O factor Pi(çarra)

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá aí o Festival RTP da Canção, que teve as suas duas meias-finais nas últimas duas madrugadas de Domingo para segunda, a horas indecentes em Macau. O festival é daquelas coisas que ou se gosta, ou se detesta, e entre estes últimos há quem mesmo assim veja, para depois dizer horrores, e quem não veja mas diga mal na mesma. Importa mesmo é dizer mal, e chamar àquilo “foleiro”, e “pimbalheiro” – digam lá se é ou não é?

Este ano o certame tem um novo aliciante, pois o Festival da Eurovisão realiza-se este ano em Lisboa, pois como estão recordados, no ano passado Salvador Sobral foi a Kiev matar esse borrego do rebanho do nosso miserabilismo, e atreveu-se a ganhar a Eurovisão. Já no ano anterior a selecção de futebol foi a Paris conquistar o seu primeiro grande título internacional, e numa questão de meses os portugueses ficaram sem dois brinquedos para jogar às lamentações.

Pode ser que organizar o Festival da Eurovisão seja considerado para alguns uma coisa de somenos, ou até um despesismo desnecessário, uma coisa que sai “dos nossos impostos”, oh oh oh. Só que em termos de promoção internacional para o país, o festival tem que se lhe diga, pois é visto por 200 milhões de telespectadores em todo o mundo. Para que vejam que estou a falar a sério, o Festival da Eurovisão de 2012 foi realizado em Baku, capital do Azerbaijão, e graças a ele fiquei com a ideia de que aquele país era um paraíso na Terra. Adiante.

Uma vez que Portugal organiza pela primeira vez este evento sexagenário, o factor casa implica que a canção representante nacional passe directamente para a final de 12 de Maio, e se quisermos outro milagre de Fátima como em 2017, convém encontrar um digno sucessor para “Amar pelos dois”, o êxito que Salvador imortalizou, e deixou o cançonetisto nacional no topo do mundo. Do escrutínio propriamente dito, vi por alto algumas canções e alguns intérpretes, e comentários à parte, penso que é um ano com mais qualidade que o habitual. Uma colheita mais ou menos, digamos. Dá para gostar de algumas entradas, e nota-se que pela primeira vez em muitos anos há uma mão cheia de artistas interessados em ganhar o festival.

Polémicas, claro que não podiam faltar. Depois de um equívoco na votação da primeira meia-final, estava servido o aperitivo para o prato principal: a “barraca” da canção de Diogo Piçarra. O cantor que esteve em Macau no último Festival da Lusofonia, e provavelmente o artista de maior “pedigree” em competição, trouxe um tema simples, que obteve o maior parte dos votos tanto do júri, como do público. Só que a “Canção do Fim” de Piçarra era mesmo tão simples, que já existia. Primeiro apareceu uma versão da IURD, pasme-se, datada de 1979, e depois outras anteriores a essa, em línguas estrangeiras. Surgiram imediatamente acusações de plágio, mas eu não ia tão longe; o Diogo Piçarra é um compositor com provas dadas, e as comparações com Tony Carreira são no mínimo injustas. O que se passou foi que desta vez o Piçarra não tentou. Não estava para ali virado, pronto. Picasso, que também começa com “pi”, não ficou famoso a pintar quadros que já existiam.

Depois de dois dias de vendaval na imprensa e nas redes sociais, Piçarra fez o melhor que tinha a fazer, e retirou-se da corrida à Eurovisão, enumerando as suas razões numa nota publicada no Facebook. Palmas para ele, por não ser teimoso. Ficasse a canção no festival, e provavelmente ganhava, podendo mais tarde ser desqualificada na final, o que seria uma vergonha. E porque é que ia ganhar? Porque nós iamos votar nela, ora essa. Porque nos disseram para não votar, e isso era o que faltava! Somos mesmo assim, nada a fazer. Agora pelo amor do Buda, vejam lá se fazem alguma coisa de jeito em Maio, para que o mundo fique pelo menos com a impressão de que somos um país de gente simpática, bem disposta e de bem com a vida. Assim como o Azerbaijão, vá lá.

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