A vaidade e o sexo oral

[dropcap style≠‘circle’]C[/dropcap]ito: «O Presidente de Uganda, Yoweri Museveni, conhecido pela posição homofóbica, prepara-se agora para proibir a prática de sexo oral no país. Meseveni culpa “os estrangeiros” pela banalização da prática, que considera “muito errada”, e revelou que já está a preparar uma campanha, com cartazes e anúncios de televisão, contra o sexo oral. “Deixem-me aproveitar esta oportunidade para lançar um aviso público sobre as práticas erradas (…) A boca é para comer, não é para fazer sexo. Nós sabemos qual é a ‘morada’ do sexo, sabemos onde é que deve ir”, defendeu o presidente do Uganda. Em 2014, ano em que introduziu a lei anti-homossexual, o presidente defendeu publicamente que a prática de sexo oral causava lombrigas e outros parasitas.»

Uma das lombrigas é a vaidade. Aquela que levou José Sócrates a bradar, ufano e peremptório, contra o Procurador-Geral (numa das infamantes reportagens com que a SIC transformou a justiça em devassa pública) aquilo que o movia: “Eu sou vaidoso (…) a única motivação que encontro para a actividade política é a vaidade, aliás dos políticos em geral. É uma característica humana…”.

Esta afirmação é uma generalização falaciosa – a vaidade não é uma característica humana virtuosa e digna de ser imitada – e (não é em vão que rima) quase criminosa: alguns milhões votaram nele apesar da vaidade, julgando que o moviam outras qualidades mais misantrópicas. Que, mesmo que coxo, um ensejo de justiça, de regulação de alguns desequilíbrios sociais, lhe fosse prioritário. Constata-se que isso seria apenas a projecção dos inocentes, num país onde tanta gente gosta de exibir um broche de ouro na lapela.

A vaidade esquarteja qualquer ilusão e torna compreensivo que Sócrates tenha escorrido, de forma espasmódica, da JSD para a calha socialista. Não foi uma questão de re-focagem ideológica – como com a arquitecta Helena Roseta, ou até com Freitas do Amaral, por honestidade intelectual – mas de oportuna medição do terreno ideal onde a sua vaidade se podia expandir, ter eco, ganhar uma corte.

E de facto porque há-de um político ser um espartano? Já é diferente querer ser esperto como um alho para afinal apenas se assemelhar à cebola que se gaba de saber trinchar a lebre e a galinha.

O pequeno ensaio de Montaigne que se intitula Da Vaidade das Palavras começa assim (cito de memória), «Dizia um retórico do passado que o seu ofício era fazer que as coisas pequenas parecessem grandes e assim fossem julgadas. Eis um sapateiro que, para calçar pés pequenos se gaba de fazer sapatos com a medida de Hércules». E aqui engana e lisonjeia, e pior, – pois quem não quer ser Hércules? -, manipula.

Alguém que chega ao poder por virtude do muito que foi envaidecendo só pode tornar-se pernicioso. Nem imagino a quantidade de medidas tomadas não porque fossem as mais razoáveis e necessárias mas porque em qualquer disputa de argumentos uma criatura de tal ego quer ter sempre a última palavra! Como acontece com Trump. Quantas vezes, em decisões chaves, se abeirou Sócrates da irracionalidade para alimentar a sensação de que controlava, de que a sua vaidade imperava?

A soberba começa devagarinho tal como as tentações foram tomando conta de Giges depois dele ter achado o anel.

Giges, sabe-se, é um personagem da República de Platão que um dia achou um anel que ao ser rodado sobre o eixo o tornava invisível. A inesperada graça de ficar invisível tomou conta do seu comportamento e, por estrita curiosidade, começou a ir visitar, na clandestinidade, as casas dos seus amigos. Rapidamente uma pontinha de inveja acompanhava as suas incursões secretas: ah, aquela cigarreira de prata, belíssima a ânfora de Esmirna, invejável a pulseira da mulher do seu amigo e como era muito mais animado o sexo com ela. Assim, de sexo oral! Giges, até aí considerado o mais recto dos homens, começou a congeminar modo de se apoderar da mulher do amigo e entregou-se aos pequenos furtos. Quem ia notar? O anel apossou-se da alma de Giges, mudou-lhe o carácter.

O anel de Sócrates é a vaidade, que ele, inexplicavelmente, julgava invisível ou que camuflava com uma retórica grandíloqua e que por vezes tinha o aspecto de coincidir com o curso das necessidades do país. Afinal, só lhe importava o pavoneio próprio, para além das ideologias. Como tantos outros políticos-espectáculo da mesma igualha.

Que triste paradigma a de um horizonte político que só tem por causa a vaidade individual. Os chineses da dinastia Ming tinham um antídoto para aqueles que ambicionavam a vaidade do poder – por exemplo, os grandes almirantes da frota imperial. Castravam-nos. E os seus testículos eram exibidos em relicários nas costas do trono do imperador para que ficasse à vista o que lhes faltava e a fraca proporção do seu poder. A chegada ao poder pagava-se com um sacrifício.

Parece-me ser isto um justo preço. Bom, e que se não invalida o sexo oral, o inibe!

Outra solução me parecia crucial: que a primeiros-ministros pudessem chegar os menos eloquentes mas melhores preparados tecnicamente. O melhor era até serem mudos. Acabava-se o espectáculo televisivo. No parlamento tudo seria mais ponderado, pois as respostas ao hemiciclo haviam de ter o ritmo lento da escrita numa pequena ardósia. O qual oferece tempo para reflectir, para corrigir, para mudar de ângulo e não ser aquilo que se diz unicamente da boca-para-fora. Brinco e não.

Países-da-boca-para-fora (do mais caprichado sexo oral) é o que temos com estes mealheiros da vaidade que nos calharam como líderes de um tempo caprichosamente fútil. Yoweri Museveni tem razão: fora com a lombriga da vaidade!

Que cada país leia na exacta proporcionalidade do uso de broches de ouro na lapela dos seus políticos um sinal simétrico de tropeço do seu futuro no fosso do descalabro.

26 Abr 2018

Exorcismos de Inverno

Facebook, 1 Abril

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]inda não fiz as contas do que devo à televisão. Não conto pagá-las, apenas dar de beber à curiosidade. Na lista teria de incluir Steven Bocho (1943-2018), muito por causa dos policiais onde os polícias eram humanos, nada óbvio em tempos de juvenil exaltação. Hill Street Blues tinha qualquer coisa de reportagem entretecida nos fios da narrativa. Vieram depois outras séries, talvez mais apuradas e sempre tendo em fundo o melancólico azul, como NYPD Blue, mas as primeiras vezes não perdem aquele sabor a infância. Os detectives que Dennis Franz interpretou em ambas conversam amiúde comigo. Saravah, Steven da minha criação.

Facebook, 13 Abril

Muitas imagens despontam no acanhado quintal da memória. E queria partir agora mesmo em direcção a Goya, companheiro maior na peregrinação das sombras. Gosto de imaginar o circunflexo invertido pássaro a pousar no nome de Miloš Forman (1932-2018), bombeiro dançarino para quem a loucura normal pode ser um nó na garganta dos dias. Chorei Voando Sobre Um Ninho de Cucos, gigante cartaz anunciando a liberdade, o poder do afecto e da ternura, os actores que se tornam árvores do humano, desde que deviamente regadas. Saravah, Miloš da criação.

Horta Seca, Lisboa, 9 Abril

Como voltar a dizer o mesmo vezes sem conta? Por milhentas circunstâncias, migalhas e missangas, escolhos e encolhos, fui praticando o desporto de preguiçosas perícias, a procrastinação, e vi-me com a bomba nas mãos. Pior: a minha costela maternal afeiçoou-se e dou por mim a gostar do atraso, a beijá-lo com mil ainda que urgentes cuidados. Algo se perderá nesta terra húmida, potenciando o nascimento da flor do erro, mas na minha horta amanha-se assim o sol, sendo agora tarde para mudar de manhã. Andei doido a terminar projecto de anos. Bartoon, a coluna deitada do mano Luís [Afonso] ergue-se há 25 anos no Público e queríamos celebrar a data soprando alma. Pedimos a outras tantas figuras, amigas, cultas, ridentes, que nos escolhessem exemplos do bom humor, da lógica extrema, da aguda crítica, da amarga tirada para depois a colou em andamento de páginas regido pelo Jorge [Silva]. Cruzei caminhos com o Luís há tantos caminhos e sóis que não sei se somos índios da mesma tribo ou cobóis em duelo de fim de contas.

Confirmo apenas, como escrevi a primeira vez que o expusemos aqui em tratos de abertura da galeria e a contar já com este livro, que «o seu pequeno mundo mantém um capital explosivo que nem sempre é fácil de explicar. A simplicidade é, talvez, o principal dos componentes. Não procurou o autor o esplendor gráfico, apenas uma cadência minimal repetitiva que serve de baixo contínuo para as inúmeras e pirotécnicas variações da palavra escrita. Nada nos perturba nos minutos, se tanto, que demora o despertar da gargalhada. Com extremo cuidado ético, quase sempre levando ao máximo as consequências do que é dito na esfera mediática, acentuando de modo único o absurdo dito sobretudo pela política, afinal o satélite mais querido da tal esfera. Mas aquela simplicidade deixa esconder um jogo, de linguagem claro, mas que usa um sem número de personagens, orquestrada pelo barman, que estimula, provoca e comenta (também com corpo mínimo).

Desenho e língua, tudo neste palco de papel se ajusta em mecanismo de relojoeiro para nos atirar do material mais explosivo que a criação possui: uma ideia.» Nisto, aconteceu turbilhão de noites sem dormir e viçosas ânsias que durou até ao último e adiado ao máximo instante, para desespero de quem sofre os polés da produção. Não estão a bem ver. Por razões que nem sei explicar, ainda que a culpa me pertença, laborámos até à última hora em formato que não era o combinado, desesperei por respostas por chegar, desencontrei-me das que tinha há anos, ia-me esquecendo de recolher os frutos de outras sementeiras. No rol dos milagres, acrescentei mais um.

Por saboroso acaso, no meio disto e por com ele ter enchido as madrugadas, entrei na carne do novo álbum do Sérgio [Godinho], Nação Valente. Embirro com o título, por desgosto com a noção de nação e desprezo pelas valentias de capoeira, mas desponta ironia que me escapava. De igual modo, não me soava bem o nome da brutal canção de abertura, Grão da mesma mó, descobrindo-lhe ruralismo serôdio de quem vive na cidade moendo fascínios pelo campo. Ouvi melhor o que começa apenas dizendo e depois corre a cantar antes de regressar ao dizer caminhando. Canta alto o tempo, este que mói, fala de porções da vida, dos dias em que nada acontece, fazeres e afazeres. Desfazeres. «Vê lá o que fazes, há/ tanto a fazer/ Fazes que fazes/Ou pões sementes a crescer?», diz o coro grego antes do remate: «E as palavras tornam-se esparsas/ Assumes/ fazes que disfarças/ Escolhes paixões, ciúmes/ Tragédias e farsas/ E faças o que faças/ Por vales e cumes/ Encontras-te a sós, só/ Grão a grão acompanhado e só/ Grão da mesma mó/ Grão da mesma mó». E se o grão não for de trigo, cevada ou centeio, mas fragmento de pedra, minuto de granito ou segundo de quartzo? O barman tem semeado restos de cotão, talvez mais, nos bolsos dos que caminham. Por querer mais que a vida. Todos os dias.

Cruzes, Caldas da Rainha, 13 Abril

O plano muda e estamos no meio de um arremedo de serra, certamente a recuperar de fogos antigos, a digerir aquelas mesmas palavras do Sérgio. Estamos – a [Maria do] Céu [Santos] e o Carlos [Querido] mais o António [de Castro Caeiro] – e a digerir ainda faustoso almoço, um festival de carnes como só a Tabena do Manelvina por ali é capaz de fornecer. Acontecia a Abysmo a (des)organizar o seu exorcismo de Inverno, na boa definição do mano [José] Anjos. Explico-me. Na sequência do convívio com o Jacinto [Gameiro] e a Cecília, do Casal da Eira Branca, projecto que converte turismo rural em arte de bem acolher, resolvemos alargar os vários encontros que o modesto Oeste nos tem proporcionado aos mais díspares lugares, museus e colectividades, capelas e antigas prisões, gráficas e bibliotecas, escolas e lojas.

Começámos por convocar alguns dos autores da casa, mais ou menos conhecidos, da ficção como do ensaio, da poesia como da ilustração e da fotografia, mas em busca de interacção com a cultura e os seus actores locais, propondo-nos ainda ir ao encontro de faixas da população alheadas, de costume, destas iniciativas.

Abysmo nos arredores de Imaginário, que assim se chamou para homenagear fantástico nome de terra, gastou três dias com feira do livro (com alguns pouco vistos), debates, sessões de poesia dita e musicada, concertos, lançamentos exclusivos (alguns de autores da região), performances e o mais que a imaginação alcançou. (A ilustração desta página saltou do cartaz e assina-se Mantraste, também ele autóctone, e que diz de raízes nas plumas, pés nas plumas e fragmentos que se articulam para apontar e dizer).

Resultado: a) o António [Caeiro] mudou vocações em sessão a partir do verso de Píndaro que diz sermos sonho de uma sombra em auditório cheio com centenas de jovens interessados e interessantes; b) não existe a viagem mas sem número de mameiras de a fazer em busca do nosso lugar, pessoal e intransmissível; c) atirar o barro à parede de museu de modo a capturar moscas de cerâmica e falhar resulta em aforismo: há cerâmica viva; d) ele há artistas capaz de explicar sorrindo as paisagens fazendo do castelo o espelho do poço; e) há quem faça centenas de quilómetros por amizade para dizer que as cores podem ser escritas; f) a máquina de fumos cria excelentes ambientes de cultivo mais ainda se a banda vocifera metal rural; g) a chuva intensa não perturba ou molha os maduros que na alta madrugada discutem a morte; h) o palco de uma biblioteca pode vorazmente acolher quem suba degraus para dizer; i) os encontros multiplicam-se em luxúria de sedas e cores e fazendas e generosidades se nos dermos a isso. O resto foram livros.

25 Abr 2018

“Belarmino” de Fernando Lopes, uma nova figura mítica

[dropcap style =’circle’] F [/dropcap] ilmado em 1964, um ano depois da apresentação de O Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira – filme ao qual todos os cineastas em Portugal ficaram a dever, de um modo ou de outro, como escreve João Mário Grilo em O Cinema da Não-Ilusão, “esta obra [O Acto da Primavera] explica toda a relação do cinema português com a realidade e esse espaço de relação entre a representação e o real. Todos nós, os que viemos a seguir, só repetimos esse conceito de modos muito diversos” –, o filme começa com as imagens de vários pugilistas a treinar nas instalações do Sporting Club de Portugal, e Belarmino Fragoso equipado a caminho do treino. Por fim, escuta-se a voz off [de Baptista Bastos] a dizer: “Podia ter sido um grande pugilista, dos melhores da Europa, talvez até campeão dos meios leves, e agora é quase um punching ball [saco de porrada]: Belarmino Fragoso.” Anuncia-se, portanto, logo no início do filme, que iremos assistir à derrocada de um homem. Ficamos a saber que foi bi-campeão nacional da sua categoria, mas a corda que tange na nossa sensibilidade é a frase “poderia ter sido o melhor”. E não foi, porque se perdeu. Como é que um homem, que ganha no ringue a todos os outros, perde para si mesmo? Esta é a pergunta fundamental, um dos vários golpes de génio de Fernando Lopes nesta sua obra prima. O que leva um campeão a tornar-se um saco de pancada? O que leva um homem a voltar a ajoelhar-se junto aos sapatos sujos dos outros (a outra profissão dele era a de engraxador)? É isso que vamos tentar entender ao longo do filme. E em busca dessa resposta, Fernando Lopes invade-nos de solidão, de solidões. A solidão é um baixo contínuo que percorre o filme de grade a grade. Em O Lugar dos Ricos e dos Pobres no Cinema e na Arquitectura em Portugal – Belarmino (Novembro de 2007), José Neves diz: “O filme começa com uma grade – um grupo de pugilistas treina sozinho atrás de uma grade, de uma rede, como se fosse uma prisão ou uma jaula. (…) E o filme acaba também com grades (…)”. Entre a grade inicial e grade final, a liberdade. A existência de Belarmino, um homem marcado para se perder. Este olhar o filme como uma tensão entre liberdade e prisão, entre cidade e interior é outra das leituras legítimas. A solidão filmada no Hot Club, com a música e a banda de Manuel Jorge Veloso, que carrega as cores negras e nostálgicas da solidão em que todos se encontram nas noites do filme. Ninguém está com ninguém. Ninguém fala com ninguém. As pessoas amparam-se. Amparam-se umas nas outras (não umas às outras), como se se amparassem à morte que trazem dentro de si, como um segredo ou o dinheiro que escondiam nas meias.

 

Escuta-se e vê-se, a um terço do filme: “Voz Off: Olha lá, tu já passaste fome? / Belarmino: Fome, fome, fome, não é fome de três dias… Muitas vezes quero jantar não tenho, muitas vezes quero almoçar não tenho. Mas não quer dizer que isso seja fome, é mais um estado de fraqueza que existe em Portugal.” E aqui o filme alarga claramente do individual para o colectivo, do existencial para o social e político. E há também muitas leituras feitas ao filme através destes prismas sociais e políticos, com propriedade e justeza. Mas não é esta a leitura que aqui se faz.

 

Aqui e agora o tema de Belarmino – embora haja outros, como temos estado a ver – é a solidão. Está-se só na vida como se está só no ringue. E aqui está outro dos golpes de génio de Fernando Lopes, pois este filme não poderia ser feito com um jogador de futebol ou de hóquei patins, tinha de ser um boxeiro, como Belarmino dizia. No final do filme, Belarmino diz: “Se fosse engenheiro ou fosse médico ou fosse um arquitecto não ia pó boxe, fui pró boxe por honestidade. Porque dentro do boxe, ou de qualquer desporto, não há engenheiros ou arquitectos que vão pró desporto e que levam porrada na cabeça por gosto, são homens como eu, vadios.” Também na antiga Grécia, o desporto era sempre a expressão física da solidão. Sempre um homem só contra outro ou contra outros, ainda que representasse uma aldeia, uma cidade ou uma nação. Belarmino está só no ringue, como está só frente aos sapatos de alguém que engraxa e está só nas noites, que Fernando Lopes filma magistralmente, como se a noite fosse não um mar, mas um Adamastor que nos impede de chegar a nós, que nos impede de afastar a inquietação, o desencanto, a “desalegria”.

 

A vida de Belarmino é à sua revelia. E é assim que nos é exposta pela realização de Fernando Lopes, que faz deste filme uma tragédia, no sentido clássico do termo. Belarmino aparece, desde logo de início, como aquele que poderia ter sido o que não foi ou que não chegou a ser. Mas o que agudiza o carácter trágico é que ele chegou a ser o que poderia ter sido. Por breves instantes ele foi o que poderia ter sido. Isto é, ele foi bi-campeão nacional de boxe. Durante um pequeno período de tempo ele foi o que poderia ter sido. E este ter sido o que poderia ter sido, apenas por instantes, que torna este filmes numa metáfora da existência de cada um. Todos nós fomos, por instantes, jovens. Todos nós fomos, por instantes, alegres. Todos nós fomos por instantes aquilo que poderíamos ter sido, mas que o tempo acaba por nos tirar. Belarmino, aquele que poderia ter sido o que chegou a ser, não é um personagem de cinema, é uma nova figura mítica. Como se o seu destino já tivesse sido traçado antes dele ter vindo à existência, volta à sua caixa de sapatos, ajoelha-se de novo aos sapatos sujos dos outros. Tu, humano, nunca serás aquilo que poderias ser; nunca serás aquilo que poderias ser e foste por um instante. Tu, humano, tu Belarmino.

24 Abr 2018

A subcomissão chinesa dos festejos

[dropcap style≠‘circle’]P[/dropcap]repara-se a celebração do IV Centenário do Caminho Marítimo para a Índia e sob a presidência do Governador Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo (1897-1900) no Palácio do Governo reúne-se a 1 ou 2 de Fevereiro de 1898 a comissão executiva dos festejos, à qual Lu Cau e Ho Lin-vong pertencem, sendo aprovado o programa e nomeadas as subcomissões. Integra uma delas diversas personalidades chinesas influentes na sociedade macaense que, <pela sua posição e boas qualidades, se têm tornado dignos da consideração e respeito dos seus compatriotas>. Presidida pelo chefe da Repartição de Expediente Sínico, Eduardo Marques, é a subcomissão constituída pelos chineses, Ho Lin Vong como Vice-presidente e vogais: Lu Cao, Chon Sin Ip, Ip Lui San, Chan Fong, Choe Sam, Sung San, Lam Ham Lin, Ho Kuong, Vong Tai, Chan Hao Hua, O Loc, Li Kiang Chün e Chie Iet. Tratará dos festejos chineses e fogos de vista e está encarregada de fazer um apelo aos habitantes chineses de Macau, solicitando a iluminação das suas casas. Muitos, deste grupo de chineses, já tinham ajudado o Governo de Macau na preparação de outros festejos, como a visita a esta cidade do Grão Duque Czarevitch Alexandrovitch, filho do ex-Czar Alexandre II da Rússia. O Boletim Oficial de 1891 não refere qual dos irmãos Alexandrovitch, tios e cunhados do então reinante Czar da Rússia Nicolau Nikolaevich (1831-13 de Abril de 1891), pretendeu visitar Macau. Quando por ofício de 21 de Fevereiro de 1891, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Império da Rússia, por via da sua legação em Pequim, comunicou ao Governo de Macau que nos primeiros dias de Abril pretendia o Grão Duque Alexandrovitch fazer uma visita oficial a essa colónia, o Governador de Sua Majestade, Custódio Miguel de Borja (1890-1894) mandou que sua Alteza Imperial fosse aqui recebida com todas as honras inerentes à sua alta hierarquia. Para essa recepção projectavam-se festejos públicos e para tal foi constituída uma comissão extra-oficial composta pelos cidadãos Visconde de Senna Fernandes como presidente, Ho-Lin-Vong vice-presidente, Lu-Cau tesoureiro, Pedro Nolasco da Silva secretário e dos vogais: Chan-Fong, Chou-Sin-Ip, Ho Lin Seng, Ho-In-Kae, Choi-Sam, Ho-Loc, Lam-Am-Lin e Vom-Tac. Pelo Boletim Oficial de 28 de Março de 1891 ficou a saber-se que por falta de tempo essa visita oficial não se iria realizar. O Governador, no B.O. seguinte, publicou um agradecimento à comissão pela sua franca adesão ao convite que fizera, assim como pelo modo especial e bizarro com que a mesma se houve na liquidação final das despesas preparatórias efectuadas, considerando-as por completo à sua inteira responsabilidade.

 

A comunidade chinesa

 

Antes de 1841, a comunidade chinesa a viver em Macau dedicava-se a pequenos negócios e já nos finais do século XVIII tinha criado a Sam Kai Vui Kun, associação dos moradores das três ruas, a dos Ervanários, a das Estalagens e a dos Mercadores, as principais de comércio, reunindo-se desde 1792 no Sam Kai Miu, o Pagode das Três Ruas, [hoje o Templo de Kuan Tai (Guan Yu) na Rua Sul do Mercado de S. Domingos].

Com a criação de Hong Kong, após a I Guerra do Ópio, Macau perdeu a sua importância como porto e daí muitos chineses se terem mudado para a nova colónia inglesa, onde se abriam grandes oportunidades de trabalho e negócios. Usando as suas regionais redes de contactos, os comerciantes chineses começaram a ganhar grande poder económico, enquanto Macau assistia, sem nada poder fazer, ao declínio comercial. Tal levou os governantes portugueses a ter de encontrar outras formas de impulsionar a economia do território e com a chegada do Governador Ferreira do Amaral foi implantado o regime de exclusivos para conseguir financiar as despesas da colónia. Aproveitaram os chineses abastados, que passaram então a controlar a actividade económica de Macau.

Uma das famílias chineses que em meados do século XIX apareceu em Macau foi a de Ho Lo Quai. Este introduziu aqui o jogo do Fantan e a lotaria Vae Seng, tendo ainda outros negócios como, o de terrenos, do ópio, do abate de gado e do exclusivo do sal, que o tornaram milionário. Faleceu em 1888 e dos dez filhos, Ho Lin Vong era o sétimo, que, além de participar com o pai em alguns exclusivos, era ainda proprietário de fábricas instaladas em Macau e tinha adquirido a nacionalidade portuguesa.

Em 1890, uma parte da comunidade macaense achava conveniente ter membros chineses na vereação municipal e propuseram Ho Lin-Vong, como o membro mais popular do clube chinês, onde se reuniam os grandes proprietários e capitalistas, <os indivíduos que estão mais em contacto com as nossas autoridades e com os portugueses em geral>, e Chou-sin-ip, pela parte burguesa da população chinesa, lojistas e comerciantes e cujo seu centro de reuniões era o hospital chinês.

Já nos finais de 1892, por Portaria foi nomeada uma comissão para promover a organização de produtos naturais de Macau e Timor e seleccionar expositores à exposição colonial a realizar em Julho de 1893 no Palácio de Cristal do Porto. Essa comissão, composta por todo o corpo governativo de Macau e Timor, tinha como presidente o Governador Custódio Miguel Borja, e nela se encontravam alguns dos capitalistas da cidade, Chan-Kit-San, Chou-Sin-Hip, Ho-Lin-Vong e Lu-Cau.

As amizades entre estes chineses e a comunidade portuguesa de Macau estão espelhadas na festa dada por Ho-Lin-Vong a 3 de Maio de 1894 para celebrar o feliz resultado obtido por um dos seus filhos no exame de bacharéis em Cantão. Nesse lauto jantar à chinesa, oferecido aos seus amigos, contavam-se os senhores Albano Alves Branco, Amaro d’ Azevedo Gomes, António J. Garcia, Augusto Irmino Serpa, A. d’ Araújo, Albino António Pacheco, Adolpho Corrêa Bettencourt, Conde de Senna Fernandes, Conselheiro Dr. António Marques de Oliveira, Cipriano Forjaz, Clelio do Rozario, Dr. Álvaro Maria Fornellos, Dr. José Gomes da Silva, Dr. Luiz Lourenço Franco, Eduardo Marques, Francisco Maria Salles, Francisco Pereira Marques, Francisco H. Fernandes, Guilherme Menezes, Ignácio da Costa Pessoa, José Ribeiro, Joaquim Madeira, João Albino Ribeiro Cabral, Luiz Eusébio da Silva, Secundino Noronha e Tristão da Cunha Azevedo Carvalhaes, segundo o Echo Macaense.

Um mês depois de ter sido nomeada a subcomissão para tratar da parte respeitante aos chineses da celebração do IV Centenário, por Portaria de 11-3-1898 era nomeada uma comissão para expor os recursos de Macau e os elementos de produção artística e industrial na Exposição Universal de Paris de 1900. Era composta entre outros pelo juiz Dr. Albano de Magalhães, António Joaquim Garcia Presidente do Leal Senado e seu representante Pedro Nolasco da Silva, o Conselheiro Artur Tamagnini Barbosa e os comendadores: António Basto, Lourenço Pereira Marques, Cou-Sin-Hap, Lu-Cao e Ho-Lin-Vong, assim como ainda Cuong-Fat-Chin e Chan-Hoc-Hin, que apresentará em 1899 o seu relatório.

Estas as sinergias para a manutenção de Macau no final do século XIX.

20 Abr 2018

Sinais II

[dropcap style≠‘circle’]H[/dropcap]á uma ideologia na nossa relação com o futuro. O facto de estarmos desde sempre já lançados na direcção de um futuro não está sempre presente. Essa consciencialização ocorre de diversos modos. Podemos reflectir activa e teoricamente sobre a relação entre espera e futuro. Mas é desprevenidos, contudo, que o futuro nos chega. Quando temos uma decepção e também quando dizemos que a “expectativa foi excedida”. A decepção e o “excesso” de satisfação transformam o modo como temos estados depostos na realidade. Fazem-nos perceber que estávamos a viver uma ilusão que foi desiludida ou então, mesmo numa determinada expectativa percebemos que a realidade nos ultrapassou e excedeu. Em ambos os casos na superação das expectativas ou na sua decepção percebemos que de algum modo estamos numa relação com o futuro. Não é, obviamente, apenas nestas circunstâncias que estamos numa antecipação de futuro. Estes casos são picos altos ou baixos que permitem compreender por contraste que fazemos experiência de vida orientados pelo futuro. O mais das vezes e primordialmente estamos precisamente à espera, à espera de que não haja novidades, de que as coisas sejam como até aqui. Há uma projecção do futuro que de algum modo prevê as coisas sem surpresas. A homogeneidade sem surpresas nem novidades nivela o quotidiano sem grandes expectativas ou esperanças mas também sem ânsia ou desespero. O “stress” vem da repetição contínua de tudo ser igual ao mesmo, sem a alteração que traga variedade ao que tem sido. Mas há uma ideologia na nossa relação com o futuro. A ideologia frisa uma possibilidade e tende a neutralizar a outra. Podemos estar sempre à espera de uma única coisa boa ou de coisas boas que estão por acontecer. Podemos estar à espera de uma coisa péssima ou de várias coisas más por acontecer. Há pessoas que esperam o pior, para se prepararem para o embate e o impacto que as coisas más têm nelas. Há pessoas que esperam sempre o lado positivo das coisas, mesmo que não sejam optimistas que esperem sempre o melhor de tudo. Há quem não espere nada. Há quem espere tudo. A acentuação de uma possibilidade em detrimento de outra define possibilidades existenciais ou cosmovisões. Há pessimistas e optimistas como há pessoas com sentido crítico nem pessimistas nem optimistas, mas realistas ou pragmáticas. Há quem prepare a guerra para viver em paz. Há quem viva continuamente na possibilidade iminente do conflito para poder ter sossego. Há quem viva a antecipar apenas o curto prazo de um dia de cada vez ou quem tenha visões de futuro a longo prazo. A nossa relação com o futuro é uma relação com conteúdos de futuro. A nossa agenda mental, virtual ou física tem a nossa realidade preenchida com o que fazemos, com quem nos encontramos, mais ou menos a curto prazo. A nossa agenda está mais cheia para as próximas semanas e meses do que daqui a uns anos. A relação com a forma do nosso futuro é diferente da nossa relação com os eventos futuros que estão por vir. Não é possível viver sem uma relação com o nosso futuro. As possibilidades de interpretação da relação com o nosso futuro são as que foram consideradas. Esperar tudo ou não esperar nada, esperar tudo o que mau ou esperar tudo o que bom, ser optimista ou pessimista, estar preparado para o que aí vem: a bonança ou tempos difíceis. A antecipação em que nos encontramos na nossa relação com o futuro é a da espera, da boa esperança ou da expectativa de um mal iminente e, por isso, é do futuro que vem a promessa e a ameaça. A promessa e a ameaça são sentidas já no presente e agem sobre o passado há pouco e há muito. E podemos perguntar como é o futuro sem nós o presenciarmos. Como será o futuro de quem conhecemos sem nós cá e o futuro dos outros que não conheceremos nunca e nunca teriam nada que ver connosco? Como será o futuro do crente que põe o seu coração da possibilidade intrínseca da fé em Deus e na vida eterna? O que é uma antecipação da vida eterna diferente da finita? É possível antecipar uma vida que não terá nunca fim como um grande domingo à tarde ensanduichado entre um sábado e uma segunda-feira que vai repetir sempre a vida que temos, em que nada se passa porque, embora não tenhamos medo, também já não esperamos nada? É possível uma antecipação baseada num futuro eterno que não é vago e vão de nós mas que terá um outro registo, onde não há assassinos nem criminosos, onde a vida é como a sonhamos, em que todos estarão como estiveram?

Do sonho em vigília sou acordado. Nada nunca muda, embora estejamos sempre à espera que alguma coisa aconteça que nos livre desta morte.

 

presença deste facto ocorre por contraste. Estamos habituados à passagem das horas nos dias a passar está

Os sinais dos tempos

Ocorre ocasionalmente uma lembrança de qualquer coisa a fazer no futuro.

Um “lembrete” do TM.

Ler a agenda

Saber o que se tem num dia

Antecipação do bom tempo e do calor dos dias e de como vai estar

Vêm aí dias mais duros

O pensamento de que as coisas são negras no meio como se antecipam

Aquilo por que ainda vamos passar

A espera do pior de tudo para aliviar o que temos

A compreensão de que nada é como achamos que vai ser

A espera pelo melhor de tudo

Tudo à nossa maneira, como queremos, a possibilidade de fazermos tudo o que nos apetece.

De onde vem a ideia de que tudo vai ficar mal ou de que tudo vai ficar bem

O que os outros nos dizem

Antecipação, antevisão, prognóstico.

20 Abr 2018

Pobre Atmosfera

[dropcap style=’circle’] J [/dropcap] ohn Berger comparou uma vez o espaço do atelier com um estômago, ainda que o processo da arte seja o inverso daquilo que se passa com o sistema digestivo – o que entra é merda, o que sai é uma oferenda.

Agrada-me muito a ideia que isto nos sugere: a arte é a inversão do processo digestivo. Corolariamente, creio que aonde se produz a oferenda advém o acontecimento. Aquele que importa e que amplia o âmbito das relações e, melhor, fideliza.

Situamo-nos aqui no oposto do espírito que se retractou nas latas de Piero Manzoni, com os dizeres: Merda de Artista.

Manzoni expôs esta sua “invenção” em 1961, um ano antes de Warhol nos propor as suas latas de sopa Campbell.

Nessa altura os laços sociais já não assentavam em “imperativos categóricos” mas antes em “imperativos atmosféricos”. As ideias andam no ar, não obstante é difícil não suspeitar que o americano, informadíssimo, não haja afinal reagido à provocação do italiano: para haver muita Merda de Artista haverá combustível melhor que o feijão?

Disto não nos falou Arthur Danto.

Posteriormente, muitas das 90 latas em que Manzoni defecou explodiram, resultado de corrosão e de gases em expansão. O que teve lugar uns anos antes da lataria que se tem feito rebentar nos céus e nas cidades da Síria reduzindo um país a uma mortalha – embora vivamos manifestamente sob influência.

Diverte-me imaginar que o Manzoni chega às fronteiras do Paraíso com as suas latas e tenta enrolar São Pedro, que controla as mercadorias:

São Pedro, posso entrar?

Que traz consigo?

Merda de artista.

A própria?

Precisamente.

Não creio que precisemos dessa merda…

Foi o que me deu fama e notoriedade!

Quantas latas são?

Noventa.

Cagou pouco.

Quantas teria de fazer?

Pelo menos o seu peso em biomassa, essa quantidade ao menos definia-o… Com tão baixa produção mostra-se um homem hesitante e sem capacidade de auto-crítica…

E o Manzoni voltava a nascer, afocinhado num curral de porcos.

Depois de Manzoni é fácil intuir que se hoje fizéssemos uma exposição de 90 latas com a efígie dos actuais líderes mundiais nos rótulos toda a gente adivinharia o que conteriam as latas.

O design das latas é que mudou entretanto: é fusiforme.

Porque é este o maior orgulhoso do homem, EU DEFECO, LOGO SOU!

 

16/04/18

Na longuíssima conversa entre Tobie Nathan e Catherine Clément que se fixa em Le Divan el le Grigi, livro que recomendo vivamente, refere-se esta ao enterro de um actor na Índia «especializado nos papéis de Deus».

Aí está um ofício que me convinha.

Enquanto tal sorte não me chega eis-me embaçado com as notícias do mundo, alheio e próximo, em estado de torresmo mental.

O ataque da Síria, houve. Dois presidentes da coligação precisavam absolutamente de reavivarem um inimigo externo que desvie a atenção das borradas internas, o terceiro, coitado, julga-se De Gaulle.

Nem se trata da legitimidade de defender as populações contra ataques de armas químicas, mas de tudo ser pretexto para brincar aos vídeo games. Como é fácil pôr a mão no gatilho quando conhecemos os mapas mas o nosso corpo desconhece o território.

Os pretextos da guerra são sempre hipócritas dado que denunciam o tanto que não se fez no devido tempo, são sempre respostas ao fundo da escada, passada já a ocasião. Um ditador é a víbora que não se matou no ovo.

O resultado é a inescapável hecatombe das cidades e a derrocada dos mitos. Que Deus sobreviverá às ruínas da Síria, que não se assemelhe a um caudaloso e freático rio de caca?

Seria para isso que servia a cultura: para nos alegrar com a criatividade dos vivos e fazer respeitar os mortos. Voltámos a um tempo sombrio em que queremos sepultar a própria memória, reduzi-la a pó. Cobrimos o respeito devido aos mortos com a infâmia.

Karen Blixen, num texto anómalo ao seu percurso de narradora, “A Verdade e a Política”, sustentava que uma das características da condição humana é a nossa capacidade para suportar praticamente tudo; podemos afocinhar nas abjecções mais tortuosas sem perder a alma, desde que tenhamos uma perspectiva de futuro e uma narrativa integradora do que está a acontecer. Agora o que não suportamos é o absurdo.

O absurdo instalou-se no mundo.

Vou-vos dar dois exemplos. Um universal, outro local.

Uma das coisas que o presidente Reagan fez, mal chegou à Casa Branca, foi mandar retirar os painéis solares que lá estavam pois considerava que a energia solar não traduzia “o espírito americano”, que o petróleo e o carvão representariam melhor.

Não impressiona que em 2018 o novo presidente americano considere igualmente o petróleo e o carvão moedas irrenunciáveis do “espírito americano”, sem atender às vitais necessidades de mudança para fontes de energia menos poluentes e sem demonstrar a menor capacidade de aprendizagem?

Eis um sinal de “identidade doentia” que chega a uma absurdez montanhosa e, para além de cretina, estúpida.

O outro mau exemplo foi-me contado hoje. Um médico do Hospital Central de Maputo evita estar fora nos fins-de-semana. Porque quando passa dois, três dias fora do serviço as enfermeiras, se as famílias dos doentes não lhes “pagam por fora” (o que é de regra por causa da pobreza), deixam imediatamente de substituir o soro do doente e de seguir as prescrições, farejando a comissão que as funerárias lhes pagarão.

As autoridades não desconhecem – os rumores sobre esta monstruosidade corriam na cidade mas só agora o vi confirmado por um clínico de dentro – mas mais um pobre morto é menos uma parcela na estatística da pobreza e além disso arredonda as contas de uma classe insatisfeita, sem haver necessidade de lhe aumentar os ordenados.

Se conhecerem algo mais cínico e perverso que isto, contem-me, um escritor encontra sempre um viés. Ou calem, porque a parte humana do escritor não quer ouvir.

 

19 Abr 2018

Pontapés na bicicleta

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] orreu o Manel [Reis] (1947-2018), inventor sem registo de patente, senhor da liberdade. Vem dali vento, voo, escorre dali maré, descubro. Noite rimará doravante com cidade, conta sílabas e descobre o gosto, o gesto. Senta para ver, comenta, desdobra o horizonte, que não será nunca engomado, e colha o fruto por haver, a surpresa não pode ser nódoa, siga a elite construindo farol com medo da solidão, a querer um cheiro, antes do perfume. Sou de nenhures e ainda assim me custa vê-lo a atear fogos despropositados e tristes na louca pradaria de trufa da opinião a pedir mais e sempre mais ardências, despontando deslugar deslassado, carne mole de não lugar, coisa que não se pisa a não ser pelo dedo e olho, que ao mesmo tempo esfarela as palavras a fingir que não agridem, mas que depois risca a giz no ecrã o lugar que marca identidade e tribo como castelo de onde partir a partir, além de louças onde comer, as canelas que fazem o andar. Não entendo nem uns nem outros, que se fecham no arremessar dizeres fingindo que pensam, granito feito palavra. Agora que o intelectual se tornou insulto, a «ideia» virou pedra de calçada. Quanto mais escrevo, melhor percebo que despertenço, que falhei no modo de ser grupo, que logo me disperso indo e vindo, maré a compor praia em noite fria. Nem da minha tribo creio que sou. Ponto. (E ao nada empresto a realidade.) Posso ser, apenas, brilhando, ou morando baço? Posso, em querendo. Os estilhaços do gozo de ir indo e acendendo hão-de atingir alguém, dos quietos dos moribundos, dos apagados. Foi de sem querer. O Manel alargou apenas as possibilidades. Sem desenhar fronteiras, sem ferir. Dando os bons dias, acolhendo as boas noites. Só porque sim. Entenda quem possa. Pare de explicar quem o respeite.

 

Bica do Sapato, Lisboa, 2 Abril

De tão bons intérpretes da vida, alguns lutos não param a festa. Estava cinza o rio, gerundiando em rima com o céu. Contudo, diferença se fez a maré de amigos convocados para assistir de pé à Inês [Meneses] brilhar enquanto explicava de que modo podem ser os «Amores (Im)Possíveis»: pela palavra, esticada ao além, por gozo e alegria. «Ela lembrou-lhe que o amor é fogo que arde sem se ver, e ele deu-lhe uns óculos.» As frases-projéctil parecem-me isso mesmo, óculos que nos fazem ver as ardências das aproximações e afastamentos que, em cada momento, nos definem. Vemos mais longe, também com a lente aberta do sorriso que se solta destas tiradas, colhidas no seu habitat natural, o facebook, de modo a tornarem-se objecto. Para o malabarismo de palavras e ideias, a Elisabete [Gomes] criou um palco ao baixo, de apenas duas cores e suas variantes, plantando ênfases e aumentando corpo de letra, respondendo com movimento à dinâmica das ilustrações-metáfora do Tiago Galo, figuras que nascem de massas de cor em jogos de ternura e confronto. Ainda por cima, ergueu as mãos à dimensão de personagens, das que dançam. Não me canso de folhear o livrinho, que cresce muito para além da sua dimensão, de tanta subtileza que esconde. Uma frescura.

 

São Luiz, Lisboa, 3 Abril

Para celebrar os 30 anos da Cotovia, a Fernanda [Mira Barros] organizou ciclo de conversas, no vizinho jardim de inverno onde as únicas plantas são pessoas. Calhou a de hoje tratar da sobrevivência das pequenas editoras. Serviu logo o pretexto para reencontrar o Vasco [Santos], da Fenda, que há muito não nos encontrávamos. Ficou por matar a saudade, pois a ocasião não pedia fado. Apesar do competente esforço da Mariana Oliveira, não aconteceu novidade ou conversa, com a Adriana C. Oliveira, da Flop, e o António Guerreiro, cronista do Público. De tão simples, o assunto fez-se complicado: são poucos os que lêem, menos ainda os que compram. A Flop usa a angariação de fundos para a «altíssima literatura» edita. A Fenda aconselhou o assalto aos bancos, mas não creio que o pratique. O resto foi o habitual negrume analítico do António Guerreiro expondo o dilúvio de lixo que enche o mercado. Não há saída, só esforço. Cansa-me que nos deixemos aprisionar pelas minúcias das finanças, sem nos concentrarmos na recorrente ausência de estratégias e colaborações.

Sem querer, o dia foi salvo pelo golo de Ronaldo na baliza de Buffon: sem desistir da jogada, vai à linha de fundo recuperar uma bola que parecia perdida, faz o passe e logo corre para a receber no lugar onde ludibria os defesas e vence a gravidade aos 2,40 metros para marcar com pontapé de bicicleta digno de um bailado. E o estádio da Juventus, rendido, aplaude-o. De mão no peito, o enorme jogador agradece. A Cotovia, em 30 anos, fez elegantíssimo trabalho de edição dos clássicos gregos onde se celebram heróis.

 

Horta Seca, Lisboa, 6 Abril

A chuva pesa no hoje, encerra-o em si, não abre o espaço à fruição, oferece tristezas líquidas, incómodos, restrições. Cá dentro, brilham singulares fulgores. Como bom Caleidoscópio (ilustração a propósito nas redondezas), um ligeiro movimento muda cores e perspectivas, sugere formas, outras leituras. Momento e movimento. O próprio conceito da exposição evoluiu e se deixou encaixar no demais que fazemos, nas pressas e adiamentos. O João [Fazenda], parceiro de tantas andanças, abre rasgos nas paredes como há muito não fazia. Traz uma pasta negra e pesada, como o dia, mas mal se abre muda o mundo, com perfumes e fauna e paisagens e corpos e flora e começos de história e ritmo e nada, tão só o resultado dos gestos sobre os materiais. Por um triz não nos atrasámos, de tanto e saboroso tempo gasto na escolha e encenação dos originais. Urbanita que é, muita atenção espraia pelas ruas, pelos mercados das cores que se juntam às vozes, pelos jardins onde os corpos se confundem com as plantas. Mas os interiores são palcos portáteis, uma cena banal só pelo prazer do traço, ou composição com outra densidade retratando alguém que esculpe. Gosto de imaginar este desenhador incansável a desenhar o chão que pisa, sem rectas, movediço e inconstante, somente feito de cruzamentos, de rotundas, de encruzilhadas, de entroncamentos, enfim, de multiplicadores de possibilidades. O João desenhou-se maestro de visões, condutor de olhares, manipulador de camas de gato, domador de espelhos e prismas. Mas o tema da exposição acontece ser o estilo: ao figurativo, a cor e desenhado com a cor ou a preto e branco, junta-se o abstrato em pastel, em grattage, a lápis de cor, a pincel. Na sua gramática, o vaivém entre linha fina e traço grosso ganha aqui a vantagem dos que correm mais rápido. Manchas, nuvens, incisões, traços, formas soltas que ocupam o espírito dos que se atrevem a olhar, a alinhar em confundir-se com paisagem, em ser paisagem. Parece que oiço na pele o discorrer do papel, o absorver da tinta de tão sensorial se faz o conjunto, a escolha das cores, a organização das linhas. Nas suas composições, o João costuma exercitar uma elegância explosiva, um conforto que nos atrai e pede para ficar, solar. Nalgumas destas indefinidas deixa entrar diferente energia, desequilíbrios de plástica bruteza, plúmbeas. Lá fora parou de chover.

 

18 Abr 2018

Sufrágio Universal

[dropcap style≠‘circle’]S[/dropcap]omos todos nós periodicamente chamados a manifestar-nos a propósito das questões essenciais do nosso tempo, nos bastidores compomos as “trovas” e os “versículos” indispensáveis à causa que devemos abraçar e de tal forma empenhados que pensamos lutar como nos antigos ideais de Cavalaria. Só que estes ideais não são ideológicos, mas sim e apenas a nossa convicção de como deve ser distribuída a riqueza. No patamar das grandes trocas de pareceres há afinal, e só, um denominador comum: a economia. Deixamos para a livre escolha e sem sufrágio algumas outras componentes do tecido social que são falências em relação às matérias que elas próprias já representam. A livre escolha passa rapidamente a natural extinção por falta de tempo, de preparação, ou vantagens que possam demonstrar. E assim entendido, colidimos de frente com o «Sufrágio Universal» que para clarear a denominação, bom será saber que o universo não tem qualquer noção do que seja. Muito humanamente sabemos que designa uma imponente teomania da espécie que ao destronar Deus ocupou esse espaço deixado no seu centro imperecível.

Na robusta dinâmica daquilo que nos mantém vivos, temos visto como tudo se anula na voragem do tempo e a nossa energia transformável, fruto da nossa opacidade, é tanta que precisamos de um alicerce louco, que é sempre a megalomania, que se projecta face a uma grandeza que não há, revertendo os factos para a sua real importância, neste caso a nossa, onde só os Sufrágios e as Declarações estimam ser maiores. Uma visão olímpica de nós mesmos não é nefasta desde que não anule a capacidade de contestar tão fabulosa evidência, que com temor afirmo, parece estar toldada nas nossas vidas como se caminhássemos numa plataforma de quimeras. Caminhamos agora os ainda jovens passos da conquista espacial, indagando com cautela outros irmãos estelares, e a vida informa-nos de uma espécie de Diáspora que talvez não muito longe daqui tenhamos que fazer, tentamos corrigir a herança genética para evitar doenças, somos aqueles que anseiam pela imortalidade, sem dúvida, ela está nos nossos sonhos colectivos mais profundos e devia por si mesma constituir um poderoso encantamento dado que chegámos lentamente a coisas extraordinárias. Mas para que a travessia se faça, precisamos de rever o conceito temporal, daí que só esse dado forneça tempo suficiente para pensarmos como, e o que vamos fazer com ele e em que estrutura social pode ter um dia lugar.

Todos concordamos que é uma caminhada gigante e seria grosseiro levar o nosso tempo como medida de comparação, pois que pode ser um caminho deveras universal o futuro que nos espera, e não podemos levar as regras da nossa imprecisão das Eras agora e antes vividas. Calderon de La Barca achava, sim, que os sonhos tinham sempre razão e a maior dor era a de não poder amarporque toda a vida é sonho e os sonhos, sonhos são: e se os sonhos não nos enganam, enganamo-nos nós com a grandeza deles que nos impele para uma flagrante falta de amor para com a sua gratuitidade e alcance. Devíamos amar os sonhos e não o retábulo da nossa grandeza neles. Por ora a imortalidade é uma visão do Inferno de Dante sem capacidade de ser revertida para extinção, o castigo da soberba que funciona como única noção providencial. Há quem fale em colapso planetário alertando para a insuportabilidade de um planeta que se transforma, mas o que é certo é que ele nunca foi um local deleitoso, apenas a nossa noção de prazer mudou e os nossos equilíbrios, também, vendo em leis naturais inimigos insondáveis, pois que o destino humano ainda se encontra mergulhado na incerteza porque a natureza ripostará num momento imprevisto e de uma maneira inesperada. E quando nos propusermos indagar uns aos outros não sejamos tão cegos, nem arrastemos para o universo o caudal das nossas legislações, pois que nada sabe delas, que afinal se saiba, ou dizemos saber, daquilo que não conhecemos.

Não! Não somos os causadores de tudo, nem legislamos para o universo: somos a consequência de algo ou de alguma coisa e a era das nações também é relativamente recente, logo após a revolução industrial e a ascensão do capitalismo. Anteriormente, era mais uma manta de retalhos feita por condados, principados, feudos, burgos, onde o poder local permanecia e os reis andavam desgovernados na incidência da unidade. As Nações Unidas estão moribundas e já não parece haver sufrágio que impeça um governo único mundial para o qual não votámos, pois que a autonomia dos Estados também é agora um acerto de contas e não um legado a manter. O que nos pedem para fazer – o que pedimos uns aos outros – é uma ilusão muito pouco universal na conduta visível do encaminhamento das coisas. O Universo é um Verso Uno. Unido. Nós encetamos simples diálogos com a separação e em todas as formas manifestas parecemos criar divisões.

Quando nos perguntarem doravante seja o que for, já não vamos poder responder. As nossas noções encontram-se em via de transformação para dar seguimento a factos tão novos que ficaremos para trás como as estátuas de sal. Dos nossos interesses, e leis, e tratados, ditos universais, ficará um risco na memória das coisas. Eles não eram nem universais, nem existia neles a perenidade da noção de Universo. E recordando Novalis: o amor é o fim último da história universal. O ámen do universo.

E para a Terra a minha «Vela Verde»:

Vês que vejo a vela verde. E tem que sou o tempo claro. Hoje sou gelo, amanhã abraso.

Tens que tenho o tempo a teia, mas que importa o anelo se nada sou neste interregno com a vida na ideia!

 Sabes que sou uma onda de sal, e que importa se és ou se já foste uma estátua de areia? 

17 Abr 2018

Europa celebra pela primeira vez o Ano Europeu do Património Cultural

[dropcap style=’circle’]P [/dropcap] or iniciativa da Comissão Europeia celebra-se pela primeira vez este ano o Ano Europeu do Património Cultural (AEPC), enquadrado pelos grandes objectivos da promoção da diversidade, do diálogo intercultural e da coesão social, visando chamar a atenção para a importância da preservação e transmissão do património às gerações futuras, para o papel do património no desenvolvimento social e económico e nas relações externas da União Europeia, e ainda motivar os cidadãos para os valores comuns europeus.

Sob o lema “Património: onde o passado encontra o futuro”, o Ano Europeu do Património Cultural pretende incentivar mais pessoas a descobrir e explorar o património cultural da Europa e reforçar o sentimento de pertença a um espaço europeu comum.

Ao longo do ano, terão lugar por toda a Europa uma série de iniciativas e eventos que permitirão às pessoas aproximarem-se do património cultural e desempenharem um papel mais activo nas questões que lhe dizem respeito. O património cultural influencia a identidade e a vida quotidiana dos povos, tanto o material, o imaterial, o natural como o digital. Rodeia-os nas aldeias, vilas e cidades, nas paisagens naturais, nos monumentos, nos museus, palácios e sítios arqueológicos… O património cultural não só está presente na literatura, na arte e nos objectos expostos nos museus, mas está igualmente presente nas técnicas que se aprendem com os antepassados, nos ofícios tradicionais, na música, no teatro, nos ambientes e no espírito dos lugares, na gastronomia e no cinema. O AEPC 2018 pretende dar a conhecer ainda melhor a diversidade e a riqueza dos valores das diferentes nacionalidades e ultrapassar fronteiras.

O AEPC constitui uma importante oportunidade para a realização de iniciativas em diferentes níveis – europeu, nacional, regional e local – envolvendo os cidadãos, organizações, entidades públicas e privadas, que contribuirão para uma maior visibilidade da cultura e do património e para o reconhecimento da sua importância e do seu carácter transversal em todos os sectores da sociedade. O AEPC convida todas as entidades e organizações, públicas e privadas, municípios, investigadores, escolas, comunidades, universidades, associações, ONGs, a preparar projectos e actividades que, enquadrados nos objectivos do Ano Europeu, promovam a reflexão e o debate sobre a actualidade e o futuro do património, a sua importância vital para as pessoas e para as comunidades e o seu valor no desenvolvimento social e económico equilibrado, contribuindo para o desenho de um futuro melhor para todos. Cada país da UE designou um coordenador nacional responsável pelas comemorações e pela coordenação dos eventos e projectos a nível local, regional e nacional.

A Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia, bem como o Comité das Regiões e o Comité Económico e Social organizarão eventos para comemorar o Ano Europeu e lançarão actividades que porão em destaque o património cultural.

Além disso, a UE financiará projectos de apoio ao património cultural. No âmbito do programa Europa Criativa, foi lançado um convite específico à apresentação de propostas de projectos de cooperação relacionados com o Ano Europeu. Uma grande variedade de outras oportunidades estarão disponíveis ao abrigo dos programas Erasmus+, Europa dos Cidadãos, Horizonte 2020 e de outros programas da UE.

Para garantir que os efeitos destes esforços se farão sentir para além de 2018, a Comissão, em colaboração com o Conselho da Europa, a UNESCO e outros parceiros, lançou dez projectos com impacto a longo prazo, incluindo actividades com escolas, investigação sobre soluções inovadoras para a reutilização de edifícios históricos e a luta contra o tráfico ilícito de bens culturais. O objectivo é ajudar a desencadear um processo de mudanças efectivas no modo como usufruímos, protegemos e promovemos o património, assegurando que o Ano Europeu terá benefícios para os cidadãos a longo prazo.

A página electrónica do Ano Europeu do Património Cultural em Portugal, lançada pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) para congregar e divulgar as iniciativas que, por todo o país, e ao longo deste ano, se proponham contribuir para reforçar a ligação das comunidades com o seu património, lista já mais de 750 actividades.

Uma das funcionalidades que o sítio oferece é um calendário de 2018 no qual se pode escolher um dia do ano e ficar a saber todas as iniciativas previstas para essa data. Uma lista em constante actualização, já que a página continuará a aceitar inscrições até ao final do ano.

Pouco mais de três meses desde a abertura deste Ano Europeu do Património Cultural (AEPC), as 750 iniciativas já registadas, promovidas por entidades públicas e privadas, têm origem em 74 municípios de todo o país, incluindo os Açores e a Madeira, e poderão abranger, segundo estimativa da DGPC, cerca de 240 mil pessoas.

As visitas e rotas patrimoniais são o tipo de actividade mais comum, com 232 iniciativas previstas, mas há programas para todos os gostos, de congressos e outros encontros a exposições, oficinas, espectáculos de artes performativas, animações de rua, recriações históricas, exibição de documentários, sessões de leitura ou concursos, para citar apenas alguns.

Cerca de um quinto das realizações programadas até ao momento (incluindo as já realizadas desde o início do ano) partiram dos próprios organismos tutelados pelo Ministério da Cultura, sobretudo da DGPC e das várias Direcções Regionais de Cultura, que no seu conjunto promoveram 105 actividades, mas também, entre outras, da Direcção-Geral das Artes, do Instituto do Cinema e Audiovisual, do Centro Cultural de Belém, da Biblioteca Nacional ou dos teatros nacionais D. Maria II e São João.

 

16 Abr 2018

Subcomissões para os festejos

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]m Macau, a 2 de Fevereiro de 1898 no Palácio do Governo reúne-se a comissão executiva dos festejos do centenário da Índia para aprovar o programa preparado desde a reunião de 18 de Janeiro e nomear, como aí ficara estipulado, as subcomissões especiais. Relata O Independente, “Presidiu o Sr. Conselheiro Governador, tendo como secretário o Sr. Bandeira de Lima. Aberta a sessão, foi lida a acta da primeira reunião, sobre a qual falaram os srs. Dr. Alpoim, Dr. Alvellos, Pedro Nolasco, Conceição Borges e Conselheiro Galhardo. O esqueleto do relatório da subcomissão apresentado pelo Sr. Presidente é aprovado na generalidade”. O Echo Macaense data a reunião no dia 1.º do corrente e desenvolve-a com detalhes. “Houve uma prolongada e variada discussão e o monumento dedicado à memória dos beneméritos Ferreira do Amaral e Mesquita foi o que prendeu mais a atenção. Dois cavalheiros manifestaram-se contra a inserção da cerimónia do lançamento da pedra fundamental deste monumento no programa dos festejos, mas a maioria votou a favor. Ficou também assente que se trataria sem demora da reabilitação da memória de Mesquita, visto haver todos os elementos necessários para provar que ele foi vítima da alienação mental e por tanto era um irresponsável quando praticou os últimos actos trágicos da sua vida”.

“Pedro Nolasco da Silva e António Joaquim Basto apoiavam a ideia da homenagem e do monumento a Amaral e a Mesquita, mas o Dr. Ovídio d’Alpoim, juiz de direito, e o Dr. Francisco de Lemos e Alvellos, procurador da Coroa e Fazenda, rejeitavam-nos liminarmente”, complementa Amadeu Gomes de Araújo, que segue, “Ovídio d’Alpoim, aludindo ao trágico fim do coronel Mesquita, presume e assevera que nem oficial nem publicamente se lhe pode prestar qualquer homenagem. Também recusava a ideia de se construir uma biblioteca Vasco da Gama, por falta de tempo, sugerindo que se desse aquele nome à biblioteca do liceu. O governador manifestou estranheza perante a discussão, acabando todos por chegar a acordo que não haveria monumento sem prévia reabilitação de Mesquita. Foi aprovada uma carta a enviar às comunidades portuguesas vizinhas, para solicitar apoio: Está aberta a subscrição para custear as despesas desse monumento – lia-se no Apelo patriótico aos portugueses residentes nos países do Extremo Oriente. E o programa das celebrações foi aprovado na generalidade”, após algumas modificações e transposição de alguns números.

Após três horas de sessão, finalmente se procede à nomeação de oito subcomissões especiais a saber: 1.º – Uma, para tratar de promover a subscrição para o monumento de Ferreira do Amaral e Mesquita. 2.º – Uma, para tratar da organização, instalação e inauguração da Biblioteca Vasco da Gama. 3.º – Uma, para tratar da organização do cortejo cívico e da coroa de bronze. 4.º – Uma, para tratar da inauguração da avenida Vasco da Gama, do lançamento da pedra fundamental do pedestal em que será colocado o busto do grande navegador, da iluminação da Praia Grande e avenida Vasco da Gama e das diversões populares. 5.º – Uma, para tratar dos festejos chineses e fogos de vista. 6.º – Uma, para ornamentar a igreja da Sé para o Te Deum solene. 7.º – Uma, para tratar da publicação de um número único de um jornal comemorativo, e para redigir um apelo às comunidades portuguesas de Hong Kong, portos da China, Japão, Sião e Indochina, solicitando as suas adesões à comemoração do centenário, e outro apelo aos habitantes de Macau, portugueses e chineses, solicitando a iluminação das suas casas. 8.º- Uma, para promover o sarau dramático-musical.”

Os trabalhos das Subcomissão

O Independente de 20 de Março refere que “a comissão e as diferentes subcomissões eleitas para levarem a efeito os festejos projectados para a comemoração em Macau do 4.º centenário estão desenvolvendo a maior actividade. (…) A coroa de bronze, que será colocada no pedestal onde assenta o busto de Luís de Camões, foi desenhada pelo professor do liceu, Sr. Matheus António de Lima, que dirigirá também os trabalhos da fundição da mesma coroa.

Está-se já tratando de mandar tirar várias fotografias de vistas de Macau para serem mandadas gravar e servirem para ornar o número único do jornal, que por essa ocasião será publicado.

A subcomissão encarregada de receber os donativos é composta dos seguintes cavalheiros: presidente, o General António Joaquim Garcia; tesoureiro, Carlos Rocha d’ Assumpção; vogais, Augusto César d’ Abreu Nunes, Pedro Nolasco da Silva, Deão Conceição Borges, Dr. Lourenço Pereira Marques, Fernando de Menezes e secretário, José Vicente Jorge. Esta subcomissão fez já distribuir profusamente um impresso pedindo o auxílio de qualquer donativo para custear as despesas a fazer com a erecção do monumento a Ferreira do Amaral e Vicente Nicolau de Mesquita.” O apelo patriótico aos portugueses residentes nos países do Extremo Oriente, transcrito nessa segunda página do jornal, é estimulado pelos já avultados contributos feitos, pois <crê-se que ninguém se esquivará a contribuir, por pouco que seja>”.

Semanalmente, os jornais trazem notícias sobre os activos trabalhos para os festejos e O Independente de 27 de Março refere a autorização do governo central para o aumento da verba destinada a custear os festejos e ter o redactor já visto algumas fotografias de diversos pontos da cidade feitas por Carlos Cabral, <que mais parecem obra de um artista consumado do que de um novel mas distinto amador>. Na reunião de 26 de Março, a subcomissão encarregada de tratar da reabilitação, perante a igreja, do oficial Vicente Nicolau Mesquita refere, <Parece que o Sr. Bispo D. José, que se acha animado dos melhores desejos de poder decretar essa reabilitação, só o fará depois de cumpridas certas formalidades canónicas, o que terá lugar brevemente>.

A 21 de Abril realiza-se uma audiência no Paço Episcopal para inquirição das testemunhas no processo canónico de reabilitação do coronel Mesquita. Preside o Bispo da Diocese, servindo de promotor o Dr. Horácio Poiares e de advogado da parte da comissão executiva dos festejos, o Dr. Camilo Pessanha. Depõem como testemunhas o tenente-coronel Porphyrio Zeferino de Souza, Câncio Jorge, Albino António Pacheco e o pároco de S. Lourenço, padre Almeida.

O Independente, a 24 de Março dá a primeira relação de subscritores e refere a quantia de $66, oferecida pelos portugueses residentes em Cantão e entregue ao seu cônsul Sr. Callado Crespo, assim como os $115 angariados pelo Sr. António Vicente Cortela Maher entre os portugueses de Amoy (actual Xiamen, em Fujian), que José Maria Braga refere serem trinta no ano de 1900.

O arroz é desde os inícios de 1897 o assunto a afligir a cidade. Problema que se vai avolumando devido ao aumento fabuloso do preço que dia a dia vai tendo esse género de primeira necessidade, levando em Março de 1898 o Governador, numa inadiável resolução, a novamente proibir a exportação do arroz pelo porto de Macau.

13 Abr 2018

Pagar o galo

1/04/18

[dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]ar La Fontaine: um livro acondicionado ao mofo da gaveta. Recuperei o título para capítulo de outro que sairá em Maio. Mas fica um lote à deriva e desencaixadas algumas traduções de que gosto. Como a do indiano, Lokenath Bhattacharya, que o Henri Michaux admirava:

«DOS CEGOS MUITO DISTINTOS

Numa palavra, eis a proposta: deves subir lá acima, e fazer soar a trombeta. De imediato, alternância do visível no invisível, e mudança de estação na floresta. Este é o programa do dia. Mas eu não sou mais que um homem vulgar, que mantém a sua oração, as mãos em prece. Se os velhos temas são mencionados – e sê-lo-ão -, se ele se compraza em repetições – é inescapável -, que se lhe queira, por bem, perdoar as deficiências, naturais para um incapaz.

Nenhum obstáculo, o minarete ergue-se à tua frente. No caminho para o seu cume, resplandecem os degraus, um após outro, de mármore branco. Do exterior, o ar quente não penetra. Desde que puseste o pé sobre a pedra – Que frescura! Lembras-te de tocar o ribeiro? – começa o louvor da viagem.

A escadaria não oferece nada de verdadeiramente tortuoso, não é sinuosa. É mais como um bom rapaz, um coração ordeiro. Sob os teus passos, desdobram-se os degraus, generosos, companheiros de um caminho desimpedido, que o esplendor chama. Se não te resolveste a subir até ao cimo, a tua respiração será amena, quase igual do princípio ao fim: treparás em brandura, amigo!

É a escadaria de um minarete, assim não te cansarás de virar. A cada volta o teu olhar esmaltará novas paisagens azuis, os teus ouvidos serão sondados por murmúrios preciosos, sempre novos e doentes de amor por este mundo de poeira. Sobre os muros: cenas dispostas uma após outra, desde a primeira hora. A cada etapa da viagem: assistência completa com cantores, instrumentos, músicos.

Subirás ao cume e soarás a trombeta, a nova há-de espalhar-se por si.

Então o pôr-do-sol deixará de exalar, o pavão esquecido de tudo selará uma imagem; ambos – atrás da porta, à espera, longe dos olhares – a roçam. Às cores, não as vês ainda, não é? E como as verás? Deitar-te-ão o meio-dia ou a tarde? Que importa? Surgirão, ao primeiro som da trombeta, cintilantes.

Vês como flui tudo, a que ponto tudo é fácil, sem obstáculo, amigo!? Inútil até transportar o instrumento, degrau após degrau. Assim que chegares à pequena plataforma, lá em cima, tendo essa minúscula cúpula, como um guarda-sol, sobre a cabeça, tu verás, junto à balaustrada de pedra lavrada em flores, a trombeta deitada sobre o chão liso. Não te restará mais que tomá-la nas mãos; depois, de pé, bem direito, na posição requerida, a perna esquerda avançada, a cintura encolhida, levar os teus lábios à embocadura.

E não cai de imediato uma chuva de flores, como convém a uma obscuridade que já se palpa, dilacerando o torso negro do céu com um foguete imenso, deslumbrante?

Lá estamos, hoje, para assistir à festa, meu amigo! Todos os da nossa cidade, jovens e velhos. A nova voou da boca à orelha. De uma ruela para outra, a vida pulula. Que se vê agora, do alto do minarete?

Tão longe quanto alcança o olhar, todas as casas estão decoradas: grinaldas de empolas vermelhas e azuis, desenhos propícios sobre os jarros, diante das portas. Sobre os caminhos, a multidão aperta-se. Nenhuma agitação. População fervente alinhada sabiamente, trajada de branco, exibindo na testa o ponto de sândalo, maxilares e queixos recobertos por tatuagens de um desejo ardente.

Neste pátio, junto à porta que conduz à torre, eis a tua estreia – a sós, bem entendido. Atrás de ti, em semicírculo, a turba dos tocadores de búzios espera pronta. No seu séquito, chegados num passo firme e confiando honrar com a sua presença o lugar reservado aos convidados de marca, alguns cegos de grande distinção. Eles ouviram uma mensagem divina: hoje, recuperarão a vista.

Não há sinal de obstáculos, em parte alguma. Simplesmente, nesse momento silencioso, de espera, tu sobejas, escultura perfeita. As tuas pestanas não se mexem. Se o teu coração bate ou pelo contrário cala, não o deixas transparecer.

Subirás ou não – a escadaria? Não o queres dizer. Não a sobes.»

02/04/2018

Mais um jornalista moçambicano raptado, Ericino de Salema, e abandonado atrás dum silvado, depois de severamente agredido. Teve sorte, uns garotos iam aos pássaros e encontraram-no agonizante. O medo entulha a cidade.

Dizem-me que é um jogo de xadrez, que um antigo presidente mandou perpetrar o acto para inculpar o actual, posto o jornalista ter alfinetado na televisão o comportamento irresponsável do filho deste.

É um enredo que Shakespeare aproveitaria, como outros movimentos deste jogo de sombras. Pena os candidatos a dramaturgos moçambicanos andarem entretidos com o teatro dos espíritos e não captarem os sinais que se camuflam atrás das aparências do visível.

Milagres precisam-se, nesta “Chicago anos 20” en retard.

04/04/18

Milagre, o que aconteceu com Eva de Vitray-Meyerovitch, na França ocupada. Batem vigorosamente à porta. Eva abre e vê Frankenstein, de olhos vítreos e pronto para a degolar. Acompanha-o um oficial da Wehrmacht, que arvora um ar maçado. E perguntam-lhe pelo marido, como ela, um operacional da Resistência.

Em pânico, ignorando absolutamente a língua, Eva apanhou-se a proferir no mais castiço calão berlinense: «Esse, deu à sola com uma galdéria qualquer e, sabe que mais, estou-me nas tintas!», e continuou num arrazoado tão convincente que o oficial lhe deu os parabéns pelo alemão antes de despedir-se, resignado.

Não parou Eva de tremer, depois de saírem, e amassou numa bola o maço de tabaco que reservara para a troca de um pão.

Foi após este espantoso milagre que Eva se aproximou dos sufis e traduziu o Rumi e o Iqbal para francês e uma luz lhe embrenhou um astro nos olhos.

E pagou o galo a Asclépio.

12 Abr 2018

“O que resta?”

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] último trabalho do realizador J. Gaia – título original “What´s Left” de 2012 -, é um filme polémico, vanguardista, singular, devastador e maldito.

Apesar de vivermos numa conjuntura económica favorável, há uma grande falta do investimento, por parte do Governo, de que resulta uma certa estagnação da actividade cinematográfica. Talvez mais importante que a retracção, seja a ausência de uma orientação estratégica clara para o sector por parte das entidades competentes. Falta pensamento institucional, políticas próprias e por razões várias de decisores públicos. É tudo muito paroquial.

A cultura (cinema) é uma responsabilidade do Governo. Optar por festivais, pode não ser a melhor opção – veremos!

Sem grande pretensiosismo, J. Gaia agarra o impossível com mestria, agilidade e um talento notável. Uma “história” simples, linear, em que o realizador sem preconceitos ou conceitos, antes com desrespeito pelas regras base da cinematografia – sem grande consistência estilística – explora, experimenta, resumindo cria o retrato de uma cidade em mudança, com um quadro negro, diga-se psicológico, da sociedade. A dissolução.

Filme de palavra curta, com uma forte concisão da linguagem e, narrativamente simples. É a imagem que a dá a ver – ajuda a procurar uma saída positiva, criadora e eficiente, um meio audaz, necessário, o autor vive obcecado pela maximização (de meios e custos) e, talvez por isso surge como uma via de complemento de afirmação, sem subalternizações, como uma nova realidade estética, sem contudo cair na tentação de limitar campos, e conteúdos. Existe uma unidade entre texto e imagem que atinge pontos extremos de criatividade, elegância e invenção cinematográfica. Perfeita a montagem sincopada e electrizante.

Falar de crise através dos cúmplices, da bolsa através dos especuladores, do clima através das catástrofes, do ambiente através da destruição, da globalização através da fome, da justiça através da dignidade, do mundo através do entretenimento, jogo através de números, da palavra através de sobreviver, de presente através de consumo e futuro através de reprodução – um mundo de palavras soletradas uma a uma, de forma, solene, nobre, vigorosa e seca – em off -, doseadas com imagens digitais de um impressionante realismo atroz inquietante e perturbador. Um diálogo (palavra/imagem) existencial, sem divagações ou histerias, que se abate sobre o espectador, podendo criar ansiedade e depressão, sobretudo naquela faixa etária mais resignada.

Há duas ou três cenas, no filme – onde existe mais cinema a ver do que em algumas dezenas, mas não dizer centenas de filmes inteiros -, dessas sessões contínuas que enchem a cidade inteira.

Sem comentários adicionais, para não perturbar o espectador nas suas “leituras cinematográficas”, veja-se por exemplo a cena «Missa Dominical». Ao sair da Igreja de braço dado com a sua afilhada Joaninha, D. Amélia Cunha – grande plano da Igreja de S. Lázaro (Porquê esta Igreja?), com a figura tutelar do padre na despedida aos fiéis, ainda no adro, abre a sua sombrinha e ouve de Joaninha: “Não madrinha é um problema de inveja”.

A que D. Amélia responde – apesar da idade – em tom seco e timbrado, “não minha filha, aqui os problemas são única e exclusivamente de dinheiro”.

Surge uma «cortina», aqui necessária e obrigatória (por causa das más interpretações), mas talvez o único senão ao longo do filme, o seu uso e abuso, apesar de todos nós sabermos que a cidade deixou há muito de poder ser um estúdio ao ar livre. Fazer exteriores com orçamentos apertados, é impossível.

A cena seguinte – é digna de bom entendedor – no restaurante «Hong Feng » (Montanha Vermelha), ficam casualmente sentadas entre uma típica família chinesa e uma portuguesa. Do lado esquerdo a chinesa e do lado direito a portuguesa. O olhar silencioso e as expressões de D. Amélia e Joaninha – quase perdem o apetite. Excelente, revela dois nomes a fixar, um grande momento cinematográfico.

Por fim, veja-se como Gaia filma em poucos planos sofás, cristaleira, estante, mesa, açambarcando toda a sala da família Cunha. É de mestre. Falamos da cena em casa dos Cunhas.

A cidade dorme. Joaninha numa noite quente, abafada, húmida, noite de pesadelos e insónias, acorda e dirige-se até à sala de jantar para beber um copo de água. Na quietude na noite, olha para a estante e reflecte. Dá dois passos em frente e olha atentamente para os livros. Estende a mão e pega na “Clepsidra” de Camilo Pessanha. Abre ao acaso o livro – lê interiormente – “Quem poluíu, quem rasgou os meus lençóis de linho, onde esperei morrer…”. Um som ensurdecedor irrompe da rua. Um «gangue» perturba o silêncio, o sossego a paz, com berros, gritos e desordens várias. Joaninha estremece, deixa cair o livro e fica estupefacta. (Porquê ?)

Em todas, ou quase todas, as cenas deste filme, existe uma grande dose de nebulosidade de ideias, jogos de palavras que sugerem, não explicam. Ao espectador, sobretudo aos mais distraídos, desde já um conselho. Alerta máximo, abertura de espírito e sobretudo grande empreendedorismo mental.

“What´s Left”, não é de maneira nenhuma um filme de entretenimento de massas, com efeito psicológico aliviador ou desangustiante – não se esperam ver filas intermináveis na procura de um bilhete, ou a acotovelarem-se na busca de uma borla, nem tão pouco a entupirem a Net… É, antes de tudo, um filme de grande criatividade, um filme intimista, que terá certamente o seu grande percurso em festivais de cinema, cinematecas e plataformas de distribuição online. Apesar de a distribuição se resumir a um restrito “grupo de amigos”, não está em causa a qualidade intrínseca da obra.

Ficamos à espera, se entretanto alguém se lembrar, de uma retrospectiva integral, não só para redescobrir, mas também reavaliar a obra de J. Gaia.

Um filme com abundante matéria de análise, reflexão e porque não discussão – a Ver!!!


“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a Humanidade já estavam todas escritas. Só faltava uma coisa: salvar a Humanidade.”
José Almada Negreiros (1893/1970), artista pástico/escritor
11 Abr 2018

Arca Russa

[dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]o nosso dia a dia, habituamo-nos de tal modo ao que não sabemos que passamos a viver como se isso não importasse ou, pior ainda, como se soubéssemos o que é a vida, ou aquilo que nesse momento acontece em nossa vida, apesar de não termos uma ideia do que se trata. Quando saímos de casa e chamamos o elevador e entramos nele para descer, a maioria de nós não sabe como funciona o mecanismo que nos permite descer do décimo primeiro andar até ao rés do chão. Parece magia, embora também não o vejamos por esse prisma. Habituámo-nos a que assim seja. Carrega-se num botão, uma caixa fica alinhada com uma porta, que abrimos, entramos na caixa, carregamos num botão e descemos até à rua. É assim, e não há o que saber. E se isto se passa com um elevador, por maioria de razão se passa com as coisas que mais nos importam na vida. Por exemplo, o casamento. Quem é que ao casar-se, principalmente cedo na vida, sabe ao que vai? Quem é que sabe o que está a fazer na realidade, para além de dizer que será fiel para o resto da vida, como se isso fosse como descer de elevador do décimo primeiro andar até ao rés do chão? E quem se importa com a quantidade de álcool que bebe ou dos cigarros que fuma, como se soubesse de antemão que nada lhe vai acontecer, mesmo que saiba que lhe faz mal? Ou quem sabe o que lhe vai acontecer quando decide largar o emprego e a cidade em que vive e parte para outra parte do mundo para viver e trabalhar? Evidentemente, ninguém sabe. E ainda que se lhe perguntarmos, responda que não sabe, comporta-se como se soubesse. Pois tem a esperança de que tudo vá correr bem. Tem para si que o ponto de vista usual não se vai alterar, a não ser para melhor. Na realidade, que pode correr mal? A vida é sempre a vida, seja onde for. E é assim que Sokurov nos faz sentir, ao espectador, no seu filme Arca Russa, quando, pelo menos quase até meio do filme, nos faz ir atrás de dois “cicerones” como se soubéssemos que em algum momento aquilo vai fazer sentido. Nós não sabemos o que está a acontecer, quem são aqueles personagens, uma voz, que nunca terá corpo, e um corpo que anda e fala, atravessando tempos da história da Rússia. E nós seguimos aqueles estranhos cicerones, que atravessam o museu Hermitage, em São Petersburgo, como se em algum momento fosse fazer sentido. Porque para nós tudo, em algum momento, faz sentido. Não conseguimos conceber algo sem sentido, algo que não se nos apresente como passível de ser compreendido, ainda que seja como “não entendo isto”. Não se entende, mas faz sentido. Por exemplo, quando abro um livro de matemática avançada, não consigo compreender quase nada. Não consigo compreender, mas sei que aquilo faz sentido. Aquilo tem sentido para quem conhece aquela linguagem, e para mim aparece-me como “incompreensível”. E esse é o sentido daquilo para mim. Faz sentido que assim seja, porque eu não entendo. Como se estivesse a ver o filme do Sokurov sem legendas. Pois como não entendo russo, os que os personagens dizem ser-me-ia incompreensível. Mas fazia sentido. Mas, e ainda que seja num filme, onde muitas coisas que não fariam sentido na vida real, passam tacitamente a fazer sentido, como por exemplo, mortos-vivos, ou saltos impossíveis de realizar.

 

Mas não esses os filmes que Sokurov faz. E aqueles dois personagens, um atrás do outro, um que não se vê e outro que se vê como se regressasse de outro tempo, e que atravessa tempos, não nos atrapalha por aí além a nossa esperança de que aquilo vá fazer sentido. Em algum momento, acreditamos, aquilo vai fazer sentido, porque é assim que é a vida, em algum momento tudo faz sentido, ainda que seja na modalidade de “não entendo isto”. Sokurov faz-nos ir, ainda que sentados, uma hora atrás do que não entendemos com a esperança de que em algum momento tudo irá ficar esclarecido. E, para além da história russa, que ficamos a conhecer, em determinados momentos de ruptura, além da beleza das imagens, ficamos face a face com a nossa incongruência. Com o não acreditarmos que o não saber é para sempre. Mais: o não saber que é desde sempre. Mas aquele personagem – que está vestido como se fosse uma versão envelhecida do Peter Murphy do tempo da banda Bauhaus, num vídeo a cantar a canção Telegram Sam, dos T-Rex – juntamente com a outra que o segue – que se confunde com a câmara e só lhe escutamos a voz – fazem-nos incomodamente ficar a perceber que é assim sempre que andamos na vida. Habituamo-nos e não nos incomoda não perceber o que se está a passar. Não nos incomoda sequer não pensar em tudo isto, a não ser episodicamente, como se de um surto de curiosidade se tratasse.

 

Quase no final do filme, no final do baile, ao acompanharmos as pessoas a sair do palácio, ouvem-se várias conversas, e numa delas escutamos: “pode-se dizer que nasci aqui, mas não sou totalmente eu, é como se estivesse na casa de outra pessoa.” Por fim, os portões do palácio abrem-se para a rua e vê-se o mar e a neblina envolvendo-o, uma imagem muito bela, condizente com todo o filme, e o filme é rematado com esta frase: “Senhor, Senhor, é uma pena que não esteja aqui comigo. Você teria entendido tudo. Veja, o mar é tudo ao redor. Estamos destinados a velejar para sempre. Viver para sempre.” Somos todos assim. Só a câmara de Sokurov – e não ele mesmo –, que capta tudo isto, fica de fora.

10 Abr 2018

Gomes Leal

[dropcap style≠‘circle’]F[/dropcap]ernando Pessoa foi um dos discípulos mais atentos deste precursor do Modernismo Português, e para tanto contribuiu também a prática ocultista que no seu rasto foi analisada por ele como um espelho de sucessões ditadas pela mão de um destino comum. Pessoa interroga-se na sequência da sua própria obra se não seria um seu sucedâneo directo pois que ambos os mapas das respectivas cartas astrais denotavam semelhanças extraordinárias; ambos nascidos em Junho ( Leal, em 1848, quarenta anos antes, precisamente) mas com todos os planetas nas mesmas casas o que para ele era o resultado da evidência de uma missão que não devia ser interrompida. Neste tempo era normal uma associação visceral entre pares, e este em particular pois que fora o das grandes abordagens científicas, psíquicas, esotéricas, numa proporção nunca vista onde todos debatiam apaixonadamente áreas que hoje praticamente desconsideramos ou foram banidas. Gomes Leal era um místico, um poeta Decadentista e Simbolista, mas ao contrário de uma negação que ultimasse o Nada, ele foi ascensional na sua grande permanência a favor da imortalidade da alma. Era o espelho invertido do «Corvo» e foi ele que anunciaria a sua morte.

Impregnado da corrente Romântica, o fantástico fora-lhe no entanto mais íntimo do que a parte lúgubre que a caracterizara em fim de trajecto, e dela pareceu exercitar um puro acto amoroso de conhecimento hermético: esta era a sua participação enquanto sensibilidade autónoma mas atenta ao discurso da sua época, é uma cultura literária muito bem analisada na obra “Le temps des prophètes”, um tempo banhado por uma fascinante intervenção do poder espiritual mas incorporado pela força cívica nas suas mais profundas manifestações. Gomes Leal chegou a ser um homem bastante maltratado pela vida, e para se estar de pé diante de um destino é sem dúvida necessário uma imensa reserva de energia luminosa para não sucumbir (…). Pessoa tudo olhou e analisou com a inteligência de um mago que se curva duas vezes a uma certa dor no rito da própria orientação. Leal chamaria a isto “os sublimes acordes da alma com as coisas”.

No seu conhecido poema que lhe é dedicado está presente o grande obreiro trágico, Saturno. É dele que se fala quando o poema irrompe, é afinal a marca, o distintivo, a grande alavanca que agarra em cada frase toda a semelhança sem contudo desocultar a que lhe está subjacente, Pessoa tem sempre o cuidado de se dirigir a ele através de si, sem mencionar o seu próprio eu, talvez aquilo a que geralmente se enuncie como o tal “eu poético”… –Sangra, sinistro, a alguns o astro baço/ seus três anéis irreversíveis são/ a desgraça, a tristeza/ a solidão…./ oito luas fatais fitam no espaço/ Este poeta, Apolo em seu regaço/ a Saturno entregou/ a plúmbea mão lhe ergueu ao alto o aflito coração.-

Seguindo a trajectória sabemos que a verossimilhança entre os aspectos estava enaltecida e, ao abordar uma, era a outra que interpretava. O astro baço é afinal o regente da acção e sem a corrente que une a sua subliminar leitura cairíamos numa casualística desdita que é o movimento dos desventurados sem causa nem – Lar – comum.

É bom voltar a eles quando todas as perguntas se desfazem e todos os registos avançam para respostas semelhantes na grande escala no espectro das Nações. Quando já levemente caídos de uma fé que julgáramos inabalável, eles nos aparecem, somos de novo nascidos, estamos de novo no local certo para entender a jornada. Creio mesmo que na cena internacional da época, e em linha directa com um Nerval, Edgar Poe, eles – e este em concreto – traz à luz dos resultados uma outra consciência que infelizmente não deixámos que se manifestasse com o devido reconhecimento. É que para lá do peso do astro baço há ainda um aspecto absolutamente redentor, quase enaltecido, uma esperança que afasta a negritude das trevas do fim. Esta metamorfose da anima é muito interessante na composição literária da estrutura nacional: vai-se, sim, em nevoeiro – muito – o fantasma em nós é sempre branco, do negro só a «Mulher de Luto» esse imenso poema que transluz de negritude e subitamente se ilumina de algo a que a natureza e a estrutura do poema não sabe fixar. Em certos instantes vemos o grande amigo de Pessoa a irromper, Aleister Crowley, no panteístico verso vinte e quatro, uma trança de influências surge, em que as magias, Negra e Branca, quase se confundem pela proximidade, quem escutou Crowley, sabe que a arte mágica do verbo é tão poderosa como um relâmpago na face. Depois, toda a temática até ao vale do adeus que afinal era uma brincadeira numa Lisboa cinzenta e paralisada. Leal já não estava, mas falava ainda na voz de Pessoa ao seu interlocutor.

No fundo é comparar os nossos Pãs, fazer-lhes as homenagens, tentar dissertar no meio do deserto uma tese que confunda os princípios, que os transforme e nos devolva inteiros aquilo que é melhorado em cada homem. Pessoa não foi tão arrojado como Leal, aí, o astro baço estava mais sombrio, ele não queria uma certa mistura com esse folguedo beduíno e panteísta dos seus pares: purismos!! Estas obras todas agora dormem: Eros e Psique, buscamos quem dorme e nos sonha tão tranquilos como a um corpo único, salvífico, ressuscitado.

Grata aos Mestres.

 

Depois deixem-se só- Espraio o olhar e cismo:

– Eis-me no antro enfim da bela feiticeira!

– Eis-me neste palácio, este enigma, este

Abismo!

10 Abr 2018

Só dez por cento é verdade

[dropcap style=’circle’] “O [/dropcap] lha, estava a pensar propor-te uma coisa: tenho visto os teus vídeos no Facebook, curto imenso da forma como tocas guitarra, acho que estás a ter a atenção que mereces e vais chegar muito longe. O meu primo tem um bar aqui onde vivo, é sensivelmente a uma hora de Lisboa, poderias vir cá um dia destes tocar, ficavas em minha casa, eu fazia-te o jantar e o pequeno-almoço, só tinhas de pagar as passagens, ia ser super divertido e era bom para te promoveres, o bar não é grande mas conseguimos ter lá na boa 30 pessoas se anunciarmos o teu nome com antecedência, e podes beber à pala.”

“Gosto muito de te ver em palco. Tens presença, uma dicção irrepreensível, és seguro e, ainda assim, vulnerável. Parabéns. Vou dar um jantar cá em casa para a semana e pensei que poderias animar a noite – antes ou depois do jantar, logo veríamos – com um pequeno monólogo ou um improviso (desde que não fossem aquelas coisas incompreensíveis que alguns de vocês gostam de fazer, nisso, devo confessar, sou algo conservador, acho que o teatro tem que manter um certo nível de inteligibilidade e de seriedade para continuar a ser uma arte completa). Se quiseres ficas cá a dormir depois, garanto-te que faço um excelente pad thai, podes comer connosco à mesa, acho que os convidados vão achar piada e tenho imensa cerveja chinesa estupidamente gelada que vai maravilhosamente com as especiarias da comida tailandesa.”

“Acho fantástico aquele edifício que desenhaste na Pascoal de Melo, conseguiste respeitar a paisagem e a identidade da rua sem comprometeres nada da tua estética, que é muito mais arrojada e contemporânea. Estou a pensar fazer obras em casa e queria dar ao empreiteiro uma planta em condições e uns 3D para que ele seguir e evitar confusões, que eu não falo a mesma língua que ele, mas tu sim. Podíamos combinar uma tarde aqui em casa, eu explicava-te o que pretendo e tu ias desenhando. Tenho uma garrafa de Lagavulin por abrir, quando acabássemos bebíamos um copo e fumávamos um daqueles charutos que trouxe de Cuba no ano passado.”

“Eu não sabia que a casa era assim tão grande. E que precisava de tantas obras. Ou nunca teria arriscado marcar aquele jantar de que te falei, com o meu chefe e o chefe dele, lembras-te? É daqui a um mês. Gastei tudo quanto tinha a mobilar esta merda, agora tenho um canto na sala praticamente a ruir e não tenho como mandar arranjar aquilo, não queres passar por cá e vês se consegues pelo menos disfarçar a coisa? Eu sei que não és pedreiro ou estucador, mas já te vi no atelier de volta da pedra e do gesso e, para escultor, desenrascas-te muito bem com os materiais. Não precisas de trazer nada, tenho cá muitas sobras das obras da outra casa. No máximo traz as tuas ferramentas, deves estar mais habituado. Depois, se quiseres, podes aparecer no jantar com o meu chefe, desde que te vistas apropriadamente. Vamos ter ostras para entrada. Há quanto tempo não comes ostras?”

“Fantástica aquela tua curta que ganhou em Berlim. Gostei imenso, já a mostrei aqui em casa, apesar de a qualidade do vídeo que meteste no Vimeo não ser perfeita. Vocês não filmam em 1080p? Aquilo tem um nadinha de grão a mais, mas isto sou eu que sou muito esquisitinho. Precisava de saber se terias uma tarde livre para editar um vídeo que fiz com a minha D600 para dar à Rita no dia de anos dela. Eu até me ajeito no Movie Maker, mas queria dar um ar mais pro, e tenho a certeza de que tu, com a minha orientação, eras a pessoa perfeita para conferir um toque de classe ao projecto. É por que o diabo está nos detalhes, sabes? É o que digo a todos os meus clientes. Comprei uma erva bestial quando fui a Amesterdão o mês passado. Se a coisa ficasse porreira, fumávamos uns a seguir e depois chamava-te um Uber para ires para casa. Que dizes?”

“Gosto muito do que escreves. Gostava de te convidar para ler aqui no meu bar, todas as quintas. Pago-te uns copos antes – poucos, para a coisa não descambar – e outros depois da leitura. Tens namorada? Podes trazer a namorada. Ela também bebe à pala, desde que não sejam aqueles gins caríssimos ou whiskey velho. Só precisas de confirmar quanto tempo é de leitura. Menos de 45 minutos não vale a pena. Se forem duas horas, fazemos intervalo. Assim até dá para beberes mais.”

9 Abr 2018

Chavela Vargas – Santa Pecadora

[dropcap style=’circle’] C [/dropcap] hega esta quinta-feira às salas de cinema em Portugal, distribuído por Paulo Branco, o filme documentário de 93 minutos que teve estreia no festival de Berlim de 2017 na secção Panorama.

Foram muitas as noites que terminaram no anexo da moradia em Stª Cruz de Benfica onde vivia o escritor/poeta José Agostinho Batista, para quem o México tem uma mística e um encanto muitíssimo particular, com a voz da Chavela, já antes de ali chegados ouvida no El Salsero na Rua de Buenos Aires à Lapa e, anos mais tarde, no Mezcal, na travessa da Água da Flor no Bairro Alto. Foi numa outra vida, num quotidiano de noites tequila e whisky.

O filme de Catherine Gund e Daresha Kyi, são 93 minutos com esta mulher santa e pagã, e as suas muitas vidas, e em todas elas sempre essa luminosidade telúrica incandescente, dolorosa e ardente de quem em nenhum momento nega a alma que consigo transporta em paixão ardente e solitária, mesmo quando em amor acompanhada.

Chavela Vargas pertence aquela qualidade especialíssima de seres dotados de talento e beleza inatos, capazes de surpreender o mundo, de arrastar e seduzir quem com eles se cruza. A sua voz quando canta abre rasgos no peito de quem ouve, os olhos molham-se perante a força e singularidade única de uma respiração intensa e habitada a sangue de tragédia e a paixão.

Chavela Vargas nasceu na Costa Rica em 1919, o nome de registo é Maria Isabel Anita Carmen de Jesus Vargas Lizano , morreu no México em 2012. A sua vida atravessa um século, conheceu e viveu a época clássica do cinema do México e de Hollywood, é ela que no filme nos diz que no casamento da Elizabeth Taylor, num dos primeiros porque foram oito no total, quando a noite deu lugar à privacidade da cama, foi com Ava Gardner que dormiu.

Chavela Vargas é, foi, uma amante predadora, e muitas foram as mulheres de políticos e da elite artística do México que se renderam à sua paixão. A carreira deste ser telúrico deve-se em parte ao compositor e cantor José Alfredo Jiménez, com quem estabelece uma relação pessoal e artística total. O filme é uma entrevista em que Chavela Vargas nos fala em voz própria montada com depoimentos de quem com ela se cruzou e viveu, e momentos de palco.

A vida desta mulher ícone da música Mexicana não foi uma viagem pacífica nas luzes do palco. Ainda em criança era escondida dos olhares de terceiros pela sua mãe por não corresponder à imagem da menina criança esperada e desejada. Na família em que nasceu o que os outros pensam ou possam pensar determinava os comportamentos e afectos que entre si se estabeleciam. Com o divórcio dos pais foi viver com uns tios. Aos 17 anos estava sozinha na cidade do México.

Era bela, era diferente, era única, a sua singularidade levou-a a outras representações da mulher, foi ela quem pela primeira vez cantou vestida calças e poncho e não com os vestidos de folhos e rendas como era uso na época.

Os palcos dos grandes teatros só se abriram para ela na segunda fase da sua carreira, depois de uma dezena de anos sem cantar nem editar discos. Esta fase terrível, deve-se ao excesso de álcool e também à perseguição do poderoso empresário Emilio Azcárraga por lhe ter seduzido a namorada.

É Pedro Almodovar quem a resgata e conduz aos palcos de Madrid e Paris. O cineasta tem por ela um amor espelho, adora-a. A qualidade humana e artística Chavela Vargas prendem-no por inteiro.

Este filme mostra-nos a mulher de corpo inteiro, que viveu com e sem tequila, de pistola por perto, solitária e apaixonada, que com a voz inteira diz sem tremer frases pouco apaziguadoras e radicais: “Eu sempre soube. Não existe ninguém que suporte a liberdade alheia; ninguém gosta de viver com uma pessoa livre. Se você for livre, esse é o preço a ser pago: a solidão”; “Ninguém morre de amor, nem por falta nem por excesso”; “O amor não existe, é um invento de noites de bebedeira”.

São várias os personalidades intervenientes neste documentário, o já referido Pedro Almodóvar, Laura Garcia Lorca, Miguel Bosé, entre outros. Um filme que faz permanecer viva a grande diva da canção rancheira Mexicana.

 

 

 

6 Abr 2018

Uma Comissão para o IV Centenário

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] s festejos para comemorar os quatrocentos anos da partida de Vasco da Gama de Lisboa para a Índia, ocorrida a 7 de Julho de 1497, passavam agora a ser para celebrar a sua chegada à costa indiana a 20 de Maio de 1498.

Para o relato das reuniões, onde por proposta do Governador Eduardo Galhardo são constituídas, primeiro uma comissão e na seguinte, as subcomissões para preparar as comemorações desse IV Centenário, socorremo-nos dos jornais, Echo Macaense, cuja primeira reunião aparece descrita a 23 de Janeiro de 1898 e no dia seguinte n’ O Independente (jornal fundado em 1867 e que já ia na quinta série, pois fora por quatro vezes interrompido e o seu director José da Silva com inúmeros processos em tribunal).

A convite do Sr. conselheiro Galhardo reuniram-se a 18 de Janeiro de 1898 no Palácio do Governo pelas duas horas da tarde os principais funcionários e cidadãos portugueses desta colónia e da comunidade chinesa, acima de cinquenta cavalheiros. Instalou-se a sessão na sala de dossel sob a presidência do Governador Galhardo, tomando assento na mesa de presidência, ficando à sua direita o Sr. juiz Ovídio d’ Alpoim e à esquerda o Sr. secretário-geral Bandeira de Lima. Expôs o presidente a finalidade da reunião e fez referência a duas circulares que o governo provincial recebeu da comissão executiva central de Lisboa para as comemorações desse IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia. Propunha-se ali resolver a nomeação de uma comissão promotora de festejos para as celebrações em Macau.

Pediu a palavra o Sr. comendador Basto, Presidente do Leal Senado e em conciso discurso patenteou a prontidão em que estava o município para coadjuvar a S. Exa. o Sr. Governador na realização dos festejos que se pretendiam fazer para comemorar um facto histórico que tanto lustre deu a Portugal. Disse também achar conveniente que nesta festa se prestasse uma justa homenagem ao grande poeta Camões, cantor da viagem de Vasco da Gama e que a memória desta festa fosse consagrada por algum monumento duradouro. O Sr. Dr. Lourenço Marques logo deu exemplos de algumas obras e uma delas poderia ser feita, como, a continuação da Estrada da Praia Grande até à Barra, um passeio no planalto da Flora, um chafariz.

 

Comissão executiva

 

Em seguida o Sr. Bandeira de Lima propôs que o Sr. Governador formulasse a lista dos membros da comissão executiva e a apresentasse à assembleia geral para ser aprovada por aclamação; e assim se fez.

Ficou esta comissão executiva formada pelos seguintes cavalheiros: seria Presidente o Sr. Governador Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo e vogais: Dr. Ovídio d’ Alpoim, juiz de direito; cónego Francisco Pedro Gonçalves, Governador do Bispado; Mário Pires Monteiro Bandeira de Lima, Secretário-geral; António Joaquim Basto, Presidente do Leal Senado; deão Manuel J. de Conceição Borges, Presidente do Cabido; conselheiro Arthur Tamagnini Barbosa, inspector da Fazenda; Dr. José Gomes da Silva, chefe do Serviço de Saúde; Tenente-coronel de engenharia Augusto d’ Abreu Nunes, Director das Obras Públicas; João Albino Ribeiro Cabral, professor e reitor do Liceu Nacional; Leôncio Alfredo Ferreira, procurador administrativo dos negócios sínicos; Câncio Jorge, administrador do concelho; Eduardo Marques, chefe da Repartição do Expediente Sínico; Dr. A. de Mello Alvellos [ou será Dr. Francisco de Melo Lemos e Alvellos], delegado do procurador da coroa; Capitão-tenente António Talone da Costa e Silva, Capitão do porto; Tenente-coronel Porphyrio Zeferino de Souza; João de Souza Canavarro, administrador do Concelho da Taipa; Pedro Nolasco da Silva, Dr. Lourenço Pereira Marques, Lu cau e Ho Lin-vong.

Em seguida, “o governador convidou os membros da comissão para se reunirem no dia seguinte a fim de tratar do programa dos festejos; e no entretanto apresentou à consideração da assembleia duas ideias acerca das quais queria ouvir a opinião dos cavalheiros aí reunidos, antes de propô-las à comissão executiva.

Disse ser <de justiça pagar uma dívida de gratidão ao benemérito Governador João Ferreira do Amaral, a cuja energia se deve a verdadeira autonomia de Macau, por isso propunha que entre os Festejos se incluísse a cerimónia de lançar a pedra fundamental para um monumento dedicado à sua memória e associá-lo ao nome do valente Vicente Nicolau de Mesquita, visto que aquele valente oficial salvou a cidade de uma invasão de chineses que poderia ter destruído a obra do dito governador, por isso lembrava que o mesmo monumento fosse também dedicado à memória do Mesquita>. A outra proposta era, como propusera o Presidente do Leal Senado, que <tendo sido Luís de Camões, o cantor das façanhas de Vasco da Gama, era de justiça que também nesta comemoração se prestasse homenagem ao grande poeta que imortalizou nos seus versos esta memorável viagem>, mais, <havendo em Macau a célebre gruta onde diz a tradição que o grande vate compôs parte dos seus poemas>. Aplaudida a dupla proposta, ficou resolvido tratar-se do programa no dia seguinte”, do Echo Macaense.

 

A reunião do dia seguinte

 

“A comissão, que se reuniu no dia 19, nomeou uma subcomissão de sete membros a fim de redigir o programa dos festejos e propor a forma de obter os meios necessários para a sua realização”, segundo O Independente e o Echo Macaense especifica, “Soubemos que foram nomeados para este fim os srs. António Joaquim Basto, Abreu Nunes, Tamagnini Barbosa, cónego Conceição Borges, Pedro Nolasco da Silva, António Talone da Costa e Silva e Lu cao”. E voltando ao jornal O Independente, “Esta subcomissão já assentou nos festejos a propor e na forma de se obterem os meios para se levarem a efeito, devendo em breves dias apresentar o seu relatório”. É ele apresentado e aprovado no dia 1 [para O Independente dia 2] de Fevereiro, no Palácio do Governo, aquando da reunião da comissão executiva dos festejos do centenário, onde também foram nomeadas subcomissões. Tal refere o Echo Macaense de 6 de Fevereiro de 1898, que ainda adita estar “a fábrica de cimento da Ilha Verde iluminada à luz eléctrica, podendo-se ver de Macau quatro focos bem luzentes todas as noites”.

O programa geral formulado pela comissão executiva local, na sua sessão de 2 de Fevereiro, só vem publicado n’ O Independente de 20 de Fevereiro. Assenta os dias em que se realizarão os festejos: 17, 18, 19 e 20 de Maio de 1898 e o programa de cada um desses dias, assim como refere a criação de uma pública biblioteca denominada Vasco da Gama, nome que se quer dar à avenida feita no espaço arborizado entre a Calçada do Gaio e o Monumento da Vitória. Sobre os monumentos, pretende-se colocar uma coroa de bronze no busto de Camões e erguer, em memória de Ferreira do Amaral e Mesquita, um obelisco, que será colocado sobranceiro ao passeio da Bela Vista e para custeá-lo promover-se-á uma subscrição em Macau e entre os portugueses estabelecidos em Hong Kong e nos portos da China, Japão e Indochina”.

6 Abr 2018

O Talento Invejado ou “A Single Man” de Tom Ford

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntenda-se por amor erótico o equilíbrio entre os afectos e o desejo sexual entre duas pessoas, tal como o escrevia Platão há já algum tempo. E talvez se tenha de ter um talento para esse amor erótico como aquele que se tem para a música. Talvez haja pré-requisitos exigidos, que não sejam para todos. E do mesmo modo que muitas pessoas não têm talento para a música, mas ficam fascinadas a tal ponto de quererem ser músicos, também assim acontece com o amor.

Não temos talento para ele, mas o fascínio que ele exerce em nós faz-nos querer ser como aqueles que têm talento para ele. Não é que o amor erótico – encontrar a nossa outra metade e viver com ela para sempre – não exista, mas não existe para todos, como também o ser músico não existe para todos. Não basta querer para ser. Mas a inveja do amor para sempre parece ser maior e mais comum do que a inveja de qualquer outro talento humano. É pelo menos assim que ficamos a pensar depois de assistirmos ao filme A Single Man, de Tom Ford. Um amor assim, como o que na vida real o próprio realizador e Richard Buckley vivem (e também o autor do romance homónimo de onde Ford adaptou o filme, Christopher Isherwood, o viveu com o seu amante e amado Don Bachardy). Desde que se conheceram, em 1986, Tom com 25 anos e Richard com 38, vivem uma história de amor eterno.

E, no fundo, o filme – apesar de ter sido adaptado do romance homónimo de Christopher Isherwood – é como se Tom se visse a si mesmo sem Richard (e antes dele Christopher Isherwood sem Don Bashardy). Pois como viver depois da perda de um grande amor? Como continuar a viver sem essa grandeza, essa experiência que se adivinha sublime? É esta pergunta que está ali exposta em carne viva no filme. Depois de um grande amor sobrevive-se, ou não, mas não se consegue mais do que isso. De um modo geral, no contexto da população humana, desde o início dos tempos até agora, poucos de nós teremos experimentado esse amor, se bem que muitas vezes julgamos que sim, pois tendemos a confundir esta experiência plena de amor erótico com a paixão, que é mais comum e muito mais devastadora. A paixão tende a devastar-nos no seu próprio exercer-se, ao passo que o amor erótico só nos devasta quando acaba, como acontece no filme de Tom Ford.

E o filme começa com um sonho, onde o protagonista, George (interpretado por Colin Firth) caminha sobre e debaixo de neve na direcção de um carro acidentado, e junto a ele encontra-se um corpo, sem vida, com sangue no rosto. George deita-se junto a ele, olha-o e beija-o. Acorda. E escuta-se os seus pensamentos: “Acordar nos últimos meses foi realmente muito doloroso. A constatação fria de que ainda estou aqui.” E a câmara mostra-nos um frasco de comprimidos sobre a mesa de cabeceira. Sim, o filme é muito mais sobre a perda – a perda daquele que se ama – do que sobre o amor, embora também o seja.

O filme é sobre o ultimo dia de vida de homem que amava outro – e era amado por ele – que morreu de acidente de carro há oito meses. O filme é sobre a falta de sentido da vida depois da experiência do amor erótico na sua plenitude. Um flashback traz-nos o momento da notícia do acidente, pelo telefone. O horror. Depois, e de volta a este último dia, vemos um revólver dentro de uma gaveta de uma cómoda e um livro sobre ela, de Aldous Huxley, After A Many que é também um verso do poeta romântico inglês Tennyson, do seu poema Titono, “After many a summer dies the swan”. O poema é sobre essa figura da mitologia grega, Titono, por quem Aurora, apaixonada por ele, pede a Zeus que lhe dê a imortalidade, esquecendo contudo pedir também a juventude eterna. Assim, Titono envelhece para além do suportável, impedido que está de morrer. A sua vida torna-se o seu inferno.

O seu corpo o seu cárcere odioso e torturante. E lembramo-nos de imediato do verso de Paul Claudel, em Le Soulier de Satin, “naufrago no meu corpo” (citação de memória). Por seu lado, o livro de Huxley retrata o narcisismo norte-americano, o culto da juventude, tendo como horizonte esses poema e verso de Tennyson, que lhe dá o título. George guarda dentro da sua pasta, com a qual sairá à rua, o revólver e o livro.

Já no liceu, a caminho de uma aula, em conversa com um colega que fala da ameaça nuclear e de abrigos para uma eventual chuva de mísseis, o nosso herói responde: “Grant, um mundo sem sentimentos é um mundo onde não quero viver.” Entra na sala de aulas, senta-se sobre a secretária e cita: “After many a summer dies the swan.” [Depois de muitos, o cisne morre num Verão] De volta a casa, deixa tudo preparado, para dar o mínimo de trabalho possível àqueles que tiverem de tratar do destino do seu corpo. Adivinha-se que a carta que deixa escrita seja para a sua grande amiga, Charlotte (Julianne Moore).

A mesa, com o revólver, as diversas chaves, cartas, documentos e o a indumentária que lhe devem vestir, forma uma sinistra e moderna “natureza morta”. A preocupação dele, por não dar trabalho aos outros – ou o menos possível – vai ao ponto de tentar fazer com que não tenham de limpar o sangue, e tenta então cometer o suicídio dentro de um saco de cama. Deparando-se com a dificuldade, toca o telefone. Ele sabe que é Charlotte, sai do saco de cama e atende: “Sim, comprei o Gin, estou aí em dez minutos.” E sai de casa.

Chegámos a casa de Charlote, ela preparou o jantar para os dois. Ela é tão só que nem com ela… E ele completamente só, como só se está depois do amor, depois de um amor de dezasseis anos. Um amor insubstituível, como diz à amiga. No lugar dele ficou um buraco. Um buraco que não é uma coisa ou a ausência de uma coisa, mas que é ele agora, o buraco que ele apressa em levar para a cova. Ele é um buraco e amiga um vazio, que é o que todos somos sem amor. E é ela, Charlotte, quem o diz: “Sempre tive inveja [do amor de vocês], eu nunca tive um amor assim [na vida].”

E é aqui que ficamos depostos no clímax do filme, no cerne da questão humana que nos prende ao universo: o amor e a sua falta. De tanto não querermos viver num mundo sem sentimentos e de tanto não conseguirmos viver sem amor, que inventámos que o amor não existia. E conseguimos acreditar nisso, como antes se acreditava em Deus e antes disso nos deuses. Eis-nos chegados aos dias em que o amor é uma ilusão. O talento invejado.

3 Abr 2018

O autismo, ano a ano

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 2 de Abril é inevitável que vos fale de autismo. Tendo em conta de que o resto do ano carrego esse peso sem vos aborrecer por aí além, parece-me justo que hoje, apenas hoje, possamos fazer de conta que repartimos a carga.

O meu filho fez 14 anos no ano passado, em Setembro. A infância está a terminar sem que tenhamos uma ideia clara do que podemos esperar que seja a sua adolescência e idade adulta. Na infância deixámos alguns problemas de monta. O Gui levou muito mais tempo que uma criança normal a deixar a fralda, por exemplo, ou a aprender a vestir um casaco ou a pôr o cinto de segurança no carro. A aprendizagem das tarefas quotidianas no autismo é morosa; todos os dias se insiste num pormenor específico: segurar garfo e faca, lavar as mãos depois de ir à casa de banho, calçar os sapatos. Tudo aquilo que nos parece óbvio nada tem de óbvio para um autista, e só convocando doses industriais de determinação e paciência somos capazes de perseverar, numa repetição de Sísifo, até ver surgir pequenos mas fundamentais progressos.

Na infância, infelizmente, ficaram também muitas esperanças. A linguagem, por exemplo. Tenho quase a certeza de que o meu filho nunca falará. Nunca será capaz de me chamar “pai”. Nunca será capaz de dizer “dói-me aqui” – o meu maior medo, confesso. O meu filho comunica contextualmente: se tem sede, vai buscar um copo; com sorte e se conhecer a casa, consegue enchê-lo. Ainda assim, não evito o cuidado decorrente de um estado de alerta contínuo: e se está a beber de um copo sujo? E se por acaso ligou a água quente quando encheu o copo? Nada é óbvio ou garantido quando lidamos com crianças com este tipo de necessidades especiais. Não podemos presumir que um comportamento repetido está consolidado; que algo que correu bem algumas vezes continue a correr bem. Há que estar em alerta mesmo quando nada indica que tal seja necessário. Porque, como com todas as crianças, basta falhar uma vez.

Com 14 anos, o meu filho já exibe um buço tímido. Imagino que daqui a um par de anos tenha de lhe fazer a barba regularmente. Acaso acabe por ter uma barba tão esparsa como a minha, apará-la não será difícil. Difícil será, porventura, gerir as consequências do natural incremento de hormonas masculinas com que podemos contar. Ou não. Nada é óbvio ou linear.

Uma amiga minha que mora em Londres dizia-me, há um par de dias, que o filho dela, com 13 anos, lhe conta como é confusa a puberdade; os papéis sociais, a mudança do corpo e, sobretudo, o desejo sexual. As histórias da adolescência são enternecedoras. Por um lado, fazem-nos automaticamente regressar a um lugar que nos foi frequentemente inóspito com outros olhos, capazes de o apreciar no conforto da distância. Por outra parte, rimo-nos do drama que cada acção ou contexto comportam na adolescência – por mais pequenos que sejam. O filho desta minha amiga está a descobrir que gosta de raparigas, e que gosta de as beijar. E claro, nada no processo da sedução é óbvio. Ao que parece, ser cool, neste início de século, implica ter uma sexualidade indeterminada. As miúdas da escola dele adoptam alcunhas masculinas; os rapazes dizem-se pansexuais. Mesmo que tal não corresponda à verdade. É como se, à natural confusão decorrente do encontro com outro pelo prisma da sexualidade, se acrescentasse um nível suplementar de desordem. Nada é óbvio, nada é linear.

O meu filho não terá esse tipo de problemas. Mas, como em tudo, um problema é só uma face da moeda existencial. Há muitas coisas pelas quais passámos – com mais ou menos dificuldade, com maior ou menor prazer – que lhe estão, à partida, vedadas. O nosso trabalho, enquanto pais, é dar-lhe tanto quanto possível do mundo e manter uma dose de esperança que nem sempre radica numa racionalidade escorreita. Porque nada é óbvio e linear, e porque isso não tem que ser sempre mau.

3 Abr 2018

A dupla face do escritor

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que me liga à minha mulher, sem muito custo (embora isto não seja isento de pequenas tensões), para além do óbvio das filhas e das afinidades, foi ela ter aceitado implicitamente que vivemos em adultério e que a minha “legítima” é o isolamento que penhoro na escrita.

A escrita exige esta dimensão da exclusividade, nada saudável, e não admite rival, ou só a espaços quando, por cansaço, nos alheamos mutuamente. Melhor: em tempos normais, na escrita sou polígamo.

Entretanto, não tem nada de humano o desapego a que a escrita nos confina – é o contrário das tretas que ensino em Comunicação Interpessoal, ó meu querido George Bateson perdoa-me lá – e lamento reconhecer que troco um contacto humano de terceiro grau pela escrita de um conto que me satisfaça ( – embora se dissesse o contrário também seria verdadeiro).

Se a disciplina da escrita me trouxe um aparente apaziguamento dos instintos – sou fiel ao “amor único” – é porque na verdade apenas sublimo momentaneamente (e constato como o D.H. Lawrence que está por estudar a força da sublimação), não se espere de mim o menor acatamento dos meus “penchements” selváticos, aprendi apenas a dizer não e a regatear o tempo, sendo certo que se fosse católico estaria frito por pecados de pensamento e omissão.

Na verdade estou, pelo meu lado, absolutamente encurralado pelo egoísmo da escrita que me acua e trepana e devora a pouca inteligência às colheradas, como faz Hannibal aos seus incautos.
Se houver um escritor que diga que se quisesse dispensava esta crueldade é porque ainda não é um adicto, e vive em pura bazófia como um artesão de best-sellers que está carimbado da medula às sinapses pelas fórmulas.

Há, por outro lado, um bocadinho de balela romântica na afirmação de Aragon de que nunca terá escrito uma história de que não conhecesse previamente o desenvolvimento e que terá sido sempre, ao escrever, como acontece ao leitor, que ele contactou pela primeira vez com uma paisagem ou com as personagens de que vai descobrindo o carácter, a biografia e o destino. É uma espécie de heroísmo à rebours. A verdade fica-se pela metade, apesar do mais importante estar de facto no que desconhecíamos antes de ter acontecido a escrita.

Esta ignorância é como uma lapa que simbioticamente se confunde com a pele e nos faz desejar a insegurança de um pensamento em estado nascente, em látego.
Quem conviveu comigo nos jornais durante vinte anos sabe que eu nunca estive “integrado”, sempre um bocado à margem, o que me tornava suspeito, pois quem é que este gajo se julga, pensavam.

Nunca me julguei assado ou cozido, sentia-me apenas em liberdade condicional e um tipo entre comas porta-se de outra maneira e não dá excessiva importância ao que está a fazer. Por isso seria incapaz reunir os artiguelhos e as minhas suspicazes opiniões em livro. Alguns bons artigos hei-de ter escrito, mas irritam-me mais as opiniões que ao Valter Hugo Mãe o Herberto Helder ( – e já repararam como está parecido o escritor com o vate?).

Há antes algo de que padeço e está para além da minha inteligência ou do aparato, e o que faço agora é unicamente um meio, uma travessia.

O melhor só pode estar para vir, posto que nas costas fica o rasto dos meus fracassos. Todos os poemas que publiquei até hoje, todos as narrativas, carecem ainda do ímpeto do arpão do capitão Ahab. Só me resta não parar de lançar o arpão até que da sua ponta nasça a baleia.

Porque o escritor almeja, como lembrava o Proust, embora isso esteja esquecido, inventar dentro da língua uma língua nova, e para que tal enxurrada suceda não são permitidas folgas.
Enfim, mais ao menos. Na verdade, só se entra no “paraíso” pela porta dos fundos, tirem o cavalinho da chuva os que ambicionam lá penetrar pelo portão da frente – só a quem se distrai do seu propósito lhe acontece penetrar.
Permitir esta distracção é o que visam as correntes alternas da vigília. Afinal (como no amor) só lá penetra quem já é transparente.

A muitos títulos preferia viver em Paris do que em Maputo, mas a vantagem de estar em Maputo é que somos irrecuperavelmente o outro e ficamos extensivamente sujeitos à pressão do olhar “nativo” – como irredimíveis estrangeiros. Esta condição mantém no ponto uma tensão que nos situa e não autoriza que alguma vez sejam amorfos os lugares. Ficamos então adequadamente desconfortáveis, gerando-se um clima propício à criação.

É claríssimo que o meu isolamento em Maputo me fez crescer como escritor, que o meu anonimato me desencadeou uma energia nova, que a distância me recuperou o pleno sentido das proporções (ainda que a distância gere equívocos e provoque silêncios e mal-entendidos: quem não me conhece como pessoa e não vê os meus gestos, o meu riso, toma às vezes por literal o que é irónico, pura paródia, e confunde-me com meu personagem momentâneo) e que mesmo em termos humanos ganhei um lastro que não tinha. No fundo, saí da esfera da literatice para a do vivido.

O que visto de fora me parece acrescentar uma pele áspera e insensível, como a do Rinoceronte de Ionesco. Sócios iméritos da vida.

Bom, há duas horas que me mantenho na esplanada, garatujando e lendo, enquanto a Teresa se ocupa das crianças na piscina. Há que ir substitui-la durante um pedaço, dar umas braçadas com as miúdas, ver como a Jade simula o mecanismo das ondas com o chouriço ou sonhar que um dia ouvirei a Luna tocar violino debaixo de água; riremos com algumas partidas durante cinco minutos, até que o chapão de uma boer na água me lembre uma freira a mergulhar num charco de rãs e isso me arranque à piscina para vir anotar num caderno encardido e já de língua de fora mais um cabotino canteiro de flores.

29 Mar 2018

Sangrar a Oriente pelo lápis do poeta

«Melhor que conhecer uma coisa, amá-la!»
Confúcio
«Só o corpo obedece à fé porque nele se opera a
metamorfose involuntária»
Carlos Morais José, in Anastasis

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Visitações, pequeno livrinho lançado uns meses depois de Anastasis, ambos de 2013, reforça-se a suspeita de que em Carlos Morais José (1962) o exercício poético é uma gnose lapidada por um diálogo com uma tradição e não um mero jogo lúdico. Ao qual não pode deixar de convergir uma mão cheia de responsabilidade e outra tanta de atrevimento.

Lembremos a propósito que uma das “debácles” desconcertantes da poesia no século XX, correspondendo a um tiro no pé e mais absurdo ainda ao identificarmos quem empunhou o revólver, teve lugar quando T.S. Eliot escreveu que a poesia mais não era do que um divertimento superior — pronunciamento a que posteriormente procurará emendar a mão em Os Quatro Quartetos e que provavelmente enformará a excessiva solenidade deste livro.

Porque se a poesia não tem de ser solene encurralá-la como um mero acto de dimensão lúdica — de cujo wit não estará obviamente afastada — premedita uma amputação, a mesma que seria patente se interiorizássemos que o engolfamento da paródia só autoriza degradar as referências e nunca superar-se e magnificá-las.

Em Visitações, Carlos Morais José desenha um paideuma, no sentido poundiano, convocando uma constelação de autores (nem todos poetas, como Camus ou Kafka) que se inscrevem como sombras chinesas no biombo em que decorre o seu diálogo com o filamento poético dessas vozes, e o que talvez mais surpreenda, além da escolha heteróclita dos poetas — onde se “recupera”, por exemplo, Raul de Carvalho, um grande poeta esquecido -, é certificarmo-nos que Morais José não receia nem mimetizar procedimentos poéticos, nem servir-se de todos as modulações métricas ou inclusive cultivar a rima.

O que o leva a textos tão diversos, como o que lhe desancorou do cais de Camus:

ALBERT CAMUS, Circuito da Guia

Saímos do tufão para uma temperatura insuportável, mesmo para mim que sou uma espécie de magrebino acinzentado. Hoje palmilhei uma colina, por uma estrada alcatroada. Os carros silvavam rente mas isso era-me indiferente: só cascatas de suor me troavam nas têmporas. Dei por um rio a descer-me pelas costas e agradeci aos deuses por ter um corpo semelhante ao mundo.

Ou, por contraste, este, “sacado” a Garret:

Almeida Garret Mong Há
Como é triste ver a chuva,
Por detrás destas vidraças,
Afagar de manso a rua
Fazer de mim presa sua,
Quieto, pupilas baças,
Mãos trementes, visão turva.
(…)

Deste livrinho de homenagens, que roça o hábil e divertido pastiche mas adquire uma outra leitura e seriedade quando visto à luz de Anastasis, talvez realçasse as glosas feitas em torno de Ruy Cinnati, do urdu Hafez, de D. Dinis, de Almada Negreiro (de quem mima o espírito guerreiro e as imprecações), ou o de Ângelo de Lima, que aliás termina com uma nota em que imagino sustentar-se um dos pilares de uma poética cara a Carlos Morais José:

«Agrada-me a ideia de um pensamento inútil, que não vise um fim, que não se esgota em funções e genuflexões. Utilidade e pensamento criam monstros. Goyadixit e se não o dixit, desenhou-o.»

Anastasis, um livro a todos os títulos excelente, é um projecto de outra ambição, uma prova de fôlego de 220 páginas, mas sobre o qual não dei ainda conta de qualquer texto. Provavelmente por ter sido publicado em Macau, por o seu autor ser figura renitente à auto-promoção (pedi-lhe os livros três vezes, sem resultados, e tive de ir a Macau para ele se resolver a dar-mos) e por estar inculcado, por inércia ou sobranceria, uma ideia de menoridade quanto ao que chega da Diáspora e não é emanado pela capital do velho império.

Acresce que em folheando o livro se torna evidente que a linhagem em que pisa Carlos Morais José não é consentânea com os ditames da época, o que lhe dificultará a recepção: ele não cabe nas grelhas de leitura já estabelecidas. E que linhagem é a dele?

Talvez a dos poetas menos preocupados em cultivar um imediato reflexo epocal e afinidades temáticas e estilísticas com uma sua suposta geração do que em buscar uma conformidade do sujeito com o seu daimon e as suas chaves de sentido.

Anastasis (o termo grego para Ressurreição, e que no fundo corresponderá a um Segundo Nascimento, ideia muito cara no Oriente onde o poeta vive há quase trinta anos) reproduz na capa A Conversão de S. Mateus, de Caravaggio, o apóstolo que pregou pela Judeia, Etiópia e Pérsia e morreu na Etiópia, apedrejado, queimado e decapitado, e que podemos entrever como o símbolo de um andarilho.

O livro, coerentemente, deixa-se ler como um itinerário, compondo-se de dez capítulos que na generalidade se associam a um destino: Abertura, Patmos, Istambul, Syria, Pérsia, Índia, Sião, Terra Khmer, Mekong, e Final.

A este tour de force afluem textos de diversos modos e géneros — poemas, aforismos, anotações de viagens, tradução de poetas orientais ou transcriações em entretecido verso, versículo ou em prosa poética; meditações diarísticas ou trechos de recorte “jornalístico”, etc — mas releva que o feixe se caracteriza por uma comum escrita tensa, ritmada, polvilhada aqui e ali de aliterações (começa assim O Felino: Faz-me fera falta essa certeza) e de rimas internas à prosa (e, aliás, metade dos poemas rimam), num sulco transfronteiriço entre os géneros no qual a sombra poética sempre avulta.

O itinerário que aqui se evoca não é unicamente físico, material, mas nutre-se da espiritualidade dos lugares, assumindo o texto as personas, as máscaras poéticas que lhe sejam próprias, sendo embora de advertir que o respeito ao locus… não é contagiado pela reverência cega, pelo que no trânsito do livro abundam os “desvios”, as anfractuosidades, e as suas ambiências não desdenham o álcool e outros derivativos, aliás como o sexo e as dúvidas existenciais, ilustradas neste belo trecho, de Resafa — em Syria:

«No templo de Júpiter, os áugures explicaram-me a vida. Como sempre não percebi. Está tudo aqui nesta pedra de leite ofertada. Seguro-a. Ardente na mão. Mas nem o sol me faz entender a escrita persistente das areias, nem o vento me ensina a língua áspera dos imortais.», pág. 72;
registe-se contudo que em Anastasis não se leva a cabo uma “viagem encapsulada” à maneira de Raymond Roussel.
Anastasis traceja, antes, as diferentes tradições do território percorrido e — vê-se pela nomeação geográfica como o leque é extenso, dos poetas sufis aos urdus, dos gregos e hebraicos aos chineses e malaios, dos profetas hebraicos aos místicos –, escapando a identificação dessa linha às referências habituais para se encharcar nómada na experiência carismática duma topografia do espírito com assento a Oriente.

A haver uma tradição reconhecível para este livro encontro-a mais do lado de Claudel, um dos autores convocados em Visitações, ou das Estelas, de Victor Segalen, nos livros do Kenneth White, do que em qualquer outro exemplo do lastro português. Mesmo Ruy Cinnati é mais localizado e ateve-se a Timor.

Daí que Anastasis seja tão diferente do que se encontra no panorama da actual poesia portuguesa e merecesse uma atenção que lhe destrinçasse os fartos motivos de interesse; eu não tenho dúvidas em afirmar ser este um livro de referência, de sempre, no âmbito da Diáspora, e como a singularidade que introduz merecia outro eco.

Engana-se, entretanto, quem julgue encontrar na entoada desta escrita que em inúmeros passos se aproxima do versículo e, já vimos, não teme usar a rima nem estruturas frásicas tradicionais uma dicção “antiga”. Só uma leitura negligente e apressada produzirá este juízo. Antes acontece haver em Carlos Morais José um tão apurado domínio da língua que o poeta (e neste particular aproxima-se de Grabato Dias), prescindindo de exibir um estilo faz antes cabotagem, usando-se das máscaras, adaptando o de outros.

O que se atesta, por exemplo, nos inúmeros gazel que permeiam o capítulo Pérsia, onde o leitor é, por fim, restituído ao hedonismo “metafísico” de Kahayyam. Porém, avisa Morais José, e antevejo aqui outro preceito da poética que lhe imagino cara: «O nosso afã não é copiar, nem cumprir. O paraíso será sempre a reescrita» (pág. 138).

Depois, Anastasis, como se disse atrás, nas suas imprevistas meditações está repleto de curto-circuitos, de erupções dissonantes que rasgam os laivos neo-platónicos (presentes) para os “infectar” com a imanência das rudes intersecções do quotidiano e do real — isto é, há no texto o desejo da ideia mas não a sua primazia.

Neste aspecto, o livro é tremendamente pós-moderno e testemunha o itinerário de uma poesia que — se se infere como aventura espiritual, no sentido de uma evasão ao trivial e da consequente busca, mesmo que intermitente, desse Absoluto de que falava Paz (que está não aquém mas além das religiões) — já não pode abster-se do que foi desmistificado pelo século XX e cunhado pelo paródico; pelo que, arredada de qualquer dogma, a poesia há-de vasculhar no profano e no circunstancial rastos do sagrado e vice-versa, sabendo-se como as religiões calcificam enquanto a poesia re-humaniza os gestos do celebrante.

Demos alguns exemplos das dissonâncias, como estes colhidos em Sião:

Sukhumvit, Soi 1
«À hora sexta, é um alvorecer de pássaros
e não o grande motor que acorda a cidade.
São cantos, estribilhos: toda uma poesia de jardim
que se evola dos bairros.
A rapariga que risca a rua
como um estremecer de asa.
Da janela do automóvel,
o homem do táxi chama o colega
com um beijo repenicado.
Não são maricas,
sequer efeminados:
falam como os pássaros.» (161)
ou, Sukhmuvit, Soi 6:
«A mãe sentou-a no meu colo.
“tem 14 anos, mas já é experiente”, garantiu.
“Obrigado”, retorqui, “pode trazer mais um
uísque?»

Citemos o desconcertante fecho de Cisterna, em Istambul:

«Em parte discreta da velha cisterna bizantina, duas cabeças de medusas servem de base a medusas. Uma está invertida, a outra de lado, apoiada na face direita, Não se sabe porquê. Provavelmente porque assim dava mais jeito ao construtor. Mas o que fazem ali as duas górgonas?

Há uma terceira medusa, de que ninguém fala, muito parecida com as suas irmãs da cisterna. Está no Museu de Arqueologia, perto do pequeno quiosque onde, depois do café (“à turca, com o pó todo”), os teus cabelos se transformaram em serpentes.
Agora sou a estátua que aguarda a inscrição: um nome, uma sentença, um epitáfio:

TEVE PÍFIA VIDA
ALBERGOU NO SEU SEIO
UM MONSTRO
Alien (o filme) ou a iconografia do amor.»

Ou ainda o fecho de Café Roozegar, em Pérsia:

«Se a poesia desvenda, tal não surge como prenda no vinho ou nas mulheres. Há na rosa uma maldade que embeleza a cidade, mas que em mim só apoquenta como o cruzar da tormenta de velas bem levantadas. Vou lá fora… fumo um charro… é melhor de que um cigarro…
Impossível regressar.»

Cruzam-se para além disso neste livro, incessantemente, a memória poética e a memória etnográfica (Carlos Morais José é antropólogo de formação), entrançadas no tecido duma cartografia pessoal que de modo inescapável se condensa em pontos irradiantes duma certa herança cultural onde ainda se manifestam resíduos da sua origem (e mesmo geracional, como na evocação a Morrison), embora na sua generalidade já se apresente híbrida, desterritorializada e transgeracional:

ALLEPO/Hotel Baron

«Nesta varanda de pedra, bebi um uísque com soda, brindando a Lawrence que conheci da Arábia, mas que pertencia ao meu país. O barman, de calça clássica, colete de risca escura e irrepreensível laço, serve como um cavalheiro de outros tempos, fazendo corar o turista. Sorriu-me e percebeu: “Está ali naquela sala”: a conta assinada pelo punho do Inglês, o homem sem pai que conquistou para si mesmo uma Pátria.
Sorri-lhe, cúmplice, de uma traição que só grandes homems cometem. E, rapidamente, beberiquei o uísque, voltando à varanda donde, ontem, e hoje se vê passar a Syria.»

E como isto não pretende ser uma crítica mas apenas uma chamada de atenção para um percurso singular no panorama actual da escrita em língua portuguesa, fecho com um excerto de Allamut:

«Amo a visão destes montes descarnados, de puríssima geração, intocados de árvores ou vegetação rasteira, forma primeira do planeta do início. Hoje de humano sobra-me o vício.
E se assim embaciado permaneço, não é temor nem doença que padeço. Para tal bastam a beleza que invoca e a teimosa dor de não se dar a troca.
*
Dizem os historiadores que o paraíso dos haxixins nunca existiu. Provavelmente terão razão: percorridos os jardins, fumados os cachimbos e amadas as belas huris, ainda assim não me deu para matar.»

Com um excerto de O haxixe:
«(…)
Com Walter Benjamin no terraço, esgrimindo
frio no oiro do ar. Electricidade perpassa nessa
espessura loira e informe.
Como ele, esqueço-me de certa lotaria e esfrego
outra vez o joelho, sentado na anti-gravidade da
cadeira, no centro cósmico da cidade; um cego
inundar-me-á de música e isso bastará para me
erguer em radical felicidade.
Não serei milionário. Está, contudo,
ao meu alcance uma torre áurea,
edificada sobre as ruínas de um violino.
Walter significa: um automóvel nascente…
o túmulo vegetal… uma assunção do poente… a aura
caída das eternidades por haver. Um anjo para
entreter…»

Sigo para Patmos, II Skala:

Nos cafés do porto espera-se pelos navios, o desembarcar lento dos passageiros e a largada ufana dos grandes motores. Os turistas dão uma volta à ilha, visitam as principais atracções e raros são os que aqui pernoitam. Outras ilhas os esperam. É isso que as ilhas sabem fazer.

A importância do café

Depois da morte dos cafés, sobraram as ténues
esplanadas sem lua nem metafísica, na sombra
de navios de outros tempos. A tripulação fugira.
Gatos apardecem as vielas por detrás dos bares.
Onde talvez se beba qualquer coisa.
O café permanece belo como dantes.
A mesa é curta. A melopeia interrompida.
(…)
Onde estão os barcos? Por que demoram?
Quero partir agora, que se chega a minha hora.
No café estrela um relógio de navio? Por que me rio?
É igual navegar ou estar sentado.
Sonhar acordado como os meninos.
Das vésperas: sorver taninos, as nuvens de veludo,
o entrudo avermelhado, a parte do céu quebrada em
anis de desespero. Não choro.
Por que me rio? Vai já longe aquele navio…

E termino com o primeiro de Dois aforismos:
«A primeira palavra desfez o mundo. Ainda hoje nos entretemos, com as suas irmãs, no trabalho de o recriar.»

29 Mar 2018

E depois disto?

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]erminada uma trilogia que me ocupou os últimos cinco anos de vida, é inevitável pensar no que vai acontecer a seguir. No que vou escrever. Um romance é uma longa travessia solitária de resultados imprevisíveis que não enriquece ninguém – salvo raríssimas excepções. É preciso estar apaixonado – ou doido – para querer continuar a fazê-lo. E, ainda assim, o sujeito que escreve tem mais receio de ficar parado do que das longas distâncias pelas quais se mede a produção de um livro.

Neste momento, estou na fase do flirt. Atraem-me algumas ideias, sobretudo as que comportam a possibilidade de perceber um nadinha melhor o mundo depois de trabalhar longamente nelas. Uma dessas ideias tem que ver com as teorias da conspiração que não cessam de granjear adeptos. Enquanto estas não produzem quaisquer consequências de monta, é fácil ignorá-las. No fundo, até parecem ter piada. São uma espécie de excentricidade louvável numa sociedade muitas vezes desinteressante e cinzentona. É aquele tipo que passa duas horas de um jantar de Natal da empresa e explicar-te que, afinal, nunca fomos à lua. “É o embuste do século”, diz, entusiasmado. “Tudo não passou de uma encenação razoavelmente bem urdida para fins políticos. Era a guerra fria, pá, e os americanos tinham de marcar pontos!” A cereja no topo do bolo vem na normalmente na forma de um segredo sussurrado: “sabes quem estava a trabalhar para a NASA na altura? O Stanley Kubrick.” Say no more.

Mas nem sempre as conspirações são inócuas e, a espaços, divertidas. Por vezes remetem para assuntos sérios que podem ter graves consequências no bem-estar e na saúde daqueles que não perfilham as crenças dos conspiradores. A ideia segundo a qual as vacinas são, na verdade, mais prejudiciais do que benéficas é uma delas. Grande parte dessa crença radica num estudo fraudulento de 1998, de um médico entretanto caído em desgraça, que apontava para uma ligação causal entre a administração da vacina tríplice e o autismo. O estudo em questão mereceu o escrutínio amplo da comunidade científica, que foi lesta a apontar-lhe tanto as lacunas como as falsidades. Mas a dúvida, junto da opinião pública, ficou. Como dizia um amigo meu, “experimentem colocar um aviso na porta de um refeitório a anunciar que o sumo de laranja já está próprio para consumo e atentem em quantas pessoas bebem sumo de laranja nesse dia”. A desconfiança – legítima ou não – é uma nódoa muito difícil de limpar.

Portugal está a braços com um surto de sarampo. O sarampo é uma das doenças abrangidas pelo plano de vacinação nacional. Acaso a vacinação tivesse a cobertura desejada, o efeito de protecção desta faria com que os casos de sarampo fosse apenas residuais e episódicos. Mas, além de a cobertura não ser a ideal, por motivos alheios à vontade de todos, existem pessoas que, por motivos alheios à racionalidade, não vacinam os filhos. Desconfiam da bondade da vacina e confiam na imunidade de grupo que a vacinação produz. No fundo, pensam, até não estão a fazer nada de mal: os outros estão vacinados e isso faz com que todos estejamos seguros. Não cuidam de se preocupar com a quantidade de pessoas que podem pensar da mesma forma. Mesmo em doses moderadas, os conspiradores acham-se na posse de uma verdade de teor secreto que os distingue dos restantes, da manada. Esse é, alias, o poder das teorias da conspiração: o de nos fazer sentir especiais e únicos.

Estas brechas de imunização passam muitas vezes despercebidas porque nada resulta delas. E isso convence as pessoas de que podem continuar tranquilamente a ignorar a comunidade médica e aquilo que ela recomenda há décadas. No entanto, quando as fissuras atingem uma determinada dimensão, basta uma faísca para termos um surto de uma epidemia qualquer. Parece que estamos condenados a não aprender nada por via da história. As coisas têm de nos acontecer ou de acontecer no nosso tempo de vida. E isso é assustador.

28 Mar 2018

Regras e pedras

TSF, Lisboa, 21 Março

 

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hamemos-lhe coincidência. Há anos que não estreitava o Fernando [Alves], assim de braços e mãos (as mão dele mexem que nem ramos), mas sobretudo de conversa, até que a poesia, no seu dia mundial, que também diz ser da árvore, fez-se pretexto para vir às torres de onde se divisa o trânsito, que parece bombear e ser bombeado pelo coração da cidade.

Talvez a metáfora se ajuste, mas custa-me a crer que seja o dos carros o movimento que vivifica Lisboa. Por um dia que seja a circulação de versos, muito para além deste concreto noticioso do lançamento dos Poetas Portugueses de Agora, versão dita e musicada pela Lisbon Poetry Orchestra.

O reencontro foi solar e energético, apesar de tintado pela melancolia, e temo não ter estado à altura do inquérito sempre desvelado e delicado do Fernando. Continuarão comigo dia afora alguns versos do Paulo José Miranda, ditos pelo [André] Gago: «a marcha/ o ritmo que nos é imposto/ o tudo que há para fazer/ tanto que não chegamos a horas/ os dias batem-nos à porta/ os dias cobram dívidas/ cobram dúvidas». Não matei as saudades.

Jardim da Parada, Lisboa, 21 Março

Corro para a montagem a Feira do Livro de Poesia, que a Casa Fernando Pessoa organiza no bairro cujas regras foram ditadas pelo [Fernando] Assis Pacheco. Reza uma delas: «não deixes nunca de contrastar os homens sobre as pedras». Os livros são boas pedras de contraste. No jardim não encontrei pedras que não as de calçada. Homens circulavam ou assentavam em minúcias de alheamento. Este ano, por via da chegada ao bairro do Espaço Llansol, a escritora sobrevoou a praça. Na véspera, ignorando que, para ela, «a ideia da poesia é a prosa», escolhi para levar apenas os livros de poesia e fiquei surpreendido: já enchem uma barraca. Queria pôr sobre a mesa negra apenas um livro por dia e convidar quem passava a entrar. Não era boa ideia, logo a realidade mo explicou. E depois também acrescentámos, a pedido, prosa e ilustração. Isto anda tudo ligado. Ou desligado: os folhetos ignoram as editoras e os livreiros que alinharam. «Faz-te conhecer pelos gestos de todos os dias; mesmo os gestos neutros, mesmo os inúteis», diz o Assis Pacheco.

Templo da Poesia, Oeiras, 21 Março

No cume do Parque dos Poetas desponta «Templo» que ainda não tinha visitado. Vista esplendorosa, horizonte esticado a verso do engenheiro, bizarra arquitectura cruzando insecto e nave, um vento de nos atirar para longe. Trocámos por miúdos o livro a que vínhamos, o navio dos de agora da LPO, para jornalistas curiosos e plateia rendida, prestes a zarpar. Andei por ali às voltas a tentar perceber a estranheza do lugar. Ecoou outra regra, tão boa, do Pacheco. «Saboreia os teus trajectos com uma paixão minuciosa».

Auditório Ruy de Carvalho, Carnaxide, 21 Março

Perante uma plateia calorosa, assistimos à dança, por vezes combate, das altas vozes com a música luxuriosa, enriquecida para a ocasião com o quarteto de cordas Naked Lunch. São variadas as paisagens sonoras, permitindo e até solicitando a dureza, a suavidade, a interpelação daas leituras, quando um corpo se desloca do escuro para chegar à frente e dizer. Aqui e agora, vestem-se os diseurs de personagens principais, primordiais leitores. Os poetas recolheram-se ao silêncio criador, depois de terem respondido às melodias lançadas, ainda assim conservando o que possuem de único, o que acrescentam ao hoje das letras. E acrescentam bastante: pensamento, ritmo, crueza, experiência. Dita aqui e assim, para palco e auditório, a palavra, o verso, o poema transfigura-se, ganha tonalidades, formas, um corpo distinto. Prevejo até que vá mudando de concerto para concerto, de uma audição para outra, mesmo em casa. Daí o diálogo que o livro procura estimular, com convite ao desenho, à colagem, às notas, ao constante regresso. (A foto de Vitorino Coragem reúne os «criminosos»).

CCB, Lisboa, 22 Março

Neste Obra Aberta (https://www.abysmo.pt/obra-aberta), gerido desta vez pela Dina Soares, cruzaram-se o [António] Valdemar, a interpretar Almada Negreiros como se de cidade se tratasse, desenhando com absoluta liberdade as personagens que a habitam, e a Aldina Duarte trauteando o luto e o amor e a espiritualidade a partir de Llansol (e outros), sem perder a raiz do fado. Gente assim, cruza tudo, merece um bairro de íntegros cidadãos onde se possa aplicar nova regra assispachequiana: «Vive direito. Vive claro. Evita enganar-te neste ponto.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Março

Manda-me o José Luiz [Tavares] relatos de triste episódio triste, passado com ele à porta da Casa Fernando Pessoa. Disparei mensagens na vã tentativa de impedir que se alastrasse o mal-entendido, que outra coisa não poderá ter sido.

«Passados instantes entrevi, afirma um Zé Luiz travado na entrada quando se preparava para ouvir versão da Tabacaria em crioulo «uma senhora de fogachos loiros nos cabelos, que entretanto descera até ao patamar da recepção, falar com o vigilante, acenando que não com a cabeça. Logo este se dirigiu a mim, que se encontrava do lado de fora, dizendo: «Lamentamos, cavalheiro, por razões de segurança…». […] Quando já ia embora pelo passeio do outro lado da rua, sorrindo como o Esteves sem metafísica, vi aproximarem-se duas senhoras, cuja tez ainda divisei no lusco-fusco de fim de inverno, e sem delongas sumiram casa adentro. […] Aconteceu num dia mundial da poesia – e sou poeta. Aconteceu na cidade de lisboa – e dediquei-lhe em livro um monumento de palavras intitulado Lisbon Blues.

Foi no bairro de Campo de Ourique, e estavam os meus livros numa feira no jardim da parada. Aconteceu na Casa Fernando Pessoa, e sou tradutor dele. Foi num dia mundial contra a discriminação racial e senti-me profundamente preto.» A sensibilidade não se ensina, cultiva-se. Lá diz o mestre, «pratica a arte da boa vizinhança: estás numa terra pequena, não sejas opaco».

Titanic Sur Mer, Lisboa, 22 Março

Quando me encontro perdido, não procuro orientação, mas jazz. Nenhuma sustância me explica o modo como as coordenadas da percepção se desdobram (para baixo?, para cima?) em sólido alicerce. De ponte ou arranha-céus. Arrasto vários pesos, o das tarefas cumpridas, o das inacabadas e insatisfeitas, o da chuva que por acaso me dissolve, o dos gestos neutros que escondem na sombra a agressão, o das contas e navalhadas por ajustar. Não tenho aqui o meu whiskey, deixei no bengaleiro o parco carisma, abanco de olhos na linha de terra do palco, no Titanic demasiado acima do gelo, e espero que passe, na paragem certa, a do autocarro, os Lokomotiv, do Carlos [Barretto], do José Salgueiro e do Mário delgado, mai-lo seu comemorativo «Gnosis», título roubado ao [José] Anjos.

Percebo de imediato a bússola, pois tocam com o corpo. O instrumento dissolve-se em cada qual para subir ao palco, este que desafia, que chama a si o outro, com arranques e riffs e batidas, usando as mãos, os braços, os lábios para definir o etéreo. «Cair com Mãos nos Bolsos» (todo um programa intransmissível), ou o «Porta Líquida» podem servir para começo de conversa. Eles riem e o diogo do sorriso logo se torna corda a ressoar a cumplicidade, gozo, desafio, o andalá que tudo resolvia nos tempos da rua. Mal me apanho a deixar-me ir, o rock ergue-se sacrificando à energia, desbaratando a dita, beliscando a pele que pede repouso.

Na noite longa longuíssima dos que partem tudo com um sopro, a boa criação dos malcriados que inventam céu quando o ar lhes falta, que descobrem degrau quando o chão se move, em escuridões deste calibre precisamos mais uns dos outros. A arte feita trampolim, a âncora de súbito evola-se nuvem.

28 Mar 2018

Blow Up de Antonioni e Hermenêutica

[dropcap style = ‘circle’] E [/dropcap] m Blow Up, de Antonioni, ficamos depostos no sentido daquilo que é o acto hermenêutico. O filme mostra a vida do fotógrafo Thomas, em Londres, em 1965-6, o período áureo da chamada swinging pop. Período em que Londres era considerada a mais avant-garde cidade do mundo. Nesse mesmo filme, quase no fim, podemos assistir a uma actuação da célebre banda Yardbirds, por onde passaram os guitarristas Eric Clapton, Jeff Beck e Jimmy Page (fundador dos Led Zeppelin). Nesta actuação já não está Eric Clapton, mas o seu substituto Jimmy Page.

E o filme começa com o fotógrafo a entrar no seu carro descapotável, de manhã, depois de passar uma noite a tirar fotos de objectos para uma revista de arte, dirigindo-se para o seu estúdio, onde estão modelos à espera para serem fotografadas. Vemos também duas raparigas que insistem com ele, para que as fotografe (uma delas é a jovem Jane Birkin), mas ele pede que venham mais tarde. Vai então fotografar a top model da época: Veruschka (é ela a fazer de si mesma). E esta parte do filme já foi considerada por várias revistas como a cena mais sexy de toda a história do cinema. Depois destas fotos, Thomas vai ainda fotografar outras quatro modelos, que acaba por despeitar e retira-se do estúdio para espairecer. Ficamos com a sensação de estar diante de alguém superficial e, sem margem para dúvidas, alguém que fazia parte do mundo da moda e da sociedade da época. Aliás, se o filme é baseado num conto de Júlio Cortázar “Las babas del diablo”, o protagonista, Thomas, é baseado no fotógrafo David Bailey, que era o maior e mais badalado fotógrafo da Swinging Pop, com inúmeros trabalhos para as maiores revistas do mundo da moda. Ele é responsável pela própria cultura pop londrina da época, que misturava pela primeira vez celebridades, modelos e músicos pop nos mesmos lugares, fomentando assim grandes eventos mediáticos.

 

É esta pessoa que, à procura de espairecer, vai dar consigo num parque nos arredores da cidade e vê um casal aos beijos, de pé, no meio da relva. Começa a fotografá-los, de vários ângulos, enquadrando também nessas fotografias as árvores e os arbustos limites. Por fim, a rapariga apercebe-se da presença do fotógrafo e corre até ele, que vira costas e desce as escadas que levam a uma das saídas do parque. Ela consegue apanhá-lo e pede-lhe o rolo. Ele não lho dá, mas diz que lhe envia depois as fotos. Ela tenta à força conseguir tirar-lhe a máquina, sem sucesso, e ele vai-se embora. Durante todo este tempo não se vê aparecer o homem que estava com ela, que era mais velho, e quando a câmara volta a mostrar o parque, e o mesmo enquadramento de câmara que antes apanhava o casal, não se vê mais o homem, como se ele tivesse fugido. A rapariga volta para o parque, atravessando toda a parte da relva onde antes estava com o homem e Thomas volta a trás e fotografa-a a correr, indo embora.

 

Mais tarde, quando o fotógrafo chega ao estúdio, a rapariga está lá à porta, o que muito surpreende Thomas, pois não lhe tinha dado nenhum endereço. Ela insisti nas fotos, que as quer. Entram ambos no estúdio. Depois de alguns jogos, Thomas decide dar-lhe um rolo, como se esse fosse o rolo das fotografias da rapariga aos beijos. Não se vê eles a fazerem amor, mas fica implícito na montagem do filme. E ela vai embora deixando-lhe um número de telefone (que se irá revelar falso, mais tarde). Depois disto, ele finalmente entra na câmara escura e vai revelar as fotos. Nesta revelação depara-se com algo estranho, como se a rapariga num dos abraços ao homem estivesse a olhar à procura de algo ou de alguém. Volta à câmara escura e revela novamente as fotos mas partes aumentadas das mesmas. Com isso consegue vislumbrar o cano duma pistola entre os arbustos, que estaria evidentemente na mão de alguém. De imediato telefona a um amigo, que já antes aparecera no filme como sendo editor de uma revista de arte, falando da sua descoberta e dizendo que tinha salvo a vida de alguém, pois se não tem aparecido naquele momento para tirar as fotos, provavelmente ele teria sido morto. O outro não lhe dá atenção nenhuma e desliga o telefone. Thomas volta para a câmara escura, faz mais ampliações das fotos e descobre, numa das fotos últimas que tirou quando a rapariga corria, aquilo que julga ser um corpo caído entre a relva e perto dos arbustos. Já é de noite, mas ele volta assim mesmo ao parque e encontra o corpo caído junto aos arbustos. Não tinha levado a câmara com ele e regressa ao estúdio. Quando regressa, o estúdio tinha sido assaltado. Estava tudo remexido, faltavam inúmeros rolos e as fotos que ele tinha revelado desapareceram.

 

Aquilo que está em causa aqui é o poder da revelação. À medida que Thomas vai revelando as fotos, ampliando mais as partes que lhe importam, mais se vai vendo acerca do que parece ter acontecido. O que parecia ser apenas arbustos, com o exercício do aumento da revelação, deixa ver que há entre os arbustos o cano de uma pistola. E isto é o que Heidegger faz em relação aos textos que lê da Grécia Antiga. Por exemplo, quando a tradição filosófica traduzia alethéia por verdade, Heidegger, no seu exercício de revelação, de aprofundamento da leitura, vai dizer que alethéia é uma palavra composta “a” (negação) + “lethe” (esquecimento) que quer dizer “desvelar” (des + velar); ou seja, a palavra quer dizer des-tapar, des-cobrir. Alethéia quer dizer que algo que estava antes encoberto, passa a ficar a des-coberto. Por conseguinte, Heidegger vai revelando mais, vai indo mais fundo na análise que faz, fazendo com que se veja o que não se conseguia ver antes, sem essa revelação. E a isto chama-se hermenêutica, o exercício de interpretar ou de revelar o texto. Podemos ver de modo muito mais alargado no texto “O dito de Anaximandro” (in Os Caminhos da Floresta, pp. 371-440, na edição da Gulbenkian, 2014, 3ª edição), onde Heidegger começa por colocar o excerto de Anaximandro em grego, seguido da tradução levada a cabo pelo jovem Nietzsche, em 1873, para depois nos “revelar” aquilo que ainda, segundo ele, ficara escondido. O exercício de pôr a descoberto aquilo que o texto esconde, mas que está lá como essencial, sem o qual ficamos apenas a ver arbustos onde estava escondido alguém prestes a assassinar outrem. Voltando ao Blow Up, se Thomas não faz esse exercício de revelação, não ficaríamos a saber o que na realidade se estava a passar no parque. Pois aquilo que parecia ser um casal de amantes num tempo idílico, era afinal uma emboscada, um plano maquiavélico para assassinar uma pessoa. Pôr a descoberto ou revelar aquilo que não se deixa ver por si mesmo é o que se chama acto hermenêutico por excelência.

27 Mar 2018