma maneira e com o mesmo afã dedicando-se às causas de uns ou de outros. Era já certo: questão defendida por Pessanha era questão ganha; tal a força da sua argumentação e a perspicácia do seu engenho!

Foi grande a lacuna aberta por sua morte nas fileiras dos advogados da Comarca. Pessanha era, com justo orgulho, um grande mestre na advocacia, e muitas vezes foi “o advogado dos advogados”.

2 Mar 2018

Cansaço, simplesmente cansaço

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ansaço de mim mesmo ou de mim próprio? Vai dar no mesmo, um estuário de fadiga, num espelho desidratado.

O Pessoa arranjou os heterónimos para se aliviar destes sarilhos. Punha a mesma gabardina mas mudava de borsalino como os polígamos. Era como um búzio com várias cabeças. Sou demasiado macambúzio para o ardil resultar comigo, ou tão prestável que acabaria por inevitavelmente emprestar a chave do meu quarto a um heterónimo para ele ir lá dormir com companhia e acabaria à chuva, no cacimbo da noite, por extrema delicadeza.

Cansaço, e do mais impuro. Para já só descortino uma medida que me poderia salvar. Se eu casasse com a Dora Maar. Por vários motivos, ela tinha uma imaginação desatada e gostava de falar. Ora, eu pélo-me por falar menos. Ela mobilava a casa de palavras num instante e não se importaria com o meu silêncio porque como roçava o desequilíbrio, estaria tantas vezes ocupada em recuperar algum tino que nem daria pelo meu alheamento; por outro lado, ela reunia os encantos suficientes para compensarem a aragem inflamada com que às vezes o seu juízo desbordava. Claro que tudo isto parece um bocado egoísta, mas não é, repare-se, as ausências que ela me permitiria estariam fundidas nas frequentas ralações com que eu me ocuparia dela, seja por amor, ou por sobrevivência, para que as coisas corressem nalguma fluidez, sem estorvos.

Portanto, o meu aparente egoísmo ser-lhe-ia afinal vital porque me alienaria nela, por ela, com ela, numa presença contínua junto dela que de outro modo me seria insuportável.

Cansaço. Como o dela, imagino depois de ter sido durante anos amante do Picasso e deste a ter trocado pela jovem Françoise Gilot, o que a arrastou para uma crise.

Ou pior, muito pior. Porque ter uma relação com o Picasso e ficar cansada é normal, não será distinto de ter de lavar todas as janelas de um arranha-céus de duzentos andares na duração de um relâmpago, mas enfim, a perspectiva lá de cima há-de ter ganhos – não se há-de ficar com uma visão solteira. Muito mais complicado é ter uma relação a sós com a minha árida solidão e não ficar cansado de montar a tenda e de aplainar dunas, não convém nem ao mesmo e nem ao próprio e fica-se com o cérebro seco como as axilas do escorpião.

Era a mulher que me convinha. Bonita, altiva, de marés sempre vivas nas epístolas do desejo, com uma imaginação ímpar, iria de bom grado ao caixote de Picasso para resgatar esta fotógrafa delirante e modelo (nu) em repetidas sessões de Man Ray, a única mulher do pintor que esteve à altura do seu génio.

Se os meus amigos conseguirem localizá-la, informem-me. Há-de ter reencarnado.

Porque estou tão cansado que acabei de escrever como posfácio para um livro de poesia que vai sair daqui a dois meses:

«A amiba que desfez o cérebro daquela criança ilustrava um princípio gelatinoso. De uma simplicidade que abisma. O que é fascinante e horrendo.

Foi numa piscina, na Argentina, que o insigne animal, imaginemos que avançando em mariposa, penetrou pela narina da criança para depois se acomodar fazendo das suas.

Das notícias que mais me perturbaram neste começo do ano.

Observável apenas com a ajuda de microscópio, a amiba é um protozoário cuja vida remonta ao período de origem do nosso planeta. Como ser unicelular, movimenta-se e “captura” os alimentos emitindo prolongamentos citoplasmáticos – os pseudópodes –, os quais envolvem as partículas alimentares e incorporam-nas na sua massa gelatinosa, informe. Como parasita instala-se no intestino da mosca, quando esta suga o sangue de algum mamífero infectado, ou no cérebro das crianças, que desfaz. Para uma amiba nada nos distingue de uma mosca. Só nos resta acolher uma infinita humildade.

Creio que a poesia é uma amiba de efeito ao retardador.

Pode ser extremamente benigna para quem a lê, mas é refractária e sujeita a servidão o seu portador. E ameaça, não propriamente enchafurdar-nos no silêncio mas com uma pronta liquidificação das cabeças. A amiba, na sua simplicidade, rechaça quaisquer imprevistos. Foi sempre sob ameaça que escrevi, vivo amiúde nesse gume. Com a exaltação que antecede os fracassos.

Se pudesse não tinha escrito estes livros (são dois reunidos num volume). Foram-me impostos. Não lastimo, certifico. Não reivindico qualquer daimon. Possui-me uma amiba, e, cego desde o seu aparecer, corro contra ela. Imponho-lhe um ritmo embora tenha sido ela quem me obrigou a adoptar um passo de corrida. Por enquanto não ultrapassou a cavidade nasal, onde fez estalagem. O tempo é para ela um arco de luz?

Também eu gostava de dizer “gosto das formas que se tornam outras”. Mas quando o enigma foi desregulado por uma amiba vacilo sobre em que lado da forma ficar. Volteio entre as imagens sem subtileza, aristotelicamente.

Gostava de não vos afligir, mas a minha fatuidade é total e só me ocorre: cuidado com os contágios!»

Pior, a minha fadiga é tão grande que acredito piamente nisto.

Tal como creio no que escrevi no poema de outro livro: «Eu também não gosto dela./ Ao ser lida, porém, com um total desprezo, descobre-se/ apesar de tudo que o genuíno aí tem o seu lugar:/ escreveu Marianne Moore, num poema intitulado POESIA./ Esta declaração é um divisor de água./ Eu também detesto a poesia, posso lá eu relacionar-me/ com algo que me trata como um cão de cego?/ Gosto é de espreitar à socapa no espelho/ a ver se alguém que não eu, em gestos/ e expressões que me não pertencem, me perscruta./ À socapa, se ela sabe (a poesia) faz-me o escalpe.»

O ideal era conseguir calar-me (- Como se cala um pobre? Só os ricos se podem dar a esse luxo!), fazer do nevoeiro gabardina e escapulir-me. Ou perder-me entre os olhos redondos e os pés esguios de Dora Maar.

Quem (me) achar o seu endereço será o meu padrinho de casamento.

1 Mar 2018