Cansaço, simplesmente cansaço

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ansaço de mim mesmo ou de mim próprio? Vai dar no mesmo, um estuário de fadiga, num espelho desidratado.

O Pessoa arranjou os heterónimos para se aliviar destes sarilhos. Punha a mesma gabardina mas mudava de borsalino como os polígamos. Era como um búzio com várias cabeças. Sou demasiado macambúzio para o ardil resultar comigo, ou tão prestável que acabaria por inevitavelmente emprestar a chave do meu quarto a um heterónimo para ele ir lá dormir com companhia e acabaria à chuva, no cacimbo da noite, por extrema delicadeza.

Cansaço, e do mais impuro. Para já só descortino uma medida que me poderia salvar. Se eu casasse com a Dora Maar. Por vários motivos, ela tinha uma imaginação desatada e gostava de falar. Ora, eu pélo-me por falar menos. Ela mobilava a casa de palavras num instante e não se importaria com o meu silêncio porque como roçava o desequilíbrio, estaria tantas vezes ocupada em recuperar algum tino que nem daria pelo meu alheamento; por outro lado, ela reunia os encantos suficientes para compensarem a aragem inflamada com que às vezes o seu juízo desbordava. Claro que tudo isto parece um bocado egoísta, mas não é, repare-se, as ausências que ela me permitiria estariam fundidas nas frequentas ralações com que eu me ocuparia dela, seja por amor, ou por sobrevivência, para que as coisas corressem nalguma fluidez, sem estorvos.

Portanto, o meu aparente egoísmo ser-lhe-ia afinal vital porque me alienaria nela, por ela, com ela, numa presença contínua junto dela que de outro modo me seria insuportável.

Cansaço. Como o dela, imagino depois de ter sido durante anos amante do Picasso e deste a ter trocado pela jovem Françoise Gilot, o que a arrastou para uma crise.

Ou pior, muito pior. Porque ter uma relação com o Picasso e ficar cansada é normal, não será distinto de ter de lavar todas as janelas de um arranha-céus de duzentos andares na duração de um relâmpago, mas enfim, a perspectiva lá de cima há-de ter ganhos – não se há-de ficar com uma visão solteira. Muito mais complicado é ter uma relação a sós com a minha árida solidão e não ficar cansado de montar a tenda e de aplainar dunas, não convém nem ao mesmo e nem ao próprio e fica-se com o cérebro seco como as axilas do escorpião.

Era a mulher que me convinha. Bonita, altiva, de marés sempre vivas nas epístolas do desejo, com uma imaginação ímpar, iria de bom grado ao caixote de Picasso para resgatar esta fotógrafa delirante e modelo (nu) em repetidas sessões de Man Ray, a única mulher do pintor que esteve à altura do seu génio.

Se os meus amigos conseguirem localizá-la, informem-me. Há-de ter reencarnado.

Porque estou tão cansado que acabei de escrever como posfácio para um livro de poesia que vai sair daqui a dois meses:

«A amiba que desfez o cérebro daquela criança ilustrava um princípio gelatinoso. De uma simplicidade que abisma. O que é fascinante e horrendo.

Foi numa piscina, na Argentina, que o insigne animal, imaginemos que avançando em mariposa, penetrou pela narina da criança para depois se acomodar fazendo das suas.

Das notícias que mais me perturbaram neste começo do ano.

Observável apenas com a ajuda de microscópio, a amiba é um protozoário cuja vida remonta ao período de origem do nosso planeta. Como ser unicelular, movimenta-se e “captura” os alimentos emitindo prolongamentos citoplasmáticos – os pseudópodes –, os quais envolvem as partículas alimentares e incorporam-nas na sua massa gelatinosa, informe. Como parasita instala-se no intestino da mosca, quando esta suga o sangue de algum mamífero infectado, ou no cérebro das crianças, que desfaz. Para uma amiba nada nos distingue de uma mosca. Só nos resta acolher uma infinita humildade.

Creio que a poesia é uma amiba de efeito ao retardador.

Pode ser extremamente benigna para quem a lê, mas é refractária e sujeita a servidão o seu portador. E ameaça, não propriamente enchafurdar-nos no silêncio mas com uma pronta liquidificação das cabeças. A amiba, na sua simplicidade, rechaça quaisquer imprevistos. Foi sempre sob ameaça que escrevi, vivo amiúde nesse gume. Com a exaltação que antecede os fracassos.

Se pudesse não tinha escrito estes livros (são dois reunidos num volume). Foram-me impostos. Não lastimo, certifico. Não reivindico qualquer daimon. Possui-me uma amiba, e, cego desde o seu aparecer, corro contra ela. Imponho-lhe um ritmo embora tenha sido ela quem me obrigou a adoptar um passo de corrida. Por enquanto não ultrapassou a cavidade nasal, onde fez estalagem. O tempo é para ela um arco de luz?

Também eu gostava de dizer “gosto das formas que se tornam outras”. Mas quando o enigma foi desregulado por uma amiba vacilo sobre em que lado da forma ficar. Volteio entre as imagens sem subtileza, aristotelicamente.

Gostava de não vos afligir, mas a minha fatuidade é total e só me ocorre: cuidado com os contágios!»

Pior, a minha fadiga é tão grande que acredito piamente nisto.

Tal como creio no que escrevi no poema de outro livro: «Eu também não gosto dela./ Ao ser lida, porém, com um total desprezo, descobre-se/ apesar de tudo que o genuíno aí tem o seu lugar:/ escreveu Marianne Moore, num poema intitulado POESIA./ Esta declaração é um divisor de água./ Eu também detesto a poesia, posso lá eu relacionar-me/ com algo que me trata como um cão de cego?/ Gosto é de espreitar à socapa no espelho/ a ver se alguém que não eu, em gestos/ e expressões que me não pertencem, me perscruta./ À socapa, se ela sabe (a poesia) faz-me o escalpe.»

O ideal era conseguir calar-me (- Como se cala um pobre? Só os ricos se podem dar a esse luxo!), fazer do nevoeiro gabardina e escapulir-me. Ou perder-me entre os olhos redondos e os pés esguios de Dora Maar.

Quem (me) achar o seu endereço será o meu padrinho de casamento.

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