A doer, “Johnny Guitar”, de Nicholas Ray

[dropcap style=’circle’] C [/dropcap] omeço este texto acerca de “Johnny Guitar”, de Nicholas Ray, pela cena que irá influenciar todo o cinema posterior, principalmente a Nouvelle Vague. Trata-se da cena da luta entre Johnny “Guitar” Logan (Sterling Hayden) e Bart Lonergan (Ernest Borgnine), membro do bando de Dancin’ Kid. Ao bar do saloon, Lonergan começa a provocar Logan, obrigando-o a beber, até que este finalmente recusa e não resta outra alternativa que não a do confronto físico entre ambos, que Vienna (Joan Crawford), a dona do bar ordena que seja feita lá fora. Todos se dirigem para fora do bar à excepção de Dancin’ Kid e Vienna, que começam uma conversa de amor (por parte dele, ao que ela tenta furtar-se). O que seria normal nesta cena do filme é que a câmara seguisse a luta, que o espectador ficasse preso aos socos e pontapés trocados entre eles, mas vemos apenas o primeiro soco e a cena passa para dentro do bar, e passamos a seguir a conversa entre Vienna e Kid, escutando apenas o barulho da luta lá fora, por entre as palavras ácidas trocadas entre este casal de amantes. Para além da questão técnica inédita, da troca da atenção do espectador, o que fica claro é que a luta lá fora é para “meninos” – como se usava dizer em português. Lá fora, a luta é para meninos e a brincar, contrariamente a luta cá dentro é para adultos e a sério. A luta cá dentro é a luta do amor, a doer. E se ainda não tinha ficado claro até aqui, agora fica completamente claro que este western é um western de amor. E o amor de que aqui se fala é o amor em forma de paixão.
Já o escrevi aqui, a propósito de “In A Lonely Place”, que nos filmes de Nicholas Ray há sempre dois filmes em simultâneo, e neste caso não é diferente: o filme da contenda por causa da passagem dos caminhos de ferro, que vai trazer muita prosperidade e fortuna à dona do saloon, se não for obrigada a sair; e o amor. E digo assim, amor, com indeterminação, porque ele diz-se de inúmeras maneiras. O amor que cria o ódio, com a vontade de Emma (Mercedes McCambridge) – dona de um rancho e cujo irmão acaba de ser morto num assalto a uma diligência – de matar Vienna e Kid, que ela ama e não se permite admitir (e Kid ama Vienna). O amor que cria o rancor, de Kid por Vienna, por ela já não o ver como o via antes, antes de Johnny chegar. O amor que cria o querer de novo ser amor, isto é, a história de amor de Vienna e Johnny (tinham sido amantes até há cinco anos). E podemos passar a dizer amor com os nomes próprios: Emma ama Dancin’ Kid, que ama Vienna, que ama Johnny Logan, que não ama ninguém, ou assim parece ser. Há ainda o jovem Turkey Ralston (Ben Cooper), que também ama Vienna, como se fosse um prolongamento do amor maternal – ele diz-lhe que vai ficar ali com ela para a proteger, ao que ela lhe responde: “E quem vai cuidar de ti?”.
O filme é assim uma espécie de catálogo de amores. No presente, no passado e no futuro. Na realidade e no imaginário. Um dos filmes vai desenrolando-se através da ganância e do poder e o outro através do amor. Na verdade podíamos dizer com propriedade que o amor já tinha morrido. Quando o filme começa, o amor já tinha morrido, como Vienna diz a Johnny, quando ele lhe pergunta o que ela faria se o homem que ela um dia amou voltasse: “Quando um incêndio se apaga, tudo o que resta são cinzas.”
E é este amor, e só este, que importa a esta leitura. O amor que foi, entre Vienna e Johnny – cinco anos antes, em outra cidade – não pode voltar a ser, a despeito de Ray pôr no final os amantes nos braços um do outro. Não que não haja desejo, mas aquilo que os afastou estará sempre entre eles como uma burka que não se consegue despir. Pode haver uma noite, sim, mas no outro dia é o cheiro das cinzas que se começa a sentir. O amor foi. E o que foi não volta. A despeito de Ray pôr na boca de Johnny “Um homem tem de criar raízes em algum lugar, um dia.” Querendo com isso dizer que tinha mudado, que o homem que Vienna tem ali diante de si, já não é o homem que a deixou partir, há cinco anos. Pode ser.
Mas também a despeito de tudo isto, neste filme, o amor é algo que aconteceu um dia. O amor entre Vienna e Johnny – mais do que a luta entre Johnny e Bart fora do saloon, pois desta ainda temos um vislumbre – é algo a que nunca assistimos. Aquilo a que assistimos é ao ressentimento de parte a parte. Esse é filmado magistralmente, nos diálogos entre ambos, tanto na primeira noite em que falam, no saloon, quanto na fuga, depois de Johnny salvar Vienna do enforcamento.
Vienna, que não perdoa a Johnny tê-la deixado, pois não queria formar uma família, como se ela não fosse importante o suficiente para que ele deixasse de querer outras; e Johnny, que não perdoa agora a Vienna ter tido outros homens depois dele. Aliás, o saloon dela é a prova material de ter tido outros homens. E mesmo que o saloon arda, como acontece quase no final, as cinzas continuarão a habitar a memória. Johnny quer ter a certeza de que Vienna ainda o ama, e que o ama só a ele. Ao que ela responde: “Se ainda não tens a certeza, falar não vai adiantar de nada.” De facto, perante um amor partido anos atrás, quando há um regresso, por mais palavras que se queira, por mais que se necessite de palavras, como se elas exercessem alguma espécie de feitiço e fizessem desaparecer o passado – pois é disso que se trata, de querer que o passado não tenha existido, o passado da separação e o tempo que tiveram separados –, as palavras não adiantam de nada, se não houver uma predisposição para acreditar no que a amante nos diz. “Só te amo a ti.” “Os outros foram apenas a sombra da tua ausência”. O que está aqui em causa é que o amor em forma de paixão não admite outros. Que importa ao amor que os homens que Vienna teve – como Kid, por exemplo – foi porque o amor não estava ali? Para o amor, ele esteve sempre ali e ela é que não via. E não via, porque não sentia. É assim que o amor vê, e é muito difícil para quem ama não escutar esse modo de falar do amor. O perdão tem a ver com muitas formas de amor, mas não tem a ver com o amor em forma de paixão. A paixão não sabe perdoar, porque o perdão implica o reconhecimento de que ele foi traído. E para a paixão a traição é o maior dos crimes, pois é a prova de que ele não é único, como deveria ser.
Termino com a descrição de uma cena fantástica, com Old Tom (John Carradine), um dos empregados, que estava sempre na sombra, nos bastidores do saloon. Old Tom é atingido por uma bala, tentando proteger Vienna, e antes de morrer, nos braços dela, com todos os homens de McIvers à volta, diz: “Estão todos a olhar para mim. É a primeira vez que me sinto importante.” E morre. Old Tom representa, ao morrer debaixo dos olhares de todos, o que foi o amor de Vienna e Johnny, que é quando morre que se torna importante, debaixo dos olhares dos espectadores. O amor, em forma de paixão, morre como vive, a doer.

23 Mai 2018

Uma crónica (quase) sobre bola

[dropcap style=’circle’] N [/dropcap] ão costumo escrever sobre futebol. Nem com os meus amigos falo muito de bola. Gosto de ver um bom jogo, gosto quando o Benfica ganha, gosto sobretudo de ver a alegria que invade as ruas quando os adeptos de um clube que ganha campeonato ou taça saem para festejar. Não gosto do que gravita em redor do campo e que de certo modo serve de lume brando entre o apito final de um jogo e o inicial do próximo. Os programas sobre futebol são demasiados e demasiado longos. Os formatos são previsíveis e desinteressantes: um painel de “peritos” – vulgo caceteiros profissionais e caras-de-pau encartados – insultam-se hora ou hora e meia perante a anuência complacente de um “moderador” – pago para evitar que cada programa desemboque numa batalha campal. É mais edificante e muito mais interessante assistir a um documentário sobre sexo entre insectos exóticos.
Esta semana, no entanto, acabou por ser de uma invulgar violência, mesmo para os níveis a que nos habituámos. Meia centena de encapuzados invadiram o centro de treinos do Sporting para “exprimirem o seu descontentamento”, como me foi dado a ler em entrevistas com a rapaziada que lida mal com o insucesso. Como com tudo quanto é bola, foi dada uma ampla cobertura noticiaria à coisa. Todo e qualquer bicho-careta que tivesse relevância mediática foi ouvido exaustivamente. Até o presidente da Assembleia da República disse umas banalidades sobre o assunto. O país ficou reduzido a uma tasca a céu aberto onde todos se acotovelam para vociferam as suas opiniões. Portugal, quando toca a bola e doenças, é um país de especialistas.
As televisões, reféns das audiências, ofereceram-se para apresentar em directo o mais pobre espectáculo de pirotécnica possível; vídeos de telemóvel em loop horas a fio, comentadores de todas as especialidades imagináveis, rodapés pejados de erros ortográfico-estagiários e a denunciarem o caos instalado no país. Um chorrilho pastoso de trivialidades desfiadas como se estivéssemos a assistir a um 9/11 em solo luso. Cada país tem o terrorismo possível.
O rapaz Bruno de Carvalho, dotado de uma demasiado óbvia instabilidade mental para o cargo que ocupa, falou, falou, falou. Surpreendeu apenas aqueles que esperavam dele alguma contenção verbal e um módico savoir-faire na altura de apaziguar os ânimos. Como qualquer narcisista profissional, a gravidade do assunto não o melindrou um instante que fosse; a doçura do holofote apazigua qualquer tragédia. Tudo é forma, imagem, prestação, eu. Nada é conteúdo. Dir-se-ia do rapaz Bruno de Carvalho que seria possível vê-lo feliz da vida num velório desde que estivesse a ser filmado. Os psicopatas narcisistas pululam um pouco por todo o lado, mas são particularmente felizes em posições de topo nas quais podem exercer poder e crueldade sem perder um minuto de sono à noite. Uma grande empresa não dispensa um punhado de psicopatas para posições de chefia. Dão-se particularmente bem como CEOs e gestores de recursos humanos.
Entretanto, o mundo lá fora continua a girar. Na sexta-feira passada, mais um tiroteio numa escola dos Estados Unidos, país onde há tantas armas como pessoas. Os republicanos sacaram previsivelmente da cartada “thoughts and prayers”, resposta pronta para qualquer tragédia evitável. Um utilizador do twiter meteu uma foto com dois gatos: “I named my cats ‘thoughs’ and ‘prayers’, because they are useseless”. Felizmente há pelo menos duas Americas: a dos que querem mais armas e a dos que querem menos violência. Cada país devia ser muitos.
Por aqui, não é que esta e outras notícias não tenham sido vistas ou comentadas. Mas não logram sobreviver à asfixia que se abate sobre o rectângulo quando o assunto é bola. A cura do cancro não teria força para competir com uma final da taça de Portugal. A descoberta de vida alienígena não é nada comparada com a lesão de Jonas. O apocalipse zombie, perto de um confronto entre claques, parece coisa de meninos.

21 Mai 2018

Melancolia do fim

[dropcap style≠‘circle’]H[/dropcap]á horas que olho para conteúdos cinematográficos. Não me mexo a não ser para me virar. Quando viajamos, há uma mesma apresentação encenada do que está fora. Há um guião. Deslocamo-nos, contudo. Quando, ao ver conteúdos cinematográficos, não. A viagem no tempo é numa dimensão diferente. O tempo excede os conteúdos reais. É a verdadeira viagem. O passar das hora do almoço para a hora da tarde. O passar o serão logo a seguir ao jantar com os sons da vida: de quem chega a casa, liga a TV, as crianças que gritam e correm. Pisam com convicção o corredor. A mesma dimensão está presente, quando nos leva ao passado, ao princípio dos princípios. Há muitos princípios e muitas primeiras vezes. Não são sempre auspiciosas. São más. Podem ser muito más. Podem ser boas. Mas há um princípio de entusiasmo. Não é por nenhum conteúdo que objectivamente possa ser descrito enquanto tal. É um conteúdo fascinante pelo tempo que o traz. Há um encantamento com o fascinante. É uma configuração temporal na época das nossas vidas. A juventude transfigura tudo na primavera ou no verão da existência. É tudo de véspera. Mesmo sem possibilidades enormes ou oportunidades objectivas, filtra todo e qualquer conteúdo, sem excepção, com a compreensão da véspera auspiciosa do que aí vem. O que aí vem vibra com a excitação do tempo para vir. O tempo para vir é como na véspera de natal, na véspera da ir de férias, na véspera do primeiro dia de aulas, na véspera da inauguração de um tempo que traz consigo ascensão e um deslize velos em direcção a um fim. Este fim não é lá no fundo. É uma descida para de novo ganhar balanço. É o entusiasmo de quem cavalga o cavalo do tempo, de quem desce e sobe vagas, de quem encosta abaixo esquia ou nas dunas se atira para sentir cair, o que justifica toda areia mordida. O fascinante é o modo como o futuro acontece para quem tem futuro. Não há fascínio, embora possa haver espanto, na sobrevivência, muito menos numa sobrevivência a si próprio. Quando todo o futuro está atrás das costas, não há fascinante, nem encanto, nem expectativa, nem esperança. Há o que é e o que é tem sido como sempre e repetir-se-á assim. Não é o pior. O pior é não ser enganado, o que pressupõe que o fascinante do feitiço deixa de actuar. Perde vigor. Às vezes voltamos atrás como se arrancássemos os olhos da cara de alguém para os inserir nos nossos. É como se assim víssemos uma rua pouco glamorosa, mas onde há antecipação, onde há ainda véspera, onde há esperança e a expectativa da mudança não é a rotina inultrapassável de tudo sempre cada vez mais na mesma. Onde está essa renovação do olhar que antigamente era tão poderosa que era mesmo o modo de olhar para as coisas. Agora, tudo estafado na rotina da repetição não vem sequer uma leve brisa que se levanta e nos faça olhar para outro sítio. O pior de tudo não vem com o tempo. Não se trata de quantidade de tempo. Pelo menos não no sentido em que se tratasse de um aumento homogéneo da quantidade do tempo. A nossa vida é marcada por épocas. O nosso tempo tem momentos de viragem. Datamos assim autobiograficamente sem sabermos bem como a nossa história como a história das nossas decepções, das nossas desilusões, das nossas perdas, das nossas mortes. Em cada um desses momentos perdemos a possibilidade de sermos objecto do fascinante, do feitiço que nos atrai para fora do sítio imóvel do presente. Para haver grandes decepções houve grandes esperanças. Quanto maior é a esperança maior é a decepção. Os espíritos jovens são formalmente obrigados a viverem montados no haver que lhes dá futuro. A sobrevivência é resistir a essa decepção. Tudo muda para pior. Nada fica como é. É possível, contudo, conviver com a derrota. Mas é à espera, à espera de que tudo acabe. Todo o fim é sempre redentor.

18 Mai 2018

Quarto e último dia das comemorações

[dropcap style≠‘circle’]P[/dropcap]ara o relato do dia 20 de Maio de 1898 juntamos o publicado nos jornais de 22 de Maio, O Independente (que reaparecera a 12 de Setembro de 1897, é redigido pelos professores do Liceu de Macau, João Pereira Vasco, Horácio Poiares, João Albino Ribeiro Cabral e o poeta Camilo Pessanha, tendo a redacção e a administração sediadas no n.º 2 da Calçada do Gamboa) e no Echo Macaense (com o editor Francisco Hermenegildo Fernandes, que retomara essas funções em 11 de Abril de 1897), assinado por Luiz Gonzaga Nolasco da Silva. O Provir, jornal publicado em Hong Kong não traz registo deste dia 20, quando teve lugar a colocação da pedra fundamental para a estátua de Vasco da Gama.

Pela linda e grande alameda passeia muita gente juntando-se para a cerimónia de inauguração ao longo de um largo entre a Avenida Vasco da Gama e a Estrada da Vitória. Às 5 da tarde procede-se ao lançamento da pedra fundamental para o monumento dedicado a Vasco da Gama na Avenida do mesmo nome, outrora Campo da Vitória, escolhido quase a meio da nova Alameda e de frente ao monumento da Vitória alcançada pelos portugueses de Macau sobre 800 holandeses em 1622.

A pedra fundamental está suspensa no ar por uma corda, a um metro de altura do nível do chão, e por debaixo dessa pedra está aberto um fosso. Presentes encontram-se S. Exa. o Sr. conselheiro Governador Galhardo, S. Exa. Reverendíssimo o Sr. Bispo diocesano, D. José Manuel de Carvalho e reverendo clero, o juiz de Direito Ovídio d’ Alpoim, o Presidente do Leal Senado António Joaquim Basto, o inspector Barbosa, o Director das Obras Públicas Abreu Nunes, o Conde de Senna Fernandes, o 1.º intérprete sinólogo Carlos d’ Assumpção, e muitos outros funcionários públicos civis e militares, alguns estrangeiros e muita gente do povo.

Depois de se proceder à leitura da acta e de ser assinada por muitos dos presentes, é esta encerrada numa caixa de cobre (outro jornal diz, num cofre de bronze, de pouco mais ou menos três decímetros de comprido e quinze centímetros de largo), juntamente com uma colecção de estampilhas e bilhetes-postais do Centenário, uma capa e duas primeiras páginas do comemorativo Jornal Único, um número do Boletim Oficial, um exemplar do Echo Macaense e outro d’ O Independente. A caixa, depois de soldada a chumbo, é enterrada no fosso, e em cima dela colocam a pedra fundamental, onde assentará o monumento, sendo a primeira colher de cimento posto por S. Excelência o Governador. São tiradas fotografias no momento em que se procede à colocação da pedra fundamental para o monumento de Vasco da Gama. A estátua, só uma dezena de anos depois.

 

Discursos

 

Durante esta cerimónia, a que assiste o Bispo de Macau, os seminaristas entoam o hino do centenário, o que dá maior solenidade ao acto e imprime uma suave comoção em todos que o ouvem. Queimam-se muitos panchões e os seminaristas de S. José entoam uns cantos patrióticos.

Depois, o Governador, num breve mas sentido discurso, manifesta bem <os sentimentos que lhe vão na alma, de leal e antigo português de lei, que sente o mais íntimo orgulho de pertencer a essa nação de heróis, de que Vasco da Gama é uma das suas maiores glórias e ver, pela terceira vez em quatro dias, reunida a cidade de Macau para o glorificar>. Este discurso, que impressiona o auditório pela convicção com que são ditas as palavras, faz como que nascer em nós a esperança do rejuvenescimento da Pátria portuguesa que, naquele momento, se nos afigura representada, em todo o seu antigo esplendor, no Sr. Conselheiro Galhardo.

Em discurso primoroso na forma e no estilo, o Sr. Dr. Ovídio d’ Alpoim descreve alguns dos episódios mais dramáticos da viagem da Índia. Narra os trabalhos por que passaram um punhado de marinheiros portugueses que pisaram primeiro o solo indiano, e faz notar a energia e tenacidade com que Vasco da Gama venceu todas as dificuldades. A sua palavra nervosa e incisiva mostra-nos, como se fossem desenhadas na tela, essas cenas horrorosas de tormenta, em que <o mar e o vento eram tantos que os navios metiam as postigas debaixo d’ água, e as tripulações empalideciam de susto quando o mar lançava, com estrepito, sobre o tendal, os painéis que as naus levavam no alto dos castelos, à popa, pintados com a imagem dos santos do seu nome>. Lembra também <o terramoto que agitou o mar da Índia quando Vasco da Gama o trilhava pela segunda vez e este almirante, imagem da bravura épica do povo português, acreditou e disse que até as próprias ondas tremiam com medo nosso!> Fala da lealdade deste povo de Macau à coroa portuguesa, única colónia que nunca arreou o pendão das quinas durante os sessenta anos do nosso cativeiro sob o jugo castelhano e pode dizer-se que Macau é filha dilecta da sua mãe pátria, por ser o monumento imorredoiro do antigo predomínio de Portugal no extremo oriente. Faz lembrar aos circunstantes que, naquele momento, mil esquadras de todas as nações se balouçam no formoso Tejo, não para metralharem <a cidade de mármore e de granito>, mas para compartilharem connosco dos festejos da comemoração deste quarto centenário; porque todas essas nações, mais do que nós, têm colhido o fruto das nossas descobertas marítimas. Levanta por fim um Viva a Portugal, desejando que esse brado, que lhe saia da alma, pudesse ressoar no coração da Pátria, que tanto estremecia.

Não podemos dar uma pálida ideia deste esplêndido discurso, que foi um grito patriótico que calou no ´animo` de todos. O Sr. Dr. Alpoim foi muito aplaudido e cumprimentado pelo selecto auditório, que o ouviu encantado”, descrição d’ O Independente. Complementa o Echo Macaense, “Foi o discurso acolhido com entusiasmo; foi o orador cumprimentado pelo Sr. Governador Galhardo e por muitos cavalheiros e o Bispo deu-lhe um abraço.”

Como mais ninguém tomasse a palavra, o Governador dá o acto por findo.

À noite saem os alunos do liceu com uma orquestra, indo tocar e dar vivas em frente de diferentes casas, sendo uma delas a do Sr. Presidente do Leal Senado.

Assim terminam em Macau as festas do centenário da Índia, não tão esplêndidas e faustosas como os seus habitantes desejavam e as circunstâncias sanitárias do país não permitiram, mas cheias de entusiasmo e de ardor patriótico, como se devia esperar dos habitantes desta cidade, dos seus ilustres funcionários e do valente chefe da colónia, o herói de África, o Exmo. Sr. Coronel Galhardo. Nascido em Lisboa em 1845, estudara no Colégio Militar e Escola do Exército e em 1895, é coronel comandante das forças expedicionárias em Lourenço Marques quando termina com a revolta de Gungunhana, chefe dos Vátuas.

Vasco da Gama, como representante real da aventura marítima portuguesa do século XV, encerra o ciclo do desbravar o desconhecido Oceano Atlântico, e realiza a inaugural viagem para o novo mundo, possível pelos conhecimentos técnicos e marítimos dos chineses, que os levara no século I ao Golfo Pérsico.

Para encerrar esse IV centenário só falta o Jornal Único sair neste dia.

18 Mai 2018

Do Silêncio

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez-se silêncio nestes tempos, um silêncio sem vitória, todo repleto de ruído surdo, de zombeteiras acústicas de formatos diversificados com caudais sonoros interditos ao canto. Um novo silêncio nasceu sem que saibamos defini-lo, é uma caixa de vácuo vazio onde não esperamos encontrar serenidade, e voltando para a sinfonia das teclas que escreventes informam coisas de viva voz, não há muito mais que zumbidos balbuciantes de fora para dentro em cada um de nós.

Assim como as sílabas se juntam, há sempre mais vogais, interjeições, diálogos, contactos, roncos, mordaça. «O grande ouvido» gera muita dor, por isso os músicos se ausentam com formas tão velozes, o arfar da melodia vem-lhes de dentro e clamam por ser escutados no muito vigor da maravilha, e se não forem músicos sempre podem produzir sons, que enganam a arte de saber escutar o que de dentro não vem ao nosso encontro. O inverso de um verso não é por isso mesmo o anti-verso, versa outra característica dissonante da rima, mas remando em várias fontes de conjugação consentida.

Estamos surdos em muitos pavios do nosso formato, da língua ao trato! Somos uma fórmula falante equipada de sinalética, semió(p)ticos, semi-audíveis, simiescos. Todos os sentidos se juntam para formar um aglomerado cujo encanto é destruído na junção dos elementos que o geram: o resultado é atoarda quando eles não se unem para a causa transparente.

Comovo-me com as inúmeras fissuras do grotesco. São alpendres da nossa mais funda inocência, são os nossos mais atávicos sentires todos juntos sem desejarem ser unidos na outra saga, a dos fluídos mais bonitos. Nós gostamos deles, mas temos medo de assim permanecer para sempre.

O silêncio é uma sentinela de lonjura, não tem receptor; nós procuramos a fonte, mas não nos vem buscar, nós caminhamos para esse país como se ouvíssemos ainda o acorde de algo inominável. Não tem voz, não tem vez, chega quando vem, e não se crê que alguma vez lá estivéramos. O silêncio procura-se quando a frágil estrutura das funções nos deixa a sós no labirinto.

Maio não silencia, a vida mora nos alpendres do nascimento em sons vários, a vida grita, chilreia, implica; é um manto de audíveis sinais desencontrados, e nós, baixamos o cansaço perante a maravilha, estamos aquietados de tapetes de flores, e em nada disto o silêncio vê alegria . É graça tanta que nos surge em coma, em dança, em orgia, nós buscamos a onda grave que na bolha de água apenas tenha o «O» esse som das estrelas e como não somos Ave, a nossa vida dentro do sonho, congela.

O frio tem um som, o gelo um cheiro, a vida chama por nós e vamos na maré cheia. O vento tem também música, uiva, consome, articula, redemoinha, e circunda os corpos pesados de silêncio. Escutamos por fora a ameaça ao repouso e respondemos por dentro com arquejante abandono.

Estamos primevos e fartos: descarnados! Contemplamos o plátano, as raízes densas e sentimos beijos nas passagens – nós, aqueles que só queriam silêncio – estamos sitiados. Com tanto som, ruído e movimento, há um tempo de abundante desejo que sendo mais que repouso não deve conter a marcha deste solfejo.

Mineral, a pedra é quem nos pode suportar na graça de não estarmos na Terra. Um mar de pedras arquejantes e limpo, sem os cílios por onde as lágrimas passam, a autêntica antecâmara de um vazio lunar, coberto de sem som, um postigo iluminado de ausência, uma tumular descarga sem flacidez, só, hirta como o vácuo do Universo à nossa beira. Coberto de magistral silêncio.

Não estamos sós, estamos isolados, mas sós não estamos no isolamento predestinado. Estamos assim como quem não gere mais que a condição, e dela não saímos aos gritos nem nos é dado uivar de desespero nas estepes; parece tudo povoado, e em algum lugar nos escutarão os mais avisados de uma qualquer predação.

Saímos como os gatos com a bosta coberta, enterrada – não haverá perseguidor que fareje a zona viva – pois que um gato não deixa de si mais que o enigma de estar vivo e, tão perto do silêncio, que entendemos que é um deus percorrendo o estrondo dos caminhos. Haverá nas suas pupilas lancinantes tanto sossego como diante dos feitiços… já não estamos na órbita, e somos paralisados perante qualquer grito!

Quando tudo urge, tudo tem um mote, quem o perde morre perdido, quem não escuta não o sabe, nem tem da rotina nenhum sentido, faz coisas que de tão feitas se desfazem e continua intacto na sua jaula de cantares. É um símio sem alma, uma longa cauda, atrás, o coxis, se atrofiou para a tapar.

Não silenciamos o silêncio, que de perfeito não espera exercer mais que uma visitação a que não damos respostas na supra abundância da tão nossa soberba atenção: a quê? a quem? Desvendamos paragens mas elas são de ninguém. Tocamos. Tocamos alguém. Fazemos dele música e tocamos mal, tocamos carregando e não escutamos o que dele vem.

– Sem nada para tocar – que tocar envolve ser tocado, dar a música que somos em composição, as trevas do ruído são avaras, dissonância total! Silêncio, tudo o que se espera um dia alcançar.

Silêncio e nada mais.

 

 

17 Mai 2018

O que volta em farsa

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ambém a mim aconteceu que a minha vida mudou no dia em que me vi desintoxicado do frenesim da paixão amorosa. Até aí frequentei o mundo das cabeçadas a esmo.

Não, não renunciei a nada, nem me vi desprovido de entusiasmo. A grande mudança foi ocasionada simplesmente por uma alteração na minha percepção quando comecei a distinguir entre o entusiasmo e a paixão e separei uma coisa de outra; foi como conseguir alternar finalmente o dia e a noite, ao invés de tudo me parecer governado pelo regime nocturno como antes.

Depois, deixei de idolatrar a paixão, ou de a isolar como exclusivo motor do desejo, para começar a desviar parte da sua energia para outros âmbitos fora de mim. Para a arte e a escrita, é um supor. Para o amor filial. Para a responsabilidade, uma descoberta em mim tardia. (Hoje, ser responsável permite-me ir mais a fundo quando folgo com uma irresponsabilidade, é mais pertinaz o crime daquele que habitualmente pratica o bem; mas isso não se sabe antes, quando apenas petiscávamos na irresponsabilidade por nos faltar a coragem para sermos responsáveis.) E logrei aí o movimento de quem converte um deus monogâmico às vantagens do politeísmo.

Ganhei nesta minha desintoxicação uma tremenda qualidade de vida, ao aceitar a imensidão de um mundo fora de mim e que eu não tenho de possuir tudo. Primeiro passo para começar a desejar poucas coisas. Os “votos de pobreza” podem mesmo dar uma tremenda liberdade.

Por outro lado, a vera pobreza avivou em mim o mecanismo da memória, ou a consciência da sua importância para nos mantermos à tona de uma época naufragada na irrelevância, como diria o Castoriadis.

Os desequilíbrios da vida, para quem não tem bens de raiz e tem de experimentar o que a vida vai dando, trazem muitas oportunidades para hipotecarmos x e y. Aprendemos rapidamente que só uma coisa nos faz realmente falta e que a essa não podemos hipotecar: a memória.

Ora, ficamos atolados na mais aviltante das sociedades de espectáculo quando tudo se reproduz como se memória não houvesse.

Piero Manzoni nos anos sessenta assinava as peanhas que os visitantes da galeria galgavam para fingirem que eram as esculturas. Vinte anos depois Philippe Thomas, escudado por detrás da agência que fundou, Os Ready-Made, editava um cartaz propondo a seguinte fórmula: “História de Arte Procura Personagens… não espere por amanhã para entrar na História”, e na imagem via-se uma fila incompleta de grossos livros de arte, sendo cada leitor convidado a imaginar o seu próprio nome na lombada de um livro, ao lado daquele onde já se lia Pop Art e Warhol”. Pagando, está claro.

No caso de Manzoni ainda tínhamos uma natural extensão dos “efeitos Duchamp”, com a agência Os Ready Made já estamos diante da degeneração de um acto criativo em dejecto comercial. É o triunfo da farsa em que tudo volta, segundo Marx.

Contudo, já Duchamp embarcara num equívoco. Reclamava ele: “Eu dou aquele que observa (a obra de arte) tanta importância como àquele que a realizou”. A dúvida coloca-se em saber se em trocando de posições haveria depois alguma coisa para ser observada. Talvez o observador afinal não saiba executar a escultura de Rui Chafes. Esta foi uma das ilusões do Modernismo mas como todas as coisas iniciais eram então necessárias.

Voltou a coisa em farsa.

Vem isto a propósito do festival de Eurovisão, a que assisti ontem, e do seu desfecho.

Foi um espectáculo agradável e houve duas canções boas, a lituana e a alemã, e a representação portuguesa esteve muitos furos acima da sua classificação. Mas a soma do voto dos júris deu a vitória a uma assim-assim, a da Aústria (que era mais do mesmo e lembrava-me John Legend), tendo ficado em segundo e terceiros do piorio que lá se encontrava. Depois a votação popular esclareceu-nos como o “princípio da realidade” é o ocaso da memória afogada na latrina das galinholas.

Ganhou Israel e uma canção e cantora que só imitam em farsa grotesca o que já foi sublime.

Há 25 anos apareceu uma cantora que além de uma grande compositora revelou dotes performáticos notáveis e que pegou na pop e na música electrónica para a trançar com enorme riqueza expressiva em alguma música contemporânea. É um marco de excelência. Falo da Bjork, um caso de luxo criativo.

Ninguém deu conta porque a sociedade telemática nos mantém reféns do eterno presente das sociedades orais, mas a miúda de Israel (de uma gentil feiura) procurava imitar em tudo a Bjork, só que agora em kitsch, em farsa grotesca, do penteado (lembro-me do desgosto que tive quando a Bjork teve aquele penteado, que odeio), ao figurino, e até aos experimentos vocais. Embora tudo o que é excelente na outra aqui seja ridículo, pura escória.

Se as pessoas se lembrassem da Bjork quem votaria naquela paródia grotesa, mesmo que tingida de humor?

Coitado do Sobral, na véspera havia declarado que a canção de Israel era uma merda e depois teve de ser politicamente correcto. Não lhe caíram os pergaminhos mas deve ter sentido um profundo alívio por se descartar daquele meio.

O que se passou ontem é um sintoma de algo há muito diagnosticado. A única coisa que choca foi verificar que a maior parte daqueles cantores tinha estudos musicais “desde criança” aceitou interpretar canções da treta. Gostaria de não ter de saber que no Conservatório estudam Messiaen e que ali se entregam à vulgaridade, espetando a navalha nas costas da arte. Tudo em nome da fama, que como diria o Camões é “a vã cobiça dessa vaidade a que chamamos fama”. Eis a prova de que o Mercado não tem atributos, é como o tamboril – o gosto é-lhe emprestado.

Era o mesmo comigo quando me apaixonava a torto e a direito, como o feio tamboril. Agora felizmente já separo os ímpetos do entusiasmo da filigrana da paixão.

16 Mai 2018

Nietzsche

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ui para Lille. Lá, ao que parece, existe a melhor Faculdade de Filosofia do país, no rasto da estudante que só lhe interessava, afinal, saber dele: está muito bem, por mim nem uma vida chega para tão grande empreendimento. Foi pelos vinte anos que também li a sua poesia numa maravilhosa e única, creio, tradução de Paulo Quintela e até hoje ainda não tenho uma dimensão exacta do choque provocado.

Era assim como se não tivesse tamanho… oxigénio, aquilo era de uma beleza que só com iniciação poderia ser completada. A Teologia pareceu-me a mais directa passagem para ele, independentemente da esfera gnóstica parcialmente oculta nas suas paragens.

Como naquelas máximas: não pronunciar… em vão… sim, eu também não pronunciava o nome dele, no entanto, permanecia em mim uma inquietação de fogo, aquela chama que me prostrava logo que chegava mais perto. Que a beleza é terrível, já Rilke o pronunciara, mas nem sabemos a dimensão de tanto horror dentro do próprio fascínio. Mais tarde, Schiller ajudar-me-ia a repor aquela opressiva sensação, numa obra chamada «Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico», e por ele consegui de novo adentrar-me. Mas, se é certo que um só homem não justifica aparentemente cinco anos de estudos, mais certo é que as paixões juvenis podem acabar depressa. O que pode ser mais próximo disto? Um curso de Vinhos, Enologia. Eu entendo todas as formas de desistência. Até entendo que haja maldições que passam de geração para geração.

Demorei-me a imaginar como seria este ser, em que contexto nasceu, o que seria importante para que tal pessoa fosse possível, quando nasceu, se tinha astro – astro tinha, era de Outubro, 15, Balança, portanto mais intrigada fiquei. Pastores protestantes, aquelas mulheres, mãe, irmã, mas nada disto resolve a indagação. Há naquele homem uma força que sentimos e uma delicadeza que nos surpreende e seduz, há até uma monstruosa galvanização de interditos, uma exasperada riqueza cósmica que não é fácil de expressar seja por quem for. Assim, dele, sempre guardei temor. O que leva um filósofo da sua estirpe a escrever aquela poesia – que posso melhor avaliar do que a sua carreira de filósofo – pois que geralmente são até posições que não raro se antagonizam. E é o Nietzsche poeta que me interessa aqui ressalvar. E mais, é destas matérias e cursos tão em desuso que nos interessa esclarecer pois que sem eles pomos em causa a nossa própria acção civilizadora.

Lembro-me sempre de Lou Salomé e do primeiro encontro entre ambos numa Catedral onde disse isto: de que estrelas tão belas caímos!? Lou achou aquilo muito pomposo e sorriu; depois, ele no grupo foi um complexo elemento tendo-se apaixonado por ela, o que o fez afastar-se de forma um pouco revanchista. A sua voz era estranha e mesmo os seus alunos mencionavam tal incómodo mas sem dúvida que a sua presença neste grupo foi das coisas boas que o mantiveram, não havendo no entanto uma opinião consensual ou debatida a seu respeito entre todos. Ele continuava em tudo demasiado formal: este homem, que enlouquecerá, estava trajado de uma protecção que parecia não o identificar. Começou como filólogo, foi crítico cultural, e até compositor, mas é a sua dicotomia que o toma, Apolíneo versus Dionisíaco e a debandada da morte de Deus, o seu niilismo que muitos insistem em dizer que não é, e toda a escrita que raia o paranormal. Estudar Nietzche, reconheço que seja até um exercício que requeira grande estofo moral e uma vida de quietude, pois que tudo ali está em chaga, no limite, na transcendência e no descrédito profundo da sua própria exaltação trágica. E se a música o faz ainda compositor prussiano, a inimizade com Wagner torna a melodia mais patética. Desiludido e ferido, ele arrefece à medida que passam os anos. Controverso, brilhante, e por fim frágil, a sua saga é sem dúvida a de um grego, a do antigo professor de crítica textual. Mas aqui releva-se o poeta imenso que foi, a natureza alquímica de uma danação, a beleza indómita e a incontornável grandeza da sua alma. Ele afirma que o seu estilo é uma dança, já em Zaratustra o reafirmara: Vede como me sinto leve, vede voo, vede sobrevoo, vede! Há em mim um Deus que dança!

Ele é consciente da enorme distância que o separa de tudo, de todos, e escreve desassombradamente, intensamente, sem êxito visível pois que pensa que a distância a que se encontra o invisibiliza. Ele não pára de trabalhar arduamente, da forma que sabe, e colapsa, talvez de esgotamento nervoso, enlouquece, eletrocutado pela energia que transporta. Sabe-se vindouro, muito para lá do tempo da sua marcha. Mal interpretado mais tarde por aqueles que não sabem distinguir, por esses maus artistas que desejam um palco maior, e associado a afrontas das quais o seu sentido visionário teria desconhecido o grosseiro equívoco: tampouco me agradam esses novos especuladores em idealismos, os antissemitas que hoje reviram os olhos de modo cristão-ariano-homem-de-bem, e através do abuso exasperante do mais barato meio de agitação, a afectação moral, buscam incitar o gado de chifres que há no povo.

Vontade do Poder e a roda gigante do Eterno Retorno guiam alguma da sua marcha como relâmpagos, e o que faz a família não nos deve interessar, se um homem se encontra em registos tais. Ainda hoje nos perguntamos quem pode acolher gente assim em caso de verdadeiro colapso, para onde irem, quem os tratará. Que entendem os outros deles? O que lhes aconteceu ao certo? Vemos como é profunda não só a eternidade mas também o abismo. Por isso fiquei de certa forma aliviada quando Lille terminou nos planos peregrinos de uma jovem mulher que deve sem dúvida dedicar-se a outras coisas. Não há cursos sobre Nietzsche, seria como ir estudar os Livros Sagrados em frases exegéticas, uma vida só não dá para isto. Sem este episódio, também eu, que não falo do que não sei, e pondo-me sempre na posição de que sei pouco, ousaria pronunciar em vão tal nome.

Ressalve-se «Poemas em Prosa» como a mais impressionante força poética que me foi dada sentir, sentir… não sei se isto é sentir, estamos para lá das sensações, é certamente aqui acrescentado ao registo do entendimento uma área desconhecida que perdura como se antevíssemos mais Homem para lá das barreiras da sua própria definição. Lille fica para trás, ele, que tanto amava França e Itália e teria certamente esse fundo meridional que tantos de nós não soubemos ver. Era esse meio-dia a sua hora, o tempo sem sombra, o seu desassombro. A noite para mim?… Mantém-te forte, meu valente coração! Não perguntes: por quê?-

É o poema infindo de um Pastor cheio de altura, quando desce traz os decálogos, mas o cume é a sua Casa, a sua mais notória natureza.

15 Mai 2018

Quer o número de contribuinte na factura? – Danos e virtudes, de Ivone Mendes da Silva Segunda parte (e última)

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e é natural que o ambiente do livro seja na sua maioria o quotidiano, porque é esse o ambiente natural da vida humana, Ivone Mendes da Silva não deixa, contudo, de precisar a estranheza que isso mesmo causa em quem lê.

Do mesmo modo que há uma década o escritor Rui Nunes afirmava numa entrevista que a sua escrita era de matriz realista, salientando que “há é vários realismos”, também podemos dizer acerca da escrita de Ivone Mendes da Silva que é de matriz quotidiana, “mas há é vários quotidianos”, como é evidente – e ainda mais quando a própria autora não deixa de sublinhar bem sublinhado o que entende por esta espécie de cartografia das manhãs e dos restos do dia: “Muito mais é o que imagino do que aquilo que vejo.” (frs. 159 e 161 e 202).

Mas a questão do quotidiano da sua escrita não deixa de poder ser um entrave à sua compreensão – ou pior ainda, causa de distorção – e, por isso mesmo, logo no início do livro, a autora mostra que sabe disso muito bem e termina o fragmento 11 de modo irónico: “Perguntaram-me um dia se eu não me cansava de escrever sobre o quotidiano. Eu respondi que sim. Que me cansava muito.” Por outro lado, a autora sabe que não pode mudar a sua escrita, não pode mudar o seu modo de olhar o mundo, de olhas as casas, de ver “a mulher afastar-se em direcção ao sábado dela com um saco em cada mão” (fr. 104). Aliás, a própria forma da sua escrita, o fragmento, enraíza longe no tempo, enraíza naquilo que ela é: “Tenho uma história antiga com os fragmentos.

A maioria resulta de textos que fui cortando até não restar mais do que uma breve estrutura sintáctica. Uma frase segura.” (fr. 124) Talvez não se possa escolher a escrita que se faz, como não se pode escolher a vida que nos calha, apesar das decisões que têm de ser tomadas ao longo dela.

Por outro lado, a escrita de cada autor deriva também de uma técnica que se adquire, que se conquista com o tempo e com a prática, e Ivone Mendes da Silva não deixa de o pôr a claro, que não é apenas a natureza de uma existência particular que a leva a escrever como escreve, é também um modo de exercitar uma técnica: “Sei que esta presença obsidiante do quotidiano em tudo o que escrevo é uma solução que tenho e já é muito.” (fr. 169) Solução aqui serve dois donos: a vida e a escrita.

Solução para a sua vida, como que um farol que não a deixe perder-se, embater nos rochedos; por outro lado, também é uma técnica, o modo como resolve a contenda entre a atenção que presta ao fora de si e aquela que nasce das reflexões interiores, quer sejam dos seus pensamentos acerca do que vê, quer sejam acerca do que lê – “A boa companhia que esta gente morta me faz só eu sei.” (fr. 172); “Eu retornava ao livro que estava a ler e era sempre como se voltasse a casa. Enfim, stat pristina rosa nomine, nomina nuda tenemus.” (fr. 186).

As várias vezes que ao longo do livro surgem citações latinas, e são algumas, elas nunca surgem em itálico ou entre parêntesis, assumindo plenamente que o latim faz parte da nossa língua, ainda que seja como aqueles parentes que só vimos no Natal. Há, assim, também uma ars poetica que se desenvolve ao longo do livro, embora se desenvolva muito discretamente, como que nas catacumbas do livro.

E as reflexões acerca da escrita são cerzidas lenta e pacientemente em ponto cruz, ligando o geral ao particular, sendo o desenho que sobressai o particular, aquilo que são as particularidades da autora. No fragmento 86, escreve: “Comecei uma frase e logo vi que tenho as minhas obsessões narrativas. Sempre as tive. (…) Hoje penso que tenho de começar a interromper as minhas obsessões narrativas. Mas toda a obsessão sabe quanto pode e por isso persiste.” Obsessões narrativas, escrever sobre o quotidiano, aparecem como deuses que impõem sobre o humano as suas vontades, algo que não pode ser mudado, faça-se aquilo que se fizer.

E aqui não podemos deixar de ver como horizonte a tragédia grega, que também calcorreia o convés deste livro. Repare-se no fragmento 236 e de como se vê claramente que mesmo forçando aquilo que mais gostamos, aquilo que mais nos obceca, o que tem de ser é o que tem de ser: “Também fui ao supermercado e parei no corredor dos detergentes a pensar que faz algum tempo que não escrevo nada do supermercado. Quem tem a obsessão do quotidiano percorre os seus pontos de referencia na esperança de que eles se dêem para serem ditos, não foi o caso hoje. Mas o detergente que eu procurava estava com 50% de desconto.” Estamos então também diante de um livro com atenção e veneração pelo mistério.

E não será toda a atenção uma veneração? O mistério está em tudo. Não somente no que nos escapa, como as obsessões ditatoriais ou esta vida particular ao invés de uma outra também particular embora completamente diferente, mas principalmente o tempo que se agarra às saias de uma chávena ou ao pires dessa mesma chávena, como no maravilhoso fragmento 100, que é extenso de mais para o reproduzir aqui – peço a si, leitor, que o encontre e o leia –, mas mostra como as coisas não são coisas por elas mesmas, mas coisas com as nossas vidas lá coladas. Ou talvez seja precisamente o contrário, uma coisa só é coisa se não tiver a nossa vida lá colada, se não nos surgir com o tempo agarrado às suas saias.

Poderia este livro ser lido como um diário, uma espécie de diário de bordo, não de uma viagem a algum pais distante e desconhecido, mas de uma viagem à existência mais próxima? Podia, se quiséssemos minimizar a nossa leitura – embora a autora nos queira levar a ver o livro assim, no final do fragmento 281: “Tudo o que conto parecerá sem história mas a diarística é isso mesmo: supor à trivialidade uma morfologia épica.” Mas não saímos da leitura desta passagem sem nos salpicarmos de ironia, o que nos legitima a trocar de indumentária hermenêutica rapidamente.

Poderia ser lido como um romance? “God sake”, não! Até porque, como a própria autora escreve, no fragmento 170, “Nunca se deve querer saber o final de uma história.” Nada contra o romance, mas o fragmento – tal como nos aparece aqui nestas páginas – é a mais nobre arte da prosa e, uma vez mais, não há necessidade em minimizar a nossa leitura. Até porque a autora em dois momentos distintos, nos diz isso mesmo: 1) se fosse ela outra, romancista, por exemplo, “Poderia ter ido ao mercado quando estavam a chegar os primeiros caixotes de peixe e de legumes e vaguear por entre as bancas de sapatos na mão e a segurar um vestido preto e absurdo. Estaria agora no texto de alguém que me inventava vidas.” (fr. 26); e termina o fragmento 264 de modo a não deixar quaisquer dúvidas nos detectives literários, “Sou uma fragmentária e nada a fazer.”

Um autor não precisa erigir uma grande obra para ser um grande autor. Num só livro, ou em dois ou três, como os queiram contar, Raduan Nassar erigiu uma obra tremenda, pois num só livro, ou em dois ou três, pode estar grande parte do humano, com a beleza que ele inventa e o sofrimento que carrega. E o livro Dano e Virtudes, faz de Ivone Mendes da Silva uma autora esplendorosa da nossa língua – para adjectivar o seu livro com o mesmo que ela usa quando se refere à lua a subir no céu, no fragmento 116.

Mas há obras esplendorosas que podem não ser muito chegadas à nossa sensibilidade. Felizmente, aqui não é o caso. Dano e Virtude, faz-me regressar a mim e trazer junto nessa viagem de regresso o início daquele soneto de Camões, Aquela triste e leda madrugada… Ivone Mendes da Silva escreve, ao fragmento 140: “Moro numa cidade de província e tenho a mais desengraçada das vidas. Escrevo a manhã e a esplanada. Escrevo-as para as vencer.” Vence claramente a esplanada e reinventa a manhã, um modo de ser manhã.

Reinventa o modo de nos vermos e de vermos o nosso tempo, com os sacos de compras e os corredores de supermercado e as esplanadas com mesas cheias de cafés e de imperiais (não neste livro) e com os sábados e os domingos tão diferentes para as mães e para os pais, tão diferentes para os homens e para as mulheres (como também as férias): “Ela tem o ar cansado de quem saiu de casa apenas para ir cozinhar noutro lado.” (fr. 74); “ah, ainda não jantou… olhe, uma das coisas que mais invejo nas senhoras sozinhas é poderem jantar tarde. Olhe, jantarem quando lhes apetecer.” (fr. 217) E a escritora salva as árvores! Salva-as mais do que aqueles que se indignam sazonalmente nas redes sociais.

A escritora salva-as nomeando-as, atentando nelas, mostrando a nós, leitores, que há árvores nas cidades e que elas têm nomes e cores e cheiros e mudam com o tempo. “Fui caminhar no tempo que me sobrou da tarde e de tudo dei conta.” (fr. 191) Fui caminhar no tempo que me sobrou da tarde e de tudo dei conta, escrevo eu agora, como quem copia num caderno o que mais gosta, para não esquecer. Porque é muito triste não saber o nome das coisas e ninguém repara nisso. E é precisamente no nome das coisas, mas mais ainda no nome da natureza, dos seres da natureza, plantas, árvores, animais, que o quotidiano se cruza com a metafísica.

A necessidade de nomear o que há, de não lhe encontrar apenas galhos e folhas e cores e cheiros, mas também um lugar no dicionário, um modo de essas coisas nos saírem das mãos e da boca, de poderem aparecer quando não estão. Esta é uma das qualidades maiores da escrita de Ivone Mendes da Silva, a de nos mostrar a falta que as palavras nos fazem. A falta que somos, sem elas. Por todo o convés deste livro se avista este abraço nupcial entre as palavras e as coisas, entre a vida humana e as palavras, entre o silêncio e a palavra. É como se sem palavras não se conseguisse ver a beleza.

O fragmento 241 é provavelmente o que levanta mais a saia da filosofia e deixa mostrar as pernas de Wittgenstein – fragmento todo ele belo do princípio ao fim –, terminando com esta frase: “Do que não se sabe falar não se pode ter.” A autora refere-se, aqui, à felicidade, mas pode muito bem ser extensivo a tudo. Sem palavra somos a menos do que poderíamos ser, e isso avista-se com uma clareza enorme, do convés deste livro. “Não saber o nome das coisas deixa-me sempre perdida como se chegasse de noite a uma terra estranha cuja língua eu não falasse.

Lembro-me de ter visto uma vez um arbusto tombado sobre o muro de uma quinta com umas grandes bagas vermelhas. Parecia lacre derretido sobre as folhas e parei um pouco a olhá-lo triste de saber dizê-lo. E tantos são os nomes que me faltam. Árvores e trepadeiras. Pequenos insectos de asas translúcidas que saltam e logo desaparecem nas primeiras sombras do lusco-fusco. Não saber o nome das coisas deixa-me sempre o dia pela metade.” (fr. 220) E no fragmento 292, a autora deixa tudo isto muito mais claro: “O cheiro das pêras maduras sobre a bancada da cozinha creio que não existe se o não escrever. Talvez isto seja uma doença e não das mais fáceis de curar e talvez eu não saiba relacionar-me com o mundo de outro modo que não seja com uma frase de permeio.”

Mas não é só a existência que vibra nestas páginas, esplendorosamente, ou o tempo agarrado às saias das coisas, separando a matéria do espírito – mostrando claramente a diferença entre uma coisa que se parte e pode ser substituível de uma coisa que se parte e não só não tem substituição como também nos faz entrar um pouco mais na morte que nos espera – também a língua portuguesa vibra como raramente a vemos ou escutamos vibrar. Mais do que um livro para agradecer, um livro para venerar. Ou, como diria um antigo amigo meu, quando encontrava pela primeira vez palavras boas acerca do mundo ou das pessoas (boas no sentido gramatical e existencial, bem entendido): “isto bem aproveitadinho [a afectação que nos abalroa] dá para duas semanas de vida.” E com a dificuldade que hoje temos de arranjar palavras para um dia de vida, este livro bem bem aproveitadinho dá-me seguramente até ao final do ano, quando ainda nem chegamos a meio. E há quanto tempo não me acontecia nada disto! Evidentemente vou comprar mais dois Danos e Virtudes para oferecer. Pois não devo ser egoísta.

15 Mai 2018

A serra

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s meus avós maternos moravam numa localidade com uma dúzia de casas, no algarve profundo, um sítio chamado Vale de Ebros (que sempre achei que se escrevia Vale de Zebros – porque era assim que o pronunciavam – até erguerem uma tabuleta à entrada). Não tinham electricidade, não tinham água canalizada, não tinham carro. De cada vez que lá ia, era como se regressasse a um passado de que só ouvira falar em livros de história.

O meu avô, um homem muito magro, tremelico de mãos, tomou um comprimido pela primeira vez aos 73 anos. A minha avó, também ela magríssima, movia-se com uma velocidade surpreendente para a idade. Nunca conhecera ninguém tão duro e frio. A minha família mais próxima é toda ela muito emotiva, muito italiana. A minha avó, pelo contrário, era um rochedo. Quando a minha mãe, depois de uma série de mortes na família, lhe perguntou: “mas como é que mãe aguenta?”, ela respondeu: “filha, alguém tem de tomar conta desta gente”. Alguém tinha de tomar conta daquela gente.

O algarve profundo é a antítese do litoral. Em paisagem e em costumes. O litoral é dos pescadores, a serra é dos agricultores e dos criadores cabras, ovelhas e galinhas. São, no fundo, dois algarves. O algarve do peixe e da pesca, das procissões da Senhora da Orada, do turismo em massa espelhando vidros e euros noite fora; e o algarve das viúvas perenemente de negro, das mulheres transportando pesados cântaros de água sobre a cabeça, o algarve das vendas – as tascas à beira da estrada onde se compra desde minis geladas a gel de duche.

A minha avó ia comigo ao quarto e fazia-me a cama, amontando colchas sobre colchas para fazer face ao frio que até em Agosto se instalava assim que o sol se punha. Antes de apagar a lamparina, dizia “drome, filho”. E eu corrigia, invariavelmente: “dorme, avó, dorme”. “Sim, filho, a avó também vai dromir”.

O meu avô perdeu a visão de um olho por causa das cataratas. Recusava ser operado. Quando lhe surgiram cataratas no olho que restava, decidiu-se pela operação. Passou o resto da vida a lamentar não ter feito a primeira. Quando o via regressar do pastoreio, gritava-lhe, à distância: “venda-me um borrego desses para o Natal”. Ele, que via muito mal, não me reconhecia. “Não estão para venda”, atirava. Quando percebia que era eu e que os tinha ido visitar, chorava. O meu avô chorava por tudo e por nada. A minha avó não chorava nunca.

O campo de que me recordo era um lugar muito duro. As pessoas levantavam-se quando o sol raiava, todos os dias. Tratavam dos animais – bestas, como chamavam às mulas e cavalos; porcos, que engordavam para a matança e ovelhas e cabras; uma vaca ou outra, para leite; galinhas que acorriam à primeira pessoa que saia de casa de manhã, à espera da ração. Muitos homens e mulheres eram alcoólicos. Durante o dia, bebiam o péssimo vinho que eles próprios faziam. À noite, iam para a venda jogar cartas e beber minis. Um dos meus primos bebia uma grade e meia de minis todas as noites. Tinha os olhos mais azuis que já vi. Em bebé, diziam nunca ter visto uma criança tão linda. Teve poliomielite e ficou entrevado do lado direito do corpo. Pastoreava umas cabras que conduzia graças a uma funda. Tinha uma pontaria exímia. Morreu com trinta e seis anos, de cirrose hepática.

As pessoas enlouqueciam facilmente. Acumulavam raiva de anos e anos de mal-entendidos e de zangas e, num dia pior, com uma enxada ou uma caçadeira, matavam o vizinho de sempre por um palmo de terra. Depois, entregavam-se. “Leve-me, seu guarda, dei cabo da vida desta família, leve-me.” O mal irrompia e submergia com a mesma facilidade. As pessoas desconfiavam umas das outras. Desconfiavam de quem chegava de fora com carros grandes com vidros eléctricos. Não acreditavam que o homem tivesse ido à lua. “Fazer o quê, filho?”, replicava o meu avô às minhas aspirações a ser astronauta.

Passei muito tempo zangado com aquele sítio para onde os meus pais insistiam em levar-me no fim-de-semana, impedindo-me assim de andar de bicicleta ou de jogar à bola com amigos. Não queria ir, fazia birra, era sempre um drama. Percebo agora, muito mais tarde, que levo comigo esta serra para onde quer que vá. A sua aspereza, a sua aridez, a sua pouca paciência para com os fracos. Mas também a sua surpreendente generosidade, o cheiro a esteva e os nomes de algumas árvores. Nenhum dos meus avós está vivo. É a eles que dedico este pequeno texto.

14 Mai 2018

Uma nota sobre o olhar. Para o João Paulo Cotrim.

[dropcap style=’circle’] H [/dropcap] á um modo “normal” de olhar para as coisas. Corresponde a uma espécie de média estatística. As coisas surgem-nos, também, o mais das vezes e à primeira vista, quotidianamente, sempre da mesma maneira. Há uma modulação que tende para esta média quotidiana. Neutralizam-se as diferenças de aspecto das coisas. Contamos com a alteração. As diferenças de olhar e visto são, por assim dizer, esperadas, tidas em consideração, antecipadas. E, contudo, é assim na essência das coisas e na essência da nossa lucidez. Quando se produz uma alteração radical no modo de ver as coisas e no modo das coisas aparecerem, pode haver um abalo na normalidade habitável. Desde sempre na antiguidade que esta estranheza no modo de as coisas aparecerem foi traduzida na linguagem do espanto e da admiração, da reverência, até. Mas a maior estranheza não se dá apenas com a alteração visível das coisas. Dá-se quando aparente e objectivamente nada muda. A experiência que fazemos da alteração não deixa de ser evidente. Contamos com ela. A maré a vazar e a vazia, a maré a encher e cheia no rio da praia da infância, por exemplo, testemunham-no. O rio é sempre diferente, embora haja dias que parece igual. O mesmo se passa numa mesma paisagem de praia em horas diferentes do dia. De manhã, quando ainda o sol não aperta e a luminosidade é da manhã. À hora em que o calor aperta e se sente a sua luz crua. À tarde, quando há uma luz mortiça a antecipar o crepúsculo. De noite, quando se acende uma lareira e se ouve o som do rio a ir contra o Atlântico na rebentação. De manhã à noite, em todas as estações do ano, há apresentações diferentes. O rio nunca é o mesmo, porque o dia é sempre diferente. O próprio dia é uma fracção temporal do mesmo tempo de onde se projecta e plasma sobre todos os conteúdos. A diferença do tempo não está apenas na diferença dos conteúdos. Ela constitui-se na própria diferença entre tempo que passa e salpicos de tempo que são os momentos. Um dia e os seus momentos e os dias como momentos de um único tempo. O olhar capta a diferença no interior de uma duração qualitativa. Captamos com espanto a diferença entre um rio nos seus momentos, consoante as marés, horas do dia, estação do ano.
Mas também captamos a estranheza na aparente igualdade entre apresentações. É sabido que a casa é uma entidade “viva”, uma personagem animada nas nossas vidas. É lá que estiveram a viver os nossos. É para lá que antecipamos virão irmãos e irmãs para serem acolhidos no seio de uma família. É de uma casa que saem para a última morada, avós e pais. Sem as diferenças óbvias que se registam entre uma casa habitada cheia de gente e uma casa vazia de gente, podemos perceber que uma casa é diferente a uma hora de um dia em que não costumamos estar lá. Se tivermos de ir a casa a uma hora de um dia da semana em que não costumamos estar lá, a casa aparece toda ela numa atmosfera de estranheza e num ambiente totalmente diferente de como me surge a casa quando lá me encontro a uma hora de um dia em que costumo estar em casa. De resto, a casa à mesma hora, mas em dias diferentes, é sempre diferente. À segunda-feira e ao sábado a casa “é diferente”. Como se capta esta diferença? É porque costumamos estar em casa depois de um dia de trabalho e se lá formos de dia, ela é diferente? Em que sentido? Não é diferente como o rio nas suas marés diferentes, de verão ou de inverno, de férias ou em dia de trabalho. A diferença é apurada para lá dos conteúdos que são exactamente os mesmos. A sala de jantar é a mesma com toda a sua mobília e peças de ornamento. O que muda, então? Tudo. E nada. Na verdade, a estranheza é apurada porque tudo o que parecia igual, no mesmo sítio, sem tirar nem pôr, é diferente. A diferença é no modo de olhar. Uma diferença que está sempre a constituir-se, porque a passagem do tempo cria uma alteração convulsiva em cada instante: antecipa-o para o ver cair para o presente, e do presente, empurra-o para o passado. Cada instante é uma projecção do tempo na sua totalidade. O tempo é sempre o mesmo na sua duração, no trânsito e na sua passagem. E de um instante para o outro pode perceber-se a estranheza da passagem do tempo, inexorável, mas como se nada se passasse na realidade. É como se tudo fosse exactamente o mesmo e não conseguíssemos apurar a diferença. E na identidade absoluta da realidade a própria realidade desagrega-se na passagem, na alteração dentro da identidade, na estranheza de perceber que as coisas se alteram e é estranho perceber-se a alteração, quando tudo aparentemente se mantém na mesma.

11 Mai 2018

Segundo e terceiro dia das comemorações

[dropcap style=’circle’] N [/dropcap] o artigo anterior ficou relatado o primeiro dia das comemorações do IV Centenário do Caminho Marítimo para a Índia realizadas em Macau a 17 de Maio de 1898 e agora aqui descrevemos as celebrações dos dois dias seguintes.
O Porvir (hebdomadário ‘Estritamente dedicado a propugnação do bem-estar dos portugueses no Extremo-Oriente’ aparecera a 20-11-1897, com a redacção em Wyndham Street 1A em Hong Kong e editor responsável Luís M. Xavier) refere terem os chineses nas noites de 17, 18 e 19 realizado uma procissão, levando um pagode, cônscios de que com esse ídolo conseguiriam enxotar a peste da cidade, gritando pelo caminho, . Anota-se já em Macau que a peste vai declinando pois, dia a dia, diminui o número de atacados.
A cidade nos quatro dias das comemorações não se iluminara festivamente, mas os edifícios públicos estão-no. Numa das janelas do Leal Senado há um grande quadro, pintado a fresco pelo Sr. Jaime dos Santos (vulgo Meme), representando o desembarque de Vasco da Gama em Calicut. Um outro magnífico quadro transparente, com Vasco da Gama a bordo da nau S. Gabriel, também do mesmo autor, encontra-se na casa de um chinês abastado, o Sr. Francisco Tze Iat (conhecido por Francisco Volong), na Avenida do Conselheiro Ferreira de Almeida, bairro de S. Lázaro; casa que se apresenta bem iluminada. A “Empreza Económica” representa a sua iluminação por uma enorme estampilha de quatro avos, esplendidamente pintada pelo Sr. Ricardo de Souza Júnior, gerente daquela casa comercial. O Hotel Hing kee apresenta-se com balões chineses e a redacção de O Independente ilumina as suas janelas a balões japoneses.
Em todos os actos, durante os quatro dias dos festejos, a banda militar toca o hino de Vasco da Gama. Já a tuna académica, regida pelo estudante do liceu Fernando Cabral, acompanhada de estudantes da diferentes escolas, percorre as ruas da cidade nas noites de 17, 18, e 20, em marcha aux flambeaux, parando em frente das casas dos professores do liceu, do seminário, do palácio do governo, do paço episcopal, etc. dando entusiásticos vivas à Pátria, aos professores, e outros. Levam uma bandeira de Portugal e o pendão do liceu.

Segundo dia das celebrações

Ao meio-dia de 18 de Maio de 1898 a Fortaleza do Monte salva com 21 tiros e a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia oferece “um bodo aos pobres distribuindo 150 senhas de valor de $1 cada uma, dando aos pobres o direito de proverem-se, no fornecedor Tse-seng, de quaisquer géneros que mais lhes aprouvessem até ao valor das senhas e mandou para as órfãs da Casa de Beneficência das irmãs canossianas carne de vaca e de porco, presunto, galinha, etc., para preparar um bom jantar e iguais géneros mandou para os inválidos de ambos os sexos do Hospital S. Rafael”, segundo o Echo Macaense. Assim se percebe a notícia do Independente e de O Porvir ao referirem haver um bodo a 200 pobres, distribuído por meio de senhas na Santa Casa da Misericórdia.
Durante o dia não ocorre nenhuma outra manifestação e à noite há música no jardim público de S. Francisco com a banda militar. À noite saem outra vez, com a sua orquestra, os alunos do liceu, fazendo também neste dia uma marcha aux flambeaux. Partindo do liceu, seguem em direcção à casa do professor João Pereira Vasco, o qual os convida para subir e lhes serve um copo de vinho e brinda a Portugal, ao povo de Macau e à academia macaense. Dirigem-se em seguida ao Seminário de S. José para saudar os seus irmãos nos estudos. Aí são recebidos com palmas pelo Reverendo Padre Reitor, por todos os professores e alunos, trocando-se diferentes vivas de parte a parte. É-lhes também oferecido um finíssimo copo de vinho. Depois voltando do Seminário passam pela Praia Grande, pelo jardim público de S. Francisco e pelo quartel de S. Francisco, em frente do qual param para dar vivas ao exército.

Terceiro dia de comemorações

Quem escreve com mais pormenor sobre o dia 19 é o Echo Macaense de 22 de Maio, que refere, “Às 5 da tarde achava-se reunido na Gruta de Camões todo o funcionalismo, tendo à testa o Exmo. Governador, todo o Clero e muito povo”. O Provir de 21 de Maio complementa, “com grande concorrência, a cerimónia da colocação de uma coroa no busto de Camões, deposta por S. Exa. o conselheiro governador, que nessa ocasião fez um breve discurso”, dizendo ter o prazer de ver reunida toda a cidade de Macau naquele local tão celebrado na nossa literatura, que a coroa de louros ali colocada junto ao busto do nosso épico atestará aos vindouros o alto e patriótico apreço que esta cidade do Santo Nome de Deus faz do imortal poeta que cantou a viagem do Gama. [No momento em que se procede à colocação da coroa no busto de Camões são tiradas fotografias.] Usa depois da palavra o Sr. Dr. Horácio Poiares, que narra a vida de Luís Vaz de Camões, salientando ter sido Macau a primeira de todas as colónias portuguesas a prestar-lhe culto. Ao lado do governador estão os alunos do liceu, com a sua filarmónica e bandeira portuguesa. Concluída a cerimónia, percorrem os estudantes as ruas da cidade.
Nessa tarde devia ter tido lugar também o lançamento da pedra fundamental do monumento a Vasco da Gama e dizia-se que nessa ocasião faria um discurso o Sr. Dr. Juiz de Direito”, Ovídio d’ Alpoim. A crónica do jornal O Independente é semelhante à de O Provir, apenas dando ênfase ao esplêndido discurso do governador, “repassado do mais ardente patriotismo” e o do “nosso prezado amigo Sr. Dr. Horácio Poiares, que, num entusiástico improviso, frisa principalmente o entranhado amor pátrio do nosso primeiro épico, arrebatando o numerosíssimo auditório com a sua palavra correcta e fluente.” Refere ainda O Independente que, a tuna académica esteve na Gruta de Camões por ocasião da colocação da coroa de bronze, tocando o hino nacional. Saíram da Gruta tocando uma marcha e dirigiram-se a casa do Sr. Comendador Lourenço Marques, que foi quem à sua custa levantou a estátua a Camões, quando aquele pitoresco jardim lhe pertencia. [Este busto, que em 1866 substituíra um outro, é feito em bronze, sendo a autoria de Manuel Maria Bordalo Pinheiro. No pedestal estão gravadas à frente as estâncias I, II e III do Canto I dos Lusíadas e na parte de trás a sua tradução em chinês. Em 1885, a propriedade foi vendida ao governo de Macau e transformada em jardim público, tendo-se nessa altura demolido várias construções que havia sobre os rochedos de Camões.] Feitos os cumprimentos ao venerável ancião, é-lhes servido um delicioso copo de champanhe. Honra seja feita aos estudantes, que deram a nota verdadeiramente festiva do feito que se comemora, organizando o cortejo dirigido pelo estudante do liceu Carlos Cabral.
À noite há música em frente do palácio, terminando assim o terceiro dia das celebrações.

11 Mai 2018

Quer o número de contribuinte na factura? – Danos e virtudes, de Ivone Mendes da Silva

Primeira parte (de duas)

 

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]nterrompo por duas semanas os textos acerca de cinema, para escrever acerca de um livro muito especial e raro, que me veio parar às mãos por obra do acaso. Um destes dias, semanas atrás, para ser pouco preciso, a poeta e ensaísta Maria João Cantinho falou-me de um livro, que tinha saído na editora Língua Morta, no ano passado: Dano e Virtude, de Ivone Mendes da Silva. Fiquei curioso, daquele modo que nos faz ir vasculhar as estantes da biblioteca, mas por um qualquer infortúnio e afazeres de leitura acabei por esquecer-me da acção.

Quis o destino que, ao subir a Rua de São Bento, em direcção a casa, passe junto à nova livraria (abriu o ano passado, se não estou em erro), a Distopia, e vejo o livro na montra. Só por este facto, escrevo novamente Distopia. Entro e compro o livro, o único exemplar, o da montra. Assim que chego a casa, e depois de preparar um chá, começo a leitura, que desde logo me maravilha.

É um livro que homenageia a vida – “Dá-me um ramo de orégãos: gosta de orégãos, não gosta, filha? Se gosto. Gosto de orégãos e de tomilho. De alecrim e do cheiro do mundo ao Sábado de manhã.” (fr. 3); ou “Sei então que é domingo e de momento não me parece que possa existir alguma coisa de melhor.” (fr. 5) ou “Ao fim das tardes de segunda-feira sobram-me duas horas desobrigadas. Quase sempre as passo a ver como desaparece a luz sobre os telhados das casas que desenham no horizonte um recorte que escurece lentamente.” (fr. 111) ou “Tenho deslumbramentos quando o tempo começa a esfriar e farejo o ar à janela.” (fr. 118) ou “Ontem deram-me um ramo de louro ainda verde e tive pensamentos que sorriam.” (fr. 133) ou “O que vejo é uma ínfima fracção do mundo e com ela me contento. Como um travo de anis na última garfada de bolo.” ou duma forma mais apodíctica “É propício aos humanos que em tudo haja alguma maravilha. E ela pode vir da noite ou pode vir do dia.” (fr. 23) É um livro que homenageia o há da vida.

A vida que habita nos recantos das casas, nas arestas dos móveis, na cerimónia “sem cerimónia” das chávenas de chá e de café – “Se eu morresse hoje de morte suspeita e viessem reconstruir o trajecto do meu último dia bastaria seguir as chávenas que esqueço pela casa.” (fr. 2) Ivone Mendes da Silva sabe que os sentimentos se escondem aí, no interior das casas, nas paredes das suas divisões, no silêncio de ninguém que chega ou nas perturbantes mas compreensíveis obras do andar de cima, “concerto para martelo e berbequim” (fr. 107). Sabe também que o tempo se move sobre essas superfícies. “Passo de carro junto à feira das antiguidades. (…) No carro toca o ‘Rondeau des Indes Galantes’ e lembro-me de que tenho roupa para lavar à mão. Antecipo o prazer da água fria e o gorgolejar da torneira aberta.

Penso no tempo que passa.” (fr. 33) Mas regista-se o tempo na atenção pelas coisas, que é a atenção que pomos no modo como as vemos. Voltaremos mais tarde a este atentar. Mas agora atentar é imaginar. Pois quanto do ver é imaginar? A autora escreve no fragmento 13: “Levanto-me das minhas ocupações e vou esticar-me devagar à janela. A luz de Junho torna nítidos pormenores da rua e das fachadas das casas. Vejo um homem que ao longe sobe uma escada que dá para as águas-furtadas. Águas-furtadas, trapeiras, mansardas. A trave onde se pendurou um dia um tio que tinha cismas, o caixote esquecido e os brinquedos partidos.

Há lugares que vê-los é imaginá-los.” Mas a imaginação não está somente na nossa relação com o olhar e com a memória, que a autora refere em outros fragmentos, a imaginação também está na amizade, “que é capa e agasalho” (fr. 325). Ivone Mendes Silva escreve no fragmento 87: “Encontrei uma amiga que não via há muito tempo e trouxe-a para almoçar. (…) ensinei-lhe Latim para os exames de Setembro. Contou-me que guardava boas recordações desse Verão trabalhoso e contou histórias. Eu respondi que também me lembrava mas não tenho qualquer lembrança das dificuldades dela com a sintaxe do pronome relativo.

Depois evoquei alguns episódios que inventei ali com pormenores e diálogos e ela disse que sim que se lembrava bem.” Esta imaginação, este exercício de inventar o que não foi, devido ao que foi ter sido de algum modo especial, não é apenas deferência, é a exigência, ou melhor, o fundo da própria amizade. Só na invenção de pormenores acerca do que não foi, venerando assim o ter sido, se pode igualmente inventar o outro.

A amizade é um encontro a dois onde tem de haver espaço para a invenção. Quando o outro não pode ou não se deixa inventar, a amizade não floresce ou termina. A amizade é um discurso que se inventa e depois se sente como um sofá onde se estende as pernas e é bom, como a autora escreve e sublinha nos fragmentos deste livro. É preciso ter atravessado um dia, ruas, ter sapatos e contratempo, para apreciar esse momento de descanso que é a amizade, agasalho, como escreve quase no fim do livro.

Mas o livro, raro, precioso, composto de fragmentos (são 330), começa assim, com o fragmento 1: “Abri a porta com cuidado e descalcei os sapatos como se chegasse de um baile de madrugada e não quisesse ser notada. Depois já a almoçar pensei que só a banalidade é sempre certa e a imaginação um fraco consolo.” Está cá tudo: “Entrar em casa”, que é onde se vive, onde se vive a vida que vale a pena viver, silenciosa, repleta de livros, de abandono e pensamentos; “descalçar os sapatos”, que é um gesto de humildade e de deferência para com o espaço onde se entra, que é a nossa vida, o cuidado em não sujar, em não fazer barulho, não incomodar, e reparar que isso é como se não fôssemos aqui e agora, mas em outro tempo, em outra vida, em outros gestos, é medir o tempo através de um agora com outro agora distante (“E o tempo que passou sobre tudo isto.”, escreve no final do fragmento 34); depois almoçar e confirmar a certeza da banalidade, que é o que temos e com a qual fazemos a vida e escrevemos os livros, e sentimos a paz; e a imaginação, esse fraco consolo, alia-se à banalidade para escrever livros, alia-se à vida e repara atentamente nela, como se estivesse a morrer e dê-se por isso. E tudo isto é sublinhado logo ao fragmento 4: “Há pouco encostei-me para trás no sofá e fechei os olhos. Procurei não adormecer para não deixar de sentir o silêncio e o sossego. Passo a semana num ambiente hostil e tão vozeiro que chego ao fim-de-semana capaz de matar por uma paz assim.”

O tempo move-se inevitavelmente no quotidiano, pois este é para o humano como a água para o peixe. “Quer o número de contribuinte na factura?” Repete algumas vezes ao longo do livro, a menina da caixa do supermercado. Mas a par do quotidiano, desponta a atenção – pois sem ela não haveria livro –, que é um modo de domar o tempo, ou pelo menos uma tentativa de domá-lo.

A atenção que agora, contrariamente à atenção anterior, eivada de imaginação, vem limpa, ou pelo menos tão limpa como ela pode ser. “À medida que o tempo se aproxima de Agosto o barulho da rua diminui. Começam a rarear os carros na avenida e deixo de ouvir a gritaria da criançada lá em baixo na praceta. A cidade muda-se para longe. Vai ao mar e perde o lugar. Agora quem manda aqui são as cigarras e as pessoas sossegadas.” (fr. 56) Pois são raras as manhãs, raros os dias em que se pode subscrever o fragmento 73, em que tudo fica ao longe, como se não houvesse pingo de solda capaz de nos magoar: “Ainda são melhores as manhãs de domingo no mês das férias.

Como se o tempo descesse outro degrau e tudo se passasse ao longe. Muito ao longe.” Este “ao longe” é um intervalo da vida. Mas este intervalo não é estar esquecido da vida, divertido, alienado, distraído. Não, este “ao longe” é quando sentimos a morte de bem com a vida. Sentimos a morte a silvar-nos nos ouvidos, mas conseguimos saborear o mundo. Como quando a autora termina o fragmento 59, escrevendo “Tão boa pode ser uma manhã.”, ou como no fragmento 221: “O narciso floriu. (…) Estou contente. Nunca pensei consegui-lo.” São frases que nascem desse afortunado intervalo em que o humano fica com o seu tempo e o dos outros “ao longe”, muito ao longe, com a morte de bem com a vida. E se bem que o livro não seja apenas acerca deste momento afortunado e privilegiado da existência, tem muito dele. A autora sabe bem o que é a vida, na esmagadora maioria dos dias, do tempo, a vida nos seus inúmeros afazeres, e para mostrá-lo bem, e em contraposição ao que se mostrou anteriormente, tem de se transcrever por inteiro o fragmento 80: “Descobri um autor este Verão: Thorvald Steen. Acabei agora de ler The Little Horse (no original Den lille hesten) numa tradução de James Andersen para a Seagull Books. Tenho a sorte de me darem muitas atenções e muitas coisas e de me darem livros também.

Foi o que pensei há pouco quando o acabei e fechei. Depois fui à cozinha comer um pêssego e enquanto o descascava tive o meu momento de angústia de final de férias. Faz quase um mês que estou longe do barulho, das vozes altas, das conversas que não quero ouvir, das pessoas com quem não quero estar. Não tarda volto para lá e como sempre só hei-de pensar e perder a cabeça e fugir.” E ao fragmento 134, finaliza de modo apodíctico: “Já se sabe que os deuses adversos são os mais atentos aos passos dos humanos.” Julgo, contudo, que é o fragmento 155 que pode realmente fazer ver aquilo que agora se pretende mostrar acerca da escrita de Ivone Mendes da Silva: “Deram dióspiros, emprestaram-me dois livros e ouviram-me contar uma história de gente morta. Foi um dia bom mas aprendi com os trágicos que a paz é curta e que a hora talha cerce o sabor dos frutos. Por isso os escrevo.”

É esta consciência dupla da vida, por um lado a miséria do que não queremos, que nos é imposta e enche de nódoas a vida de que gostamos, e por outro a fugacidade – mas pleno, um instante que vale uma vida – daquilo que é bom, belo, pleno, cheio de paz, que nos mostra claramente que se trata de um livro que nos faz ver o quanto desperdiçamos a vida (ou não, dependendo de quem o lê). Como desperdiçamos os caminhos que percorremos sem os ver, e que tanto perfazem as páginas deste livro.

Como desperdiçamos as árvores que afortunadamente nos cercam a casa, como parece que cercam a da autora, que nos as mostra em nomes e cores. Como desperdiçamos a vida sem a saborearmos! Desperdiçamo-la em conversas, em discussões, em inúmeros afazeres que nos tiram mais do que tempo, tiram-nos o nosso único tempo, tiram-nos a possibilidade de nos maravilharmos com a vida. Ao lermos este livro, Dano e Virtude, damo-nos conta de nós, do quanto nos estamos a perder, ao não apreciarmos o que nos é dado, o que connosco faz parte do mundo. É um livro que dá vontade de voltarmos a nós como se volta a casa depois de um dia ou de uns dias perdidos de problemas e contra-tempos. Dá vontade de dizer com a autora, “Vivo bem de silêncio e de água fresca.” (fr. 61)

Continua

10 Mai 2018

Do Nobel, sem pruridos

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]em quórum, o Nobel da literatura arriou as calças.

O culpado foi Jean-Claude Arnault (marido da poeta Katarina Frostenson, que é membro da Academia do Nobel) e os seus arremessos sexuais à esquerda e direita – oh lá, lá, nem a princesa herdeira, Victoria, nos seus imaculados vinte anos, escapou de ser “tocada nas nalgas”, dizia a notícia, pelas suas mãos inquiridoras. Resultado do tumulto e das demissões que provocou: a Academia ficou sem quórum.

Na verdade, consta que o empoleirado na esposa também influía na filtragem dos nomes dos candidatos ao Nobel – impondo o seu voto por delegação -, tendo com isso minado o crédito da Academia, mais habituada ao recato melancólico das esposas dos membros da Academia.

«Sou levado na sombra/ como um violino/ no seu estojo negro», escreveu Tomas Transtromer, o último grande poeta laureado, e por acaso sueco. Não sabemos se este violino ocultado na sombra já aludia a Arnault, mas no caso do poeta sueco o estojo transportava uma espessa substância lírica. Porém, este ano o estojo do Nobel está vazio, por causa do tanto que vazou Arnault, à esquerda e à direita. Falo dos zunzuns em que era especialista e que matavam sempre a confidencialidade do prémio (- contava às amantes, que depois contavam ao porteiro do prédio, etc.)

Em relação ao Nobel, temos de perguntar como o fazia Rilke ao jovem poeta a quem, endereçou cartas: morre a literatura se não houver o Nobel (- o poeta alemão perguntava ao seu destinatário se ele morria, caso não escrevesse poemas, sugerindo que se assim não fosse ele deixasse de escrever porque nenhum poeta brota da presunção mas sim duma necessidade interior, vital e inescapável)? Qual o peso específico do Nobel na manutenção do capital simbólico que a literatura, talvez, ainda represente? E é relevante o seu papel, em relação à literatura, ou ao comércio de uma parte dela, quando por exemplo favorece o reconhecimento sobre a descoberta – como no caso de Dylan?

Na escolha dos últimos premiados notava-se ter havido um pequeno desvio ao paradigma do prémio, inflectindo para uma maior aproximação ao “mercado” e à ”cultura de massas”. Era uma espécie de “literatura à Hollywood”. Ou seja, os critérios que premeiam a Física, ou a Matemática, por exemplo, não têm sido exactamente reproduzidos na Literatura. Aí premeiam-se investigadores de ponta, gente que experimenta e arrisca “cegamente”, como é próprio da ciência. Na literatura têm-se escolhido vozes em concordância com o “mercado”, que oferecem segurança, escritores de qualidade mas que conduzem com airbag. Patrick Modiano, Bob Dylan ou Kazuo Ishiguro, são bons, mas decididamente não tanto.

Alguma vez a algum génio foi dado um Nobel – a um «génio sem espinhas»?

Vejamos quatro exemplos: Pessoa e Henri Michaux, Borges ou Ezra Pound. Não lhes emprestaram a bola de ouro. Embora fossem avessos às agremiações literárias que tornam a coisa possível.

Mas não dramatizemos. Para o meu gosto, a poesia não tem estado mal servida nos Prémios Nobel. Se ao irlandês Seamus Heaney eu preferia o britânico Ted Hughes, a poesia do primeiro atinge um nível altíssimo na tradição que representa. E não tenho dúvidas, tanto o polaco Czeslaw Milozs, como o mexicano Octavio Paz (que se tem de ver como um todo e não unicamente como fazedor de versos), o russo Joseph Brodsky ou o poeta da Trinidad, Derek Walcott, cada um no seu género, são poetas que roçam o “génio”, no sentido em que todos atingiram picos altíssimos no sistema das suas cordilheiras.

O Derek Walcott, por exemplo, que nem teve direito a tradução em Portugal, provavelmente por ser negro, nem em Moçambique, suponho que por não ser moçambicano, mas é um poeta extraordinário, capaz de ímpeto, improviso e arquitectura, isto é, capaz de embarcar no mais puro beat jazzístico como na cadência clássica. Ainda por cima, é igualmente um dramaturgo de monta.

«Ao longe no caminho, avisto o Poder./ Tal e qual uma cebola,/ os malabarismos do seu rosto/ a caírem um após o outro.», escreveu, entretanto, Transtromer e é extraordinário como de forma tão simples fala da nossa tumultuada época, afinal de todas. Mas mais da nossa. E é tão universal isto.

Era esta a função ideal do Nobel, fazer-nos confiar que existia uma Academia que premeia os melhores e não os que mais vendem ou os que são bons a fornecer entretenimento. Dado que o entretenimento é uma das funções da literatura mas não deve ser a única; às vezes é uma dimensão mesmo dispensável. O Nobel era uma espécie de Realeza Republicana, de fátua e transitiva celebridade mas que nos apresentava um modelo de excelência. Esperemos que com este ano de jejum corrija a rota.

Quem não espreitará este ano o vestidinho decotado da Glória do Nobel, uma moça como se sabe com predicados, é o meu amigo Zetho Gonçalves, poeta angolano, que se tinha anunciado no FB como candidato ao Nobel deste ano. Nem neste nem nos próximos. Sabem porquê? Ele é misteriosa e ironicamente parecido com Arnault – quase podiam ser gémeos ou sósias. Por caminhos díspares terá andado o pai do poeta. Contudo, o camarada Zetho terá de rogar ao seu sósia para fazer uma operação plástica, senão será sempre vetado por antipatia!

Enquanto não nos chega o Nobel reabilitado por “personal training” e os exercícios para trapézios, deltóides e quatro grandes peitorais fiquemo-nos por um poema de Transtromer, De Julho dos Anos 90: «Assistia a um funeral/ e senti que o defunto/ lia os meus pensamentos/ melhor que eu.// O órgão estava calado, os pássaros gorjeavam./ A vala inundada de sol./A voz do meu amigo estava/ a minutos das minhas costas./ No regresso a casa, ao volante, senti-me/ desmascarado pelo esplendor do verão,/ da chuva, pela serenidade/ emitida pela lua.»

10 Mai 2018

Quando a capa se faz lugar

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] useu José Malhoa, Caldas da Rainha, 14 Abril
A tarde abriu enorme e coube ainda assim aconchegada pela conversa no edifício, primeiro pensado de raiz entre nós para ser museu, não-lugar do novo sagrado destinado a acolher paisagens e figuras de um espaço e um tempo que parecem já só existir aqui. Ainda nos arredores de Imaginário, quase a desmentir esta ideia de ruralidade que se dissipa, ou, pelo contrário, a confirmar fantasmas e dores, trouxemos «A Festa dos Caçadores», do Henrique [Manuel Bento Fialho]. As razões para o meu entusiasmo são múltiplas, mas devo conter-me, contê-lo, ao entusiasmo, lê-lo e relê-lo, afastar-me dele, procurar gralhas e melhor desenho de página, capa ou contracapa, e continuo a falar do entusiasmo. Este livro apresenta-se-nos carregado de livros nas entrelinhas, ou melhor: pejado de leituras. Cheguei ao Henrique por via das suas excelentes leituras, a conferir em Antologia do Esquecimento (https://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/). O livro como objecto e entidade aparece aqui e ali, a evocar a sua condição de bom livreiro e portanto observador, olhando de esguelha certas relações com o bicho, e não tanto enchendo a prosa de citações, que também as há, embora na justa medida do bom tempero. Folheando, a Festa é uma colectânea de contos, uns morais, outros de prosa poética, parábolas aqui, anedotas além, relâmpagos luminosos de pensamento, frase ora despojada ora barroca, rica e variada, bem-humorada q.b., com música e várias infâncias a servir de fundo, além da omnipresente pitada de amargor, como agora se aplica à cerveja que abre caminhos. Será tudo isso, sem deixar de ser «retrato fragmentário da primeira geração de portugueses criada em democracia», diz o autor, que continua. «De um mundo rural em vias de extinção à deslocação urbana, acompanhada de sensações de exílio, solidão e desenraizamento, as personagens destes contos acabam por se fixar num lugar sem espaço nem tempo, nos “desastres de uma vida perdida algures pelo caminho como farrapos de roupa comidos pelo tempo”». Será a voz do narrador? Outro jogo, que aproveita com habilidade os farrapos narrativos que podem ou não agregar estes fragmentos, assenta nos saltos de lugar entre autor e narrador, entre a reflexão e o episódio, entre o íntimo e o disperso. Tanto estou na pele de Henrique como me vejo assistir à dissociação na mente das personagens, que duvidam em permanência do que lhes acontece. Além do amargor, a prosa perfuma-se muito de absurdo: talvez existamos apenas na cabeça de alguém, sonho de uma sombra. Parece-me, portanto, único este volume de 320 páginas de contos a acreditar que poderão ser outra coisa. E também por causa do tempo e outros detalhes maneiros: a areia, seu maior sinal. Ou o silêncio. Assim a própria, há por aqui torto e a direito grãos, suavizando ou incomodando, assinalando que mesmo a rocha maior se pode desfazer, que as mãos não conseguem segurar, que os rastros se apagam de um sopro, que o deserto cresce. Lá para o fim, reza assim o riso escondido nas vértebras das pedras: «Pedi desculpa por me estar a meter na conversa e reforcei que sabia do que ele precisava. Ele olhou-me com reprovação, as devotas olharam-me com desconfiança, olham-me sempre com desconfiança, e eu, agora metido num fosso do qual não teria saída, rematei: o senhor precisa de começar a beber e a fumar. E, já agora, precisa de uma mulher. Precisa de se divertir, O senhor precisa de esquecer que o mundo existe, precisa de esquecer-se de si próprio, precisa de criar na sua vida momentos de interrupção, precisa de ler e de escrever como se não houvesse nada mais importante sobre a terra, precisa de alimentar os seus medos e as suas frustrações com o veneno da indiferença, precisa de dizer adeus ao passado e, se lhe não for doloroso, ao próprio futuro. Precisa, desculpe-me a expressão, de cagar para o futuro e procurar no presente o riso escondido nas vértebras das pedras. Desculpe-me estar a fazer poesia, é defeito meu. Não dura muito. Já a seguir vem o silêncio, voltamos as costas uns aos outros e caminharemos, cada qual para a sua vida, como se arrastássemos o deserto inteiro atrás de nós. O senhor não precisa de mim, mas precisa ainda menos de si.»
O Henrique só conheceu agora, neste fim-de-semana prenhe de intensidades, anedotas e contos de moralidade difusa, o Sal [Nunkachov] que lhe encontrou o rosto exacto para o livro (algures nesta página), além de interstícios, galhos quebrados, rasgões, sinais que exigem atenção total ao objecto-livro. Quando ma mandou era contracapa tímida, mas a colagem dizia de tal modo caminho e corpo, natureza e espelho que me pareceu o lugar certo para dizer festa e silêncio. O tom sépia agrava a nostalgia.

Caixa de Brinquedos, Paredes de Coura, 21 Abril
No meio dos legos, em evento não anunciado e contra-corrente, antes mesmo do concerto dos Mata Ratos, com a Joana Bagulho a lança-los de cravo em riste e o António [Caeiro] a gritar juvenis entusiasmos sem temo, o Vitor [Paulo Pereira] introduziu uma História que cada um tem por contar, mas que o João [Rios] começou já. De fato-macaco azulão disse da alegria bruta, comoveu com os afectos que vão definem o corpo vital que somos e disparou, como areia para os olhos, cantilenas, cançonetas e modinhas: «não é grave ser português/ jogar a lágrima no bagaço/ perder lança e verso raro/ e soltar um touro às cegas/ contra a nossa pequenez// nem é assaz fatal a doença/ nem será adulterada a raça/ por ter-se sumido no nevoeiro/ a fé num milagre bem maneiro/ que nos enrijeceria de uma vez».

Horta Seca, Lisboa, 7 Maio
Está sempre a acontecer-me, pelo que dará a ajuda na explicação da potência da canção, por mais tola. Mal me vejo soçobrar, meia dúzia de versos distendidos sobre a melodia logo me erguem pelos ombros. Raras são as vezes que consigo a leveza, donde momentos assim oferecem-me matéria de nuvem, raridade de sopro, rasgão mística. (Também podem advir em conversa, mas a música dá-lhes corpo distinto. Do mesmo modo, podem ser apenas som, mas algo se perde nos interstícios.) Willie Nelson navega por perto há muitas luas, por que raio haveria de duvidar da sua capacidade para me interpelar nesta sua idade? Last Man Standing veste o camuflado da banalidade competente, mas atira-nos à cara a simplicidade dos mais venenosos pensamentos sobre a morte, o quotidiano, a solidão. Não mais que uma pérola por tema, pronta a rodar nas nossas mãos algures em banco de jardim, em praça soalheira, no varandão, deixando que a tarde caia: «I been sittin’ around countin’ my blessings/ Thinkin’ of friends here and gone/ Recallin’ the smile across somebody’s face/ Whenever I’d sing her a song». Não cantei assim tantas canções, por mau jeito, mas chorei já a minha dose de amigos: o mundo sabe ser pouco mais que canção triste. «When you lose the one you love/ You think your world has ended/ You think your world will be a waste of life/ Without them in it// You feel there’s no way to go on/ Life is just a sad, sad song/ But love is bigger than us all/The end is not the end at all.» Até já, Jorge.

9 Mai 2018

Judith Teixeira

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s mulheres sempre tiveram percursos ilegítimos no contexto social quando arrojaram sair dos seus silêncios. Elas sem dúvida manifestam uma força estranha e um requinte extremo, que desafiou a grande farsa das correntes mantidas pelo prestígio dos homens que, em matéria de voluptuosidade, pareceram sempre aquém, e é sempre com espanto que as lemos na sua modernidade, na sua ousadia, no seu vanguardismo, na cor por onde o ser se mantém vivo diante dos caminhos imperiosos da inteligência estéril. Vejamos que um poeta da sua dimensão dispensa o género mas, se não fosse mulher, o genérico da sua mensagem seria muito menos representativo.

Nasceu em 1880, curiosamente no mesmo dia de Virgínia Woolf, 25 de Janeiro, em Viseu. A sua obra é um imenso desfolhar de beleza, erotismo e de uma magistral forma de conceber a língua na construção dessa coisa outra que é a atmosfera onde brilha uma alma. Porém, no seu tempo, tudo lhe fora adverso. Em 1923, quando da rusga do Governador Civil de Lisboa que instaurou uma insurreição pela vontade dos Estudantes Católicos, diga-se, contra a chamada Literatura Dissolvente, cujo propósito era literalmente lançar para a fogueira este registo de coisas que punham em causa os costumes da Nação, com ela iam então António Botto com Sodoma Divinizada, Raúl Leal, e Decadência da própria Judith de Sousa, e tudo seria feito, caso Fernando Pessoa não os defendesse, ou seja, defendesse a legitimidade histórica dessas obras. Chamavam-lhe então «desavergonhada» para não mencionarem o seu nome os bons pensadores da época, que pouco ou nada ligaram também ao interdito de Pessoa.

Em 1927, a poeta sai do País e o seu modernismo, a sua criatividade, a sua intervenção cívica – dirige a revista «Europa» no tempo em que os alvores da Ditadura davam então os primeiros passos. Curioso é que mesmo aqueles que eram seus pares a resolvem esquecer. E ficamos assim, ainda hoje, quase que despojados de uma singular e excelente voz em que a luxúria pareceu ter sido uma afronta, o desejo, um preço a pagar, e o talento, uma qualquer ousadia imperdoável. Se Sá Carneiro se enleia e volteia de brocados carmesins numa voluptuosidade sem par, é maravilhoso sim, mas Judith tem lá dentro o outro, que não raro sofisma ser do mesmo género em alguns dos seus poemas, o que dá azo ainda a mais controvérsia. Mas lembro que alguns poemas de Pessoa insinuam ser de mulher na primeira pessoa, e muito desapercebidamente ninguém pareceu notar tal subtileza: as pessoas vêem sempre condicionadas por aquilo que acham que estão lendo, e não reconhecem a verdadeira leitura poética que é sempre mais vasta nos interstícios.

«Nua», o seu livro choque. A «Capital» faz uma crítica excelente, mas a propaganda está activa, a “Revolução Nacional” varre tudo que lhe pareça vergonhoso. Dizia mesmo o artigo: “«Nua» tem de tudo: espírito, carne – e sonho. Eles revelam, com brilho e com beleza, os estados de alma dum superior espírito de mulher”. A sociedade, essa, omite-lhe o nome, e cruelmente lhe chama «A bailarina cor de sangue», pensando eles que seria opróbrio e, nessa desforra impudica de imundície moralista, dão-lhe paradoxalmente uma bela designação. Mesmo, ou até mesmo, sobretudo Marcelo Caetano, fundador e redactor da Ordem Nova, diz isto: «Arte sem moral nenhuma». Efectivamente, Portugal nunca foi moderno. Levantou-se, sim, a acção republicana naqueles anos dourados em que muitos viram desgraça, para logo se calar, ficando-se pelas suas lendas de bons samaritanos genuinamente morais que é o mesmo que dizer, a grande boutada que hoje escutamos – a ética. Mas ninguém reabilitou com a justiça devida a grande poeta.

«Satânia», outro título inquietante, o nome dela bem como os títulos dos livros talvez anunciem um secreto preconceito muito peculiar no eterno mundo rural português. Seria ela o que todos desconfiavam e não diziam? E se o disse, todos tentaram não ouvir. As feministas do país, agora todo revolto uma outra vez, dão-lhe um espaço breve nas suas enciclopédias. Estas mulheres, não são de facto uma Judith Teixeira, são outras coisas tiradas das bainhas das calças dos homens, que desfilam sem mérito numa suposta e impactante erudição sem brio.

Creio que é a Hora! A hora de fazer lembrar. Passaram-se quarenta e quatro anos e parece que chegámos sem saber aos mesmos patamares de selecto obscurantismo. Andamos ocupados, o que é compreensível, não se dissimula um estado destes apenas com Revoluções, dado que essas, vão e vêm, mas a incapacidade atávica, essa sim, é imóvel, igual, e nem uma aragem faz correr.

Hoje é de novo vinte e cinco de Abril de um ano qualquer e não achei melhor tema do que este. Melhor oferenda de Liberdade! Ela, por tudo o que sei, não está, nem foi consolidada. A Liberdade continua a ser um vínculo, sempre, e para sempre, radicalmente poético. Já não há mais censura mas é como se existisse, essa censura censurável da omissão. Continuaremos pederastas e patriarcais? Muito, e bem para além disso.

 

O MEU CHINÊS

Nos olhos de seda

Traçados em viés;

Tem um ar sensual

O meu chinês…

 

Às vezes

numa ânsia inquietante

que eu não mitigo,

e que me domina,

num sonho de poeta

ou de heroína,

fujo levando

o meu Chinês comigo!

 

E lá vamos!

Nem eu sei

Para que alcovas orientais.

Realizar as horas sensuais….

 

Eu e o meu Chinês

Temos fugido tanta, tanta vez!

 

Inverno-Noite- Hora Inquieta- 1922.

8 Mai 2018

Elementos do bem e do mal

Jales Coutinho

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]ogo depois da libertação (Janeiro de 1945), um médico e um químico, colegas de cativeiro no campo para judeus de Monowitz, redigem um relatório, provavelmente a pedido dos soviéticos, sobre a organização higiénico-sanitária naquele Lager.

Leonardo De Benedetti e Primo Levi continuaram pela vida fora a dar testemunho dos onze meses ali vividos. Monowitz era um dos cem campos dependentes do centro administrativo de Auschwitz. Era um bom campo, dirá Levi noutra ocasião, por ser um Arbeitslager, um campo de trabalho forçado, e não um de extermínio. A média de vida ali era de três meses. Quando as forças se esvaíam, uma inspeção rápida despachava os homens para as câmaras de gás num campo próximo.

O relatório é publicado numa revista médica em 1946. Mais ou menos por essa altura Primo Levi decide dedicar-se à literatura. Também a escrita testemunhará o que viveram, ele e todos aqueles com que se cruzou. Não mais deixará de investigar os detalhes dessas vidas, para as resgatar do olvido. Igualmente a formação em Química intervirá nessa demanda. No relatório iniciático e em relatos subsequentes explica o funcionamento das câmaras de gás (os chuveiros) e dos fornos crematórios do campo de Birkenau. Pelas válvulas das câmaras, descreve, era libertado o Zyklon B, um pó inicialmente usado para desratizar os porões dos navios.

*

Sam Kean é um exímio contador de histórias da história da ciência. Seja o código atómico, o código genético, o cérebro, o ar que respiramos, tudo lhe vem servindo para coleccionar casos e histórias de exemplo e proveito. Fritz Haber é uma das suas personagens paradigmáticas, por encarnar a dualidade fundamental da ciência, o bem e o mal. Um daqueles casos (frequentes) em que uma descoberta ou invenção brilhante é reconvertida em agente de destruição. Consta que Arquimedes usou espelhos para atear o fogo aos navios dos romanos; dizia-se que a dinamite de Alfred Nobel era apenas para abrir estradas e túneis…

Haber tornou-se mundialmente famoso ao produzir amoníaco com o nitrogénio (elemento 7). Daí vieram os fertilizantes, que salvaram (e salvam) milhões de seres humanos da fome. A história aparece já no primeiro livro de Sam Kean (2010), dedicado à tabela periódica dos elementos químicos, livro de que saiu agora aliás uma edição para leitores jovens (abril de 2018). No seu mais recente livro (2017), dedicado à atmosfera terrestre, o caso de Haber regressa e merece ainda mais atenção.

O ar que respiramos é composto em 78 por cento por moléculas de nitrogénio (uma molécula do gás de nitrogénio tem dois átomos de nitrogénio). Nem sempre foi assim. A primeira atmosfera da Terra era essencialmente hidrogénio e hélio, sobras ainda do (pequeno) big-bang que originou o nosso sistema solar, há 4,6 mil milhões de anos.

Depois, com os planetas rochosos ainda meio pastosos, a (segunda) atmosfera da Terra formou-se principalmente dos gases vindos do seu interior: vapor de água e dióxido de carbono, gases sulfúricos, vapores metálicos. Talvez os constantes choques de asteroides e cometas tenham reconfigurado muitas vezes a atmosfera e o planeta, incluindo os lagos e os oceanos que se formavam; talvez asteroides e cometas tenham acrescentado outros gases à atmosfera…

A terceira atmosfera da Terra formou-se há 2,5 mil milhões de anos. Os choques de asteroides e cometas tornaram-se raros, a crosta do planeta arrefeceu, solidificou em rocha dura. O magma no interior continuou a libertar gases, que se acumulam em alguns pontos e acabam por explodir. Formam-se os vulcões, pelos quais os gases continuam a ser expelidos para a atmosfera, incluindo alguns gases ricos em nitrogénio.

O nitrogénio acumula-se na atmosfera porque os seus dois átomos, fortemente unidos, não se misturam com outros átomos. Apesar de vivermos num oceano de nitrogénio, e de ele ser indispensável em todas as nossas células, o nosso organismo não o consegue assimilar diretamente do ar; como faz com o oxigénio, por exemplo, através dos pulmões.

O desenvolvimento de algumas bactérias capazes de cindir os dois átomos (ligando-os aos átomos de hidrogénio, criando naturalmente amoníaco) estabiliza um ambiente favorável à vida de plantas e animais. Essas bactérias vivem nas raízes de algumas plantas e em alguns tipos de solo, trocando o nitrogénio por outros nutrientes. Os animais metabolizam o nitrogénio alimentando-se das plantas.

Na linguagem colorida de Kean, só no início do século XX uma espécie de não-bactérias foi capaz de fazer o mesmo: produzir amoníaco.

A tentativa de se criar um estrume químico já vinha de meados do século XIX, e foi isso mesmo que uma empresa pediu a Haber em 1905: uma nova maneira de se obter amoníaco, para se produzirem fertilizantes. Comprimindo moléculas de nitrogénio e hidrogénio com pressões centenas de vezes superiores à pressão atmosférica, experimentando metal atrás de metal como catalisador, acertando o nível das altas temperaturas, Haber conseguiu finalmente obter as primeiras gotas de amoníaco.

A industrialização do processo foi entregue a Carl Bosh, um engenheiro químico. A produção de fertilizantes a partir do amoníaco não parou de crescer, até hoje. Como se dizia na altura, Haber conseguira o milagre de transformar o ar em pão.

Ah!, suspira Kean, se esta história pudesse terminar aqui…

Com o início da guerra, Haber entrega-se às tarefas militares. Dirige a produção em larga escala de amoníaco para o fabrico de explosivos de nitrogénio (capturado no amoníaco). Mas tem outros projetos em mãos, um deles o de desenvolver uma arma química superior às dos ingleses e franceses, que desse a vitória à Alemanha. Haber vira-se então para o cloro (17), com o qual produziu e fez testar no campo de batalha vários gases altamente tóxicos, e sobretudo aterradores, como o gás mostarda. Kean diz que o ser humano guarda um medo primitivo à falta de ar, à asfixia por um ar venenoso.

No meio de protestos, e de denúncias pelos seus pares de vários países, com o labéu de criminoso de guerra, Haber recebeu o Nobel em 1919 (de Química, relativo a 2018). Nunca foi formalmente acusado, ao contrário de Bosh, que continuou a boicotar o acesso dos Aliados à tecnologia do amoníaco mesmo depois do Tratado de Versalhes.

Haber dissimulou a sua indústria de guerra, garantindo que estudava maneiras de destruir os gases em reserva ou de os reconverter em pesticidas. Assim se inventou o Zyklon A.

Com a chegada de Hitler ao poder, o destino de Haber estava traçado. Não aceitou ter de despedir os cientistas judeus, ele próprio com raízes judaicas. O seu laboratório foi encerrado e a sua fortuna confiscada. Morreu em 1934, em fuga, tentando que algum país o acolhesse. Daí a uns anos, os nazis tinham desenvolvido a segunda geração do pesticida, o Zyklon B.

*

«Tinha numa gaveta um pergaminho miniatura com caracteres aprimorados que dizia que se conferia a Primo Levi, de raça hebraica, a licenciatura em Química com 110 e louvor. Portanto, era um documento dúbio, semiglória e semizombaria, semiabsolvição e semicondenação. Estava naquela gaveta desde julho de 1941 e novembro já terminara. O mundo caminhava para a catástrofe e à minha volta nada acontecia. Os alemães espalharam-se pela Polónia, pela Noruega, pela Holanda, pela França, pela Jugoslávia, e penetravam nas planícies russas como faca na manteiga. Os Estados Unidos não se mexiam para ajudar os ingleses, que continuavam sozinhos. Eu não encontrava trabalho e estoirava-me à procura de uma ocupação qualquer desde que fosse paga; no quarto ao lado do meu, prostrado por causa de um tumor, o meu pai vivia os seus últimos meses.»

Sexto capítulo. Como todos os 21 capítulos do livro, tem por título o nome de um elemento: “Níquel”. É a tabela periódica de Primo Levi: O sistema periódico, 1975 (Dom Quixote 2017). Lembranças sobretudo do antes e do depois; as do cativeiro estão já essencialmente no seu primeiro livro: Se isto é um homem, 1947 (Livros RTP 2018).

Levi vai arranjar logo a seguir um emprego, o seu primeiro emprego depois da licenciatura, meio secreto, ligado aos militares, numa mina de extração de amianto, que já derrubara uma montanha. Tarefa, analisar os restos das rochas deixados pela extração, para ver se havia algum níquel. Entusiasma-se, pelo menos estava a viver na montanha, faz todas as experiências possíveis. Um leve pensamento que por vezes o assalta, o de estar provavelmente ao serviço da produção de armas para o governo italiano, não o inquieta. Mas o níquel é residual, nada a fazer, senão procurar outro emprego.

Lembra as suas primeiras tentativas literárias, dois contos meio fantásticos (“Chumbo”, “Mercúrio”), cola-os a seguir, ficam aqui «entre estas histórias de química militante». Também «sonhava escrever a saga de um átomo de carbono». Escrevê-la-á muitos anos depois, é o último capítulo (“Carbono”).

Desde 1942 em Milão, os sete amigos de Turim enfrentam agora a realidade. Itália ocupada, juntam-se aos partigiani, três são presos. Em novembro de 1944, Levi está no Lager; o único conto (“Cério”) em que regressa ao cativeiro, ao laboratório da fábrica de borracha sintética, a Buna-Monowitz, local de trabalho para que fora selecionado. Já todos estão à espera dos «russos libertadores», há só que vencer a fome. «Roubava tudo, exceto o pão dos meus companheiros.» Encontra uns pedaços de ferrocério num armário. Descobre que podem servir como pedra de isqueiro; rouba-os, um pedaço de cada vez; molda-os; troca-os por comida.

Anos depois da guerra, já anos 1960, na correspondência comercial da fábrica de vernizes que dirige (penúltimo capítulo, “Vanádio”), aparece-lhe um nome… «Müller. Numa minha anterior encarnação havia um Müller.» Acaba por escrever-lhe, e confirmar, o seu «colega produtor de vernizes» fora o responsável pelo laboratório de Buna-Monowitz. Müller tinha uma boa «(louca!)» opinião sobre a fábrica de Buna (que não chegou a entrar em funcionamento), a fábrica destinava-se a «proteger os judeus». Gostara do livro (o de 1947, edição alemã) que Levi lhe enviara, também tinha umas notas daquele período, queria conversar sobre o passado, encontrar-se com ele…

 

8 Mai 2018

Das matizes da paixão

[dropcap style=’circle’] U [/dropcap] ma das razões pelas quais o amor continua a merecer a atenção dos poetas é a sua inesgotável capacidade de nos desassossegar. De repente, um tipo tem uma rotina que não detesta, amigos com quem partilhar banalidades e filosofia de bolso, uma ocupação dominical com puzzles ou outro hobby solitário, a convicção de que a vida em mono tem a inequívoca vantagem de permitir a livre expressão da vontade unipessoal.

No entanto, um contacto inesperado com uma criatura que surge da bruma num misto de estranheza e familiaridade muda tudo. A coisa nunca é uma surpresa, pelo menos na forma como se dá. São afinidades importantes (nunca as mesmas), visões de vida com pontos de confluência, uma salutar discordância em coisas de somenos e uma cumplicidade imediata que parece ter sido herdada de outra vida. Um tipo, por contraste, percebe que a vida de ontem, tão equilibrada quanto confortável, estava para a realidade como a simulação informática do Matrix. Apesar de jogar com as mesmas categorias, tem a consistência espúria de um sonho. É no seu todo muito menos do que uma pequena parte da vida de agora. Parece mentira.

Esta sensação de despertar subitamente para a textura plena das coisas sabe a vida. O sujeito passa da condição de espectador interessado para o de actor de pleno direito. É tão raro como inebriante. O apaixonamento tem a característica de radicalizar o ponto de vista. Não voltamos a contentar-nos com as coisas pela metade, com uma faceta apenas dos fenómenos. A gula própria de quem quer abocanhar a vida até à raiz faz-nos querer nunca menos de tudo. E sentimo-nos, como nos diversos discursos do simpósio platónico, em posse da “metade em falta”.

Essa maximização das sensações e o empoderamento que dela decorre faz com que um sujeito tenha de reconfigurar de algum modo a vida. Criam-se hábitos novos, rotinas de casal, alguns laços enfraquecem, nomeadamente por falta de tempo e vontade para continuar a cuidar deles com a diligência do passado, outros, parte integrante do mundo que a outra pessoa traz como bagagem, surgem naturalmente. A vida, que nos parecia confortavelmente definida, sofre uma reconfiguração de monta. Mas vale a pena o esforço, porque a vida antes era apenas uma coisa pela metade que vivíamos na ilusão de tê-la por completo. Agora não, agora têmo-la toda pelo cachaço

Se a coisa corre bem, o mundo e o sentido novo que o preside não deixam nunca de ter um rumo e coloração unívocos. Os obstáculos que decorrem naturalmente de uma relação em que duas vontades têm de encontrar espaço para a cedência ultrapassam-se com a serenidade de quem está imbuído de uma força e resolução superiores. A dois tudo é mais fácil.

Quando um dos elementos do tandem começa a perder interesse naquela rota a pares, a coisa complica-se. A construção começa a mostrar sinais de desgaste e, enquanto um se apressa a dar conta das fissuras na parede, o outro só pensa na forma menos dolorosa de abrir a porta de saída. Aquele sinal na cara, mesmo no queixo, que antes era adorável, é agora insuportável. Um sujeito dá finalmente conta de que a outra pessoa não bebe a água de forma correcta, de que não pronuncia bem os erres, de que tem um objectivo de vida incompatível e incomportável. Tudo o que parecia justo e adequado afigura-se agora estranho e inorgânico. Não se quer estar ali, não se quer alimentar esta estranha criatura feita de retalhos alheios.

E, quando finalmente as coisas acabam, um tipo volta a arrumar tudo nos sítios como um adolescente à espera do regresso dos pais depois da festa em casa. Voltamos ao passatempo solitário de domingo, aos amigos que nos recebem sem rancor, a quotidianidade em mono. Com o tempo, tudo passa a fazer novamente sentido. Até alguém aparecer para desarrumar tudo outra vez.

7 Mai 2018

Raccord I

[dropcap style≠‘circle’]T[/dropcap]udo o que vemos está à nossa frente. Os olhos estão dirigidos para fora, têm uma orientação, uma direcção, nem sempre um alvo. Podemos perder-nos no horizonte ou nos objectos espalhados pelo hemisfério que captamos. Entre o céu azul em cima de nós e o plano que se estende dos nossos pés até lá ao “fundo” à linha do horizonte, o olhar pode apanhar tudo o que aí está pulverizado em cima e em baixo, distante e próximo, dentro e fora, à direita e à esquerda. É assim que vemos o pôr do sol. Uma vez posto, viramo-nos para a direcção contrária. O que tínhamos à nossa frente “desfaz-se”, desaparece da vista para fora, fica literalmente atrás das nossas costas, e passamos a ter à nossa frente outro hemisfério. Vejo agora também lá ao fundo o céu ainda azul do fim de tarde de onde se perfilam as casas da aldeia concentradas em diferentes planos fundidos, mas diferentes, uns mais próximos dos outros. Entre a concentração de edifícios na aldeia e o sítio onde estou estendem-se a estrada e os passeios que a ladeiam, a praia, as pessoas que ainda lá se encontram.

Há sempre um arredondamento dos conteúdos do mundo, mesmo que do meu mundo. Só vemos o que está à nossa frente e para onde nos dirigimos. É por aí que nos orientamos. À medida que nos viramos, rápida ou lentamente, desaparece o que tínhamos e aparece o que não tínhamos. Há sempre apenas a sensação de que temos mundo atrás das costas, para onde não estamos a olhar. Para o activarmos, porém, temos de olhar nesse sentido e nessa direcção. O plano de fundo tende a atrair objectos que concentra espalhados numa abóbada. As estrelas espalhadas pelo céu na noite de Agosto estão todas aparentemente numa mesma película, num mesmo plano, com um brilho diferente. E, contudo, se ainda lá estiverem, e estão sempre enquanto brilham, estão a distâncias diferentes de cada um de nós. Podemos perceber a lua e o sol mais próximos de nós. Mas a partir de determinada distância todos os objectos são empurrados para o seu limite homogéneo, todos eles lá ao fundo. Só a proximidade nos dá o relevo, alto e baixo, permite resolver com nitidez os contornos dos objectos e, com as diversas, percepções ter uma imagem mais completa da realidade do que são.

Com o tempo passa-se o mesmo. Há um aparente predomínio do presente. É agora que estamos a atravessá-lo com uma velocidade configurada pela actualidade das actividades ou inactividades a que nos dedicamos. A manhã passa rápida ou lenta, não damos pelo tempo passar ou damos por ele a passar tão lentamente que parece que ouvimos cada segundo a passar no relógico cósmico. A actualidade do presente mantém aderida a si ainda o dia de ontem, como decorreu, o que fizemos, como se estivéssemos a olhar para uma página do diário em que tudo foi apontado tim tim por tim-tim, ou como quando tentamos lembrar-nos do que comemos de véspera, se fizemos ou não fizemos X, Y e Z. A actualidade mantém também o estilo de experiência com que esperamos o que se passará no dia de amanhã, que dia da semana é e o que costumamos fazer nesse dia da semana, se é dia feriado ou um dia normal, que dia da semana é. Ainda assim, é do tempo presente e vivo da actualidade que mantemos esses dois olhos virados para o passado e para o futuro. Quando pensamos no dia de ontem e tentamos reconstituí-lo temos à nossa frente os objectos como se estivéssemos a percepciona-los. A lembrança tem sempre uma orientação e direcção para o olhar. Mesmo quando me lembro do pequeno almoço, a janela está à minha frente quando entro na cozinha e só quando lhe viro as costas vejo a porta de entrada. A lembrança segue o padrão da percepção. Quando antecipo o jantar de hoje e as pessoas que irei encontrar, vejo-as também de frente e se lhes virar as costas sei que não as verei. Apenas “as farei a ser”. Quando não penso no dia de ontem nem no dia de amanhã, percebo que me aparecem em lembretes as impressões deixadas e as antecipações do que há-de ser uma impressão no presente. Mas a actualidade do presente está sempre impregnada do próprio sentido da impressão deixada pelo que foi vivido e pela antecipação da impressão que será deixada e dos estados em que ficaremos depois de termos passado pelo futuro que nós dará a viver em actualidade o que é meramente virtual.

O futuro e o passado são o horizonte que servem de fundo às fases de tempo entre o passado todo e o presente ou o futuro todo e o presente. Está mais próximo de nós o dia de ontem do que a semana passada, os últimos vinte anos do que os últimos quarente. Está também mais próximo de nós o dia de amanhã do que depois de amanhã, os próximos anos do que mais tarde. Mas o passado tende a atrair e absorver tudo o que é passado para um fundo idêntico ao céu por onde se distribuem as estrelas, lá ao fundo e num mesmo plano indistinto. Também o futuro dos futuros é esse céu que mantém em si todos os momentos de tempo. Não só os momentos futuros de todas as pessoas que estão aí comigo e das que ainda nascerão. Esse céu que tem espalhado por si todos os tempos no seu fim. É lá que se encontra também a primeira vez de todas as primeiras vezes. A primeira vez não está atrás de mim, nas minhas costas, tão pouco como o futuro está à minha frente à minha espera. Todo o meu passado está à espera de mim na hora da minha morte. E pode também acontecer que não tenha já futuro. O que quer dizer que o meu olhar se perde nele como se perde no céu azul, deixando-me sem distância para a proximidade e o que está à mão.

4 Mai 2018

Primeiro dia das Comemorações

[dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]ão basta a peste e desde 25 de Abril de 1898 junta-se-lhe notícias da Guerra Hispano-Americana, devido à intervenção norte-americana nas guerras de independência que sobretudo Cuba e as Filipinas travam contra Espanha. Aqui próximo, nas Filipinas, os espanhóis viriam a ser derrotados a 12 de Junho, tornando-se estas ilhas do Pacífico independentes, mas anexadas logo de seguida pelos americanos, prosseguindo os nativos assim na luta pela sua independência. Perdida a guerra em todas as frentes, a 12 de Agosto de 1898 teve a Espanha que ceder aos EUA as Filipinas, Porto Rico e Guam, tornando-se Cuba independente, mas sobre supervisão americana.

Se a nível internacional ocorre a Guerra Hispano-Americana, com barcos de guerra americanos a sair do porto de Hong Kong para ir fazer o cerco a Manila, também neste final de Abril, o ambiente de Macau é bastante desfavorável a grandes festejos para comemorar o IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia. Grassa já a peste bubónica e segundo O Porvir de 30 de Abril de 1898, “Diz-se que foi exportada de Hong Kong, pois daí tem fugido muita gente que não gosta do tratamento médico e das medidas sanitárias adoptadas nessa colónia. Bom seria que as autoridades de Macau tomassem medidas rigorosas para evitarem que continue o êxodo de chineses de Hong Kong para Macau”. Devido ao crescente número de casos de peste bubónica, o governo de Macau resolve transformar a abandonada Fortaleza de D. Maria II em lazareto. Por isso, refere O Porvir de 21 de Maio, são eliminados do programa dos festejos do IV Centenário tudo o que pudesse promover aglomeração dos habitantes de Macau, ou concurso dos nacionais ou estrangeiros das colónias, ou povoações próximas.

 

No primeiro dia

Os jornais, como O Porvir de 21 de Maio de 1898 publicado em Hong Kong e em Macau, o Echo Macaense e O Independente, ambos de 22 de Maio, dedicam colunas das suas páginas a descrever o dia-a-dia dessas celebrações. Assim, num apanhado dessas notícias, deixamos aqui registados os quatro dias de comemorações. Como introdução refere O Independente, “Foram modestos e simples os festejos (…), pelas más condições de salubridade em que se encontra esta terra; mas o sentimento patriótico sobressaiu em todos esses actos, sem grandes expansões de entusiasmo, mas intimamente, mas convictamente”.

A cidade acorda, ao raiar do dia 17 de Maio de 1898, com o toque de alvorada às seis da manhã em frente ao Palácio do Governo executado por elementos da guarnição de Macau, enquanto as fortalezas de S. Francisco e de S. Paulo do Monte salvam com 21 tiros. Em seguida, a banda musical da guarnição faz soar o hino do Centenário e segue em direcção ao Paços do Concelho (Leal Senado), onde em frente toca também esse hino e com ele depois prossegue o seu trajecto, percorrendo as ruas da cidade.

À tarde, pelas 5 horas, tem lugar um Te Deum na Sé Catedral. Está a igreja bem decorada, sobressaindo as bandeiras portuguesas que ornam a parte superior do altar-mor e as tribunas, e completamente cheia, tanta é a concorrência do povo que aquele vasto templo mal o pode comportar. Aí está presente o Governador, com o seu estado-maior, o Leal Senado, o Dr. Juiz de Direito com os seus escrivães e oficiais de diligências, o Secretário-geral, o Chefe do Serviço de Saúde, o Inspector da Fazenda, o Procurador Administrativo, o Chefe do Expediente Sínico, os corpos docente e discente do Liceu, oficiais de mar e terra e todo o clero.

O soleníssimo Te Deum tem como celebrante Sua Excelência Reverendíssima o Sr. D. José Manuel de Carvalho, que chegara à cidade a 1 de Março de 1898, após ser eleito Bispo de Macau por decreto de 4 de Fevereiro de 1897 e preconizado em consistório de 16 de Abril desse mesmo ano. José de Carvalho nascera a 16 de Setembro de 1844 em Torigo, freguesia do Barreiro, concelho de Tondela e estudara Teologia em Viseu, onde tomou ordem de Presbítero em 1867 e entrando na Universidade, concluiu em 1881 a formatura em Direito.

No início de um brilhante discurso, o Revendo cónego Conceição Borges declara ser a última vez que ora ao público de Macau. Tece com verdadeiros rasgos de eloquência, que por vezes comovem a audiência, o panegírico do Vasco da Gama e dos portugueses do seu tempo, relacionando o acontecimento que se comemora com a doutrina de Cristo. Depois disto, dois cavalheiros de Hong Kong (o Sr. Kraal e Vicente Senna), a D. Maria Guedes e a D. Emília Pacheco, com a sua belíssima voz de soprano e cheia de sentimento, cantam primorosamente uma Ave-Maria, sendo acompanhados pela orquestra. Ensaiada e regida pelo Dr. Gomes da Silva, é a orquestra constituída por alguns amadores (Condessa de Senna Fernandes e os srs. drs. Gonçalves Pereira, Fernando Cabral, António Vicente da Silva e Carlos Cabral) e seis músicos da banda da Companhia de Infantaria. Segue-se o Te Deum solene cantado pelos seminaristas, estando a parte instrumental a cargo da banda dos alunos do Seminário de S. José. Estes, antes de chegar à Sé, tinham passado pelo Leal Senado, onde interpretaram o hino da Carta. Terminadas aquelas cerimónias, a guarda de honra, postada no Largo da Sé dá três descargas, salvando nessa ocasião a fortaleza do Monte com 21 tiros.

A banda musical do Seminário saindo da Sé dirige-se para o Palácio do Governo onde toca os hinos da Carta e do Centenário, assim como esses alunos dão vivas a Portugal, à família real portuguesa, ao coronel Galhardo e ao Vasco da Gama, recolhendo em seguida todos ao seminário.

À noite, os alunos do Liceu, com archotes e o seu estandarte, percorrem diferentes ruas da cidade, seguindo à frente a sua filarmónica, regida pelo jovem Fernando Cabral. Vão às casas dos seus professores e à do ancião Luiz Maria do Rosário, o brioso militar único sobrevivente dos 32 bravos que tomaram a Fortaleza do Passaleão [nome dado pelos portugueses a Pac-Sa-Leong] e que vive desfavorecido de fortuna. Constatam ser a iluminação dos edifícios públicos igual à habitual, mas quando passam pelo edifício do Leal Senado, numa das suas janelas está colocado um quadro transparente, executado por Sr. Jaime dos Santos e representando a chegada de Vasco da Gama a Calicut. Também à porta da ‘Empresa Económica’, a ocupar toda a sua extensão, outro quadro com a imagem de um selo postal do centenário, o de 4 avos. Iluminado com balões chineses, o Hotel Hingkee tem pintadas bandeiras de todas as nações. Os alunos do liceu são por todos recebidos esplendidamente e erguem calorosos vivas a Portugal, à família real portuguesa, a Galhardo, à Academia macaense e ao povo de Macau.

Em casa do Sr. Conde de Senna Fernandes há uma soirée dançante, onde se acha reunida a elite da cidade.

Este, o programa do primeiro dia das comemorações realizadas em Macau a 17 de Maio de 1898.

4 Mai 2018

Amor e atitude

Praça da Fruta, Caldas da Rainha, 14 Abril

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]vancemos pelo resto, ainda nos arredores de Imaginário. Os encontros que perturbaram a tepidez caldense tiveram os livros por mesa e cadeira, circunstância e pretexto. As nuvens na manhã de sábado não cumpriram a ameaça, permitindo-nos trocar a bela mas exígua capela de S. Sebastião pelo átrio do posto de turismo. Haveria melhor lugar para enfrentar «O Processo de Camilo» do que esta antiga cadeia? E melhor leitor do que juiz dado à escrita e amante da História? Temos pois, em breve volume da colecção Fósforo, a que mais nos tem crescido, retrato literário de Camilo Castelo Branco pintado a partir dos seus principais biógrafos, com Aquilino, Agustina e Pascoaes à cabeça, antes de entrarmos nos detalhes do auto que julgou o escândalo de um amor.

Juiz desembargador, agora na Relação do Porto, o Carlos [Querido] encena pequena peça que inclui como personagens advogados, juízes e demais autoridades, seja o rei D. Pedro V, cujas visitas ao escritor acaba por lhe transformar a prisão em hotel. O Porto, escandalizado com o adultério, vê-se provocado ao estupor pelos passeios ostensivos do amante de Ana Plácido. «Então era verdade», escreve Aquilino a propósito dos «murmúrios» que atravessavam a cidade, «que havia outra soberania além da do dinheiro? Fazer livros tinha mais mérito do que vender o riscado e o cordovão, lançar uma conta no deve e haver, gerir uma sapataria?» Camilo escreve desalmadamente, mas contra o desespero da situação e a ansiedade pelo desfecho. Ana está, também ela presa, e não apenas dos seus desejos. De tão sintético, Carlos escreveu entrada de dicionário, mas permite-se o comentário, ainda que ligeiro, dos que se apaixonam pelo objecto da investigação. «Na sua pluralidade semântica, os autos, para além de narração processual, podem ser peças dramáticas.» O último acto será o julgamento, com todos os ingredientes do drama romântico, a que não faltam evacuações de sala, desfalecimentos, apuramento de linhagens genéticas por especialistas de renome. O júri acaba por absolver os amantes. Não em nome do amor livre e legítimo que, percebe-se, comove o autor do ensaio, mas com o argumento jurídico de que a prova não foi feita. Camilo, que não se dava mal com o conforto do quarto, só abandona obrigado a Cadeia da Relação, hoje Centro Português de Fotografia, origem da carte de visite que acolhe o leitor nas primeiras páginas. A pose será clássica, mas o olhar algo perdido conserva uma tristeza que nem o ondulante bigode esconde.

Gracal, Caldas da Rainha, 15 Abril

Mais simbólica (haverá algures terra assim baptizada?): entre vetustas impressoras, nas vísceras da gráfica com pergaminhos que o imprimiu, apresentamos à sociedade objecto especialíssimo, mesmo não tendo como suplemento o azulejo do Mário [Reis] no qual dois gatos praticam o yin e o yang (exclusivo da edição especial). «Una Piccola Storia d’Amore – Rafael Bordalo Pinheiro e Maria Visconti», da Isabel [Castanheira], que revela os detalhes de outro amor proibido, possui qualquer coisa de peça de cerâmica quebrada. Mas que reencontrou a unidade graças a ancestrais saberes. A Isabel recolheu com extremoso cuidado, não apenas documentos inéditos, por exemplo, as cartas de Visconti que atestam, de uma vez por todas, a conjugalidade do par, mas cada uma das peças de cerâmica, dos objectos, vinhetas, desenhos ou fotografias que testemunham a paixão de Rafael pelo teatro, primeiro, pelas mulheres, depois, e, antes do mais, pela actriz que representa o papel principal. Descreve, transcreve, contextualiza. Arrisca interpretações, sorri, indigna-se, aproxima-se, espreita. Comove-se. Vem o Miguel [Macedo] recolher os fragmentos e compor melodia gráfica feita de rigor e pormenor. Escolhe o vermelho paixão para comentário e também costura do caderno, que este traz cicatriz no lugar de lombada. Abre cortantes, na frente e no verso, para que as badanas revele os rostos fotográficos dos amantes. Alinha depois, com regular cadência, os despojos que a respigadora coligiu e cola-os ao texto criando um nexo que explode em minúcias, que brilha no conjunto, álbum portátil, caderno de recortes e memorabilia. Não consigo parar de o folhear, de me perder nos manuscritos facsimilados, nos desenhos de vida e de morte, nas assinaturas, na mudança das fontes, no trabalho dos corpos. Em fundo, como um rio, a história. E o amor, os amores.

Paredes de Coura, 21 de Abril

Subo na tentativa, só ali concretizada, de REALIZAR:poesia. Na bagagem, três novos títulos da colecção Mão Dita que, somados ao primeiro, já lhe definem um rosto. Isto das colecções, em tempos, terá sido argumento de venda, modo de prender o leitor a um conjunto, mais do que à unidade, invariavelmente dada à soltura, à perdição. Hoje, com o desvario de títulos, surge-me quase só como modo de organizar a cabeça dos organizadores, dos editores. Haverá coleccionadores, bem sei, mestres supremos da obsessão e do método, mas estão longe de ser comuns leitores. O lugar e a ocasião têm muito que se lhe diga, com a estimulante culpa desta «genética desobediente da criação e da poética» atribuível ao Isaque [Ferreira] e equipa, bem como como ao Vítor [Paulo Pereira], o carismático e irrequieto presidente. Imagine-se que, doravante, os ofícios camarários terão por rodapé pequenos poemas de autores contemporâneos: Fernando Guimarães, Jorge Sousa Braga, Pedro Mexia, Ricardo Marques, Rui Lage, Nuno Moura e Vasco Gato. Chamaram à ideia, no ano em que o punk foi convidado de honra, «Poesia Oficial». A atitude desafiadora não tem pertença ou filiação, não precisa ser gritada, não se faz seita, não carece de guardiões do templo, apenas se chega à frente sendo. Na cerimónia fundadora, coube-me em sorte aquele que traz, de Fernando Guimarães, a «INSCRIÇÃO// Escuta a voz/ que traz a harmonia/ dos rios que prolongam/ em nós a poesia.»

Vila Lisa, Mexilhoeira, 28 Abril

Anda por aqui um norte que levanta as folhas caídas desta Primavera travestida de Inverno: o Tondela derrotou o Benfica, o Sporting venceu o Portimonense aqui tão ao lado que me pareceu ouvir as alegrias do golo. Em excelente companhia viemos saudar esta dupla imbatível, seja na defesa como no ataque. Rezou assim e por ordem o cardápio das singelezas, com o Vila por perto e o Lisa ao comando do navio: Batatas de cu para o ar, alhada de raia, lula ovada, canja de conquilhas, choco com batata-doce e ervilhas, carne de porco com miga gata e, grand finale, sopa de rabo de boi com grão. À laia de posfácio, conte-se as energéticas bolas de figo com amêndoa e a levíssima aguardente.

3 Mai 2018

A Arca de Noé

24/04/18

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enras cabeças que o vento tatuou. As que encontro ao espelho, matinalmente. Emerge a cada manhã uma cabeça, frágil como a do cravinho no seu esquiço de energias antes de lhe acudir a primeira palavra, esse primeiro contacto com a resina.

Oh, oh, o que eu gostaria de ser um filósofo comerciante em chá, como Vasily Boktin, é o que vos digo, em vez de perder tempo a cismar onde devo, na frase, trocar ¨cochila¨ por ¨tartamudeia¨, palavras agrafadas ao pulmão crepuscular dos flamingos.

No rádio passam Monteverdi.

Outro dia sem álibi. Chega o vento e tatua-me os sonhos.

26/04/18

Passou o 25 de Abril. Um espírito litoral, mais do que à letra do continente, a que serei sempre fiel. Lembro a alegria a nascer no olhar do meu pai, habitualmente pétreo.

«Quando novo – diz Platão na Sétima Carta – aconteceu comigo o que se dá com todos: firmei o propósito, tão logo me tornasse independente, de ingressar na política».

Não me aconteceu a mim, apesar do entusiasmo e das intensidades políticas que se sucederam a 74 (tinha 15 anos e portanto todo o meu crescimento humano e intelectual gizou-se nesses anos loucos), nunca quis ingressar na política. Destituído de qualquer jeito para a elocução pública. Demasiado tímido, além de anarquista. E sentia mais afinidade com os vagabundos, com os santos ou os reclusos, com todos aqueles que se evadiam de se entregar a qualquer acordo prévio e de se render à populaça dos sentidos.

Nunca quis ter carro, carreira, telefone pouco (e queixam-se-me muito os amigos), tenho fb porque gosto de rir, sem fazer da obsessão da partilha um dogma (aliás, acredito muito pouco na instantaneidade da partilha), uso a net porque me permite incursões no conhecimento da arte. Já a minha televisão está sem pio há seis anos e a minha reforma é nula.

Creio que pacientemente trabalho para o suicídio. Admiro o de Séneca, maravilho-me com a determinação de Antero que teve o sangue frio para dar o segundo tiro não tendo sido fatal o primeiro.

Impede-me por enquanto, desse último acto, o amor. Mas pode o elo do amor também quebrar-se e a miséria do amor é a única que não devemos consentir.

No dia em que me fatigar das letras e as minhas filhas estiverem todas formadas, e sentir que a razão se me esburaca enquanto o desejo já só semeia fadigas, creio que o método antigo de voluntariamente pôr um termo à vida é uma digna escansão. Porque esta é igualmente, entre outros motivos, uma questão de ritmo. Mantenho a convicção de que o suicídio pode ser – enquanto gesto pessoal e intransmissível -, uma celebração da vida, em vez de uma marca de desespero.

Hoje, entretanto, catei em Nietzsche esta coisa maravilhosa: «Agradecidos a Deus, ao diabo, ao carneiro e ao verme que há em nós».

Suspeito que não há mais nada a acrescentar.

Ou há. Entra-me olhos dentro que acontecimentos como o 25 de Abril, o Maio de 68, a Revolução Francesa são Arcas de Noé, no sentido em que lhe deu Saramago.

Já lá iremos. Façamos agora um pequeno desvio para contar que fui fulminado pela mesma insólita evidência que abalou Roger Caillois quando leu detidamente sobre o Dilúvio e Noé e com estupor compreendeu que afinal Deus não pretendia acabar com o mundo mas antes e unicamente favorecer os peixes. Só um antropocentrismo decapitador nos impede de ler as evidências.

Esta semana também me arrombou outra informação: Páris tinha o dom da profecia. Compreendem como isto altera tudo? Compreendem mesmo?

Mas voltemos a Noé. Gostei da leitura que dele fez Saramago e sobretudo da desopilação do último capítulo do romance Caim, inapelavelmente herético. Deus queria dar cabo da raça humana, ainda que com ressalva, salvando Noé e os seus. Saramago fez Caim cruzar o caminho da Arca e Deus num gesto de exibição da sua bondade eterna perdoa-lhe e ordena que Noé o aceite, até para garantir que as fêmeas da Arca sejam fecundadas. A partir daí é um regabofe. Caim fecunda-as a todas, contudo lança-os, aos homens e a elas pela borda fora (com a excepção de Noé, que se suicida), e quando a Arca acosta, depois do desfile dos animais, sai sozinho e confronta Deus com a impossibilidade de perpetuar a raça, pois só sobrou o macho.

Na verdade, o romance é profundamente nietzschiano, dado que à severidade de Deus sobre a raça Saramago contrapõe uma radical convulsão gramatical e transforma um castigo numa impossibilidade genética.

Como dizia Nietzsche, Deus não morre enquanto não dermos cabo da gramática e este Caim fere fundo a omnipotência de Deus.

Todos os grandes acontecimentos políticos tendem à mesma agramaticalidade: é um momento em que a História sacode as suas regras e escamas e se produz a si mesmo, liberta de tutelas, numa nova configuração. Daí que fundem uma fidelidade que mobiliza alguma dinâmica na continuidade dos processos.

Para duas gerações inteiras o 25 de Abril representou um período de liberdade sem abstinências e não há como estarmos suficientemente gratos por termos conhecido uma tal peripécia (raríssima) no curso da nossa vida.

27/04/18

CONJURAÇÃO: «As insónias são para o que servem:/ planificamos o negócio sobre bonsais/ que nos vai confortar a reforma/ ou enlouquecemos; outra hipótese // é relermos algo que nos emocionou/ para lhe escalpelizar a mecânica da escrita/ antes que a geringonça (eis-me à la page) / da insónia nos triture vivos.// Do ralo da noite, entretanto,/ brota a crista do galo e o seu esporão/ ferra-nos porque para ele / só em nós é espúria a manhã.». Poema de Os Testamentos Apátridas e outros Cordéis sem Alma, um dos dois livros reunidos em Oitenta Flechas para Atrair a Cotovia, com edição da Douda Correia, daqui a um mês.

3 Mai 2018

250 filmes de Todos os géneros num festival

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] bertura oficial do 15º Festival Internacional de cinema de Lisboa

Carlos Ramos, Miguel Valverde, Nuno Sena, apresentam a 15 edição como “continuar a fazer do IndieLisboa uma grande festa à volta de um cinema permanentemente aberto à descoberta formal, à singularidade autoral e às convulsões do mundo contemporâneo.”

Afirmam que a programação aposta numa selecção que promove o encontro entre nomes consagrados do cinema de autor mundial e novos cineastas. A característica mais distintiva do festival é a mistura, a hibridez de géneros, e duração. No cartaz estão curtas e longas. A secção do Herói Independente é, como sempre, incontornável. Este ano faz-se com o cinema de Jacques Rozier , nome da vanguarda da modernidade cinematográfica europeia desse tempo de mudança conhecido como “nouvelle vague”. Jacques Rozier é um dos mais desconhecidos cineastas desse movimento. A sua obra vai poder ser descoberta ou revisitada numa das mais completas retrospectivas fora de França, nas salas da Cinemateca Portuguesa.

O segundo herói nesta edição, chega da Argentina e tem nome e corpo de mulher, é a cineasta Lucrecia Martel. Vai ter uma retrospectiva alargada da sua obra, desde a curta até ao filme Zama. Martel vai estar no Festival e fazer uma MasterClass onde partilhará a sua visão do cinema.

A longa metragem de André Gil Mata, ARVORE, foi título escolhido para a cerimónia de abertura do festival do realizado. O filme chega ao ecrã do cinema S. Jorge depois de ter estreado na Berlinale Forum.

Uma SOLIDÃO PÓS-UTERO. O filme tem uma belíssima fotografia assinada pelo João Ribeiro, o trabalho de som é do António Figueiredo e a montagem do Tomás Baltazar.

O filme é um claríssimo tributo ao cinema de Bela Tárr e também do soviético André Tarkovsky. Retoma a ancestral estrutura de todas as tradições das literaturas orais e escritas nas histórias dos povos do mundo, em que estão presentes a iniciação, a demanda do herói e o regresso.

O cinema desde sempre se apropriou das estruturas narrativas presentes na literatura e da tradição iconográfica e pictórica e aqui, no filme de André Gil Mata querendo e procurando uma ideia radical de cinema, é essa tradição oral e pictórica que o filme sobretudo afirma.

Aqui temos um infante que olha o mundo através da janela perto da proteção da mãe. O homem que sobe o rio carregado de garrafas vazias para encher na fonte da água inicial. O encontro do homem com o infante e o regresso à fala da mãe, esse lugar único e protetor no mundo gélido e lunar do habitar humano, ainda mais quando a memória da guerra e o e a neve do inverno se instala.

A infância, esse lugar primeiro da singularidade do humano, é sobretudo a marca de um tempo onde o calor da casa e o quente e protetor afecto da mãe protegem do exterior. O bafo quente contra o vidro embaciado da janela, olhar a neve e frio perto do calor do fogão da movimentação da mãe.

Há depois um tempo de confronto com o mundo sempre hostil, é preciso esforço sacrificial na procura da água da fonte não poluída e a metáfora instalasse por um tempo largo. Um homem caminha na terra coberta de neve e sobre com o esforço dos braços que remam o pequeno barco as águas do milenar rio que atravessa Sarajevo na direção da fonte da água limpa onde possa encher as garrafas vazias. É necessário lembrar que Saravejo é/foi recentemente na história da europa esse lugar da humilhação e do horror sangue e dólares sempre presentes nas no tabuleiro do poder do geopolítico. Fantasmas, que são afinal o que resulta desta vontade de acumulação e fixação do animal homem, ainda que efémera no habitar do tempo. Em Saravejo é um rio que assiste e lava a dolorosa memória, na atualidade na Síria são areias e pó de cimento e em muitas outras geografias muros electrificados de arame farpado, o horror, tal como a beleza, é universal.

É por isso que crescer é também este confronto com o horror, e que a criança inicial foge do homem adulto que regressa da fonte e olhado da sua perspectiva como o fascista. Crescer é difícil, e os perigos são muitos. Mas crescer é alimentar a curiosidade, dar respostas ao deslumbramento perante o espanto e a natureza do mundo. O Homem diz-lhe que sabe um segredo, é quanto basta para apaziguar os medos da cabeça do infante. Um segredo que passa por esse lugar inicial do amor da mãe como talvez o único lugar capaz da proteção e conforto perante o mundo, o mundo natural e o mundo humano.

Estamos num cinema que trabalha a materialidade, as marcas do tempo impressas no corpo das coisas, um cinema tempo de compridos travellings, e planos sequência, do escuro e da luz, da procura da revelação.

Uma obra que retoma linhas e posicionamentos formais dos grandes mestres Tarkovsky e Bela Tárr. Aliás André Gil Mata, que é Mestre em Dramaturgia e Realização pela Escola Superior de Teatro e Cinema teve uma passagem na film.factory, escola dirigida por Bella Tárr.

Macau no Indie 2018

Uma curta e uma longa, o programa foi organizado para mostrar a diversidade géneros produzidos no território.

BETWEEN THE LIES de Lou Ka Choi, Leong Kin. Animação.

ILLE GALIST   de Penny Lam

Ficção , 26 minutos , preto e branco

O primeiro filme de ficção da Penny Lam , tem como tema a imigração do continente, um para trabalhar nas obras e uma nas atividades comerciais do sexo. Mas nada é propriamente fácil.

PASS ON , de Benz Wong

Documentário que trabalha a educação no núcleo família e como pode a educação em casa influenciar o mundo.

THE LAST ROAR OF A MOTHER BEAR de Marble Leong e Zachary Fong , 80 minutos, ficção.

Dois homicídios com onze anos de distância afectam profundamente dois estranhos. Ele levou um tiro na cabeça e desenvolveu uma perturbação de Identidade Dissociativa que não conhecia. Ela foi mentalmente ferida e a sua retaliação é a única coisa que a faz, perigosamente, continuar.

Cine-performance epistolar, entre o passado e o presente. Num registo autobiográfico, um homem partilha cartas, imagens e sons que trouxe de Macau, onde viveu. Um português longe de casa mas a sentir-se em casa no meio da China.

“… a cleverly-imagined, impressionistic, well-executed and ultimately touching show.” (Peter Gordon/Asian Review of Books)

Este filme – performance teve a sua primeira exibição no território de Macau, surge aliás de um convite The Script Road – Festival Literário de Macau.

António Pedro coloca no ecrã textos selecionados a partir das 194 cartas que recebeu quando viveu em Macau. Das 194 restaram 21. António Pedro tinha em 1994, 24 anos, a questão mais central que se lhe colocava e que queria dar resposta era “ O que quero fazer com a minha vida, o que não quero fazer”. Um trabalho entre o passado e futuro com imagens captadas em diferentes suportes lidas e musicadas pelo próprio .

Concepção e direção artística António-Pedro

Apoios The Script Road – Festival Literário de Macau, DGArtes, Fundação GDA, Fundação Oriente, Bazar do Vídeo, Câmara Municipal de Lisboa

 

 

 

2 Mai 2018

Sobre o pecado

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]eter Sloterdijk descreve o discurso apostólico uma telecomunicação. E é telepática. “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim.” Tal como Paulo, Agostinho é constituído mensageiro de um conteúdo que não é humano. É embaixador de um reino que não está disponível.

O conteúdo é apresentado de diversas modos: a graça e a paz, aspectos fundamentais do que é designado por evangelho: a boa nova, a promessa. Mas este possibilitante não é um conteúdo do mundo nem da vida humana. Não é de todo em todo um conteúdo: é uma outra forma radicalmente diferente de vida. Implica uma metamorfose e uma transfiguração do horizonte tal que fôssemos metamorfoseados e transfigurados nesse e por esse horizonte.

No renascer, está a vibração da morte. A morte constitui a possibilidade radical para a sermos. Sermos no encaminhamento da morte e compreender ser esse encaminhamento é o que diz a teologia da Cruz. A glória consiste em fazer esse caminho, não em nascer como se nada fosse, como se tudo fosse possível. “Eu estou a morrer em cada hora”.

O que me configura é a expressão máxima da condição de escravidão e servidão em que desde sempre já me encontrei: a hamartia, o que na tradução latina se traduz por pecado, de pecco, as, aui, are, peccatum que tem em sânscrito a raiz pikficar furioso. A raiz grega significa falhar o, e atirar além do, alvo, passar das marcas. O que o desejo, a aspiração, o apetite devorador, a vontade irresistível, a ambição, a cobiça e a ganância fazem ao substituírem-se a nós não é o que queremos mas confundem-nos ao ponto de nos fazerem pensar que é isso mesmo que queremos.

Assim a esfera do que peca, do que erra e falha, é vastíssima e não se circunscreve ao que habitualmente pensamos que é. Não se trata apenas dos pecados capitais nem daqueles que se prendem especificamente com a sensualidade ou a irascibilidade. Na verdade o pecado entendido como o que nos obriga a concentrar-nos em nós. Faz-nos esquecer de tudo o que não tenha que ver com o conteúdo em que estamos num dado momento única e exclusivamente interessados. E esse interesse é total. Estende-se, portanto, a todos os momentos da nossa vida. A nossa condição é tal que eu nos servimos a nós desde sempre, já à nascença.

A fome é a minha fome no preciso instante em que se faz sentir e só penso em comer, isto é, quando ela me submerge na ditadura do seu instante e me isola na sua cápsula. A sede é a minha sede no preciso instante em que se faz sentir e só penso em beber, isolando-me consigo no conteúdo preocupante e necessário do que preciso. E até o sono é o meu no momento em que me adormece. O cansaço em geral é o meu cansaço, quando me cansa. O mesmo com a minha sexualidade, a minha auto-afirmação, o meu feitio e temperamento, a minha peculiaridade, a avidez incontrolável da vontade de saber, a minha afectação pelo sublime na arte ou na natureza, a precipitação cega da força da minha vontade, mas também a minha mais profunda necessidade religiosa: todas estas tendências mais ou menos acentuadas e que vincam as dobras do tecido de que a minha vida se encontra revestida encontram-se enraizadas na condição aparentemente não anulável, inexpugnável, irresistível, incontrolável da minha servidão e da minha escravidão de nascimento: A MIM.

Eu sou esta fúria que me dá, este tiro que erra o alvo, falha objectivos, se excede, passa das marcas, sai para fora dos eixos, transgride, ultrapassa os limites. Sou por outro, ou por outros, e até no momento da submersão e do naufrágio no isolamento absoluto em que sou a fome, a sede, o apetite sexual, a curiosidade científica, a auto-afirmação, o temperamento, humor e feitio, a cegueira da vontade, o toque do sublime, a necessidade religiosa: eu sou isso tudo para que me deu, sem margem de manobra, totalmente absolvido dos outros, só eu e o meu mundo. (Karl Barth, Römerbrief). E até no simples adormecer de cansaço tão compreensivelmente humano, posso converter-me em traidor. Cf. Lc, 22. 45-46: “Depois de orar, levantou-se e foi ter com os discípulos, encontrando-os a dormir, devido à tristeza. Disse-lhes: ‘Porque dormis? Levantai-vos e orai para que não entreis em tentação’”.

27 Abr 2018

Irrompe a febre bubónica

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]abe-se desde 7 de Março de 1898 haver peste bubónica em Hong Kong, mas em meados de Abril em Macau ainda se projectam as diversões e estão-se activando os preparativos para a celebração do IV Centenário. Corridas de velocípedes (bicicletas) a terem lugar no grande terrapleno do Tap-siac, já preparado e onde se irá construir um elegante pavilhão, assim como <a batalha de flores que se efectuará na Avenida Vasco da Gama. Entre as senhoras há grande interesse para esta diversão, esperando-se que alguns carros apresentem decorações de fantasia e de muito gosto, refere O Porvir, jornal em português editado em Hong Kong.

Resolvida está já desde Fevereiro a realização de uma tourada à antiga portuguesa a ocorrer numa praça montada no porto interior, como acontecia para os teatros chineses quando vinham a Macau. O mesmo jornal, ainda a 30 de Abril anuncia um baile grandioso, corridas de bicicletas e batalhas de flores e o lançamento da pedra fundamental de um monumento a Ferreira do Amaral e a Mesquita, mas logo no dia seguinte, o Echo Macaense traz a notícia: Há já peste em Macau. Relata a história do acidente com o Sr. Silva Telles na Horta da Mitra, um dos três locais, a par com o Pátio do Figo e S. Lázaro, aliás bem próximos uns dos outros, onde a peste se tinha instalado. Está provado que onde houver luz, ventilação e pouca acumulação de gente e asseio, não há peste, como no caso do Bairro de Volong, apesar de estar contíguo a todos estes sítios, tem estado quase indemne, porque mui poucos casos ali se deram. A maior parte da gente que habitava o Bairro de Volong, quando era um chiqueiro, passou a encurralar-se em pequenos casebres mal ventilados na Horta da Mitra e Pátio do Figo e daí a peste. Já no resto da cidade, mesmo no Bazar, o estado sanitário é bom.

No Sábado, 23 de Abril, “andava o inspector da Polícia Municipal, o Sr. A. da Silva Telles, conjuntamente com os zeladores na faina de desinfectar numa casa na Horta da Mitra, onde se deu um caso de peste. Como a escada da casa fosse muito estreita, estavam os culis arreando de um terraço os tarecos do quarto onde esteve o empestado, quando de repente uma das tábuas que usualmente formam a cama dos chineses, escapou das mãos de um dos culis e veio bater de chapa na cabeça do dito inspector que imediatamente caiu perdendo os sentidos. Felizmente que a tábua não bateu de cutelo na cabeça; se tal acontecesse, teríamos uma desgraça a lamentar. Dois ou três dias depois, apresentou-se ao serviço o dito inspector, e lá continua na sua faina juntamente com seus zeladores. É inegável que alguns zeladores, especialmente o inspector, têm-se salientado pela coragem e dedicação que mostram no perigoso serviço de saneamento e desinfecção das casas onde se deram casos de peste. Nada há que admirar, todavia, pois já deram provas do que valem por ocasião da epidemia em 1895.”

O mesmo jornal constara ter sido de novo proposto o Sr. Dr. Luiz Lourenço Franco, hoje aposentado, para servir no quadro de saúde desta província, em consequência do estado anormal da salubridade pública. Outra notícia dá conta da lavagem de alguns canos por meio da bomba a vapor da inspecção de incêndios. Refere-se também estar já construído o Hospital barraca atrás da fortaleza de D. Maria II, para nele se recolherem os infelizes atacados de peste bubónica que sejam cristãos.

Reduzir comemorações

Aproxima-se “a época dos grandes festejos projectados, mas a terrível peste bubónica veio arrefecer por completo o entusiasmo que havia. O sobressalto que em todos predomina, mais ou menos nesta ocasião, amorteceu o prurido de expansão e de alegria; além disso, não é de certo agradável a perspectiva de vermos a cidade de Macau invadida por 30 ou 40 mil chineses procedentes dos portos e aldeias vizinhas onde grassa também a peste. A aglomeração de gente é sempre prejudicial e perigosa nas epidemias, e muito mais o será na presente época, se atendermos que toda essa imensa multidão não ficará bem alojada e acumular-se-á em casas pouco espaçosas”, no Echo Macaense de 1 de Maio, que refere, “O meio eficaz de evitá-la é, parece-nos, suprimir todos os festejos espalhafatosos que poderiam servir de chamariz e atractivo para os chineses, tais como as luminárias, os fogos-de-artifício, autos chinas, ornamentação das ruas, exposições de flores e de curiosidades e diversões populares. O dinheiro, tanto do governo como das subscrições chinesas, que se gastaria com estas festas ruidosas, poderia ser mais bem empregado em expropriar e reconstruir um bairro qualquer insalubre, por exemplo, o de S. Lázaro, ao qual se poderá dar o nome de bairro Vasco da Gama”.

Na semana seguinte O Independente diz: “De há muito que é nossa opinião que os festejos que se projectam fazer, para comemorar o quarto centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia, não se deveria realizar, atendendo a um conjunto de circunstâncias que, infelizmente, imperam nesta colónia. (…) Não se pode ocultar já, porque é do domínio público, que estamos a braços com uma epidemia de peste bubónica, que traz sobressaltada a maior parte da população desta terra. Algumas vítimas têm sido prostradas por esse terrível flagelo, levando a muitas famílias o luto e a desolação. A população chinesa, que constitui a quase totalidade desta cidade, e sobre a qual a peste tem, principalmente, exercido a sua acção mortífera, está dominada pelo maior terror, está subjugada ao peso de uma dor intensa e cruciante. (…) Com que prazer poderão andar em festas e folias uns centos de portugueses, numa terra pequena como esta, quando a comunidade chinesa, que é a que dá vida a esta colónia e sem a qual a sua existência seria impossível, chora amarguradamente e aterrorizada, promove procissões aos seus deuses implorando misericórdia para tantos males? Que satisfação poderemos nós ter para cuidarmos de iluminações, cortejos e saraus, com bolas de naftalina no bolso e alcatrão e ácido fénico espalhado pelas nossas casas, quando nas igrejas se vão fazendo preces para que o Criador nos livre deste flagelo?”

Um dia depois, a 9 de Maio, o Presidente da Comissão Executiva vem tornar públicas as decisões tomadas e apoiadas no parecer do chefe do serviço de saúde, que vão ao encontro das expressas nos artigos dos jornais acima referidos. Decidido fica não serem enviados convites especiais aos portugueses e estrangeiros residentes fora desta cidade. Igualmente, declara que não serão prejudicados os trabalhos da subcomissão encarregada de estudar e propor o projecto de um monumento a João Maria Ferreira do Amaral e Vicente Nicolau Mesquita, cuja realização depende da conclusão do processo de reabilitação deste oficial, actualmente afecto ao tribunal eclesiástico, trabalhos que prosseguirão logo que seja conhecida a sentença.

A população católica de Macau reza a S. Sebastião, advogado contra a peste, esperando protecção e pela sua divina intervenção, debelar tão grande flagelo.

27 Abr 2018