Raccord I

[dropcap style≠‘circle’]T[/dropcap]udo o que vemos está à nossa frente. Os olhos estão dirigidos para fora, têm uma orientação, uma direcção, nem sempre um alvo. Podemos perder-nos no horizonte ou nos objectos espalhados pelo hemisfério que captamos. Entre o céu azul em cima de nós e o plano que se estende dos nossos pés até lá ao “fundo” à linha do horizonte, o olhar pode apanhar tudo o que aí está pulverizado em cima e em baixo, distante e próximo, dentro e fora, à direita e à esquerda. É assim que vemos o pôr do sol. Uma vez posto, viramo-nos para a direcção contrária. O que tínhamos à nossa frente “desfaz-se”, desaparece da vista para fora, fica literalmente atrás das nossas costas, e passamos a ter à nossa frente outro hemisfério. Vejo agora também lá ao fundo o céu ainda azul do fim de tarde de onde se perfilam as casas da aldeia concentradas em diferentes planos fundidos, mas diferentes, uns mais próximos dos outros. Entre a concentração de edifícios na aldeia e o sítio onde estou estendem-se a estrada e os passeios que a ladeiam, a praia, as pessoas que ainda lá se encontram.

Há sempre um arredondamento dos conteúdos do mundo, mesmo que do meu mundo. Só vemos o que está à nossa frente e para onde nos dirigimos. É por aí que nos orientamos. À medida que nos viramos, rápida ou lentamente, desaparece o que tínhamos e aparece o que não tínhamos. Há sempre apenas a sensação de que temos mundo atrás das costas, para onde não estamos a olhar. Para o activarmos, porém, temos de olhar nesse sentido e nessa direcção. O plano de fundo tende a atrair objectos que concentra espalhados numa abóbada. As estrelas espalhadas pelo céu na noite de Agosto estão todas aparentemente numa mesma película, num mesmo plano, com um brilho diferente. E, contudo, se ainda lá estiverem, e estão sempre enquanto brilham, estão a distâncias diferentes de cada um de nós. Podemos perceber a lua e o sol mais próximos de nós. Mas a partir de determinada distância todos os objectos são empurrados para o seu limite homogéneo, todos eles lá ao fundo. Só a proximidade nos dá o relevo, alto e baixo, permite resolver com nitidez os contornos dos objectos e, com as diversas, percepções ter uma imagem mais completa da realidade do que são.

Com o tempo passa-se o mesmo. Há um aparente predomínio do presente. É agora que estamos a atravessá-lo com uma velocidade configurada pela actualidade das actividades ou inactividades a que nos dedicamos. A manhã passa rápida ou lenta, não damos pelo tempo passar ou damos por ele a passar tão lentamente que parece que ouvimos cada segundo a passar no relógico cósmico. A actualidade do presente mantém aderida a si ainda o dia de ontem, como decorreu, o que fizemos, como se estivéssemos a olhar para uma página do diário em que tudo foi apontado tim tim por tim-tim, ou como quando tentamos lembrar-nos do que comemos de véspera, se fizemos ou não fizemos X, Y e Z. A actualidade mantém também o estilo de experiência com que esperamos o que se passará no dia de amanhã, que dia da semana é e o que costumamos fazer nesse dia da semana, se é dia feriado ou um dia normal, que dia da semana é. Ainda assim, é do tempo presente e vivo da actualidade que mantemos esses dois olhos virados para o passado e para o futuro. Quando pensamos no dia de ontem e tentamos reconstituí-lo temos à nossa frente os objectos como se estivéssemos a percepciona-los. A lembrança tem sempre uma orientação e direcção para o olhar. Mesmo quando me lembro do pequeno almoço, a janela está à minha frente quando entro na cozinha e só quando lhe viro as costas vejo a porta de entrada. A lembrança segue o padrão da percepção. Quando antecipo o jantar de hoje e as pessoas que irei encontrar, vejo-as também de frente e se lhes virar as costas sei que não as verei. Apenas “as farei a ser”. Quando não penso no dia de ontem nem no dia de amanhã, percebo que me aparecem em lembretes as impressões deixadas e as antecipações do que há-de ser uma impressão no presente. Mas a actualidade do presente está sempre impregnada do próprio sentido da impressão deixada pelo que foi vivido e pela antecipação da impressão que será deixada e dos estados em que ficaremos depois de termos passado pelo futuro que nós dará a viver em actualidade o que é meramente virtual.

O futuro e o passado são o horizonte que servem de fundo às fases de tempo entre o passado todo e o presente ou o futuro todo e o presente. Está mais próximo de nós o dia de ontem do que a semana passada, os últimos vinte anos do que os últimos quarente. Está também mais próximo de nós o dia de amanhã do que depois de amanhã, os próximos anos do que mais tarde. Mas o passado tende a atrair e absorver tudo o que é passado para um fundo idêntico ao céu por onde se distribuem as estrelas, lá ao fundo e num mesmo plano indistinto. Também o futuro dos futuros é esse céu que mantém em si todos os momentos de tempo. Não só os momentos futuros de todas as pessoas que estão aí comigo e das que ainda nascerão. Esse céu que tem espalhado por si todos os tempos no seu fim. É lá que se encontra também a primeira vez de todas as primeiras vezes. A primeira vez não está atrás de mim, nas minhas costas, tão pouco como o futuro está à minha frente à minha espera. Todo o meu passado está à espera de mim na hora da minha morte. E pode também acontecer que não tenha já futuro. O que quer dizer que o meu olhar se perde nele como se perde no céu azul, deixando-me sem distância para a proximidade e o que está à mão.

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