Não destruas os teus amigos

Por António Garcia Pereira

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ncontra-se hoje em muito lado (cartazes de rua, facebook, etc.) uma promoção publicitária de um jogo (Clash Royale) disponibilizado pela empresa de telecomunicações Moche, a qual reza assim: “Destrói os teus amigos sem gastar net”. Ora, esta campanha de publicidade, dirigida essencialmente aos mais jovens, é bem representativa dos dias de hoje e diz muito mais do que à primeira vista poderia parecer.

Com efeito, sob a capa de um “inocente” jogo, o que aqui se divulga é a ideologia e a corrosão do carácter (de que fala Richard Sennett), próprias da época do grande capitalismo financeiro e que se caracterizam pela individualização máxima, pela desvalorização e negação do colectivo, da solidariedade, da amizade e, entre outros, pela substituição dos ideais mais nobres pelos conceitos do poder, da fama e do dinheiro.

Trata-se de uma verdadeira “missa hipnótica” com que todos os dias somos lambuzados e narcotizados, designadamente através dos grandes órgãos de comunicação e instrumentos de publicidade de massa (como as televisões, as redes sociais, etc.) e dos quais, precisamente devido ao seu importante papel de “acarneiramento” e de adormecimento da grande massa dos cidadãos, o grande capital não abre mão, mesmo que não sejam imediatamente lucrativos.

Essa ideologia pegajosa e entorpecente prega pelas mais variadas formas, das mais directas às mais subtis, a substituição dos ideais e dos princípios (apresentados como coisa ultrapassada pelos novos tempos) pelo “pragmatismo”, leia-se oportunismo mais repugnante. A substituição da atenção e consideração para com o outro (que fez Gabriel Garcia Marquez escrever no seu “testamento político” essa frase magnífica de que um homem só tem o direito de olhar para outro de cima para baixo quando o ajuda a levantar-se) pelo individualismo mais feroz. A substituição do respeito pela verdade pelo uso mais descarado e pérfido da mentira. A substituição da elevação dos meios pela tese de que a pretensa legitimidade dos fins justificaria todos os meios, mesmo os mais reprováveis e ignóbeis. A substituição da amizade pela actuação interesseira e pelo rasteirar ou acotovelar do colega mais próximo para assim conseguir ultrapassá-lo. A substituição dos sentimentos mais nobres e elevados pelo apelo aos instintos mais baixos e primários. Enfim, a contínua habituação à ideia do atropelo da cidadania e da sã convivência entre iguais pela política do medo e do apelo à eliminação do “concorrente”.

A questão é, pois, bem mais séria e profunda do que poderia à primeira vista parecer.

A banalização da eliminação física ou cívica daqueles de que discordamos ou de que não gostamos, a apresentação da sociedade como um conjunto atomístico de pessoas das quais só sobreviverão os mais fortes e os mais “puros” que tiverem a capacidade de afastar todos os que estão a seu lado, a normalização do “vale tudo” para atingir um dado objectivo e a permanente pregação de que “a sociedade é assim” e nada podemos fazer para a alterar, constituem assim o cimento ideológico justificador da humilhação, da submissão e da sujeição às mais violentas formas de opressão e de exploração.

Já não estamos de facto no Portugal dos anos 30 ou 40 do século XX em que, por lei, se impunha a obrigação de os livros da instrução primária conterem frases tão significativas como estas: “É Deus quem nos manda respeitar os superiores e obedecer às autoridades”, “Na família, o chefe é o Pai; na escola, o chefe é o Mestre; no Estado, o chefe é o Governo” ou “se tu soubesses o que custa mandar, gostarias mais de obedecer toda a vida”.

Como também já não estamos no tempo de Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler que proclamava que “uma mentira mil vezes repetida acaba por se tornar verdade”, e que em Junho de 1941 escreveu: “O Führer disse que temos de vencer, seja justo ou não. É o único meio, e é justo, moral e necessário. E quando tiveres vencido, ninguém nos pedirá contas”.

Mas, por exemplo e mesmo nos dias de hoje, as cerimónias iniciáticas de grande parte das praxes universitárias (significativamente ressuscitadas ou mesmo criadas a partir dos anos 80) não representam qualquer mecanismo de integração social, mas antes são a iniciação à sujeição, sem reservas nem protestos, à prepotência hierárquica e a toda a sorte de abusos e humilhações. Um autêntico treino para os aceitar na Escola, no trabalho e na sociedade em geral.

Por outro lado, revela-se igualmente bastante interessante constatar como as grandes inovações tecnológicas, precisamente porque apropriadas por uma ínfima minoria (em 2017, 1% da população mundial arrecadou 80% de toda a riqueza produzida, enquanto 50% da população mundial ficou com 0%!…), são transformadas em terríveis instrumentos de violenta exploração e opressão contra os quais a ideologia peganhenta e retrógrada, mas omnipresente, do capitalismo financeiro prega a impotência e a inacção.

Um jovem jornalista e escritor inglês, James Bloodworth, está a editar um interessante livro – de que o “New York Times publicou entretanto uns excertos – intitulado “Hired: six months in undercover low-wage Britain” (“Contratado: seis meses infiltrado na Grã-Bretanha dos baixos salários”). Tendo trabalhado durante meio ano em várias empresas, como a Uber, mas sobretudo durante um mês na gigante Amazon, ele descreve o ambiente de exploração e de terror extremos vividos na dita empresa, como por exemplo: os cerca de 1200 trabalhadores, quase todos bastante jovens, recebem salários muito baixos e vivem numa autêntica prisão; os tempos para se deslocarem à cantina para tomarem as refeições não contam como tempo de trabalho e são controlados ao segundo; chegam a levar 15 minutos para passarem por gigantescos detectores de metais; são obrigados a usar um aparelho electrónico que regista todos os passos no interior da empresa; estão sujeitos, a todo o momento, a humilhantes revistas pessoais levadas a cabo por seguranças.

O conjunto de mudanças tecnológicas que estão hoje em curso, e que se baseiam sobretudo em inteligência artificial, robótica e novas tecnologias de comunicação e informação (tal como sucedeu no início do século XIX com a introdução das máquinas a vapor, em particular no sector da fiação e tecelagem) decerto que irá fazer desaparecer diversas profissões, mas decerto também que irá contribuir para a criação de outras, mais qualificadas e complexas. E deveriam permitir a criação de uma relação bem menos dura e violenta com o trabalho, possibilitando, desde logo, a redução do número de horas diárias e semanais e o aumento das condições de segurança, saúde e dignidade no desenvolvimento da actividade produtiva humana, quando estão é a conduzir à crescente expropriação dos saberes mais qualificados e à crescente proletarização dos seus titulares.

Mas, para isso, as relações sociais de produção não poderão ser mais aquelas que precisamente permitem a brutal acumulação de riqueza por parte de quem tudo tem e nada faz, ou seja, relações de escravidão do trabalho assalariado.

E eis que regressamos ao ponto inicial. É que é exactamente para reproduzir e perpetuar essas mesmas relações de produção que serve a afirmação, tão aparentemente “neutral” quanto eficaz, da ideologia do individualismo, do oportunismo, do golpe baixo e da negação do colectivo, da solidariedade e da amizade.

Não! Não queiramos destruir os nossos amigos e os nossos companheiros! Não aceitemos vê-los como concorrentes que deveremos eliminar a todo o custo e por qualquer meio, mesmo que traiçoeiro e ignóbil, para assim podermos alcançar sucesso. Não ponhamos o joelho em terra perante a humilhação, a barbárie e a malfeitoria, nem aceitemos que nos imponham o estatuto de carneiros a caminho do açougue.

O Mundo pode e deve ser melhor! E se nos unirmos e nos batermos por ideais justos e correctos será possível alcançá-lo.

Recordemos que quando em 12 de Outubro de 1936, na abertura oficial do ano lectivo da Universidade de Salamanca, o General fascista Milán Astray gritou o atroz lema da Legião “Viva a morte!”, o poeta e Reitor Miguel Unamuno respondeu-lhe com estas imortais palavras: “Vencereis porque tendes força bruta de sobra. Mas não convencereis, porque para convencer há que persuadir. E para persuadir necessitais de algo que vos falta: razão e direito na luta!”

E a História demonstrou quem tinha afinal razão…

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários