Sobre o pecado

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]eter Sloterdijk descreve o discurso apostólico uma telecomunicação. E é telepática. “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim.” Tal como Paulo, Agostinho é constituído mensageiro de um conteúdo que não é humano. É embaixador de um reino que não está disponível.

O conteúdo é apresentado de diversas modos: a graça e a paz, aspectos fundamentais do que é designado por evangelho: a boa nova, a promessa. Mas este possibilitante não é um conteúdo do mundo nem da vida humana. Não é de todo em todo um conteúdo: é uma outra forma radicalmente diferente de vida. Implica uma metamorfose e uma transfiguração do horizonte tal que fôssemos metamorfoseados e transfigurados nesse e por esse horizonte.

No renascer, está a vibração da morte. A morte constitui a possibilidade radical para a sermos. Sermos no encaminhamento da morte e compreender ser esse encaminhamento é o que diz a teologia da Cruz. A glória consiste em fazer esse caminho, não em nascer como se nada fosse, como se tudo fosse possível. “Eu estou a morrer em cada hora”.

O que me configura é a expressão máxima da condição de escravidão e servidão em que desde sempre já me encontrei: a hamartia, o que na tradução latina se traduz por pecado, de pecco, as, aui, are, peccatum que tem em sânscrito a raiz pikficar furioso. A raiz grega significa falhar o, e atirar além do, alvo, passar das marcas. O que o desejo, a aspiração, o apetite devorador, a vontade irresistível, a ambição, a cobiça e a ganância fazem ao substituírem-se a nós não é o que queremos mas confundem-nos ao ponto de nos fazerem pensar que é isso mesmo que queremos.

Assim a esfera do que peca, do que erra e falha, é vastíssima e não se circunscreve ao que habitualmente pensamos que é. Não se trata apenas dos pecados capitais nem daqueles que se prendem especificamente com a sensualidade ou a irascibilidade. Na verdade o pecado entendido como o que nos obriga a concentrar-nos em nós. Faz-nos esquecer de tudo o que não tenha que ver com o conteúdo em que estamos num dado momento única e exclusivamente interessados. E esse interesse é total. Estende-se, portanto, a todos os momentos da nossa vida. A nossa condição é tal que eu nos servimos a nós desde sempre, já à nascença.

A fome é a minha fome no preciso instante em que se faz sentir e só penso em comer, isto é, quando ela me submerge na ditadura do seu instante e me isola na sua cápsula. A sede é a minha sede no preciso instante em que se faz sentir e só penso em beber, isolando-me consigo no conteúdo preocupante e necessário do que preciso. E até o sono é o meu no momento em que me adormece. O cansaço em geral é o meu cansaço, quando me cansa. O mesmo com a minha sexualidade, a minha auto-afirmação, o meu feitio e temperamento, a minha peculiaridade, a avidez incontrolável da vontade de saber, a minha afectação pelo sublime na arte ou na natureza, a precipitação cega da força da minha vontade, mas também a minha mais profunda necessidade religiosa: todas estas tendências mais ou menos acentuadas e que vincam as dobras do tecido de que a minha vida se encontra revestida encontram-se enraizadas na condição aparentemente não anulável, inexpugnável, irresistível, incontrolável da minha servidão e da minha escravidão de nascimento: A MIM.

Eu sou esta fúria que me dá, este tiro que erra o alvo, falha objectivos, se excede, passa das marcas, sai para fora dos eixos, transgride, ultrapassa os limites. Sou por outro, ou por outros, e até no momento da submersão e do naufrágio no isolamento absoluto em que sou a fome, a sede, o apetite sexual, a curiosidade científica, a auto-afirmação, o temperamento, humor e feitio, a cegueira da vontade, o toque do sublime, a necessidade religiosa: eu sou isso tudo para que me deu, sem margem de manobra, totalmente absolvido dos outros, só eu e o meu mundo. (Karl Barth, Römerbrief). E até no simples adormecer de cansaço tão compreensivelmente humano, posso converter-me em traidor. Cf. Lc, 22. 45-46: “Depois de orar, levantou-se e foi ter com os discípulos, encontrando-os a dormir, devido à tristeza. Disse-lhes: ‘Porque dormis? Levantai-vos e orai para que não entreis em tentação’”.

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