(Con)Tradições (Vivam as Forças Armadas!)

Recordo-me de quando tinha os meus sete ou oito anos os meus avós levarem-me à Tourada, na Praça de Touros Amadeu Gaudêncio, no Montijo. Recordo-me ainda de ter adorado lá ir, de berrar tantos “olés” que demorava dias até recuperar a voz. Depois deixei de ir, por razões várias, mas continuaria a tomar contacto com a Tourada através da televisão, e já mesmo antes de entrar na adolescência, não conseguia perceber o que me tinha levado a berrar aqueles “olés” todos durante a infância – será porque no pequeno ecrã a sensação é diferente do que ao vivo, na Praça de Touros? Foi já em 1996, em Macau, que voltei a ir à Tourada, na arena improvisada montada no antigo Campo dos Operários, exactamente no mesmo local onde se situa hoje o Grand Lisboa, e mais uma vez, nada. Nem um olézinho para a mostra, e saí dali com a mesma sensação de quem vai ao futebol e o jogo termina a zeros, sem uma única oportunidade de golo para ambas as equipas.
Cheguei à conclusão que se calhar não gosto de Tourada. Enfim, não me enche as medidas, e se me fazia vibrar quando tinha sete ou oito anos, talvez seja um espectáculo indicado para essa idade, não sei, pelo menos para mim foi assim, e pode ser que haja algo ali que me tenha escapado. Ou então faz apenas parte daquilo que eu sou, e se mais ninguém tem nada a ver com isso, também não me assiste o direito impor isso a ninguém. Só que aos olhos do politicamente correcto, pós-moderno, neo-higienista e afinal-quando-é-que-estes-gajos-se-calam, no momento em que eu tomo consciência de que não gosto de Tourada devo, aliás tenho a obrigação de exigir o fim desse espectáculo – o que não pode ser bom para mim, não pode ser bom para ninguém, é claro. É? Claro que não. Que soberba mais fascista seria essa, da minha parte.
Mas à revelia, ou ao “que se lixem” os tipos que até gostam de ver a besta ali às voltas com um cavalo e um indivíduo montado nele trajando uma indumentária sexualmente ambígua, há outros que também pensam deste modo, e em Portugal algumas celebridades juntam-se ao coro da indignação anti-Tourada, exigindo o fim das transmissões televisivas das mesmas (um pequeno passo para acabar com a programação medíocre, bastando para tal exigi-lo?), bem como o aumento da idade mínima para se poder entrar num destes espectáculos, que é actualmente de seis anos. Valham-nos as celebridades para nos dizer como devemos agir e pensar. Afinal, os pais e encarregados de educação daquele país não têm o discernimento ou bom senso para determinar ao que devem os seus filhos assistir, ou não. Se calhar não sabem o que passa na Praça de Touros, e julgam tratar-se da distribuiçāo gratuita de rebuçados! E de facto nem eu pensava estar exposto a tal violência naquela idade tão sensível, em que as crianças são tão influenciáveis. Devia ser uma criança problemática, visto que após ver uma tourada não tinha vontade de espetar bandarilhas nos costados dos meus amiguinhos, nem marrar com a professora, lá na escola. 9715P15T1
Não posso ser a favor da Tourada, pois além da componente sádica, o espectáculo em si é um tanto ou quanto rústico, a atirar para o marialva e para o chuleco. Mas também já não há tantas corridas de touros como havia antigamente; há 20 anos havia mais, há 50 muito mais e há 100 nem se fala, e não foi graças ao activismo que o número se tem vindo a reduzir. Estive em Barcelona há coisa de seis ou sete anos, e pela cidade via-se cartazes anunciando uma dessas corridas, e actualmente as Touradas estão banidas em toda a Catalunha, e não se realizam em muitas outras províncias de Espanha, supostamente por falta de interesse. Assim é, uma vez que o público se vai tornando mais consciente e exigente, além de ter dois olhos na cara para constatar o óbvio, sem que ninguém os oriente, como se fossem invisuais ou retardados mentais. É a evolução natural das coisas, para quê apressar? Porque é mais divertido confrontar, molestar e insultar quem (ainda) gosta?
Não dá para alinhar com os partidários da anti-Tourada, e especialmente por esse mesmo motivo: julgam-se os donos e senhores do bom gosto, o pináculo da modernidade, dispostos a mostrar o caminho certo como quem toca uma manada. Fazem-se comparações absurdas com o Circo Romano ou o sacrifício de Virgens, outras “tradições” do passado, segundo eles, mas talvez fosse bom lembrar que até 1948, data em que se assinou a declaração universal dos direitos do Homem, com a carta da ONU, não havia assim tanto respeito pela vida humana como se vê hoje de entusiasmo pela taurina. Quiçá os touros precisam da sua própria organização, a “Omuuu”.
E é um animal que teima em não colaborar, aquele. Apregoa-se a “horrível crueldade” que o espectáculo representa, mas depois de levar com o primeiro ferro no lombo, o bicho continua para ali a correr como se nada fosse, quando o ideal seria ficar no chão a mugir de dores, tão alto que não deixasse ninguém indiferente. Parece que logo aí acabam as comparações com os humanos, que nem com dois ou três casacos de cabedal aguentariam uma investida deste tipo na coiraça. Os indecisos juntam à indecisão também alguma estupefacção: “Afinal onde é que está a hedionda tortura? É muito pior assistir a um frango degolado a estrebuchar”. Ah, mas aí justifica-se, pois é para comer! Que alívio, e assim até parece que a criatura que ali está a desesperar enquanto se desvanece o seu sopro de vida fica sorridente e tudo. Da única vez que tive curiosidade em saber para onde vão os touros depois da lida, disseram-me que “iam para o matadouro”, e mais tarde a sua carne seria “oferecida a um orfanato”. Parece-me bem, pois assim as refeições dos pequenotes menos afortunados variam do habitual pão…que o diabo amassou.
Caminhamos a passos largos para a ditadura das boas vontades, atrás de elites de arengue que só botam faladura, e ainda se aproveitam da facilidade com que as massas se agitam, sem procurar ir ao fundo das questões – afinal são tantas, desde o franguinho da guia que passou a “cadáver” até mais recentemente aos caracóis, que levaram a que um grupo de alucinados protestasse a favor destas criaturas exibindo cartazes onde se lia “E você? Gostava de ser cozido vivo?”. Demos graças pelas Forças Armadas, pois por muito que não simpatizemos com a ideia, são o único garante da democracia, dotando-nos de protecção contra esta corja de mortos-vivos. Olé!

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